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Received: 23 April 2022
Accepted: 17 October 2022
DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2023015
RESUMO: Voltando-se para o tema da influência das experiências das revoltas que antecedem o processo de independência e os contrastes entre tais eventos, o artigo examina a trajetória singular de dois personagens entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. José Resende Costa Filho e o padre Manuel Rodrigues da Costa participaram da Inconfidência Mineira e, depois de cumprir a condenação com o degredo, retornam ao Brasil e atuam no processo de emancipação política a partir de 1822. Para isso faz-se um esforço de acompanhar o percurso da atuação de cada um deles, desde a conspiração em Minas Gerais, até suas reabilitações políticas. Isso ocorre com a participação nos debates sobre as exigências das cortes de Portugal ao Brasil e, após o rompimento, na preparação da Constituinte de 1823. Busca-se aproximar, dentro do que as fontes históricas disponíveis oferecem, as linguagens políticas adotadas nas diferentes circunstâncias em que estiveram envolvidos, sem deixar de inseri-las em seus contextos.
Palavras-chave: José de Resende Costa Filho, Manuel Rodrigues da Costa, Inconfidência Mineira, Independência do Brasil, Assembleia Constituinte de 1823.
ABSTRACT: Returning to the theme of the influence of the experiences of the revolts that precede the independence process and the contrasts between such events, this article examines the singular trajectory of two characters between the end of the eighteenth and the first decades of the nineteenth century. José Resende Costa Filho and Manuel Rodrigues da Costa participated in the Inconfidência Mineira (Minas Conspiracy) and, after serving their sentence with exile, returned to Brazil and played an active role in the political emancipation process from 1822. To this end, an effort is made to follow the course of action of each of them, from the conspiracy in Minas Gerais, to their political rehabilitation. This occurs with the participation in the debates on the demands made by the Portuguese courts to Brazil and, after the rupture, in the preparation of the Constituent Assembly of 1823. We seek to approximate, within what the available historical sources offer, the political languages adopted in the different circumstances in which they were involved, without failing to insert them in their contexts.
Keywords: José de Resende Costa Filho, Manuel Rodrigues da Costa, Inconfidência Mineira (Minas Conspiracy), Independence of Brazil, Constituent Assembly of 1823.
Quanto a José de Resende Costa e ao padre Manuel Rodrigues, únicos que sobreviveram aos degradados da capitania de Minas, e que para ali voltaram, passa a referir o que ouvi de meu tio o Sr. marquês de Baependi, em uma longa conversação que tivemos, na sua residência da rua das Mangueiras.
- Sabes quanto o Brasil deve, especialmente a província de Minas, a dom Rodrigo de Souza Coutinho, 1º conde de Linhares, de saudosa memória. [...].
O que não sabes é que foi por pedido meu que ele obteve o perdão do nosso José de Resende e do padre Manuel Rodrigues, que, em 1831, foram meus companheiros na Assembleia Constituinte. José de Resende voltou, não só perdoado, como acabo de dizer-te, mas, condecorado com o hábito de Cristo, e com a nomeação de 2.º escriturário do Real Erário, tempos depois, elevado a escrivão da mesa-grande, com o título do conselho, em compensação da perda dos poucos bens, confiscados a seu pai, e que já não existiam.
Ao seu amigo padre Manuel Rodrigues da Costa, foram restituídos os seus, constantes da referida fazenda do Registro Velho, como bem sabes, e por hoje ponho ponto final, porque tenho mais que fazer.1 (GAMA, 1893, p. 131-133).
Independentemente dos limites metodológicos que se impõem aos usos de textos memorialísticos na pesquisa histórica,2 as recordações de Nicolau Antônio Nogueira Vale da Gama, o visconde de Nogueira da Gama (Juiz de Fora, Minas Gerais, 13 de setembro de 1809 - Nazaré, Bahia, 18 de outubro de 1887), apresentam a primeira referência “explicativa” do porquê dois dos participantes da Inconfidência Mineira, nos idos de 1789, foram libertados e conseguiram retornar ao Brasil após já terem cumprido suas sentenças condenatórias em degredo.
