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A especificidade do Populismo de Esquerda
The specificity of Left-Wing Populism
A especificidade do Populismo de Esquerda
História (São Paulo), vol. 40, e2021061, 2021
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
Recepção: 25 Março 2019
Aprovação: 08 Maio 2020
Financiamento
Fonte: FAPERGS - Programa Pesquisador Gaúcho - PqG
Número do contrato: 17/2551-0000961-4
Financiamento
Fonte: FAPERJ - Programa Jovem Cientista do Nosso Estado
Número do contrato: 2019/202.749
Descrição completa: A pesquisa que resultou neste artigo contou com os financiamentos do Edital nº 02/2017 FAPERGS - Programa Pesquisador Gaúcho - PqG (Proc. 17/2551-0000961-4) e do Edital nº 10/2019 FAPERJ - Programa Jovem Cientista do Nosso Estado - (Proc. 2019/202.749).
RESUMO: Este texto tem por objetivo refletir teoricamente sobre o populismo de esquerda e a forma como este tipo específico de construção política pode nos auxiliar a pensar sobre a radicalização da democracia. Nossa ideia é a de que o populismo de esquerda, ao contrário do de direita, é democrático, uma vez que ele está estruturalmente associado a discursos inclusivos e/ou emancipatórios, enquanto o de direita legitima toda a sorte de discursos de exclusão. Para a consecução do objetivo enunciado, o texto está dividido em três seções principais. Na primeira seção, discutiremos criticamente três importantes contribuições para a compreensão do populismo, notadamente as análises de Cas Mudde, em colaboração com Cristóbal Kaltwasser, Margaret Canovan e Ernesto Laclau. Ao final da seção, apresentaremos a nossa definição mínima para o fenômeno populista, a qual resumidamente pode ser enunciada como uma construção política e antagônica de um povo contra os seus inimigos. Na segunda parte, primeiramente, apresentaremos a distinção crucial para o estudo dos dois tipos principais de populismo: o de direita e o de esquerda. Posteriomente focaremos nossos esforços na análise do populismo de esquerda. Para tanto, apresentaremos a “vontade dos iguais”, categoria teórica que entendemos útil à compreensão de experiências populistas inclusivas. Na última seção, discutiremos brevemente as consequências teórico-metodológicas e principalmente éticas da distinção entre ambos os populismos.
Palavras-chave: populismo, populismo de esquerda, populismo de direita, vontade dos iguais, democracia radical.
ABSTRACT: This article aims at reflecting on leftist populism and how this specific type of political construction could foster radical democracy. We believe that leftist populism, unlike the right-wing one, is democratic in the sense of being structurally associated to inclusive, emancipatory discourses, while right-wing populism is based on discourses of exclusion. For that, the article is divided in three main sections. First, we will present a brief survey of current debates on the concept of populism, focusing our attention on the work by Cas Mudde and Cristóbal Kaltwasser, Margaret Canovan, and Ernesto Laclau. Here we will present what we call a minimal definition of the populist phenomenon, which we posit as a political, antagonistic construction of a people against its enemies. The second section will explore a key distinction to the understanding of contemporary forms of populism: right-wing and leftist populism. Afterwards, we shift our focus to the analysis of contemporary experiences of leftist populism in order to articulate it with the notion of ‘will of equals’, a concept we claim to be useful to the understanding of inclusive forms of populism. Finally, we will discuss the theoretical, methodological, and ethical consequences of the distinction of left and right populism.
Keywords: populism, left-wing populism, right-wing populism, will of equals, radical democracy.
A relação entre democracia liberal e populismo é comumente marcada pela disputa em torno do sentido de democracia. Para os liberais, a democracia, como regime político, pressupõe a existência de instituições reguladas pela impessoalidade da lei, o que garantiria a todos os cidadãos um tratamento equânime e justo em um ambiente político social de direitos e de deveres bem estabelecidos. Já o populismo caracteriza-se pela descrença e, ao mesmo tempo, pelo desafio das instituições liberais, as quais voltam-se somente aos interesses das elites políticas e econômicas, relegando o povo a uma condição subalterna. Dessa forma, os populistas reivindicam ser os verdadeiros democratas, uma vez que seus discursos direcionam-se imediatamente aos interesses do povo.
Os populistas são alvo de diversas e constantes críticas desferidas pelos liberais. Uma das principais é a de que eles desprezam as instituições e, nesse sentido, a própria regra democrática. Reduzidos a uma palavra, são acusados de serem somente autoritários.
Ainda que esta e outras críticas dos liberais ao populismo sejam procedentes, há muita verdade também nas críticas que os populistas dirigem às democracias realmente existentes. Os próprios liberais admitem, embora considerem os populistas perigosos, que “os populistas têm razão em ver, na democracia contemporânea, uma conspiração para tomar o poder do povo, e eles são perigosos, precisamente porque estão certos”1 (CANOVAN, 2005, p. 85). Mesmo que seja perfeitamente possível pensar que o populismo pode ser, de fato, perigoso ao regime democrático, é pertinente pensar como o populismo pode ser igualmente importante para a radicalização desse regime tão pouco afeito, em sua versão liberal representativa, à participação popular.
Nesse sentido, este texto tem por objetivo refletir teoricamente sobre o populismo de esquerda e a forma como este tipo específico de construção política pode auxiliar a pensarmos a radicalização da democracia. Nossa ideia é a de que o populismo de esquerda, ao contrário do de direita, é democrático, uma vez que está estruturalmente associado a discursos inclusivos e/ou emancipatórios, enquanto que o de direita legitima toda a sorte de discursos de exclusão.
