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Autópsia e escrita da história em Gomes Eanes de Zurara (século XV)
Autopsy and writing of history in Gomes Eanes de Zurara (15th century)
História (São Paulo), vol. 42, e2023006, 2023
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho

Artigos livres


Received: 25 January 2022

Accepted: 08 August 2022

DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2023006

Funding

Funding source: CAPES

Contract number: 88881.131709/2016-01

Funding statement: A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da CAPES (Processo nº. 88881.131709/2016-01), no âmbito do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES), realizado no Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

RESUMO: Partindo de François Hartog e Bernard Guenée, questionamos a opinião, cristalizada por vários historiadores e críticos literários, de que Fernão Lopes, cronista-mor da corte régia portuguesa na primeira metade do século XV, escolheu dar primazia às fontes escritas em detrimento das orais por considerá-las superiores no que diz respeito à escrita da história. A seguir, evidenciamos, através da apreciação da produção historiográfica de Gomes Eanes de Zurara, sucessor de Lopes, como os cronistas medievais que historiaram um período cronológico próximo àquele em que viveram faziam uso de marcas de enunciação ligadas à autópsia direta (“eu vi”) e indireta (“eu ouvi de quem viu”) como meios de demonstrar autoridade, respaldar a sua escrita e persuadir o público sobre a verdade das coisas narradas. Concomitantemente, discutimos como a testemunha - “memória declarada”, segundo a concepção de Paul Ricoeur, ou “portadora de memória”, nas palavras de François Hartog -, tem o seu relato avaliado, acreditado e autenticado pelo cronista, ele próprio, por vezes, testemunha direta do que escreve.

Palavras-chave: Autópsia, história, memória e esquecimento, historiografia medieval portuguesa, metodologia da história, Gomes Eanes de Zurara.

ABSTRACT: With François Hartog and Bernard Guenée as starting points, we question the opinion, crystallized by many historians and literary critics, that Fernão Lopes, chief chronicler of the Portuguese regal court in the first half of the 15th century, chose to prioritize written sources to the detriment of oral sources, for considering them superior when it comes to the writing of history. Then, we show, through appreciation of the historiographical production of Gomes Eanes de Zurara, Lopes’ successor, how medieval chroniclers that historicized a chronological period close to the one in which they lived in made use of enunciation marks linked to direct autopsy (“I saw it”) and indirect autopsy (“I heard from who saw it”) as ways of demonstrating authority, supporting their writing and persuading the audience about the truthfulness of what is being narrated. Concurrently, we discuss how the witness - “declared memory”, according to Paul Ricoeur’s concept, or “bearer of memory”, in the words of François Hartog -, has their account evaluated, credited and authenticated by the chronicler, with he being, at times, a direct witness of what he writes.

Keywords: Autopsy, history, memory and forgetting, medieval Portuguese historiography, history methodology, Gomes Eanes de Zurara.

O lamento de Fernão Lopes

São bem conhecidas as palavras de Fernão Lopes (138?-c.1460), primeiro cronista-mor da Casa Real de Avis, no prólogo da primeira parte da sua Crónica de D. João I, em que ele assevera o “cuidado e diligemçia” que teve em consultar “gramdes vollumes de livros, de desvairadas limguageẽs e terras”, além de “pubricas escprituras de muitos cartarios”, o que lhe acarretou “longas vegilias e gramdes trabalhos”, para que pudesse alcançar o fim de quem escreve história: a “certidom da verdade” (LOPES, 1983, p. 2). De fato, como constatou Teresa Amado (1993b), Lopes utilizou, na composição de suas crônicas, diversos documentos escritos, portugueses e internacionais, como atos administrativos, cartas públicas e privadas, tratados de paz, de guerra e de casamentos, atas das cortes, dentre outros, colhidos em chancelarias régias e em diversos arquivos. A utilização crítica de fontes escritas por Fernão Lopes acabaria lhe rendendo, séculos depois, a fama de “historiador à frente do seu tempo”.

O privilégio concedido ao documento escrito, de preferência inédito e manuscrito, enquanto fonte histórica, marcou a historiografia portuguesa do século XIX e de boa parte do século XX. A Academia Real de Ciências de Lisboa, no decorrer da centúria de Oitocentos, por exemplo, esforçou-se em divulgar quase que exclusivamente fontes de arquivo, e o mesmo objetivo encontra-se expresso nos estatutos da Academia Portuguesa de História, aprovados em 1937, cujos membros produziram, em sua maioria, durante a vigência do Estado Novo, uma historiografia essencialmente “documentalista”, respaldada, mormente, em fontes escritas (MENDES, 1996; TORGAL, 1996b).

João Pedro Ribeiro (1758-1839), considerado o “pai da diplomática” portuguesa, admirado por Alexandre Herculano (1810-1877) como um dos eruditos “que mais attingiu o espirito da sciencia historica” (HERCULANO, 1881, p. 103), percorreu quase todo o país, efetuando pesquisas em arquivos de câmaras municipais, de conventos e de mosteiros, com vistas a produzir catálogos e sumários de fontes escritas (TORGAL, 1996a). O próprio Herculano (1914), não obstante a importância por ele dada a outros vestígios do passado, como aqueles estudados pela epigrafia, pela numismática, pela heráldica e pela arqueologia, concedeu um peso maior à fonte escrita. Esse historiador, conhecido por ter coletado documentos escritos dispersos por Portugal que corriam o risco de desaparecer devido às vicissitudes sociais e políticas de sua época, defendeu que sem “sepultar-se nos archivos publicos” (HERCULANO, 1914, p. 23) e conhecer os cartórios particulares de catedrais, mosteiros e municípios, não seria possível que alguém fosse chamado de historiador (CATROGA, 1996).

Tanto João Pedro Ribeiro quanto Alexandre Herculano fizeram, portanto, o que viriam a aconselhar os principais expoentes da historiografia metódica francesa, equivocadamente chamada de “positivista” por seus críticos (BOURDÉ; MARTÍN, 1990). Charles-Victor Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942), no findar do século XIX, em sua Introdução aos Estudos Históricos, publicada originalmente em 1898, propugnaram por uma busca ativa por documentos escritos que se encontrassem espalhados para que pudessem ser catalogados, inventariados e colocados à disposição do historiador em lugares que eles chamam de “depósitos de documentos” - arquivos, bibliotecas e museus (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 15-31). Tal perspectiva já havia sido esboçada, poucas décadas antes, por Gabriel Monod (1844-1912), em seu Manifesto, de 1876 (BOURDÉ; MARTÍN, 1990).

Henrique da Gama Barros (1833-1925), o erudito mais representativo da historiografia metódica em Portugal, deu grande relevo aos documentos escritos e à sua crítica, em prejuízo de tentativas de elaboração de sínteses a partir das fontes. Da mesma forma, outros historiadores lusitanos, como António Costa Lobo (1840-1913) e Fortunato de Almeida (1869-1933), priorizaram a crítica dos documentos escritos, inéditos ou não, sem grandes preocupações com problematizações ou tentativas de explicação. Mesmo quem criticou o “endeusamento” das fontes escritas, como Vieira de Almeida (1888-1962), não deixou de salientar que é mormente a partir delas que a história deve ser escrita (MENDES, 1996).

Tal fetichização do documento escrito e de sua crítica tem levado a uma visão anacrônica a respeito da importância dada por Fernão Lopes, no final da Idade Média, a esse tipo de fonte histórica. E assim é que Aubrey Bell (1931) louvou as viagens empreendidas por Lopes por todo o reino, gastando tempo em visitas a igrejas e conventos, “em busca de papéis e inscrições” que lhe servissem de fontes para a escrita da história (BELL, 1931, p. 97). Tal diligência do cronista comprovaria a sua “verdadeira concepção moderna da arte de historiador” (BELL, 1943, p. 34). Manuel Rodrigues Lapa (1977), em obra cuja primeira edição data de 1934, afirmou que a concepção histórica de Fernão Lopes “funda-se no documento escrito”, o que garantiria à sua cronística um “carácter científico” (LAPA, 1977, p. 421). Poucos anos depois, Duarte Leite (1941) criticou Gomes Eanes de Zurara (141?-c.1474), sucessor de Fernão Lopes como cronista-mor da Casa Real de Avis, por, diferentemente deste, não “esquadrinhar arquivos” e nem “rebuscar pergaminhos” (LEITE, 1941, p. 124).

Na segunda metade do século XX, também Antônio Soares Amora, Massaud Moisés e Segismundo Spina (1961) compararam os dois cronistas no que diz respeito ao “método histórico”: “enquanto F. Lopes se baseava no documento escrito, Zurara utilizava como instrumento a tradição oral, o testemunho dos próprios heróis” (AMORA; MOISÉS; SPINA, 1961, p. 105). António José Saraiva (1988) fez coro a esses autores ao asseverar que as principais fontes de Fernão Lopes foram os documentos públicos, motivo pelo qual o cronista teria concebido “a história como um processo instruído documentalmente” (SARAIVA, 1988, p. 176). Saraiva mostrou-se contundente ao apontar, em Fernão Lopes, “o sentimento e a afirmação de uma verdade objectiva que tem de ser investigada e controlada criticamente, com recurso à documentação” (SARAIVA, 1988, p. 176). Em obra escrita com Óscar Lopes, António José Saraiva (1987) declarou que o primeiro cronista-mor de Portugal submetia quaisquer relatos que lhe chegavam a um confronto com a documentação escrita, sempre em favor desta, “segundo um método que antecipa o de dois a três séculos mais tarde” (SARAIVA; LOPES, 1987, p. 124-125). O que distingue Lopes de cronistas antecessores, contemporâneos e sucessores, segundo Saraiva, é “este gosto da exactidão documental, este joeiramento crítico da verdade” (SARAIVA, 1997, p. 31-32), a tal ponto que o autor não hesitou em afirmar que não houve, entre Fernão Lopes, no século XV, e Alexandre Herculano, no século XIX, ninguém em Portugal que merecesse ser chamado de historiador.

Para Joaquim Veríssimo Serrão (1972), a atitude de Fernão Lopes de peregrinar pelo reino à cata de documentos escritos “traduz uma antecipação metodológica no campo da historiografia”, de modo que não se pode duvidar “do rigor histórico e da isenção pessoal” do cronista (SERRÃO, 1972, p. 51-54). Armindo de Sousa (1997), por sua vez, defendeu que o corpus lopeseano, diferentemente do de seus sucessores imediatos, não é apenas “literário”, mas também “científico”. E, mais recentemente, Armando Norte (2020), mesmo reconhecendo a diversidade de fontes utilizadas pelo primeiro cronista-mor de Portugal para compor a sua obra, insistiu que, em sua metodologia para a escrita da história, “o maior destaque deve ser dado aos acervos notariais conservados nos arquivos do reino” (NORTE, 2020, p. 323-325).