Eles foram os únicos dos 23 inconfidentes condenados ao exílio que conseguiram retornar ao Brasil. E pelo escrito fica-se sabendo que aqueles dois conjurados - José de Resende Costa Filho e Manuel Rodrigues da Costa -, depois de pedido de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, o marquês de Baependi (São João del-Rei, 8 de setembro de 1765 - Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1847), que mantinha relação de amizade com dom Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), o 1º conde de Linhares, e este com o príncipe-regente dom João, conseguiram a liberdade de seus conterrâneos.3 Conforme descrito pelo visconde de Nogueira da Gama, coube a seu tio, em relação de compadrio, solicitar ao conde de Linhares tal atitude de “complacência” com os dois ex-inconfidentes, que buscaram, em passado não distante e em conluio com outros colegas de movimento sedicioso, o rompimento de laços administrativos e políticos locais com a Coroa portuguesa. Influente nos círculos cortesãos, o conde de Linhares solicitou ao filho de Dona Maria I, o príncipe Dom João, que revertesse a decisão de sua mãe, que condenara os inconfidentes em 1792, e colocasse em liberdade quem buscou romper o jugo metropolitano em Minas Gerais. Nada raro, Dom Rodrigo estabelecia sem cerimônia contato com indivíduos direta ou indiretamente envolvidos na conspiração mineira, que formavam seu círculo intelectual. A admiração e o interesse por um intercâmbio que favorecesse soluções utilitárias para promover o crescimento do Império luso-brasileiro nos últimos anos do século XVIII aproximaram-no de José Álvares Maciel (1760-1804) e dos irmãos Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (1762-1835) e José de Sá Bittencourt Acioli (1755-1828) (POMBO, 2015, p. 206-210)4.
Dessa maneira, configurou-se uma situação peculiar em que participantes da Inconfidência Mineira retornam ao cenário no qual conspiraram contra a monarquia e, quase três décadas depois, envolvem-se no processo de emancipação e consolidação política do Brasil5.
A partir do exemplo das ações desses dois personagens, em um momento em que, no ano de 2022, se comemora o bicentenário da Independência do Brasil, merecem reflexão os vínculos entre as designadas inconfidências, ensaios de conspiração que ocorreram em Minas, Rio de Janeiro e Bahia no final do século XVIII, e a emancipação política. Ao se analisar esse contexto histórico, percebe-se uma contradição aparente, afinal, parte dos integrantes de movimentos de contestação ao domínio colonial e ao regime monárquico no final do século XVIII em Minas Gerais abraçam mais tarde a causa monárquica da mesma dinastia que haviam combatido.
As interrogações que essa situação única proporciona são diversas. Os antigos conspiradores mudam de lado, admitindo o governo monárquico, para cujo sucesso passam a colaborar? Embora acusados pelo crime de inconfidência, teriam ambas as convicções políticas débeis quanto à crítica ao domínio de Portugal, situação comprovada pela sua inserção futura nos quadros administrativos do reino? Seria o comportamento dos dois coerentes no percurso entre 1789 e 1822, uma vez que estariam lutando em defesa do tradicional direito dos povos à justiça e às prerrogativas costumeiras que, ao serem violadas, justificam a reação contra o tirano?6
Cientes de que não vamos esgotar tais indagações, pretendemos arranhar algumas delas ao trazer à luz a trajetória de duas figuras discutindo as experiências e linguagens políticas de José de Resende Costa Filho e de Manuel Rodrigues da Costa frente às monarquias, portuguesa e brasileira.
Para isso, faz-se necessário refletir, de início, sobre esta certa proximidade entre as ações concretas e os discursos políticos que se podem estabelecer a partir da Inconfidência Mineira e da Independência7. Tal abordagem não implica aceitar uma relação de continuidade entre esses dois eventos históricos.
Inconfidência Mineira (1789) e Independência (1822): elipses e continuidades
Parte da historiografia de caráter nativista reivindicou a existência de uma relação causal entre 1789 e 1822. Vale lembrar, porém, que, durante o Império brasileiro (1822-1889), assuntos como os relacionados aos movimentos revolucionários, que na crise do sistema colonial buscaram soluções de cunho separatista e republicano, não despertaram maiores interesses por parte dos pensadores. Em tempos monárquicos, a antipatia se explicava: os inconfidentes mineiros, inspirados na independência norte-americana e nas ideias libertárias que corriam o mundo, cogitaram adotar a República como forma de governo. O mesmo ocorre com outras revoltas do período, como a Conjuração Baiana, de 1798, e a Revolução Pernambucana, de 1817. Governando o Primeiro e o Segundo Reinados, Dom Pedro I e Dom Pedro II, o neto e o bisneto da Rainha Maria I, que assinou a condenação dos réus mineiros em 1792, o enaltecimento de uma conspiração de fundo liberal e republicano eram temas, no mínimo, delicados. Nesse cenário, o elogio à rebeldia poderia soar como crítica à dinastia reinante e estímulo à contestação do sistema político vigente (MILLIET, 2001, p. 24-25).