É importante como caráter inicial já fazermos uma observação, no sentido de que a discussão realizada neste texto dialoga fundamentalmente com as mais recentes formulações teóricas sobre o populismo. Tais formulações têm sido realizadas nos contextos europeu, estadunidense e latino-americano com grande vigor a partir do final dos anos 1990 e têm recebido destaque no cenário acadêmico internacional desde a virada do século até o momento, em grande medida devido às novas experiências populistas, à direita ou à esquerda, registradas em diversas partes do mundo. Além disso, como será visto, trata-se de um debate sobre o populismo ainda não realizado em nosso país e que este texto busca, de alguma forma, introduzir em nosso meio intelectual.
Para a consecução do objetivo enunciado, o texto está dividido em três seções principais. Na primeira, discutiremos criticamente três importantes contribuições para a compreensão do populismo, notadamente a análise de Cas Mudde, em colaboração com Cristóbal Kaltwasser, a de Margaret Canovan e a “razão populista” de Ernesto Laclau.2 Ao final da seção, apresentaremos a nossa definição mínima de populismo, a qual resumidamente pode ser enunciada como uma construção política e antagônica de um povo contra os seus inimigos.
Na sequência, primeiramente, apresentaremos a distinção entre os dois tipos principais de populismo, o de direita e o de esquerda. Como já antecipamos, o primeiro está estruturalmente associado a discursos xenofóbicos, racistas, nacionalistas e excludentes. Enquanto que o populismo de esquerda vincula-se às políticas inclusivas e/ou emancipatórias. Feita a distinção entre ambos, no restante da seção, focaremos nossos esforços à análise do populismo de esquerda. Para tanto, introduziremos a “vontade dos iguais”, categoria teórica útil para a compreensão de experiências populistas inclusivas.
Na última seção, discutiremos brevemente as consequências teórico-metodológicas e principalmente éticas da distinção entre os populismos de direita e de esquerda. Sob o ponto de vista teórico e metodológico, não conceber a diferença entre ambos os tipos principais de populismo acarreta uma compreensão unilateral do fenômeno, sobretudo no que diz respeito a sua relação com a democracia liberal. Sob a perspectiva ética, defendemos que entre ambos os tipos ideológicos principais de populismo, somente o de esquerda, justamente por sua característica igualitária, pode ser considerado democrático.
Mudde, Canovan, Laclau e uma definição mínima de populismo
É lugar comum afirmar que o conceito de populismo é contestado. Há diversas razões que explicam essa posição incômoda que ele ocupa. Não é nosso objetivo aqui realizar a genealogia desse incômodo. Vamos inicialmente indicar o problema conceitual que ele comporta para posteriormente percorrermos um caminho em direção a uma definição mínima e útil de populismo, seja para avançarmos teoricamente na sua compreensão ou para informar pesquisas empíricas.
Os estudos iniciais sobre o populismo buscaram compreendê-lo a partir de duas formas principais.3 A primeira delas referia-se às “características” que lhe seriam definidoras (CANOVAN, 1981; WILES, 1969). O problema principal dessa primeira forma residia no fato de que a lista de características do populismo vinha sempre acompanhada por uma enormidade de exceções, fraqueza analítica já observada por Laclau (2005a).4
A segunda maneira de caracterizar as experiências populistas apostava no fato de que o populismo seria um fenômeno histórico transitório. As abordagens de caráter historicista foram muito difundidas nas análises das experiências populistas latino-americanas. Se, por exemplo, tomarmos o trabalho de Octavio Ianni (1968), veremos que o populismo no Brasil representou a incorporação das massas urbanas no cenário político do país no período histórico compreendido desde a ascensão de Vargas, em 1930, até o golpe militar que, em 1964, derrubou o então presidente João Goulart.5
Ambas as formas de conceber o fenômeno populista resultaram incapazes de compreendê-lo de forma adequada. Não se trata aqui de aumentar ainda mais o rol de características definidoras ou de ampliar o período histórico de sua ocorrência, pois o populismo não pode ser compreendido a partir de um excesso de sentidos ou de etapas históricas, senão pelo seu contrário. É necessário percebê-lo a partir de um conceito simples que seja de fato capaz de ser universalizado para todas as experiências reconhecidas como populistas.
Nesse sentido, o populismo não apenas ocorreu num passado relativamente recente, mas ocorre, inclusive nos dias de hoje. Ele não é um fenômeno somente rural, mas também urbano. Não tem uma ideologia definida, possuindo experiências tanto à esquerda como à direita. Não detém lugar somente em Estados não democráticos ou em democracias frágeis ou recentes, mas surge com vigor também em democracias estabelecidas. Essa variedade de possibilidades demonstra o quanto o populismo é impreciso e vago. Por essa razão, todo o excesso conceitual ou redução histórica são incapazes de capturar o seu centro, o seu ponto mínimo de compreensão e de distinção em relação a outros fenômenos políticos.
Foi a partir da constatação de que é possível haver as mais distintas variações de movimentos populistas que, principalmente a partir da década de 1990, uma série de pesquisadores iniciaram um movimento em busca do “núcleo duro” definidor do fenômeno. Resumimos este “núcleo duro” na asserção de que o populismo é o antagonismo fundamental entre o povo e os seus inimigos. Não é aqui nosso objetivo realizar uma revisão desses conceitos mínimos de populismo, visto que claramente foge aos nossos propósitos. No entanto, com o intuito de defendermos essa posição conceitual minimalista, visitaremos criticamente três das mais importantes abordagens sobre o tema. Veremos, respectivamente, as posições de Cas Mudde e Cristóbal Kaltwasser, de Margaret Canovan e de Ernesto Laclau.