A impressão que se tem, a partir da leitura de tais historiadores e críticos literários, é que Fernão Lopes, dentre todas as fontes que lhe estavam disponíveis, escolheu dar primazia aos documentos escritos, especialmente os de cunho oficial, para só depois, em caráter complementar, valer-se de outras fontes, inclusive orais. Pois bem, já faz algum tempo que João Gouveia Monteiro (1988) e Teresa Amado (1997) demonstraram que, na verdade, as principais fontes de Lopes foram outras narrativas de cariz historiográfico, como as crônicas de Pero López de Ayala (1332-1407), a Crónica do Condestável, de autoria anônima,1 e uma crônica latina de um tal Dr. Christophorus. As fontes diplomáticas e arquivísticas foram utilizadas pelo cronista mais para completar esses relatos do que para respaldar a sua escrita. João Gouveia Monteiro (1988) defendeu ainda que algumas lacunas e imprecisões presentes nas narrativas lopeseanas poderiam ter sido evitadas por meio da utilização de fontes escritas que estavam facilmente ao seu alcance no seu ambiente de trabalho, na Torre do Tombo, onde prestava serviços também como guarda-mor.2

Para além disso, destacamos que não se tem conferido a devida atenção ao lamento de Fernão Lopes (1983) por ter de contentar-se com fontes escritas para escrever o grosso das suas crônicas. Bastante eloquente no que a isso diz respeito são as suas palavras expressas no capítulo 31 da primeira parte da Crónica de D. João I. Tal capítulo é, conforme esclarece o autor, um novo prólogo, dessa feita dedicado ao condestável D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431), o que se justifica pela importância que esse nobre teve na ascensão de D. João I (1357-1433),3o da Boa Memória, enquanto rei, no contexto da crise de 1383-1385. Eis o que escreve Fernão Lopes (1983, p. 63-64, grifos nossos):

Certamente a nos fora simgullar prazer, se em sua estoria poderamos seguir a hordenamça dos que ditam as cousas em vida daquelles a que acomteçem, deçemdẽdo a louvar cada huũa boomdade per ssi, pois que cada huũas virtudes som mereçedores de seus pregoões; mas ora depois do seu passamento, mortos os mais dos que lhe forom companheiros, ja de seus boõs feitos mais gastar nom podemos, se nom as escassas rrelliquias delles.

De acordo com Bernard Guenée (2017), os prólogos das crônicas medievais, longe de serem apenas “um punhado de lugares-comuns” cuja leitura seria até dispensável, permitem, na verdade, “perceber a que ponto a obra histórica era uma construção consciente. Graças a eles, vê-se bem melhor o que era a história para os historiadores [da Idade Média] e como a fizeram” (GUENÉE, 2017, p. 586). Lembramos que foi no primeiro prólogo dessa mesma crônica que Fernão Lopes (1983) encareceu o grande trabalho por si empreendido de buscar, em livros e escrituras públicas, a “certidom da verdade”. (LOPES, 1983, p. 2). Curiosamente, 30 capítulos decorridos, o cronista apresenta um novo prólogo. Seu objetivo, segundo Teresa Amado (1997), é recuperar “o seu estatuto de autor da história, para reafirmar que lhe interessa a confiança efectiva do leitor na veracidade do que afirma; para isso, tem de persuadi-lo de que o elogio [a D. Nuno Álvares Pereira] é merecido, de que a realidade não foi alterada” (AMADO, 1997, p. 70).

Ambos os prólogos se complementam no que se refere à metodologia utilizada pelo cronista para a escrita da história. No primeiro expõe-se o recurso às fontes escritas e, no segundo, às fontes orais. E é aqui que entra o lamento de Fernão Lopes. De suas palavras, no segundo prólogo, depreende-se que seria preferível, para melhor contar a história de D. Nun’Álvares Pereira, que ele pudesse ter ouvido o próprio condestável, ou ao menos pessoas que com ele privaram, o que lhe teria dado “simgullar prazer”. Infelizmente para o cronista, porém, além de D. Nuno, já eram “mortos os mais dos que lhe forom companheiros” (LOPES, 1983, p. 63-64). O condestável falecera em 1431, e Lopes só viria a escrever as duas partes da Crónica de D. João I na década seguinte (AMADO, 1997). É por isso que, não podendo ouvir o protagonista ou seus contemporâneos dignos de confiança, não restava ao cronista outro recurso senão recorrer às “escassas rrelliquias” que lhe chegaram, sendo a mais importante delas a Crónica do Condestável, conforme demonstrou, através de cotejamentos, Teresa Amado (1997).

Desse modo, embora o recurso às fontes escritas por parte de Fernão Lopes deva ser visto como um meio amiúde bem utilizado pelo cronista para a escrita da história, isso não significa que, à maneira de um historiador da escola metódica dos séculos XIX e XX, Lopes tenha priorizado tais documentos por acreditar que eles seriam superiores aos demais para se chegar à “verdade histórica”, ou à “certidão da verdade”. O lamento lopeseano deixa claro a sua preferência por testemunhos orais, e é justamente a ausência desses que o obriga a contentar-se com as “relíquias” do passado, emblemática metáfora para as fontes escritas.

A empatia de Gomes Eanes de Zurara perante o lamento de Fernão Lopes

A predileção de Fernão Lopes, como ocorria com os demais cronistas do Ocidente medieval, pelas fontes orais é também explicitada por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Tomada de Ceuta, concebida como terceira parte da Crónica de D. João I, ou seja, como uma continuação da empreitada iniciada por Lopes a respeito do Rei da Boa Memória. Como se se tratasse de um prólogo, no capítulo 3 dessa crônica, Zurara justifica, conforme alerta no título, “as rrezões por que esta força foy começada tam tarde” (ZURARA, 1915, p. 11). O segundo cronista-mor de Portugal explica que os principais acontecimentos do reinado joanino, até a altura das pazes com Castela, em 1411,4 já haviam sido narrados “per huũa notauel pessoa que chamauam Fernam Lopez homem de comunal çiençia e grande autoridade” (ZURARA, 1915, p. 12). Zurara informa, ademais, que D. Duarte (1391-1438), o Eloquente, quando ainda era infante - ou seja, antes de 1433 - ordenara que Lopes escrevesse os feitos “dos prinçipes e doutras notauees pessoas que os fezerom” (ZURARA, 1915, p. 12).

Chegou aos nossos dias uma confirmação do infante D. Pedro (1392-1449), 1º duque de Coimbra, que em 1439 regia o reino de Portugal durante a menoridade de D. Afonso V (1432-1481), o Africano, da carta régia de 19 de março de 1434, na qual D. Duarte, já então rei, criara o cargo de cronista-mor. Vejamos o que foi determinado:

A quãtos esta carta virem fazemos saber que nos temos dado Carrego a fernam lopez nosso escripvam de poer em caronyca as estorias dos Reys que antygamente em portugal forom Esso meesmo os grandes feytos e altos do muy uertuoso E de grãdes uertudes ElRey meu Senhor padre [D. João I] cuja alma deus aja E por quãto em tal obra elle ha assaz trabalho e ha mujto de trabalhar Porem querendolhe agalllardoar [...] [com um tença vitalícia de] quatorze mjil reaes [por ano] [...]. (D. DUARTE, 1434 apudSERRÃO, 1972, p. 42, grifos nossos).

Quer dizer, tão logo foi entronizado, D. Duarte confirmou oficialmente o que já havia encomendado a Fernão Lopes quando era ainda infante associado ao trono:5 a escrita das histórias dos reis de Portugal, desde os monarcas da Casa Real de Borgonha até o reinado do seu pai, D. João I, fundador da Dinastia de Avis. O teor da carta régia de 1434 dá a entender que Fernão Lopes já vinha escrevendo as crônicas dos reis de Portugal há algum tempo (AMADO, 1993b). Sobre o paradeiro das crônicas lopeseanas dos reinados de D. Afonso Henriques (1109-1185) a D. Afonso IV (1291-1357), muita tinta já correu, desde o século XVI, com Damião de Góis (1502-1574), até os nossos dias. Embora haja algumas vozes dissonantes, parte considerável dos historiadores hodiernos considera que a Crónica de Portugal de 1419, que contém as histórias dos sete primeiros reis portugueses, é, provavelmente, da lavra de Fernão Lopes (MOREIRA, 2010). Interessa-nos neste artigo, contudo, a constatação de que, antes de 1434, Fernão Lopes já estava a escrever as histórias de todos os reis de Portugal, cujo marco cronológico se inicia no século XII, com D. Afonso Henriques, e não conseguira ir, no que ao reinado joanino diz respeito, além de 1411.

É nesse ponto que Zurara mostra empatia por Lopes, ao mesmo tempo em que, assim como o primeiro cronista-mor do reino já fizera, encarece o seu ofício pelo grande trabalho que lhe custou executá-lo. Sobre os acontecimentos do reinado de D. João I, Zurara diz que “a dita estoria foy começada [por Fernão Lopes] tam tarde. que muitas das pessoas que verdadeiramente sabiam eram já partidas deste mundo. e as outras que ficarom eram departidas per o rreino” (ZURARA, 1915, p. 12). Ainda estavam disponíveis a Fernão Lopes, pois, algumas testemunhas orais. Continua Zurara (1915, p. 12):

E assi foy necessario ao dito Fernam Lopez dandar per todallas partes do rregno pera auer comprida enformaçom do que auia de começar. e nam tam soomente per aquelles que os ditos feitos trataram pode seer perfeita enformaçam. por quanto os mais delles eram chegados aa derradeira jdade onde a memoria perde muitas das primeiras cousas.

Como se pode perceber, para a escrita da história de um reinado relativamente recente, como fora o de D. João I, Fernão Lopes, de acordo com Zurara, procurou, primeiramente, as pessoas que tomaram parte naqueles eventos que ainda estavam vivas e espalhadas por Portugal. O primeiro cronista-mor de Avis queria ouvi-las. Para seu infortúnio, porém, além de serem poucas - muitas delas já haviam morrido - e de difícil acesso, boa parte de tais testemunhas, devido à idade, já tinha esquecido muito do que presenciara durante o reinado joanino: “E desy os grandes trabalhos em que aquelles velhos andaram com elRey em todo o outro tempo passado foy grande azo de se nam lembrarem de todo compridamente” (ZURARA, 1915, p. 12). E é então - e só então, segundo Zurara - que Fernão Lopes recorre às fontes escritas:

Por cuja rrezam o dito Fernam Lopez despendeo muito tempo em andar per os moesteiros e jgrejas buscando os cartorios e os letreiros dellas pera auer sua enformaçam. e nam ajnda em este rreino mas ao rreino de Castella mandou elRey Duarte buscar muitas escreturas que a esto pertençiam. por quanto seu desejo nam era que os feitos de seu padre [D. João I] fossem escritos senom muy verdadeiramente. E assi por essa tardança e polla estoria seer começada tarde o dito Fernam Lopez nam pode com ella chegar senam ata o tempo que os embaxadores deste rreino forom a Castella primeiramente firmar as pazes com elRey Dom Fernando DAragam e com a Rainha Dona Caterina que aaquelle tempo eram tutores delRey [D. Juan II de Castela]. (ZURARA, 1915, p. 12-13).