Diante desse panorama, intelectuais se engajaram no projeto de construção do Brasil como nação, revisitando eventos, mitos, lendas e poesias que evocassem um passado autóctone e dignificante (SERELLE, 2002, p. 16), recorrendo aos “fatos históricos dos séculos anteriores, recorrendo aos relatos históricos de viajantes e historiadores, aos documentos e aos textos ficcionais” (OLIVEIRA, 2012, p. 26). Evitavam-se, na medida do possível, as contestações havidas contra o poder dos reis.
Nas perspectivas nativistas que assinalam um percurso no qual preexiste à nação uma sucessão de acontecimentos que traduzem um desejo de afirmação coletiva soberana, o tratamento dos conflitos políticos e das rebeliões no período colonial na chave nativista, isto é, tratando-os a todos como expressão de um sentimento nativista, colaborava para sedimentar a ideia de que a independência era um fato inexorável da história do Brasil, e a Inconfidência Mineira um movimento precursor da história nacional brasileira8. E como há muito já explicou Rogério Forastieri da Silva: “Eram movimentos ‘precursores da independência’, inscritos num capítulo intitulado ‘antecedentes’ ao capítulo que tratava da emancipação”. E, ainda, é uma operação historiográfica de impacto: “Procura-se por meio dos ‘movimentos nativistas’ ou dos ‘movimentos precursores da independência’ fundar os ‘alicerces’ da nacionalidade emergente” (SILVA, 1997, p. 83).
Já em outro viés, embora tributário de uma mesma perspectiva teleológica, o escritor José de Alencar, por seu turno, ao refletir em pesquisas históricas que fazia em meados do século XIX sobre o que denominou “drama da independência”, afirmou que a Inconfidência Mineira teria sido, ao lado da Conjuração Baiana, “abortos de uma ideia ainda não amadurecida no espírito público”. (ALENCAR, 1862, p. 2 apudLEAL, 2016, p. 6) Isso exemplifica a proposta de ser a Inconfidência o gene da nacionalidade brasileira. E, para isso, nada como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), instituição fundada em 1838 com a intenção de se criar uma história que formasse uma identidade nacional para o Brasil, fosse responsável pela construção de uma memória histórica comum e heroica que auxiliasse a explicar nossa proposta separatista de Portugal, tendo a Inconfidência como um de seus alicerces, e, também, por garantir uma identidade própria que explicasse ser a nação brasileira continuadora do processo civilizatório português (GUIMARÃES, 1988; GOMES; CHAVES, 2017). Em 1839, por exemplo, José de Resende Costa Filho e Manuel Rodrigues da Costa tornam-se sócios correspondentes do Instituto, e, no ano seguinte, dentre aquele grupo de intelectuais, são instigados a escrever, como testemunhas oculares, suas versões do movimento rebelde mineiro.
Aos 76 anos de idade, José de Resende Costa Filho, lúcido, resolveu apenas tecer rápidas notas explicativas dedicadas a enaltecer indiretamente a figura do alferes Tiradentes, que fora apresentado como o líder do movimento de 1789, e, aos interessados em saber sobre o assunto, solicitou remeter à obra do inglês Robert Southey, em cujas páginas da revista daquele Instituto se publicou, na edição de 1846, a tradução do capítulo “Conspiração em Minas Gerais no ano de 1788 para a Independência do Brasil”, da obra História do Brasil, mencionado por José de Resende Costa Filho. Em seu curto texto, o ex-inconfidente absteve-se de quaisquer polêmicas, principalmente referente ao caráter republicano de um movimento que se levantava contra a monarquia da casa reinante portuguesa (RODRIGUES, 2002).
Naquele momento, na década de 1840, com as revoltas regenciais ainda vivas como ameaças ao sistema político, qualquer retomada de ideias contestatória poderia trazer à tona ressentimentos que se buscavam esquecer. Além disso, sabe-se que sua trajetória no processo judicial não foi das melhores, tendo suas falas proporcionado conhecimento de detalhes da revolta e auxiliado a incriminar ainda mais as pessoas que citou em seus depoimentos, o que, naquele momento, poderia ser interpretado - caso aqueles fatos viessem à lume - como atitude desonrosa e de revigoramento do movimento que se buscava fazer esquecer (JARDIM, 1989).