Em relação aos primeiros autores, nossa análise se concentrará na definição mínima de populismo, inicialmente desenvolvida por Mudde (2004) e, futuramente, em colaboração com Kaltwasser (MUDDE; KALTWASSER, 2013, 2017). Para eles, o populismo deve ser entendido como “uma ideologia frágil” (a thin-centered ideology) que considera a sociedade separada em dois campos homogêneos e antagônicos, ‘o povo puro’ versus ‘a elite corrupta’, e que argumenta que a política deve ser a expressão da volonté générale (vontade geral) do povo” (MUDDE; KALTWASSER, 2017, p. 6).
Além dos elementos que apontamos anteriormente como pertencentes a uma definição que entendemos mínima e necessária para o populismo, isto é, o antagonismo entre o povo (na linguagem de Mudde e Kaltwasser, “o povo puro”) e os inimigos do povo (nomeado pelos autores como “a elite corrupta”), esta abordagem sinaliza ainda mais três elementos: i) o populismo é uma ideologia; ii) o antagonismo populista separa a sociedade em dois grupos homogêneos e; iii) a política, para o populismo, deveria ser algo como “uma expressão da volonté générale (vontade geral) do povo”.
O primeiro elemento, a defesa do populismo como ideologia, é central para os autores. No contexto da sua “abordagem ideacional”, “uma ideologia é um corpo de ideias normativas sobre a natureza do homem e da sociedade. Simplificando, é uma visão de como o mundo é e de como deve ser” (MUDDE; KALTWASSER, 2017, p. 6). Para eles, seguindo a terminologia de Michael Freeden (1996), o populismo é uma “ideologia frágil” com uma “morfologia restrita”, devendo essa necessariamente estar ligada a outras ideologias. Isso explica o fato de o populismo apresentar-se de diversas formas e em distintos momentos históricos. A ideia-chave é explicar a vagueza, a imprecisão, ou ainda, como afirma Paul Taggart (2000), a “natureza camaleônica” do populismo.
O segundo elemento no conceito de populismo proposto por Mudde e Kaltwasser é a assunção de que o antagonismo populista divide a sociedade em dois grupos homogêneos, o povo versus a elite corrupta. A homogeneidade pressupõe, portanto, dois blocos indistintos, baseados em duas características presentes no populismo: o antielitismo e o antipluralismo. Ambas as características se complementam, visto que o populismo condena o elitismo, ideologia que considera o povo uma massa perigosa e vulgar, e o pluralismo, que considera que “a sociedade é dividida em uma ampla variedade de grupos sociais parcialmente sobrepostos com ideias e interesses diferentes” (MUDDE; KALTWASSER, 2017, p. 7).
O terceiro elemento é a pressuposição de que o populismo considera a política como a expressão da “vontade geral”, no sentido expresso por Rousseau. Estabelecendo a distinção que esse filósofo faz entre a vontade geral (volonté générale) e a vontade de todos (volonté de tous), para os autores “a distinção monista e moral do populismo entre o povo puro e a elite corrupta reforça a ideia de que existe uma vontade geral” (MUDDE; KALTWASSER, 2017, p. 16).
Ainda que Mudde e Kaltwasser (2013) busquem apresentar uma “definição mínima” para o populismo - que seja possível captar as suas diversas possibilidades fenomênicas e que também seja útil para pesquisas empíricas - entendemos que tal esforço não resulta numa definição realmente mínima, tampouco em uma definição cujos elementos possam ser necessariamente universais para todos os casos de populismo.
Como sustentamos acima, para que o populismo possa ser compreendido em suas múltiplas possibilidades, o seu conceito deve restringir-se ao que há de mais específico, ou seja, ao antagonismo entre o povo e os seus inimigos. O conceito de Mudde e de Kaltwasser extrapola em muito a simplicidade conceitual necessária para a compreensão do populismo, adicionando elementos que são questionáveis, como veremos a seguir.
O primeiro deles é a afirmação de que o populismo é uma ideologia, mais especificamente uma “thin-centred ideology”, isto é, do tipo frágil normalmente associado a outras ideologias. A pergunta que fazemos é a seguinte: se o populismo é um tipo de ideologia, ainda que frágil, qual é a visão de mundo que ela comporta? Se a resposta é a ideia da defesa do poder do povo ou da vontade geral (trataremos mais especificamente sobre esta última daqui a pouco), o que distinguiria o populismo da própria ideia de democracia? Poder e vontade do demos são as marcas distintivas da democracia, forma de governo contraposta a outras na antiguidade, notadamente monarquia, aristocracia e oligarquia. Neste sentido, contrariamente aos autores, entendemos que o populismo não é uma ideologia, mas um tipo específico de antagonismo que opõe, em polos distintos, o povo e os seus inimigos. Trata-se assim, de uma relação antagônica que se associa às mais distintas ideologias, mas que em termos ontológicos não comporta nenhuma.
O segundo ponto, ou seja, o antagonismo populista separa a sociedade em dois grupos homogêneos, também nos parece duvidoso. Esta característica não é incomum a outras abordagens sobre o fenômeno. Paul Taggart (2000, p. 92), por exemplo, afirma que “enquanto o grande número de pessoas é importante para os populistas, isso não deve ser confundido com pluralidade ou variedade. A concepção populista de ‘povo’ é fundamentalmente monolítica”. Assim, homogêneo e monolítico são palavras comuns para descrever o populismo. No entanto, entendemos que qualquer experiência populista é heterogênea em sua constituição e a simplificação que dá a ideia de homogeneidade é o efeito do processo hegemônico por que passa um movimento como este. Vislumbrar o populismo como homogêneo é tomar a causa pelo efeito, reduzindo toda a articulação popular ao papel necessariamente simplificador do líder e dos pontos nodais que caracterizam ideologicamente qualquer discurso populista.