São evocadas por Zurara as palavras de Fernão Lopes (1983) no primeiro prólogo da primeira parte da Crónica de D. João I, já atrás citadas, a respeito de suas andanças por cartórios e igrejas atrás de documentos escritos. No enquadramento zurariano, porém, tal diligência de Fernão Lopes em busca de fontes escritas veio somente após ele procurar e esgotar as fontes orais que pudera encontrar. Evidentemente, nada impedia que Lopes, ao percorrer o reino à procura de fontes, recolhesse todas as que, segundo o seu crivo, pudesse aproveitar, fossem elas de qual tipo fossem. Subsiste o fato, porém, da primazia, segundo Zurara, que Lopes deu aos testemunhos orais e ao caráter complementar, ainda que indispensável, dos documentos escritos, para a escrita da história. O que, aliás, está em conformidade com o lamento do próprio Fernão Lopes (1983) no seu segundo prólogo, dedicado a D. Nuno Álvares Pereira: devido à ausência do condestável e de seus companheiros, levados pela morte, restavam-lhe as “rrelliquias”, ou as fontes escritas, dentre outras.

A autópsia enquanto método preferencial para a escrita da história na Antiguidade e no Medievo

Que o historiador de um passado recente pode recorrer à entrevista de testemunhas é um axioma reconhecido pelos próprios expoentes da escola metódica francesa - tão referidos, mas tão pouco lidos -, que citam como exemplos a Tucídides (c.460-c.400 a.C.), na Antiguidade, e a Jean Froissart (c.1337-c.1410), na Idade Média. Para o estudo de um passado remoto, por outro lado, do qual não ficou qualquer tradição oral, restaria ao historiador o recurso aos documentos, especialmente os escritos, de acordo com tal corrente historiográfica (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946).

No que à Antiguidade grega diz respeito, François Hartog (1999) chama a atenção para o fato de que a vista, quer dizer, o ato de ver por si mesmo - a autópsia -, era considerada um instrumento privilegiado de conhecimento tanto entre médicos quanto entre historiadores. Hartog nos informa ainda que, na língua grega antiga, histor refere-se à testemunha que sabe porque viu e, assim como ocorre em outros idiomas indo-europeus, o “eu vi” (ópsis) goza de mais respaldo e, por conseguinte, de um maior poder persuasivo, do que o “eu ouvi” (akoé). Quanto maior o número de intermediários entre o historiador e aquele que viu, menor se tornava a credibilidade do relato (HARTOG, 1999; GINZBURG, 1991).

A consequência extrema da autópsia enquanto método preferencial para a escrita da história na Grécia Antiga era que, em última instância, só seria possível escrever a história coeva, enquanto ainda houvesse testemunhas que viram o que o enunciador do discurso histórico se propunha a relatar. Isso para não falar da situação em que o próprio historiador era um daqueles que viram, quer dizer, era ele próprio uma testemunha. O principal representante de tal perspectiva na Grécia Antiga, conforme vimos com Langlois e Seignobos (1946), foi Tucídides, que viu e historiou a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.). Heródoto (c.484-c.425 a.C.), por seu turno, para escrever as suas Histórias, além de ter-se valido do que viu, aproveitou-se amiúde de diferentes níveis de akoé - “eu ouvi de quem viu”, “eu ouvi de quem ouviu de quem viu” etc. (HARTOG, 1999; MOMIGLIANO, 2004). De todo modo, havia um limite, para Heródoto, de graus de akoé que poderiam ser utilizados. De acordo com o historiador alemão Christian Meier (2013), na concepção herodoteana, o passado só seria pesquisável para até as duas ou três últimas gerações.

A autópsia, seja ela direta (o historiador viu), ou, indireta (o historiador ouviu de quem viu), constitui-se no cerne da epistemologia de Tucídides (HARTOG, 2017). Ao reivindicar a qualidade de testemunha que viu com os seus próprios olhos (autoptes), o historiador grego apresentava-se como fiador, além de ator (HARTOG, 2017). Na autópsia indireta, por outro lado, temos o relato de uma pessoa que se autodesigna como testemunha, que diz de si mesma ao historiador: “eu estava lá”, “acredite em mim”. Trata-se, segundo Paul Ricoeur (2007), da testemunha enquanto “memória declarada”. Ou, de acordo com Hartog (2017), da testemunha como “portadora de memória”. Caberia ao historiador filtrar e criticar os dados fornecidos pelo depoente através de uma investigação criteriosa, de modo que o discurso histórico oferecido ao público fosse considerado verdadeiro, ou fidedigno (HARTOG, 2017). Quando isso ocorria, o testemunho obtido através da autópsia indireta era tanto autenticado quanto acreditado pelo historiador (RICOEUR, 2007; HARTOG, 1999).

Na Idade Média, no que tange à escrita da história, o visto continuou a ter maior poder de persuasão do que o ouvido. Observemos, à guisa de exemplificação, como Isidoro de Sevilha (c.560-636) define a história em suas Etimologias (2004):

História é a narração de feitos acontecidos, por meio da qual se conhecem os sucessos que tiveram lugar em tempos passados. E entre os antigos não escrevia história mais que quem havia sido testemunha e havia visto os feitos que deviam narrar-se. Melhor conhecemos os feitos que observamos com nossos próprios olhos que os que sabemos de oitiva. (SEVILLA, 2004, I, 41, tradução nossa).

Isso não significa, porém, que, na concepção isidoriana, a história restringia-se à história contemporânea. Para o conhecimento do que aconteceu em tempos mais recuados, podia-se apelar quer à tradição oral, quer à escrita de autoridades do passado (GUENÉE, 2017; ENGELS, 2013). Como lembram Bernard Guenée (1980) e Carlo Ginzburg (2001), a autoridade do apóstolo João advém também da insistência com que ele afirma ter visto o trespasse de Cristo na cruz. Desse modo, textos antigos, de autoridade reconhecida, são ainda, de certa maneira, uma forma de autópsia, na medida em que os seus autores asseveram que viram ou ouviram de quem viu - caso dos demais evangelistas -, e são acreditados.

Beda, o Venerável (c.673-735), assegura que escreveu a sua História Eclesiástica do Povo Inglês tendo por base o que aprendera nos escritos dos antigos, nos relatos dos ancestrais e no que ele próprio sabia por ter sido testemunha. Vários outros autores que escreveram história, até o final da Idade Média, garantiram o mesmo, segundo Bernard Guenée (1980). O historiador francês informa-nos ainda que o cronista medieval se sentia mais seguro para relatar, inclusive de forma mais detalhada, aquilo que ele mesmo vira com os seus próprios olhos (oculis propriis), ou seja, aquilo de que ele foi testemunha ocular (fide oculata). O próximo passo era valer-se da autópsia indireta, equivalente à akoé em primeiro grau, quer dizer, ouvir de quem viu e cujo testemunho o cronista reconhecia, autenticava e acreditava. Para que a sua narrativa fosse completa, o historiador medieval chegava mesmo a “implorar” o testemunho de outras pessoas dignas de fé, motivo pelo qual ele não desprezava um segundo grau de akoé, ou seja, a audição de quem ouviu de quem viu, ainda que tal procedimento tornasse o seu relato menos perfeito (GUENÉE, 1980).

As testemunhas diretas, no entanto, poderiam esquecer o que viram, problema, aliás, enfrentado por Fernão Lopes e por Zurara, conforme vimos páginas atrás e ao qual retornaremos. Cumpre perguntar: haveria um marco temporal, no passado, até onde as lembranças de alguém poderiam alcançar? É ainda Guenée (1980) quem nos informa que, para o cronista medieval, o passado próximo que alguém poderia relembrar contava cerca de 30 anos. Valendo-se de testemunhas diretas de memória excepcional, o historiador poderia saber o que ocorrera há mais tempo, como foi o caso do dominicano Etienne de Bourbon (1180-1261), que, ao compor a sua coleção de exempla, conseguiu, através da autópsia indireta, colher informações de até 70 anos antes. Após analisar as obras de vários cronistas medievais, Guenée chegou a uma média de 50 anos como o limite da memória das testemunhas. Com a utilização da akoé num segundo grau, contudo, ouvindo de quem ouviu de quem viu, o cronista poderia esperar obter informações de até cerca de 100 anos antes do seu tempo (GUENÉE, 1980).

Permaneceu no Ocidente medieval, portanto, a ideia, expressa numa lei de Justiniano (c.482-565), de que o “tempo além do qual a memória humana não retrocede” era de cerca de cem anos (KANTOROWICZ, 1998, p. 118-119). Tanto assim que o inglês Gautier Map, no século XII, escreveu que o que separava a “época moderna” dos “tempos antigos” era justamente o período compreendido pela memória humana, que era, segundo ele, de cerca de uma centúria. Não era impossível, afinal, encontrar testemunhas já centenárias e, além do mais, ainda de acordo com Gautier Map, os filhos poderiam contar o que ouviram do que seus pais e avós disseram que viram (GUENÉE, 1980; GUENÉE, 2017).

Em assim sendo, o cronista medieval acreditava ser exequível, por meio da autópsia direta (ele viu), da autópsia indireta, ou akoé em primeiro grau (ele ouviu de quem viu) e da akoé em segundo grau (ele ouviu de quem ouviu de quem viu), ainda que com um grau de fidelidade decrescente - o que ele geralmente não escamoteia em sua narrativa - historiar, através de fontes orais, os últimos 100 anos. Daí para trás ele poderia contar com a tradição oral e com os textos de autoridade reconhecida pela Igreja e pela corte régia para a qual prestava os seus serviços historiográficos (GUENÉE, 1980; GUENÉE, 2017; HARTOG, 2017).