Com o avanço do movimento republicano na segunda metade do século XIX, a história da Inconfidência Mineira floresce, ganhando contornos que aproximam o projeto político rebelde à ideia de rompimento dos laços coloniais, em virtude da excessiva carga tributária que Portugal lançava ao explorar o território mineiro, que proporcionaria a independência da capitania de Minas Gerais. O desenrolar da sedição poderia se estender para outras regiões da América portuguesa, como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, por exemplo9. Delineava-se na memória que se formava um marco que expressava, ali, o surgimento do sentimento nacional. Coube a Joaquim Norberto de Sousa e Silva, em História da Conjuração Mineira: estudos sobre as primeiras tentativas para a Independência do Brasil, apresentado nas sessões do IHGB entre 1860 e 1873, proclamar, de maneira veemente, a Independência como uma continuidade do movimento insurreto mineiro e da busca da nacionalidade brasileira, como o título de sua obra já explicita.
Nesse processo, vale lembrar que nossa separação política não coincidiu com a consolidação da unidade nacional e nem mesmo com princípios de identidade que se buscavam na construção da nação. Sob tal demanda, se recupera a Inconfidência como uma narrativa que procurava evidenciar a luta de homens corajosos que se lançaram em aventura rebelde que pretendia evidenciar a grandeza econômica de nosso país e que os seus personagens haviam sido condenados injustamente pela Coroa portuguesa. Na luta para justificar o nosso processo de rompimento dos laços coloniais, construiu-se, por meio de um suposto sentimento de nacionalidade, sujeitos e fatos históricos - e heroicos - que valorizassem projetos de luta pela libertação do Brasil de Portugal, e a Inconfidência Mineira passou a ser interpretada como um desses eventos que ajudaram a colocar em xeque as relações entre o colonizador português e o colonizado nacional (RODRIGUES; CABREIRA, 2020). O germe de um processo de autonomia econômica e política que iniciaram e a construção mitológica de Tiradentes como herói despertou o nascimento de narrativas que passaram a associar toda a formação de um ideário de nação do Brasil a movimentos políticos do período colonial e, por seu turno, de eventos que se ligassem ao processo político emancipacionista de início do século XIX (SOUZA, 1999)10.
Muitas décadas depois, parte significativa da historiografia, guiando-se pelos apontamentos de Maria Odila Leite da Silva Dias, em continuidade ao pensamento de Caio Prado Júnior e de Sérgio Buarque de Holanda, indica ser a independência uma contiguidade do processo de transição da colônia para o Império (DIAS, 1972; JARDIM, 2020). No caso brasileiro, rompimento não teria sido ocasionado por eventos nacionalistas ou revolucionários, o que significou a manutenção das estruturas políticas, econômicas e sociais vigentes desde os tempos da dependência em relação a Portugal. Tal peculiaridade reforçaria a ideia de continuidade em que súditos instalados na colônia também desejavam permanecer atrelados à estrutura monárquica após a Independência. A monarquia constituiria para esses um elo entre os valores cosmopolitas e de progresso da civilização europeia (DIAS, 1972).
As análises mudariam de perspectiva poucas décadas depois. István Jancsó abriria interpretações que passam a considerar a natureza das críticas políticas nos movimentos de contestação. Como bem salientou
Entre os anos de 1789 a 1801 as autoridades de Lisboa viram-se diante de problemas sem precedentes. De várias regiões de sua colônia americana chegavam notícias de desafeição ao Trono, o que era sobremaneira grave. A preocupante novidade residia no fato de que o objeto das manifestações de desagrado, frequentes desde os primeiros séculos da colonização, deslocava-se, nitidamente, de aspectos particulares de ações de governo para o plano mais geral da organização do Estado. (JANCSÓ, 1997, p. 388).
De degredados a reerguidos
De acordo com a sentença condenatória proferida em 18 de abril de 1792, os participantes da Inconfidência Mineira foram condenados ao degredo na África, com exceção dos religiosos, enviados para conventos em Portugal. Alguns morreram assim que chegaram ao continente africano, como o poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto (1742-1792), o contratador Domingos de Abreu Vieira (1724-1792) e o médico Domingos Vidal de Barbosa Lage (1761-1793), mas outros tiveram no exílio a chance de recomeçar suas vidas, trabalhando no comércio ou ocupando cargos importantes na administração local, e alguns se reintegraram à vida política brasileira, como José de Resende Costa Filho e o padre Manuel Rodrigues da Costa (RODRIGUES, 2002).