Nossa terceira e última crítica ao conceito de Mudde e Kaltwasser está na forma como os autores atribuem ao populismo a ideia de que a política deveria ser a expressão de uma “vontade geral”, no sentido expresso por Rousseau. Para o filósofo genebrino, era crucial a distinção entre vontade geral e vontade de todos: “há uma grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; a última considera apenas o interesse comum, enquanto a primeira tem relação com interesses privados e é apenas uma soma de vontades particulares” (ROUSSEAU, 2002, p. 172).
Como é extensamente conhecido, Rousseau opta pela vontade geral em detrimento da vontade de todos, não somente, como vimos na citação acima, porque a primeira expressa o verdadeiro interesse comum, mas também pelo fato de que esse interesse comum somente pode ser expresso de uma determinada forma, ou seja, a partir da deliberação de cidadãos livres de qualquer interferência de grupos ou de facções: “é importante, então, para se ter uma clara declaração da vontade geral, que não deve haver facções no Estado e que todo cidadão deve expressar apenas sua própria opinião” (ROUSSEAU, 2002, p. 173).
Não há nada mais distante da lógica populista do que o idealismo político presente na filosofia rousseauniana, especialmente na sua exigente proposta normativa da vontade geral. O populismo divide politicamente a sociedade em dois campos, na terminologia de Mudde e Kaltwasser, “o povo puro” versus “a elite corrupta”. Não há, portanto, possibilidade de uma vontade geral ser constituída em uma sociedade dividida em facções. Ademais, a decisão que produz a vontade geral não pressupõe qualquer representação política, uma vez que esta somente pode ser tomada a partir da deliberação de todos os cidadãos. O populismo, ao contrário, não ocorre sem um processo de representação, corporificado na figura do líder, no partido ou em outro tipo de organização política.
A próxima abordagem sobre a qual concentraremos nossa atenção é a de Margaret Canovan (1999; 2005). Para a autora: “o populismo, nas sociedades democráticas modernas, é melhor visto como um apelo ao ‘povo’ contra a estrutura de poder estabelecida e as ideias e valores dominantes na sociedade” (CANOVAN, 1999, p. 3).
O conceito de Canovan aproxima-se da definição mínima a qual entendemos ser a mais adequada para compreendermos os fenômenos populistas. O grande mérito de sua análise consiste na sua decisão de concentrar a atenção aos elementos estruturais do populismo. Assim, o populismo em seu sentido conceitual e formal, é uma estrutura que persiste independentemente de aspectos ideológicos e idiossincráticos de cada experiência que leva este nome. Para Canovan (1999), o populismo não é simplesmente antissistêmico, uma vez que esse traço distintivo existe em outros tipos de mobilizações políticas, tais como nos novos movimentos sociais. Segundo a autora: “o populismo desafia não somente os detentores de poder, mas também os valores da elite. O animus populista é dirigido não apenas aos establishments políticos e econômicos, mas também aos formadores de opinião na academia e na mídia” (CANOVAN, 1999, p. 3).
O que chama especialmente a atenção é a ideia da autora de que o populismo não é apenas uma reação contra as estruturas de poder, mas um apelo (appeal) ao povo, o qual, no contexto das sociedades democráticas contemporâneas, é uma “autoridade reconhecida” (1999, p. 4). Notemos que a estrutura sugerida por Canovan pressupõe um povo que existe a priori e é para este povo que o populista apela “como a última fonte de legitimidade” (CANOVAN, 2005, p. 80). Dessa forma, segundo esta abordagem, o populismo é uma estrutura que funciona a partir da ação inicial de um líder que tendo em vista o seu poder carismático ou de convencimento, torna o povo sujeito de seu discurso. Nessa estrutura populista, o povo é um sujeito passivo, que responde positivamente ao apelo do líder: “os populistas, em democracias estabelecidas, afirmam que falam pela ‘maioria silenciosa’ de ‘pessoas comuns e decentes’, cujos interesses e opiniões são (eles afirmam) regularmente substituídos por elites arrogantes, políticos corruptos e minorias estridentes” (CANOVAN, 1999, p. 5).
Ainda que admitamos ser uma abordagem importante sobre o populismo, entendemos, no entanto, que o problema principal da análise de Canovan é a forma unilateral como a autora concebe a constituição da estrutura populista, ou seja, de cima para baixo, do líder aos liderados, invocando a soberania popular como fonte última de legitimidade em uma democracia. Nesse sentido, de forma paradoxal, o populismo seria uma política elitista - visto que sempre partiria da vontade do líder em direção aos liderados -, que denuncia o elitismo das democracias representativas liberais e, que ao mesmo tempo, se afirma como a representação mais genuína do povo. O líder populista seria uma espécie de demiurgo popular capaz de, ao mesmo tempo, interpretar os mais puros e verdadeiros anseios do povo, além de representá-lo.
Esta leitura de cima para baixo do populismo fragiliza-se diante da possibilidade de considerarmos as mobilizações populistas surgindo justamente de baixo para cima, ou seja, a partir de demandas democráticas que se convertem, em um processo de articulação, em demandas populares até a constituição do discurso populista, tal como sugere Ernesto Laclau (2005a; 2005b). É justamente esse processo descrito pelo teórico político argentino que, em linhas gerais, abordaremos a partir de agora.
Ernesto Laclau pode ser considerado um dos precursores da busca por uma definição mínima de populismo capaz de dar uma inteligibilidade ao fenômeno. Desde “Towards a Theory of Populism” (1977), o autor já percebe que o populismo deve ser analisado a partir do antagonismo específico do povo versus seus inimigos.6 Para Laclau, desde lá está igualmente claro que o populismo é um termo vago, impreciso e que pode ser observado desde diferentes ideologias, sendo, portanto, fundamental compreender o seu antagonismo específico: “a contradição entre povo e bloco de poder é um antagonismo, cuja inteligibilidade não depende das relações de produção, mas do complexo de relações políticas e ideológicas de dominação que constituem uma formação social determinada” (1977, p. 166).