O cronista e o rei, manipuladores da memória e do esquecimento

Se havemos de analisar a obra de algum cronista medieval, uma das primeiras coisas que precisamos saber é quem era o seu patrono, quem o estimulou ou coagiu a narrar determinados acontecimentos e a calar outros (GUENÉE, 2017). A própria configuração da narrativa exige que se selecione determinados fatos - aquilo que deverá ser lembrado - e que se omita outros - aquilo que deverá ser esquecido. Além de o que deve ser lembrado, ganha relevo a importantíssima questão do como deve ser lembrado. E se o esquecimento é condição sine qua non da narrativa, uma vez que é impossível narrar tudo, ele é, também, muitas vezes, utilizado intencionalmente, de forma abusiva, pelo narrador (RICOEUR, 2007; TODOROV, 2000). Nesse sentido, a dependência do cronista para com o seu patrono determinou tanto as versões convenientes ao príncipe que saíram da sua pena quanto os “hábeis silêncios” a respeito das coisas que não deveriam ser relatadas (BOURDÉ; MARTIN, 1990). O cronista-mor de Portugal, sob a supervisão do seu monarca, participava, assim, da administração, ou da manipulação, da memória histórica do reino, o que necessariamente implicou no uso de “prudentes amnésias” (CARBONELL, 1992; RICOEUR, 2007). Ambos, rei e cronista, eram, pois, nas palavras de Jacques Le Goff (2003, p. 422), “senhores da memória e do esquecimento”.

Que o cronista avisino do século XV escrevia sob a orientação do rei não resta dúvida. Tal era o costume estabelecido por D. Duarte. O Eloquente deu instruções detalhadas a prelados para a composição dos sermões fúnebres de D. Nuno Álvares Pereira e de D. João I, destacando o que, em suas trajetórias, deveria ser lembrado e esquecido (DUARTE, 1982, doc. 61, p. 225-229; doc. 64, p. 236-239). Estranho seria se D. Duarte se furtasse a fazer o mesmo após ter dado início à produção cronística oficial na corte, num contexto em que se buscava a legitimação da sua dinastia, de origem bastarda (COELHO, 2005; DUARTE, 2005). Não poderíamos, portanto, esperar imparcialidade do primeiro cronista-mor de Portugal, Fernão Lopes, secretário pessoal do Eloquente, nem do seu sucessor, Gomes Eanes de Zurara. É quase escusado dizer que a neutralidade total é impossível também aos historiadores atuais. Por que não o seria a cronistas contratados especialmente para incensar os seus reis? (MONTEIRO, 2017).

D. Afonso V acompanhava de perto a história que o seu cronista escrevia, e isso é o próprio Gomes Eanes de Zurara quem o diz. Na sua obra de estreia, a Crónica da Tomada de Ceuta, Zurara (1915) se queixa da má vontade de muitas testemunhas - nobres, em sua maioria - de o receber e lhe declarar o que presenciaram nos preparativos e na conquista da cidade marroquina. O cronista diz que àquelas pessoas mostrava “mamdado delRey”, ou seja, um documento oficial expedido por D. Afonso V, determinando que o atendessem. Apesar disso - exaspera-se Zurara -, faziam-no esperar às suas portas, como se ele fosse delas dependente; ou, então, faziam-se de ocupadas, “allegamdo escusaçoões, as quaaes conheçidamemte eram mais por tomarem semelhamça destado, que por nehuũa outra neçessidade” (ZURARA, 1915, p. 227). O cronista escreve, então, que se sentia afadigado com tais situações, ainda mais quando se lembrava de que aquele com quem vivia, “que he meu senhor e meu rrey, offereçe suas orelhas pera ouuyr meus rrazoados com menos çerimonias, quamdo semte que he rrazam” (ZURARA, 1915, p. 227, grifo nosso).

Assim, no processo de escrita da sua primeira crônica, Gomes Eanes de Zurara procurava suas testemunhas autorizado por um documento régio e, sempre que julgava necessário, ou quando era convocado por D. Afonso V, ia até o monarca revelar o que coligira. Nessas audiências, por certo, o cronista expunha ao soberano suas considerações e ouvia as determinações do rei a esse respeito antes de assentá-las definitivamente por escrito. Não temos motivos para pensar que tenha sido diferente no processo de produção das suas crônicas subsequentes.

D. Afonso V, terceiro rei avisino, vinha dando continuidade ao projeto de memória e de esquecimento que buscava legitimar a sua dinastia.6 Para além disso, seu reinado experimentou conjunturas próprias, o que requereu que o projeto mnemônico de sua família fosse por ele reorientado. Dentre os acontecimentos que marcaram a sua governança, tanto interna quanto externamente, merecem destaque três: (1) a Batalha de Alfarrobeira, em 1449, na qual D. Afonso V enfrentou e derrotou o seu tio e sogro, o ex-regente D. Pedro, e que marcou o início efetivo do seu exercício de poder (MORENO, 1979; GOMES, 2009; RODRIGUES, 2012); (2) a expansão sobre o continente africano, com destaque para as guerras de conquista no Marrocos e, em menor medida, com as investidas sobre a África Atlântica além do Cabo Bojador, então designada genericamente como “Guiné” (BOXER, 2003; MARQUES, 1997; SAUNDERS, 1994); (3) a campanha militar pela posse do trono castelhano contra os Reis Católicos, D. Isabel de Castela (1451-1504) e D. Fernando II de Aragão (1452-1516) (GOMES, 2009; MENDONÇA, 2007). Em todos esses episódios, o Africano atuou sob a poderosa influência da nobreza neossenhorialista, a grande vencedora de Alfarrobeira, com destaque para a casa ducal de Bragança. Os tempos de D. Afonso V foram, como se sabe, tempos de recrudescimento do senhorialismo em Portugal (MENDONÇA, 2010).

Dos três acontecimentos supracitados, Gomes Eanes de Zurara só não viveu para testemunhar o terceiro, uma vez que ele já estava morto em abril de 1474 e a citada guerra entre os reinos ibéricos viria a ocorrer entre 1475 e 1479. Com respeito aos outros dois, Zurara esteve, de certo modo, até mesmo envolvido neles. Primeiramente porque a sua ascensão na corte avisina se deu no contexto que levou à tragédia de Alfarrobeira, tema a que Zurara não se furtou de tocar (GUIMARÃES; MOREIRA, 2021). Ademais, o cronista acompanhou, desde o reino, o planejamento e as conquistas de D. Afonso V sobre Alcácer Ceguer, em 1458, e Arzila e Tânger, em 1471. Entre uma e outra conquista, Zurara visitou o Marrocos para escrever a sua última crônica. Por fim, o relativo desinteresse do Africano em relação ao comércio atlântico-guineense não impediu que esse soberano incumbisse o seu cronista de historiar os sucessos dos navegadores portugueses naquelas paragens durante o reinado do seu pai, D. Duarte, e a regência do seu tio, D. Pedro, contando-os, porém, como se de atos de cavalaria se tratasse e atribuindo-os, como causa motriz, ao infante D. Henrique (1394-1460), 1º duque de Viseu (BARRETO, 1983; BRAGANÇA, 1973). É especialmente a esses eventos marcantes do reinado afonsino que Zurara faz referências, narrando-os de uma maneira específica em detrimento de outras, que deveriam ser esquecidas. E o próprio olvido foi intencionalmente utilizado pelo cronista como um importante meio de dar relevo àquilo e àqueles que deveriam ser lembrados, de acordo com a vontade de D. Afonso V. Tais diretrizes foram fielmente seguidas por Zurara e nortearam os métodos por si utilizados para a escrita da história.

Dada a prioridade concedida pelos cronistas medievais à autópsia, fosse ela direta ou indireta, Gomes Eanes de Zurara poderia considerar-se privilegiado por narrar acontecimentos contemporâneos, conforme os ideais de Tucídides e de Isidoro de Sevilha. O cronista português nasceu, provavelmente, na primeira década do século XV, entre 1404 e 1410, embora haja quem defenda que o seu nascimento se deu por volta de 1420 (cf. DINIS, 1949). Sua primeira obra, a Crónica da Tomada de Ceuta, foi concluída em 1450, e nela são narrados feitos ocorridos entre cerca de 1411 e 1415, ou seja, menos de 40 anos antes. A Crónica de Guiné, finalizada numa primeira versão por volta de 1453, compreende um arco temporal que vai da passagem do Cabo Bojador por Gil Eanes, em 1434, até a assunção do governo do reino português por D. Afonso V, em 1448. A obra seguinte, a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, começou a ser escrita em 1458 e foi concluída por volta de 1464, tendo como tema os sucessos ocorridos na Ceuta conquistada pelos portugueses entre 1415 e o ano da morte do seu primeiro capitão-fronteiro, D. Pedro de Meneses (n. 1370), em 1437. Por fim, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses trata da tomada de Alcácer Ceguer, no Marrocos, pelas hostes de D. Afonso V, em 1458, e tem o seu termo cronológico em 1464, ano do falecimento do capitão da vila, D. Duarte de Meneses (n. 1414). Nesse mesmo ano de 1464, Zurara começou a compor essa última obra, tendo, inclusive, visitado o Marrocos e lá permanecido por cerca de um ano, entre 1467 e 1468, para melhor se inteirar dos fatos a serem narrados. Vejamos, pois, quais as considerações feitas por Gomes Eanes Zurara no que se refere à autópsia enquanto procedimento metodológico para a escrita da história oficial dos feitos dos portugueses do século XV no século XV, segundo os desígnios de D. Afonso V.

A autópsia indireta em Gomes Eanes de Zurara

O segundo cronista-mor de Avis assevera que começou a escrever a Crónica da Tomada de Ceuta 34 anos após a sua conquista pelos portugueses (ZURARA, 1915). Como tal sucesso se deu em 1415, logo, Zurara iniciou sua escrita em 1449. O interrogatório das testemunhas, porém, começou a ser feito, ainda segundo o autor, antes, uma vez que ele nos informa que, “teemdo o Iffamte Dom Pedro carrego do rregimento destes regnos. me comtou gram parte deste feito” (ZURARA, 1915, p. 45). Uma vez que a regência petrina encerrou-se a 8 ou 9 de julho de 1448 (MORENO, 1979), podemos concluir que Zurara já estava ouvindo quem participou dos eventos que ele viria a historiar pelo menos desde o primeiro semestre de 1448, quer dizer, pouco mais de 30 anos após o ocorrido. Estamos, pois, abaixo da média de 50 anos verificada por Bernard Guenée (1980) para o período de lembrança das testemunhas entrevistadas por um cronista medieval.

Tal conjuntura, todavia, não facilitou o trabalho de Zurara. Segundo ele, “no dito tempo faleçeram casi a mayor parte das autorizadas pessoas” que participaram da conquista de Ceuta e, daquelas que permaneciam vivas, “eram tam grandes senhores os quaaes polla exçellençia de seu estado forom sempre tam ocupados que perderam lembrança de muy gram parte das çircunstançias daquellas cousas” (ZURARA, 1915, p. 11). Assim, para o cronista de D. Afonso V, as testemunhas mais qualificadas que poderiam lhe contar o que viram eram, basicamente, os nobres de alto quilate que lutaram no assalto a Ceuta, mas, para seu azar, muitos deles haviam esquecido “gram parte” do que se passou devido, sobretudo, às ocupações a que seu elevado estado lhes obrigava. Mas havia ainda outras testemunhas dignas de fé: membros da média e pequena nobreza e letrados. Muitos deles, porém, como vimos acima, resistiam em recebê-lo para lhe contarem aquilo de que se lembravam (ZURARA, 1915). Como se pode perceber, o fato de o cronista conviver com testemunhas diretas dos feitos a serem historiados não implicava, necessariamente, para ele, em um “simgullar prazer”, conforme a expressão de Fernão Lopes (1983, p. 63-64).