José de Resende Costa Filho nasceu no Arraial da Aplicação de Nossa Senhora da Penha de França da Laje, na freguesia de Prados, na comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais, sendo batizado em 15 de junho de 1765. Era filho de José de Resende Costa e de Ana Alves Preto; ambos nascidos em território mineiro. Faleceu em 16 de junho de 1841, no Rio de Janeiro. Em julho de 1789, nos seus 24 anos de idade, foi preso por participar dos falatórios sediciosos que se espalhavam pela capitania. Extremamente amedrontado, em seus depoimentos proporcionou aos inquiridores da devassa aberta para julgar o crime de rebelião que se abateu sobre as Minas Gerais, detalhes da conspiração, fornecendo provas da real proporção do movimento. Ao final do processo, em 1792, recebeu como sentença a pena de degredo por 10 anos para Cabo Verde (JARDIM, 1989).
No arquipélago vulcânico localizado na costa noroeste da África, Resende Costa Filho foi acolhido pelo secretário de governo, o naturalista fluminense João Diogo da Silva Feijó (1760-1824), no exercício de atividades burocráticas. Em 1793 foi designado auxiliar da Secretaria de Governo e oficial de escrituração do Real Contrato da Urcela. Em 20 de julho de 1795 foi promovido interinamente a secretário de governo, como sucessor de Feijó. Em janeiro de 1796 assumiu o ofício de escrivão da Provedoria da Real Fazenda, tendo sido confirmado no cargo por decreto real em 25 de outubro de 1797, onde permaneceu até 1798, quando se tornou comandante da Praça da Vila da Praia - antiga capital de Cabo Verde -, com o título de capitão-mor do Forte de Santo Antônio (patente passada em 21 de maio) até 1803 (JARDIM, 1989; PINTO, 1992).
Em 1803, com os já completos 10 anos de sua sentença e extinta sua punibilidade, Resende Costa Filho requereu licença para se mudar para Lisboa, onde contou com o apoio do futuro marquês de Baependi, em cuja casa se hospedou11. Em Portugal, em 1804, foi nomeado escriturário do Erário Real, função exercida até 180912. O príncipe regente Dom João, já no Brasil, e a pedido de Nogueira da Gama, chamou-o nesse ano para vir para o Rio de Janeiro, nomeando-o administrador da Fábrica de Lapidação de Diamantes e contador geral do Erário e escrivão da Mesa do Tesouro; cargos que exerceu até 1827. No período da Independência, de 1820 a 1822, foi nomeado procurador da Câmara de São João del-Rei como defensor dos interesses mineiros na Corte. Em 1821 foi eleito deputado por Minas Gerais às Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação portuguesa, instaladas em Lisboa, não tendo voltado à capital do reino.13 Após a Independência e já totalmente integrado à vida política do país, foi eleito por Minas Gerais deputado à Assembleia Constituinte brasileira em 1823, encarregada de preparar a primeira Constituição para a pátria recém-nascida, em 1822, e, em seguida, como deputado para a legislatura de 1826 (JARDIM, 1989; PINTO, 1992).
Em 1825, por decreto real de 22 de janeiro, recebeu o Hábito da Ordem de Cristo. Em 1827, após aposentar-se como escrivão da Mesa do Tesouro, recebeu o título de Conselheiro do Império. Como deputado, ficou até 1829 (JARDIM, 1989; PINTO, 1992).
Na Câmara, Resende Costa Filho teve ao seu lado o padre Manuel Rodrigues da Costa, que foi, entre todos os envolvidos, o primeiro a se livrar da pena de degredo. O religioso nasceu em 2 de julho de 1754, em Conceição de Ibitipoca, freguesia do arraial de Nossa Senhora do Campo Alegre de Carijós (distrito do atual município de Lima Duarte), na comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais, sendo seus pais o coronel Manuel Rodrigues da Costa e Joana Teresa de Jesus. (RODRIGUES, 2020).
Manuel Rodrigues da Costa ordenou-se sacerdote em 1780, aos 26 anos de idade, no Seminário de Mariana. Na época de sua prisão, em 1791, vivia com sua mãe na fazenda do Registro Velho, que ficava no caminho entre o Rio de Janeiro e Vila Rica (RODRIGUES, 2010; RODRIGUES, 2002).