Está claro, portanto, que os primeiros contornos da teoria do populismo de Laclau já haviam sido traçados no ensaio de 1977. No entanto, o seu desenvolvimento mais abrangente aparecerá somente vinte e oito anos após, com a publicação de On Populist Reason (LACLAU, 2005a). Nesta obra, o autor analisa o populismo, desde uma perspectiva pós-estruturalista, dispensando a lógica classista marxista-althusseriana presente na sua análise do final dos anos 1970. Não é nosso objetivo aqui apresentar uma leitura pormenorizada deste último desenvolvimento sobre o tema, mas tão somente apontar alguns elementos descritivos que serão fundamentais para a nossa própria definição de populismo.
Primeiramente, para Laclau, o populismo deve ser visto sob uma perspectiva ontológica. Assim, independentemente dos conteúdos ônticos presentes em cada experiência populista, haverá segundo a perspectiva do autor num nível formal, “a prevalência da lógica equivalencial sobre a diferencial” (2005b, p. 44). Isso indica que, na formação de qualquer discurso populista, haverá a primazia da constituição de uma fronteira antagônica que divide o povo e o bloco de poder sobre as relações diferenciais, que são simples demandas direcionadas, num nível administrativo, aos canais institucionais. Nesse sentido, para o autor, “por ‘populismo’ não entendemos um tipo de movimento - identificável, seja com uma base social especial, seja com uma orientação ideológica particular - mas uma lógica política” (2005a, p. 117). A dimensão ontológica da análise laclauniana do populismo pode ser também compreendida a partir da distinção entre lógica social e lógica política. Enquanto a primeira reside simplesmente em seguir regras, a segunda deve ser compreendida como a “instituição do social” (2005a, p. 117). Vejamos agora os passos descritos pelo autor até a constituição plena de um discurso populista, a começar pela análise da categoria “demanda social”.
Para o autor, demanda social é a unidade mínima a ser considerada para a emergência do populismo. Existem, segundo Laclau, duas formas de compreender esta categoria. Demanda (demand) pode ser, num primeiro momento, um “pedido simples” (a simple request) ou, num estágio posterior, uma reivindicação (a claim). Na primeira forma, a demanda é vista como uma solicitação feita diretamente aos canais institucionais formais. Nesse sentido, a falta de uma escola primária num bairro popular pode ensejar tal pedido à municipalidade. Se a escola for construída, o problema termina e a demanda se exaure. O atendimento dessa ocorre no plano institucional, instância em que opera, de forma privilegiada, a lógica da diferença. No entanto, se a demanda não for atendida, apesar da frustração gerada, esta pode até mesmo desaparecer, a menos que outras demandas também não atendidas passem a exercer uma relação de articulação entre si. Neste caso, as demandas mudam o status de simples pedidos para o de reivindicações. A partir daí, conforme Laclau, um corte antagônico passa a dividir negativamente o espaço social entre essas demandas populares articuladas contra a institucionalidade. Gera-se uma identificação entre os “de baixo” versus o “poder”.
Tal negatividade antagônica, construída pela divisão do espaço social entre “os de baixo” versus “o poder”, é a precondição para a lógica populista. No entanto, é preciso adicionar um elemento a mais, ou seja, o campo popular constitui o seu próprio processo de representação. Tal processo tem lugar quando uma (ou mais) entre as demandas articuladas, num dado momento precário e contingente, passa a representar a cadeia de equivalências popular - que evidentemente a excede em sentidos - exercendo assim, uma tarefa hegemônica. Quanto mais extensa for a cadeia equivalencial, mais frágeis serão os sentidos das demandas particulares que assumem o papel de representação dessa cadeia. Neste momento, chega-se a um ponto crucial para a compreensão da lógica populista: “a construção de uma subjetividade popular só é possível com base na produção discursiva de significantes tendencialmente vazios” (LACLAU, 2005b, p. 40). A importância dos significantes vazios está em justamente homogeneizar um espaço social extremamente heterogêneo, que considera a articulação de demandas insatisfeitas que antes do processo articulatório, não tinham qualquer relação entre si, pois estavam isoladas em suas particularidades. Para Laclau, “no limite, este processo atinge um ponto em que a função de homogeneização é realizada por um nome puro: o nome do líder” (2005b, p. 40).7
A potência da leitura ontológica laclauniana reside primeiramente na sua preocupação em evitar qualquer conotação ôntica para uma compreensão mais universal do populismo. Ainda que a sua noção de populismo envolva uma complexa estrutura que praticamente requer um leitor já iniciado em sua teoria do discurso, em linhas gerais, a sua teorização pode ser resumida na assunção de que o populismo é uma lógica política que consiste na construção de uma entidade coletiva - o povo - que se opõe antagonicamente ao bloco de poder. É absolutamente decisiva a forma como este povo é construído, ou seja, a partir de um processo hegemônico que, ao fim e ao cabo, torna homogênea, a partir da constituição de significantes vazios, uma heterogeneidade antes dispersa de demandas isoladas.