E que dizer dos peões, isto é, dos combatentes da chamada “gente miúda”? A peonagem, por certo, compreendia a maior parte dos efetivos portugueses que lutaram no Marrocos (DUARTE, 2015; MONTEIRO, 1998). Conquanto em sua última crônica Zurara venha a mudar de juízo em relação à probidade dos depoimentos de homens de tal chusma, como veremos, na Crónica da Tomada de Ceuta ele, logo depois de dizer que “a mayor parte de todollos boõs [isto é, nobres] eram ja finados”, afirma o seguinte: “ca a outra gemte do pouoo nom trazia em aquelle dia o cuydado senam em rroubar, do que achauam bem assaz pera fartar suas cobijças” (ZURARA, 1915, p. 213). Atualizando o topos da ganância típica da gente miúda, cujo “sangue baixo” a levava, durante um embate, a antepor o proveito e o ganho à honra, Zurara diz que os peões de tal modo estavam cegos pela cupidez, entregando-se açodadamente ao saque de Ceuta, que de nada mais se lembravam (GUIMARÃES, 2019). Seria inútil, pois, entrevistá-los.

Vimos, mais acima, que Zurara ouviu o infante D. Pedro, ainda na época da sua regência, sobre a sua participação na conquista de Ceuta. Não podemos nos esquecer, porém, que tal infante morrera em 1449, na Batalha de Alfarrobeira, na qual, com os seus homens, enfrentou o exército régio e sofreu uma morte aviltante, tendo sido punido postumamente por D. Afonso V com uma damnatio memoriae que só viria a ser revogada em 1455. Isso levou a que a persona do infante D. Pedro mal fosse lembrada - e lembrada mal! - na Crónica da Tomada de Ceuta (DUARTE, 2005; GUIMARÃES; MOREIRA, 2021). É de se perguntar, pois, até que ponto o seu testemunho foi utilizado pelo cronista.

Mas Zurara pôde contar com as lembranças de um outro membro da Ínclita Geração que participara daquela empreitada, justamente aquele que, na sua opinião, era a melhor das testemunhas - o infante D. Henrique:

Porem tomando alguũs pedaços que ficaram apegados nas paredes do entendimento deste senhor cheas de muy grandes cuidados e çercadas de feitos estranhos com alguũas migalhas que de fora apanhamos. trabalharemos de fazer cousa que pareça jnteira segundo a forma do proçesso que se segue. (ZURARA, 1915, p. 11).

Ora, na Batalha de Alfarrobeira, o infante D. Henrique posicionara-se ao lado do seu régio sobrinho contra o seu próprio irmão. A versão dos acontecimentos que interessava ao monarca, obviamente, era a de D. Henrique. Como nota Luís Miguel Duarte (2015), a propósito, esse infante é de tal maneira louvado por Zurara na Crónica da Tomada de Ceuta que essa, embora tenha sido concebida como a Terceira Parte da Crónica de D. João I, bem poderia ser intitulada Crónica do Infante D. Henrique na Conquista de Ceuta, “porque era isso o que Afonso V apreciaria e, por maioria de razão, o que daria prazer ao infante, que estava vivo e completamente disponível para receber Zurara em sua casa e lhe contar como tinha sido” (DUARTE, 2015, p. 171). Ao apagamento da memória do infante D. Pedro efetuado por Zurara a mando do rei, portanto, correspondeu o realce da persona do infante D. Henrique, o que confirma o argumento de Paul Ricoeur (2007) de que memória e esquecimento, longe de serem oposições binárias, coexistem e participam da constituição um do outro.

Gomes Eanes de Zurara descortina algumas ocasiões específicas em que ouviu o duque de Viseu. Ao narrar a entrega de relíquias - supostas lascas do lenho da Santa Cruz - pela rainha D. Filipa de Lencastre (1360-1415), acometida pela “peste” e moribunda, aos seus três filhos mais velhos - D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique - antes da partida para a África, o cronista assevera o seguinte sobre o último deles:

Mas do Iffamte Dom Hamrrique podemos nos dar çerto testimunho, porque ao tempo que escpreuemos esta estoria, elle auia hidade de çimquoemta e seis annos, ffallamdo açerqua desto nos disse, que numca lhe nembraua, depois que lhe o dito lenho fora dado, que o teuesse fora de ssy, soomente huũ dia, que o tirara per esqueçimento em desuestimdo a camisa. E ouuimos depois a Luis de Sousa, claueiro dordem de Christo, seu camareiro moor, e filho de Gomçallo Roiz de Sousa, que quamdo sse o dito Iffante finou, que lhe tirara o lenho da cruz. e o dera a elRey [D. Afonso V] em Euora com o sinete e o seu liuro de rrezar. (ZURARA, 1915, p. 127, grifos nossos).

O recurso à autópsia indireta é aqui utilizado por Zurara para conferir maior fiabilidade ao seu relato. O cronista diz que ouviu da boca do próprio infante D. Henrique, quando ele tinha 56 anos - quer dizer, por volta de 1450, ano da conclusão da crônica -, que ele sempre levava consigo, junto ao seu corpo, a relíquia que recebera da sua mãe. Embora Zurara não nos diga que chegou a ver a relíquia, ele afirma, logo a seguir, que ouviu quem a viu: o camareiro-mor de D. Henrique, Luís de Sousa, que foi também claveiro7 e comendador da Ordem de Cristo8 - da qual o dito infante era administrador (RUSSELL, 2004) - declarou ao cronista que ele mesmo tirara o lenho do cadáver do duque de Viseu, morto em 1460, e o entregara ao rei D. Afonso V.9 Para encarecer o status do seu depoente, Zurara informa de quem ele era filho: Gonçalo Rodrigues de Sousa, fidalgo, conselheiro régio e comendador da Ordem de Cristo10 (VASCONCELOS, 2008). Com tais credenciais, não causa nenhuma surpresa que as lembranças de tal testemunha viessem a ser validadas e autenticadas pelo cronista de D. Afonso V através da escrita autorizada da história.

Para ouvir o infante D. Henrique ou algum dos membros da sua casa, Zurara teve de, por vezes, deslocar-se de Lisboa, onde vivia e trabalhava, até o Algarve, onde o duque de Viseu estabelecera a sua morada (ZURARA, 1973). Naquela comarca, próximo ao Promontório de Sagres e ao Cabo de São Vicente, D. Henrique fundou uma vila, por volta de 1445 (RUSSELL, 2004). Zurara (1973), na dedicatória da Crónica de Guiné ao infante D. Henrique - cuja primeira versão é de 1453, como vimos - diz que, ao tempo da composição da dita obra, “em ela [isto é, na vila] não havia somente os muros, que eram de boa fortaleza, com algumas poucas de casas, mas obrava-se em ela continuadamente” (ZURARA, 1973, p. 34). O objetivo de D. Henrique era que ali, na “esquina” sudoeste de Portugal, os navios dos mercadores que trafegavam entre o Mediterrâneo e o Atlântico pudessem encontrar abrigo. Àquele tempo, contudo, não havia ainda consenso sobre o nome da vila, de acordo com o cronista, mas, com base no que ele ouviu - e leu - do próprio infante, Zurara poderia assegurar o topônimo correto: “E pero que á dita vila chamassem alguns outros nomes, eu creio que o seu proprio, segundo a tenção daquele que a mandou fundar, era que se chamasse a Vila do Infante, que ele mesmo assim a nomeava em suas palavras e escritos” (ZURARA, 1973, p. 34, grifo nosso). De fato, em uma carta de doação da espiritualidade daquele povoado à Ordem de Cristo, datada de 19 de setembro de 1460, assevera o infante D. Henrique: “mandei edificar huũa villa no outro cabo [isto é, no Cabo de São Vicente] que ante do dito cabo de sagres esta [...] que sse chamaua terça naball aa qual pus nome Villa do Ifante” (D. HENRIQUE, 1460 apudBRAGANÇA, 1973, p. XXVII, grifos nossos). Um documento escrito, pois, que confirma as palavras que Zurara afirmou ter escutado de D. Henrique.

É ainda na Crónica de Guiné que Zurara narra a sagração de D. Pedro de Coimbra (1429-1466), condestável de Portugal desde 1443, filho do então regente D. Pedro, como cavaleiro pelas mãos de D. Henrique, em 1445, antes de sua ida, numa expedição militar, a Castela.11 Com vistas a louvar o duque de Viseu e a minimizar a importância do finado infante D. Pedro, que à altura da escrita da Crónica de Guiné ainda era vítima póstuma de uma damnatio memoriae infligida por D. Afonso V (GUIMARÃES; MOREIRA, 2021), Zurara patenteia uma vez mais o recurso à autópsia indireta:

E entre as razões que ouvi dizer que o Infante [D. Pedro] dissera áquele seu filho, ao tempo que se dele partiu, foi que lhe encomendava que se nembrasse da Ordem da cavalaria que tinha recebida, e principalmente de cuja mão [de D. Henrique] a recebera a qual cousa lhe não era pequeno encargo. (ZURARA, 1973, p. 220).

Zurara certamente não perderia a oportunidade de dizer que fora testemunha do ocorrido se lá estivesse presente, numa ocasião tão prestigiante. O cronista afirma, porém, que ouviu as palavras que teriam sido ditas pelo infante D. Pedro, mas não nos informa de quem as ouviu. Não é de se descartar que ele as tenha escutado do infante D. Henrique, mas tampouco é improvável que o discurso tenha sido criado pelo próprio Zurara com o objetivo de tornar verossímil o seu relato e, por conseguinte, angariar a fides de seus leitores e ouvintes. A autópsia indireta - “ouvi dizer” -, nesse caso, seria um recurso retórico utilizado pelo enunciador do discurso histórico com objetivos laudatórios e persuasivos.