Tal entendimento de que a hegemonia populista constitui-se a partir de um processo de articulação que tende para a homogeneização de um contexto social que é em princípio heterogêneo, contrapõe-se claramente aos argumentos de Mudde e Kaltwasser, uma vez que eles consideram o populismo uma lógica homogênea. Considerar uma experiência populista como simplesmente homogênea é partir do pressuposto simplificador de que o fenômeno origina-se desde os poderes mágicos ou retóricos de um líder carismático à la Weber que como o flautista de Hamelin, hipnotiza seus liderados. Não que um líder populista não possa ter seguidores com esse grau extremo de adesão, mas dificilmente este seria representativo para caracterizar de forma ampla a relação entre liderança e liderados em qualquer mobilização populista. Um olhar mais detido sobre as experiências populistas nos indicam que estamos diante de uma relação de complementariedade entre líder e seus liderados. Há certamente uma homogeneidade necessária nesse processo, como, de resto, há em qualquer processo de representação, populista ou não. No entanto, essa homogeneização nunca é completa e ela só é possível justamente por ser resultante de uma heterogeneidade social que a precede.8
A partir dessa breve exploração teórica nas formulações de Mudde e Kaltwasser, Canovan e Laclau, temos agora as condições necessárias para enunciar o nosso conceito mínimo de populismo. No início dessa seção, dissemos que o populismo é o antagonismo fundamental entre o povo e os seus inimigos. Três elementos devem ser agora por nós esclarecidos: antagonismo, povo e os inimigos do povo.
Em nosso conceito mínimo de populismo, antagonismo é utilizado no sentido de Laclau e Mouffe (1985). De forma geral, para esses autores uma relação antagônica é aquela em que a presença do outro impede a constituição plena de um “nós”, sendo tal presença sempre politicamente percebida como ameaça. Conforme Mouffe (2005, p. 20), o outro antagônico é um inimigo: “antagonismo é uma relação nós/eles na qual os dois lados são inimigos que não compartilham nenhum terreno comum”.
O antagonismo é, assim, a identificação política do inimigo, uma percepção que, para esses autores, representa a própria possibilidade da política. A relação antagônica configura os inimigos, dando a eles as suas existências, sempre de forma contingente. É por essa razão que, nas experiências populistas, o povo e os seus inimigos podem somente ser conhecidos no momento exato em que a relação antagônica tem lugar. Não há qualquer essência para ambos, visto que suas identidades são construídas antagonicamente. Nesse sentido, o antagonismo é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade e de impossibilidade de uma identidade política. O povo origina-se politicamente pela presença do seu inimigo, mas também tem a sua identidade bloqueada, no sentido da impossibilidade de uma constituição plena, exatamente tendo em vista a existência do outro antagônico.
Tendo em vista que o antagonismo deve ser compreendido a partir de uma contingência radical, os dois outros elementos presentes na nossa definição mínima de populismo igualmente devem ser considerados desde essa mesma condição de contingência. Portanto, não há nem povo, tampouco seus inimigos constituídos a priori, pois ambos são produtos da própria relação antagônica. O povo e os seus inimigos são construções propriamente políticas. Daí porque, no populismo, esses dois polos têm variações tão distintas, a ponto de serem consideradas populistas experiências tão díspares como as do Partido do Povo estadunidense, do Narodnik russo, do peronismo, do chavismo e de seu socialismo do século XXI, além dos diversos movimentos de extrema direita que têm surgido na Europa nas últimas décadas, como o lepenismo na França.
Um elemento central também deve ficar claro em relação ao povo. O povo, no populismo, não tem sentido jurídico, como o conjunto dos cidadãos de um país ou, ainda, um sentido que o “localiza”, com exatidão, como os “pobres”, os “nacionais”, entre outras possibilidades. Como dissemos, o povo é sempre uma construção política e contingente. No sentido de Laclau (2005), é a plebs que reivindica para si a condição de populus, uma parte que reivindica o todo da comunidade política.
Ademais, preferimos utilizar a expressão “inimigos do povo” em vez de, como prefere Laclau (2005), “bloco de poder”, “poder” ou “institucionalismo”, pois entendemos que a nossa escolha tem o mérito de ser mais abrangente. Tendo em vista que cada discurso populista tem múltiplas possibilidades de emergência, existem experiências populistas em que os inimigos do povo podem ser outros “grupos” diferentes daqueles que estariam ocupando posições institucionais de poder.
Assim, tendo em vista o que foi acima discutido, temos todas as condições para enunciar a nossa definição mínima de populismo. Nesse sentido, entendemos que o populismo é uma construção política e antagônica de um povo contra os seus inimigos. Como base neste conceito mínimo, na seção seguinte, discutiremos a especificidade do populismo de esquerda ou igualitário.
Populismo de esquerda e a “vontade dos iguais”
Como analisamos anteriormente, para que o populismo possa ser uma categoria explicativa, é preciso que ele parta de uma definição mínima. Para nós, a construção política de um povo contra os seus inimigos representa essa potencialidade heurística. No entanto, é possível pensarmos sobre uma diferença geral a mais, que é aquela que distingue os populismos de direita e de esquerda.
O populismo de direita, independentemente dos aspectos ônticos presentes em suas experiências, apresenta estruturalmente demandas inigualitárias ou excludentes. Isso quer dizer que tais tipos de mobilizações são sempre reativas à presença de inimigos identificados, que podem ser, por exemplo, os imigrantes, as minorias étnicas, os pobres, um governo com políticas inclusivas aos mais pobres. O populismo de direita é, portanto, conservador, retrógrado e, neste sentido, a noção de heartland, de Paul Taggart (2000, p. 95) é particularmente explicativa: “o heartland é diferente das sociedades ideais ou das utopias, porque vê os populistas lançando seus olhares imaginativos para trás na tentativa de construir o que foi perdido o presente”.
Já o populismo de esquerda, ainda que igualmente tenha a sua dimensão reativa em relação ao seu polo antagônico, tem por característica apresentar demandas inclusivas e/ou emancipatórias. Entendemos que tais demandas por inclusão podem ser mais bem compreendidas a partir da introdução de uma categoria teórica que denominamos aqui de a “vontade dos iguais”. Assim, o nosso objetivo nesta seção é discorrer sobre esta categoria e a forma como ela pode nos auxiliar a compreender o populismo de esquerda, ou seja, essa construção política e antagônica de um povo contra os seus inimigos a partir de discursos igualitários ou emancipatórios.9
De uma forma geral, a vontade dos iguais é a constituição de demandas igualitárias próprias dos discursos populistas de esquerda. Não se tratam, no entanto, de quaisquer demandas igualitárias, visto que, por exemplo, demandas identitárias de trabalhadores, feministas, ecológicas não representam a vontade dos iguais. Tais demandas identitárias são ainda que igualitárias: particulares. A vontade dos iguais é sempre a construção de um povo, ou seja, um universal par excellence. Como veremos a seguir, quando discutirmos o duplo sentido de igualdade presente em nossa proposta, a vontade dos iguais é sempre aquela evocada por um povo específico em uma mobilização populista. Ela é resultado de um processo de articulação hegemônica entre diversas demandas, cujo resultado é o próprio discurso populista.
Portanto, para nós, a “vontade” (dos iguais) é sempre constituída em um discurso populista igualitário a partir de um processo articulatório que constitui essa vontade. Os pontos nodais do discurso populista são que estamos chamando de “vontade”. Ressaltamos, no entanto, que a produção de sentidos de um discurso é mais dinâmica se comparada com a abordagem da teoria do discurso de Laclau e Mouffe (1985). Para Laclau (2005), por exemplo, o líder, ou como ele prefere, “o nome do líder”, é o corolário de uma construção de sentidos que se inicia com a articulação das primeiras demandas democráticas. Essa forma de baixo para cima de considerar a emergência de todo discurso populista é limitada se quisermos compreender todos os tipos de populismo. Diríamos que Laclau incorre, como vimos, na limitação unilateral de produção de sentidos, mas na direção exatamente contrária daquela de Canovan (1999), uma vez que esta autora considera que o populismo é uma construção de cima para baixo, do líder aos liderados. Visto que a produção da “vontade” dos iguais é um processo articulatório hegemônico, vejamos agora o que entendemos por “igualdade” e por “iguais”.
A “vontade dos iguais” parte de uma permanente dualidade de sentidos para o termo igualdade: por um lado, a igualdade é o fundamento ontológico da democracia e, por outro lado, a igualdade é também o horizonte de qualquer experiência democrática. A igualdade como fundamento, de forma simplificada, pressupõe, lato sensu e a priori, que todos os indivíduos são iguais num ambiente democrático. Já a igualdade como horizonte reflete-se na inobservância fática (em um regime democrático específico) do fundamento universal da igualdade e a sua necessária busca de atualização (as experiências populistas que reivindicam a “vontade dos iguais” são tentativas de atualização da igualdade como fundamento). Vejamos com mais detalhes essa dualidade.
No que diz respeito à igualdade como fundamento, partimos da ideia de que, do ponto de vista político, a igualdade é uma invenção e uma especificidade da democracia. Assim, em todas as formas de governo, exceto na democrática, os indivíduos são considerados de forma hierárquica. São classificados e divididos entre fortes e fracos, ricos e pobres, nobres e plebeus etc. Dito de outra maneira: além da democracia, ou seja, em todas as demais organizações políticas, o fundamento é a desigualdade e a hierarquização dos membros da comunidade política.
Não é este o momento para verificarmos a igualdade como invenção democrática tal como ela aparece diversas vezes na história da filosofia política. No entanto, apenas para exemplificarmos o ponto, restringiremos este argumento, simplesmente e de forma sumária, a dois dos primeiros filósofos que se defrontaram com esta questão. Neste sentido, Platão, ferrenho crítico da democracia ateniense, afirmava que a igualdade era verificada tanto aos iguais como também aos desiguais. Para ele, havia uma hierarquia natural entre os indivíduos, que era quebrada pela democracia. No diálogo entre Sócrates e Adimanto, no Livro VII da “República”, o primeiro relata os males que a democracia acarreta - os quais, todos sabemos, redundam necessariamente na nefasta tirania - quando essa iguala os naturalmente desiguais: “[É] esse, como vês, um governo agradável, anárquico e variado, que dispensa uma espécie de igualdade, tanto ao que é desigual como ao que é igual” (PLATÃO, 2000, p. 275).
Já tendo em vista a tipologia clássica das formas de governo apresentada por Aristóteles em “Política”, estamos acostumados a verificar que as três distintas formas puras baseiam-se numa espécie de distinção/diferenciação entre classes de indivíduos. Assim, o governo monárquico justifica-se pela primazia do princípio da honra própria da realeza. O aristocrático remonta o princípio do governo dos melhores entre os membros da comunidade política. Por fim, o democrático, ao contrário dos demais, resulta na própria indiferenciação dos cidadãos, tendo em vista que o seu princípio, a liberdade do demos, conforme observou Rancière (1999, p. 7), não pode ser outra coisa senão uma invenção: “a liberdade do demos não é uma propriedade determinável, mas uma invenção pura: por atrás da ‘autoctonia’, o mito de origem reivindicado pelo demos de Atenas, impõe-se o fato bruto que faz da democracia um objeto teórico escandaloso”.
Assim, para que a democracia possa existir, é preciso que ela realize uma estranha operação: tornar artificialmente iguais aos honrados, aos dignos e aos capazes aqueles que nada mais são do que um número, uma massa indiferenciada sem qualquer qualidade. Essa massa, o demos, para Aristóteles, dá o nome à pior entre as formas não degeneradas de governo e não sem razão: apesar de o filósofo não ser um completo crítico da democracia (Politia, a forma boa, democracia, forma degenerada) segundo ele, tanto a monarquia como a aristocracia eram formas superiores, pois a cidade estaria sob o controle de pessoas naturalmente mais capazes.