Um membro da casa senhorial do infante D. Henrique, seu escudeiro João Fernandes, é uma das personagens mais instigantes de toda a Crónica de Guiné e, não seria exagero dizê-lo, da história da expansão portuguesa no Atlântico na centúria do Quatrocentos. É com “espanto” que Zurara (1973) informa que o dito João Fernandes, que acompanhou, em 1444, uma expedição à região do Rio do Ouro, no Saara Ocidental, “de sua vontade prouve ficar em aquela terra, somente pola ver e trazer novas ao Infante” (ZURARA, 1973, p. 140, grifo nosso). João Fernandes fora prisioneiro dos mouros no norte africano, conhecia um pouco dos costumes islâmicos e conseguia se comunicar em árabe e, talvez, em berbere. Tinha, portanto, qualificações mínimas para tão arriscada tarefa (RUSSELL, 2004; ALBUQUERQUE, 1985a; MARQUES, 1998). Zurara informa que, sete meses depois, João Fernandes foi resgatado pelos portugueses, e assegura: “eu conheci ainda este escudeiro, homem de boa consciencia e assaz catolico cristão” (ZURARA, 1973, p. 158-159, grifo nosso). Em várias passagens da Crónica de Guiné, João Fernandes reaparece, oferecendo informações sobre as gentes locais ou servindo de intérprete entre portugueses e africanos, mas é especialmente no capítulo 77 que Zurara (1973) descreve com mais vagar o testemunho do escudeiro a respeito das culturas e das sociedades de azenegues e berberes, bem como da fauna e da flora da região em que viviam, na atual Mauritânia.12 Desse modo, o cronista busca conferir credibilidade à sua narrativa histórica na medida em que transcreve aquilo que foi visto por alguém que ele conheceu e, provavelmente, ouviu.

Para a escrita da sua última crônica, que tem por protagonista o conde D. Duarte de Meneses, Zurara obteve autorização régia para viajar até o Marrocos, onde permaneceu por cerca de um ano, entre 1467 e 1468. O cronista apresentou dois motivos para que D. Afonso V permitisse a sua ausência do reino. Para o que interessa nesta seção do artigo, analisemos apenas o primeiro deles, e deixemos o segundo para mais adiante, quando tratarmos da autópsia direta em Zurara. Escreve o cronista:

Entendy que me conuijnha passar em aquellas partes de africa por duas rezõoes. huma por que naquella villa dalcacer eram moradores assy os adaijs e almocadeens e escuitas e outra gente do campo que foram os principaaes meos per que se as cousas ordenarom e fezerom. sem cuja ordedura se minha estorea nom podya ordenar nem teer. como outra gente que tijnha uida ordenada naquella frontarya. os quaaes como continuadamente andauam naquelle officio seryam em melhor lembrança dos feitos que os cortesaãos. cujo sentido como som no regno ha mais dantender a outras partes. (ZURARA, 1978, p. 47, grifos nossos).

Se na Crónica da Tomada de Ceuta as testemunhas preferenciais de Zurara (1915) foram os membros da nobreza, especialmente da alta, cujo exemplo máximo é o infante D. Henrique, para a escrita da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses o autor (ZURARA, 1978) mudou radicalmente de perspectiva. Os nobres que lhe poderiam servir de depoentes, segundo ele pondera no extrato acima, encontravam-se em Portugal, onde tinham outras preocupações. Vale ressaltar que os componentes do segundo estado que iam servir nas praças norte-africanas sob o domínio português, em geral, passavam apenas de dois a três anos ali. Os populares, por seu turno, chegavam a viver décadas, até mesmo a vida inteira, no além-mar (FARINHA, 1999; BRAGA, 1998).

Dessa maneira, os que estavam “em melhor lembrança dos feitos” (ZURARA, 1978, p. 47) ocorridos em Alcácer Ceguer, desde a sua tomada, em 1458, eram os adaís, almocadéns, escutas “e outra gente do campo”, que atuavam como batedores de terreno, guias e espiões das hostes portuguesas no Marrocos. Via de regra, sua origem social eram os estratos inferiores do povo, que formavam a peonagem. Leia-se, a esse respeito, o que determinam as Ordenações Afonsinas (1792): “as cousas, que ham de hir a bem, sempre ham de subir d’huũ graao a outro melhor, assy como fazem de boo piam boõ Almocadem, e de boõ Almocadem boõ Almoguavare de cavallo, e daquelle, boõ Adayl” (ORDENAÇÕES, 1792, liv. I, tít. LXVI, § 4, grifo nosso). João Gouveia Monteiro (1998) assinala que era especialmente entre os lavradores, acostumados a viver no campo, a se movimentar entre bosques e montanhas e a se alimentar frugalmente, que tais guias eram recrutados. Assim, ao menos em sua última crônica, Zurara ouviu, acreditou e autenticou a “memória declarada” de homens da chamada gente miúda, chegando mesmo a nomear e louvar alguns deles (GUIMARÃES, 2021). Evidentemente, o cronista não deixou de interrogar nobres que se encontravam em Alcácer Ceguer durante a sua estadia ali, dentre os quais merece destaque na pena de Zurara o filho do finado conde D. Duarte de Meneses, D. Henrique de Meneses (c.1450-1480), que assumiu provisoriamente a capitania da vila e, depois, foi conde de Loulé e primeiro capitão de Arzila (ZURARA, 1978; FERNANDES, 2007).

Mas não foram apenas cristãos, nobres e plebeus, que declararam suas lembranças a Zurara. Em sua Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, integralmente escrita em terras portuguesas, o cronista diz que muitos mouros, logo após a tomada de Ceuta, em 1415, permaneceram pelas proximidades, onde tinham suas quintas, imaginando que D. João I e suas hostes, contentes apenas com a vitória e o saque, retornariam a Portugal e deixariam a cidade marroquina livre. A fonte dessa informação? Assegura Zurara: “[...] segumdo soubemos por allgũs [mouros] que ao diamte a este rregno vieram cativos” (ZURARA, 1997, p. 220).

Era de se esperar, pois, que, estando no Marrocos, Zurara também quereria ouvir os muçulmanos locais que mantinham relações com os portugueses. Imediatamente após a perda de Alcácer Ceguer, em agosto de 1458, os marroquinos, liderados pelo rei de Fez, tentaram retomar a vila e montaram um cerco, que se alongou até o começo do ano seguinte (GOMES, 2009). Zurara (1978) apresenta ao seu público o estado de ânimo dos mouros em seu arraial após semanas de assédio: muitos deles, cansados e imaginando que os cristãos ainda dispunham de mantimentos para resistir por longo tempo, pediram aos seus superiores que levantassem o cerco. A seguir, para tornar sua narrativa mais credível, o cronista diz que soube disso por meio de alguns dos próprios ex-sitiantes: “eu ouuy a alguuns mouros com que falley daqueles que esteuerom naquelle cerco estando eu la em terra dafrica pera screuer esta estorea onde me trabalhaua muyto falar com eles pera saber melhor seus feitos. e isto por elles uijrem algumas uezes a alcacer” (ZURARA, 1978, p. 173, grifo nosso).

A autópsia direta em Gomes Eanes de Zurara

Não localizamos na Crónica da Tomada de Ceuta nenhuma assertiva de Zurara enquanto “memória declarada” do que ele conta, quer dizer, em nenhum passo o cronista afirma ter visto qualquer dos acontecimentos que narra. Não é de se estranhar, afinal, entre 1411 e 1415, arco cronológico da crônica, Zurara era apenas uma criança - se é que já havia nascido. Ademais, de acordo com Aristóteles (2016, [456b]), em A memória e a reminiscência, e com Tomás de Aquino (2016, 3, § 5), nos seus comentários a essa obra, as crianças, por estarem em crescimento, são “deficientes em memória”. O rei D. Duarte (1981), que chega a citar o mencionado tratado aristotélico (DIONÍSIO, 2000), diz, no seu Leal Conselheiro, que apenas dos sete anos em diante é que se tornaria possível “vezar a memoria em reter algũas boas enssynanças naturalmente” (DUARTE, 1981, p. 242-243). O que está de acordo com a legislação canônica vigente em Portugal no século XV: a Igreja estabeleceu que alguém só estaria em condições de confirmar o seu batismo a partir dos sete anos, idade em que, segundo se cria, a razão começava a conservar lembranças (OLIVEIRA, 2010).

Na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, porém, na qual narra o que se passou em Ceuta e, secundariamente, no reino de Portugal, entre 1415 e 1437, o cronista encontra espaço para declarar algo que ocorreu durante a sua mocidade e que ele mesmo viu. Em alvará de 7 de maio de 1428, o então infante D. Duarte comunicou à câmara de Lisboa que “Pallenço e Aluaro do Cadauall” iriam, numa galeota do infante D. Henrique, “contra os mouros, por nosso serujço”, e mandou que os dirigentes camarários “desempachassem” uma fusta13 que também seria utilizada com o mesmo objetivo (MONUMENTA, III, 1961, doc. 98, p. 205-206). Zurara (1997) menciona a chegada desses dois capitães, com seus homens, a Ceuta, para servirem o conde D. Pedro de Meneses em sua guerra contra os mouros, mas louva apenas a “Allvaro Fernamdez Pallemço, gramde homẽ ẽ pellejas de mar” (ZURARA, 1997, p. 575). Capítulos adiante, o cronista diz que, ainda em 1428, numa batalha naval contra os muçulmanos, Álvaro Fernandes do Cadaval foi morto e Palenço, preso (ZURARA, 1997).

Os mouros, mesmo sabendo que Palenço “nõ hera homẽ de nobre linhagem”, segundo Zurara, pelos grandes danos que ele lhes fizera, estipularam um valor alto para a sua libertação: “dez mouros catyvos, e estes escolheytos, emtamto que subio o valor de seu rresgate açerca de mill e quynhemtas dobras” (ZURARA, 1997, p. 599-600). Embora louve principalmente ao rei D. João I e aos seus filhos infantes por providenciarem o que era exigido como resgate, Zurara assevera que também a esposa de Palenço “he digna de se rregistrar em este vellume por sua nobre memoria, por ser emxemplo as bõas molheres, porque ella trabalhou nello muito” (ZURARA, 1997, p. 600). Ora, como os mouros que deveriam ser libertos eram, como dito acima, escolhidos, eles pertenciam a diversos senhores portugueses, alguns dos quais dificultavam a negociação. Ainda assim, a mulher de Palenço “não avia por trabalho hyr muitas vezes fora de sua casa, por caminhos lomgos, rrequerer e buscar a liberdade de seu marido. E eu que esta estoria escrevy a vy bem amdar em este trabalho”, motivo pelo qual ela é salva do esquecimento pelo cronista através do relato do seu exemplum para os presentes e os pósteros - ainda que, ironicamente, ele não nos tenha deixado o seu nome (ZURARA, 1997, p. 600, grifo nosso). Gomes Eanes de Zurara apresenta-se, desse modo, como aquele que viu e que, portanto, sabe bem e pode garantir o que relata. O cronista finaliza esse capítulo recorrendo à autópsia indireta, ou à akoé em primeiro grau: ele assegura que, quando compôs esse passo da crônica, Palenço já havia morrido, mas “em meus dias, aymda que pequeno fosse, ouvi os bõs feitos deste homẽ” (ZURARA, 1997, p. 600).