Nossa intenção nesta brevíssima incursão para estabelecer o princípio da diferenciação “natural” entre os indivíduos, segundo Platão e Aristóteles, teve unicamente o fito de justificar a afirmação de que fora da democracia existe um fundamento seletivo entre os indivíduos; fora desse governo é plenamente admissível hierarquizar, classificar, apontar quem é inferior e quem é superior, quem deve ser escravo e quem “naturalmente” deve ser senhor.
Assim, entendemos que tanto a igualdade como a desigualdade são resultados de decisões políticas. Isso quer dizer que fazer alguém senhor ou escravo, assim como tornar ambos os indivíduos livres, dependeria simplesmente de convenções sociais e de decisões políticas sempre contingentes. É exatamente nesse sentido que afirmamos que a igualdade é uma invenção da democracia e, portanto, seu fundamento.
A igualdade como fundamento da democracia alicerça todos os regimes democráticos que já existiram e os que existem, o que não significa, a experiência largamente nos demonstra, que a igualdade esteja de fato distribuída apropriadamente entre os cidadãos. A igualdade, como fundamento democrático, é uma assunção estritamente formal. Isso quer dizer que nunca houve efetivamente uma verdadeira igualdade entre todos os cidadãos, ainda que se enfatize constantemente esta irrealidade em nossas democracias contemporâneas. É neste momento que temos de compreender o lado dual da igualdade democrática, aquele em que a mesma é não somente o seu fundamento, mas também o seu horizonte, a sua constante e irrealizável promessa.
A igualdade como horizonte é sempre uma promessa não cumprida, e que nunca se cumprirá, justamente para que permaneça como promessa para que, enfim, a política exista. Isto quer dizer que os cidadãos nunca serão efetivamente iguais, nunca serão contados como iguais. É justamente pelo fato de que a igualdade como horizonte é irrealizável que podemos continuar buscando-a como tal. A impossibilidade da reconciliação da sociedade, a impossibilidade da igualdade fática é a própria condição de possibilidade para a mantermos como um horizonte a ser permanentemente requerido e buscado.
É em busca dessa igualdade, que fundamenta e que também escapa à democracia, que surgem os “iguais” que evocam a vontade dos iguais. Os “iguais” são aqueles que, em uma experiência democrática, se veem hierarquizados, reduzidos a uma condição de inferioridade imprópria à democracia. Reivindicam uma igualdade que já lhes pertence, mas que não lhes é de fato observada.
O populismo de esquerda ou igualitário é a construção política da vontade dos “iguais”. Ele dá voz àqueles que “estranhamente” são tomados como inferiores em um regime que supostamente deveria também considerar os “iguais” inferiores iguais aos que de fato são considerados iguais.
Considerações: populismo para além do eurocentrismo liberal
Há uma interpretação geral entre aqueles que se dedicam ao estudo do populismo que seus líderes e seus movimentos reivindicam-se os verdadeiros defensores da democracia e, portanto, da soberania popular. Esta interpretação comumente vem acompanhada de uma desconfiança, uma vez que desde uma perspectiva eurocêntrica liberal, o populismo será sempre um fantasma a atormentar a forma “civilizada” de resolver os conflitos políticos encontrada pelo próprio liberalismo. Ademais, os casos que normalmente ilustram essas análises são notadamente europeus ou estadunidenses, regiões onde há uma proliferação de discursos populistas de direita acompanhados por suas ideologias retrógradas, racistas, xenófobas, numa palavra, excludentes.
Há duas consequências negativas nessas análises eurocêntricas. A primeira, teórico metodológica, uma vez que, se tomarmos simplesmente os exemplos populistas de direita europeus e estadunidense - não considerando, por exemplo, as experiências latino-americanas dos populismos de esquerda que surgiram na região no início deste século -, as conclusões teóricas serão sobredeterminadas simplesmente por casos dos populismos excludentes.
A segunda consequência é ética. Teóricos afirmam com razão que tanto as experiências populistas de direita como as de esquerda são anti liberais. O problema, no entanto, de tomá-las simplesmente como anti liberais e não investigar a distinção entre ambos os tipos de populismos, é não enfrentar devidamente o debate acerca das limitações das próprias democracias representativas liberais.
Nesse sentido, é fundamental o exercício de distinção entre os tipos ideológicos de populismo. Se tomarmos tanto as experiências populistas de direita como as de esquerda, veremos que ambas se reivindicam como a própria democracia em ação. Apresentam-se como as verdadeiras expressões da soberania popular, colocando-se contrariamente ao elitismo liberal que alija justamente a vontade do povo.
No entanto, há uma clara distinção entre os populismos de direita e de esquerda. Ainda que ambos se reivindiquem democráticos, não há a menor razão para considerarmos o de direita como tal. Assim, não há igualmente razão considerar anti democrático, como fazem os liberais, o populismo de esquerda. Para ser democrático, é necessário que o discurso seja inclusivo, como historicamente a democracia tem sido. A democracia, como vimos, constrói politicamente a igualdade; torna iguais os desiguais. Entre os tipos ideológicos de populismo, somente o de esquerda visa à construção da igualdade. Uma igualdade que, diga-se de passagem, há muito está perdida nas entranhas do pragmatismo que governa as democracias ocidentais.
O populismo é incômodo aos regimes liberais, sobretudo o de esquerda, pois esse rememora o verdadeiro objetivo de uma democracia, ou seja, tornar efetivamente iguais os que já são iguais por invenção. Ele constantemente atualiza uma decisão política pela igualdade como fundamento democrático que não deve ser nunca esquecida.
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Notas
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