Palenço e sua célebre fusta reaparecem na Crónica de Guiné, obra na qual Zurara (1973) também afirma ter testemunhado alguns dos sucessos que narra. O primeiro deles encontra-se no panegírico dirigido ao infante D. Henrique, no passo em que o cronista justifica a escravização de mouros, azenegues e guinéus - lucrativo resultado da expansão marítima portuguesa -, afirmando que, por esse meio, muitos africanos puderam se converter ao catolicismo e, assim, salvar as suas almas. Em boa verdade, de acordo com o cronista, D. Henrique fazia-lhes um imenso favor:

[...] eu, que esta historia escrevi, vi tantos homens e mulheres daquelas partes tornados á santa Fé, que ainda que este principe fora gentio, as orações daquestes eram abastantes para o trazer a salvação. E não tão somente vi aquestes, mas vi seus filhos e netos tão verdadeiros Cristãos como se a divinal graça espirara em eles para lhes dar claro conhecimento de si mesmo. (ZURARA, 1973, p. 46, grifos nossos).

A diligência do infante D. Henrique colhera, pois, bons frutos, já que tantos africanos e seus descendentes se tornaram piedosos católicos, segundo o que Zurara garante ter visto em Portugal. O cronista tem mais a nos falar sobre o seu convívio com tais escravos:

Abasta que eu nunca vi, a nenhum daquestes, ferro como aos outros cativos; e quase nenhum que se não tornasse cristão e que não fosse mui docemente tratado. E fui já rogado de seus senhores para seus bautismos e casamentos, nos quaes aqueles, cujos servos eles antes eram, não faziam menos solenidade que se foram seus filhos ou parentes. (ZURARA, 1973, p. 126).

Destacamos que Zurara utiliza a sua autoridade, tanto de cronista quanto de testemunha direta, primeiramente para dizer o que não viu: se ele, costumeiramente, via os cativos que rejeitavam a conversão à fé cristã sendo postos a ferros, ele nunca observara algo semelhante em relação aos que abraçaram o catolicismo. Ao contrário: via-os sendo bem tratados, e não poucas vezes chegara a ser convidado para os seus sacramentos, como o batismo e o matrimônio. É evidente a insistência com que Zurara busca legitimar a razia e a escravização de africanos com o argumento da salvação de suas almas.14

De fato, como notou o biógrafo de D. Henrique, Peter Russell (2004), para esse infante, “conversão” e “escravatura” eram sinônimos. Tal lógica foi aplicada pelo duque de Viseu também para com os habitantes das Ilhas Canárias. Desde os anos 20 do século XV, D. Henrique vinha disputando com Castela a soberania sobre o arquipélago. Enquanto a Santa Sé não resolvia de vez a questão, o infante português tentava conquistá-lo à revelia, como ocorreu em 1434, ano em que, segundo carta enviada pela corte portuguesa ao papa Eugênio IV (1383-1447) dois anos depois, homens a serviço de D. Henrique converteram, através do cativeiro, cerca de quatrocentos canários. Embora o litígio com os castelhanos continuasse, durante a década de 40 os navios portugueses que voltavam da Guiné sem conseguir alcançar a cota de escravos estipulada, tentavam completá-la investindo sobre canários que continuavam pagãos (RUSSELL, 2004).

De acordo com Zurara (1973), canários cristãos ajudavam os portugueses em sua tentativa de cativar os seus conterrâneos gentios, no que eram recompensados por D. Henrique. O cronista conta que alguns canários convertidos, liderados pelo seu capitão Piste, foram visitar o infante em Portugal, de quem “houveram assaz mercês e gasalhado”. Atesta Zurara: “E disto posso eu, que esta historia ajuntei e ordenei, ser certa testemunha, que me acertei de ser no reino do Algarve, em casa deste principe, ao tempo que estes Canarios aí andavam, e vi bem como eram tratados” (ZURARA, 1973, p. 297, grifos nossos). Numa das ocasiões em que viajara de Lisboa ao Algarve com o intuito de ouvir o infante D. Henrique, portanto, o cronista pôde testemunhar com os seus próprios olhos o bom tratamento dispensado pelo duque de Viseu aos habitantes convertidos do arquipélago por ele pleiteado.15

Podemos, enfim, tratar do segundo dos motivos apresentados por Zurara a D. Afonso V para permitir-lhe o deslocamento até o Marrocos, entre 1467 e 1468:

E a outra [razão] por que me pareceo que me conuijnha auer boom conhecymento per uista de todas aquellas comarcas per que as nossas Jentes andarom pelleiando com seus Jmijgos. pera saber como eram asseentadas. e o modo que os mouros tijnham em pelleiar. E isso meesmo a maneyra per que os nossos entrauam antre elles. e como auyam suas pelleias. e a audacya que os contrayros tijnham em se defender. (ZURARA, 1978, p. 47, grifo nosso).

Gomes Eanes de Zurara já havia escrito crônicas onde narrara inúmeras ciladas e escaramuças entre portugueses e marroquinos, utilizando-se, para isso, das mais diversas fontes, especialmente as orais. Ele ouvira os próprios combatentes, tanto cristãos quanto mouros, e acreditara e autenticara os seus testemunhos, conforme expusemos. Havia, no entanto, um outro recurso que lhe ofereceria melhores meios para historiar tais pelejas: ver com os seus próprios olhos como os portugueses atacavam e como os mouros se defendiam.

Dando continuidade à sua argumentação, o cronista diz que, para a escrita da Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, ele já havia rogado a D. Afonso V que lhe desse licença para visitar as praças sob o domínio cristão no norte africano, “o que me foy denegado por elRey sentyr que minha presença era mais necessarya em seus regnos que fora polos outros carregos que per sua mercee tenho” (ZURARA, 1978, p. 47). De fato, além de cronista-mor, Zurara era encarregado da livraria régia e guarda-mor da Torre do Tombo, onde, desde o final dos anos 50 do século XV, vinha dirigindo uma morosa reforma dos livros de chancelaria régia (GOMES, 2009). Sua presença no reino era, indubitavelmente, importante. Acontece, porém, que o conde D. Duarte de Meneses morrera no Marrocos, em março de 1464, dando cobertura à fuga do rei, que ali se encontrava, motivo pelo qual, em sua memória, D. Afonso V mandou que Zurara começasse imediatamente a escrever a crônica do dito conde (GOMES, 2009; ZURARA, 1978). O cronista aproveitou-se da comoção e da gratidão do monarca para pedir-lhe novamente a passagem à África, o que, dessa vez, lhe foi outorgado. E Zurara, segundo as suas palavras, soube aproveitar a sua permanência naquelas paragens:

[...] onde sguardey muy bem todo o asseento da terra e as comarcas com que parte como se achara scripto per mym aos xxxj capitullos desta obra. por que nas entradas que o conde dom Henrique [de Meneses] fazya naquelle tempo eu fuy com elle e ainda per meu requerymento leixou algumas uezes de yr a alguuns lugares por yr a outros satisfazendo ao meu deseio com a milhor uoontade que elle podya conhecendo minha tençam. (ZURARA, 1978, p. 47-48, grifos nossos).

Percebemos que a composição da obra já se encontrava bastante adiantada quando Zurara escreveu o passo acima, e ele reconhece que pôde historiar com mais propriedade devido ao fato de ter observado como eram as terras ao redor de Alcácer Ceguer e como eram as investidas que os portugueses, liderados pelo novo capitão da vila, D. Henrique de Meneses, faziam sobre os mouros. O cronista chegou mesmo a acompanhar tais incursões militares. Estava Zurara, pois, muito melhor instrumentalizado para contar, com minúcias, inclusive, como foram os embates entre mouros e cristãos naquela parte da África poucos anos antes.

Encontramos, no decorrer dessa narrativa histórica, outras passagens nas quais o cronista vale-se do “eu vi” como meio de persuasão e, mesmo, de provocar o páthos no seu público. Sobre Mafomede, por exemplo, mouro que, sem abandonar a sua fé, colocou-se ao serviço do conde D. Duarte de Meneses, em Alcácer Ceguer, Zurara assevera que aquele “o amaua muyto. e eu o uy [a Mafomede] muytas uezes chorar despois do seu falicimento [do conde D. Duarte de Meneses]” (ZURARA, 1978, p. 269). No capítulo 132, o cronista garante ter visto muitas coisas: viu os “mouros de pazes”16 pagando tributos a D. Henrique de Meneses; viu-os, ainda, guerreando os seus próprios irmãos de fé para libertar cristãos cativos; viu esses cristãos resgatados; viu, quando houve míngua de víveres, “como aquelles mouros das pazes dauam grande socorro de trijgo e ceuada aos christãaos” por um preço justo; viu, por fim, como os portugueses de Alcácer Ceguer andavam com suas bestas por entre aqueles mouros de pazes. Aqui o cronista encontra, novamente, espaço para a autópsia indireta: ao voltarem, os cristãos disseram a Zurara como eram bem “agasalhados com grande afeiçam e prestança. como se [os mouros de pazes] foram seus compadres e amygos” (ZURARA, 1978, p. 321-322).

E, sobre a tentativa de tomar Tânger através do escalamento de suas muralhas, como planejava o 3º conde de Vila Real,17 então capitão de Ceuta, Zurara informa que os espiões cristãos para lá enviados voltaram dizendo “que a maas penas podyam ao muro chegar. nem era cousa possiuel de sse per melhante [sic] lugar a cidade auer de entrar per tal modo segundo eu depois uy per mym meesmo” (ZURARA, 1978, p. 330, grifo nosso). À autópsia indireta - os espiões viram e lhe contaram -, portanto, o cronista adicionou a autópsia direta - ele mesmo viu, e pode dar fé àquilo que ouviu. O grau de confiabilidade do relato é, pois, crescente, uma vez que ao ouvido se acrescentou o visto - e visto, precisamente, por aquele que escreveu a história.

Considerações finais

Se havia algo em comum entre Heródoto e Tucídides, como nos ensina Arnaldo Momigliano (2004), era o fato de que nenhum deles questionava “a pressuposição de que a tradição oral era mais importante do que a tradição escrita” (MOMIGLIANO, 2004, p. 70). Tal princípio, como vimos, permaneceu entre os cronistas medievais. “Por que, em tempos de oralidade, teriam eles reagido como um sábio do século XIX ou XX”, privilegiando as fontes escritas? - pergunta sagazmente Bernard Guenée (2017, p. 588). Além disso - provoca ainda o autor -, a crítica moderna não já vem demonstrando que os documentos escritos disponíveis aos cronistas da Idade Média “eram frequentemente tão pouco confiáveis como os relatos orais?” (GUENÉE, 2017, p. 588). De mais a mais, com o estabelecimento, em nossos dias, de uma “história do presente”, ou, segundo Jean Lacouture (1998), de uma “história imediata”, os testemunhos orais vêm recuperando a sua respeitabilidade enquanto fontes fundamentais - ainda que passíveis de crítica, como qualquer tipo de fonte histórica - para a escrita da história (GUENÉE, 1980).

Em assim sendo, não poderia estar mais equivocado Massaud Moisés (1977) ao “compadecer-se” de Gomes Eanes de Zurara com as seguintes palavras: “teve [...] a prejudicá-lo o fato de relatar acontecimentos mais ou menos contemporâneos, socorrendo-se apenas de testemunhos orais, embora os submetesse a escrupuloso exame” (MOISÉS, 1997, p. 44, grifos nossos). Duplo equívoco. Primeiramente porque o cronista de D. Afonso V não se respaldou exclusivamente em fontes orais para escrever as suas narrativas históricas. No começo da Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, por exemplo, ele diz que, para a sua composição, utilizou “cartas que hos ofiçiaes que os rreis tinhã naquella cidade [Ceuta] pera governança dos moradores della a este rregno escreviam” (ZURARA, 1997, p. 178-179). Zurara informa ainda que leu as missivas que o conde D. Pedro de Meneses e outros que serviram em Ceuta enviaram ao reino, além dos “escriptos daquelles que primeiramemte tomarão cuydado” de escrever a história de Ceuta sob o domínio cristão (ZURARA, 1997, p. 545). O cronista chega mesmo a desculpar-se com o argumento de que, se esqueceu o nome e o feito de algum nobre, a responsabilidade não era dele, mas “daquelles que se primeiro trabalharão de ajumtar esta estoria” (ZURARA, 1997, p. 301). Também para a composição da Crónica de Guiné, Zurara (1973) valeu-se de documentos escritos, como a bula Illius qui,18 por exemplo, apresentada em tradução para o vernáculo, além de reconhecer expressamente, por mais de uma vez, que aproveitou o que já havia sido escrito por um Afonso Cerveira19 sobre a história dos portugueses na Guiné (ZURARA, 1973).

Dessa maneira, como Fernão Lopes fizera antes dele, Zurara valeu-se de documentos escritos, disponíveis na Torre do Tombo e buscados fora de Portugal, para escrever as suas histórias. Além disso, como soíam fazer os historiadores do seu tempo, Zurara realizou um trabalho de compilação, aproveitando textos de outros, traduzindo livremente, com comentários, e acrescentando páginas de sua própria lavra (DUARTE, 2015; GUENÉE, 2017; HARTOG, 2017).

Mas, também como um típico cronista medieval - e aqui está o segundo equívoco de Massaud Moisés, o mesmo, aliás, de vários outros críticos literários e historiadores, como vimos nas primeiras páginas -, Zurara dava prioridade ao testemunho oral, o que, no seu caso, e diferentemente do que sucedeu a Lopes, lhe estava sobejamente disponível através das autópsias direta e indireta e de alguns níveis de akoé. Longe de se sentir “prejudicado” por narrar acontecimentos recentes, portanto, o cronista de D. Afonso V pôde desfrutar - não sem alguns dissabores - do “simgullar prazer” que seu antecessor (LOPES, 1983, p. 63-64) lamentou ter experimentado em muito menor medida: ouvir as próprias personagens e outras testemunhas daquilo que ele teria de historiar.

A primeira vez que Gomes Eanes de Zurara é chamado de “cronista” é numa carta régia de 29 de março de 1451, na qual é agraciado com tença anual de seis mil reais brancos (ZURARA, 1915, doc. II, p. 287). Desde então, Zurara nunca mais deixou de apor o título de “cronista” em quaisquer documentos por ele assinados (DINIS, 1949). Investido de tal cargo, Gomes Eanes de Zurara era, no que se refere à escrita autorizada da história, porta-voz do rei e, portanto, do reino. Ele tinha o direito à palavra e o poder da palavra, garantia prévia da competência linguística para enunciá-la. Foi-lhe concedido, por delegação régia, o poder de instituir a verdade no próprio ato de enunciá-la (BOURDIEU, 1996). Escrever a verdade do que houve, aliás, era o que, desde os antigos retores gregos e latinos, diferenciava a narrativa histórica das demais.20 À autoridade do cargo, pois, acrescia a convenção do gênero narrativo em que o cronista escrevia.

Tudo isso, no entanto, está no campo da enunciação do discurso. Para granjear uma boa receptividade, ou angariar a fides do seu público, o cronista medieval deveria oferecer-lhe outras garantias. Afiançar, através de marcas de enunciação, que ouviu de quem viu, ou, no melhor dos casos - caso, justamente, de Gomes Eanes de Zurara -, asseverar que viu com os seus próprios olhos, longe de ser mera vaidade, tinha a função de fundamentar a veracidade da história escrita (HARTOG, 1999). Ainda que, como bem lembra Bernard Guenée (2017), em última instância, os historiadores medievais, atuando a serviço do poder, sabiam que “era melhor relatar o que deveria ter acontecido” (GUENÉE, 2017, p. 592), e não necessariamente o que se passou. Ou, dito de outro modo, os cronistas sabiam que, de tudo o que ouviram e viram, só o que interessava aos reis para quem trabalhavam é que deveria ser registrado, ou lembrado, e de uma maneira que lhes fosse conveniente. O que não atendesse a tais requisitos deveria ser hábil e prudentemente olvidado, numa abusiva manipulação da memória e do esquecimento (LE GOFF, 2003; RICOEUR, 2007; TODOROV, 2000).

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Notes

1 A primeira menção a uma biografia do condestável D. Nuno Álvares Pereira é feita por Gomes Eanes de Zurara (1973), em sua Crónica de Guiné. Teresa Amado (1993a) levantou a hipótese de que o seu autor tenha sido um cavaleiro de alguma ordem militar alheio à corte. João Gouveia Monteiro (2017), por seu turno, apresenta fortes indícios de que a Crónica do Condestabre provavelmente saiu da pena de Gil Airas, escrivão da puridade de Nun’Álvares.
2 Servir, ao mesmo tempo, como cronista-mor e arquivista régio, a propósito, constituiu-se numa das principais originalidades da historiografia portuguesa no século XV (GOMES, 1993). Já em meados da centúria seguinte, porém, tais funções foram separadas e passaram a ser exercidas por dois funcionários distintos (MATTOSO, 1988).
3 Aqui e adiante, quando mencionarmos os monarcas portugueses, o período cronológico entre parênteses indica os anos de nascimento e morte, e não de seus reinados.
4 Tratado de Ayllón (Segóvia), assinado a 31 de outubro de 1411 entre D. João I, de um lado, e os tutores do rei D. Juan II de Castela (1405-1454), de outro (seu tio, D. Fernando I de Aragão [1380-1416], e sua mãe, D. Catarina de Lencastre [1373-1418]) (COELHO, 2005).
5 Período entre cerca de 1411 até a morte de D. João I, em 1433, no qual o infante herdeiro responsabilizou-se por assuntos ligados à fazenda, à fiscalidade e à justiça (VENTURA, 2013).
6 Sobre o projeto de memória e de esquecimento encetado pelos três primeiros reis avisinos, ver Jerry Santos Guimarães (2019).
7 Dignidade da Ordem de Cristo inferior apenas à de mestre e à de comendador-mor. O claveiro guardava as chaves (clavis) do convento e da casa do capítulo geral da ordem (SILVA, 1997).
8 Luís de Sousa obteve as comendas da Ordem de Cristo de Idanha e de Niza (VASCONCELOS, 2008).
9 Trata-se aqui, como é evidente, de acréscimo posterior ao texto original da crônica, que havia sido concluída em 1450, como vimos.
10 Comendador de Almourol, Alpalhão, Montalvão, Idanha, Dornes e Niza (VASCONCELOS, 2008).
11 O condestável D. Pedro de Coimbra partiu com suas hostes para ajudar, em Castela, o condestável daquele reino, D. Álvaro de Luna (c.1390-1453), aliado do infante D. Pedro, em sua guerra contra os Infantes de Aragão (RODRIGUES, 2012).
12 João Fernandes é o protótipo dos “lançados” europeus que, desde o século XV, por vontade própria, punição ou naufrágio, viveram em várias regiões da África, da América e da Ásia, atuando como intermediários entre nativos e europeus (SILVA, 2002).
13 Pequeno barco movido a remos, usado em batalhas navais ou como auxílio no desembarque de navios. Excepcionalmente, porém, caso, aliás, daquela pertencente a Palenço, uma fusta poderia ser utilizada em viagens de exploração (ALBUQUERQUE, 1985b).
14 Sobre essa e outras justificativas dos europeus, desde o século XV, para a escravização de africanos, remetemos a A. C. de C. M. Saunders (1994), Alberto da Costa e Silva (2002) e Elikia M’Bokolo (2009).
15 Mais informações sobre a chamada “Questão das Canárias”, entre o infante D. Henrique e o reino de Castela, podem ser encontradas em Oliveira Marques (1998) e Peter Russell (2004).
16 Mouros que, submissos à soberania portuguesa, pagavam impostos e combatiam ao lado dos cristãos no Marrocos (FARINHA, 1999).
17 D. Pedro de Meneses (c.1433-1499), neto homônimo do primeiro capitão de Ceuta. Foi também 1º. conde de Cantanhede e 1º. marquês de Vila Real (GOMES, 2009).
18 Bula de 19 de dezembro de 1442, na qual Eugênio IV concedia indulgência aos cavaleiros da Ordem de Cristo e demais cristãos que, a serviço do infante D. Henrique, morressem combatendo os mouros na África. Tal bula pode ser encontrada nos Monumenta Henricina (VII, 1965, doc. 228, p. 336-337).
19 Ignora-se quem tenha sido o Afonso Cerveira de que fala Zurara. Embora a documentação da época mencione até quatro indivíduos com esse nome, Joaquim Barradas de Carvalho (1985) não conseguiu identificar a qualquer um deles como tendo sido o primeiro a escrever uma “história da Guiné”.
20 Aristóteles, em sua Poética (2008), diz que narrar o que realmente ocorreu é um dos diferenciais entre história e poesia. Já Cícero, no De Inventione (CICERÓN, 1997), bem como o autor da Retórica a Herênio (ANÔNIMO, 2005), ensinam que, ao contrário da fábula e do argumento, a história narra ações reais.
Declaração de financiamento: A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da CAPES (Processo nº. 88881.131709/2016-01), no âmbito do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES), realizado no Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Author notes

Editores: Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira
Jerry Santos Guimarães é licenciado em História (2004), especialista em Teoria e História Literária (2008), mestre (2012) e doutor (2019) em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Realizou estágio de pesquisa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) entre março e julho de 2017 através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, financiado pela Capes (PDSE/CAPES). Atualmente, é professor de História na Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC/BA).

E-mail: jerryguima@gmail.com



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