Entusiasmado pela ideia de revolta, viu-se preso por ter conhecimento da conspiração e não a ter denunciado, em virtude de a sentença aplicada aos sediciosos religiosos ser mantida em segredo por determinação da carta régia de 17 de julho de 1790, que solicitava que os réus eclesiásticos fossem enviados a Lisboa para receberem ali sentença condenatória14. Como a Rainha Dona Maria I enlouquecera e não existindo a pretendida condenação, o regente Dom João determinou que se fizesse silêncio perpétuo sobre aquele condenado religioso, passando a ficar esquecido em convento lisboeta. Manuel Rodrigues da Costa ficou recluso na fortaleza de São Julião da Barra, de 30 de setembro de 1792 ao último trimestre de 1796, quando passou a viver no Convento de São Francisco da Cidade, até ser libertado em 1801. Em 1804, quando regressou para Minas Gerais, colocou em prática, na Fazenda do Registro Velho, que pertencia à sua família, técnicas modernas de cultivo da terra que havia aprendido enquanto cumpria condenação em Lisboa (RODRIGUES, 2002).
Os clérigos ilustrados, que somavam disposição para o progresso, tiveram, no início do século XIX, uma influência especial sobre os homens de lavoura, chegando a serem imitados. Padres como Rodrigues da Costa acumulavam as funções religiosas, as de fazendeiros e homens de negócios, assim como, em muitos casos, as de estudiosos. Muitos eclesiásticos que estudavam em Coimbra associavam o aprendizado da Matemática ou das Ciências Naturais ao da Teologia e de Cânones, sintomas interessantes de como “[...] participavam do espírito dos tempos” (DIAS, 1968, p. 145).
O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), vindo a Minas Gerais em 1817, esteve em sua fazenda e assim a descreveu:
[...] na habitação de Registro Velho, tive um prazer de ver um campo de trigo que prometia colheita, e cujo proprietário plantara, com o maior êxito, macieiras, vinhedos, marmeleiros, ginjeiras, oliveiras e até mesmo pereiras, arvores que tão raramente produzem em outras partes elevadas do Brasil. (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 60).
Esse viajante, assim como o mineralogista inglês John Mawe (1764-1829), observou que os fazendeiros de origem clerical eram menos atrasados que os demais agricultores da região, salientando, dentre esses, que alguns empregavam regularmente fertilizantes em suas terras, inovando as técnicas rurais existentes na tentativa ilustrada de modernização (DIAS, 1968).
De todos os envolvidos na Conjuração Mineira, o padre Manuel Rodrigues da Costa foi o único que conseguiu colocar em prática pelo menos um dos planos sediciosos: a implantação de manufaturas15. Preocupado com o engrandecimento da pátria, procurou estudar diversas indústrias em Lisboa enquanto esteve recluso, especialmente a de tecidos e a da fabricação de vinhos. Sendo um homem empreendedor, instalou em sua propriedade uma pequena fábrica de tecidos de lã para confeccionar uniformes militares e estabeleceu plantações de vinhas e oliveiras, como descritas por Auguste de Saint-Hilaire. (AUTOS, 1981, v. 4, p. 236-237; RODRIGUES, 2002).
Além de próspero proprietário rural, Manuel Rodrigues destacou-se também como um dos ardentes promotores da Independência do Brasil na província de Minas Gerais, pela qual foi eleito deputado para a Assembleia Constituinte de 1823 e para a legislatura de 1826, de que requereu e obteve dispensa da Câmara, em razão de sua idade avançada, pois já estava com 72 anos, e por questões de saúde.
De traidores a patriotas
Após o retorno ao Brasil daqueles dois ex-inconfidentes, eles se envolveram em funções administrativas no âmbito do Império luso-brasileiro e nos debates acerca do nosso processo de autonomia. E no contexto de um Brasil recém-independente, fez-se necessário elaborar nosso primeiro conjunto de leis, a Constituição16.
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil foi convocada na cidade do Rio de Janeiro em 3 de junho de 1822 pelo regente Dom Pedro, instalada em 3 de maio de 1823 e dissolvida por decreto imperial a 12 de novembro do mesmo ano. Contou com a participação de funcionários públicos, proprietários de terras, intelectuais e eclesiásticos, partidários de ideais absolutistas ou liberais moderados (BRASIL, 2003, p. 10-11, 18-19, 21-22; BRASIL, 2015, p. 29; 40)17.
Os dois ex-conjurados participaram das cinco sessões preparatórias, ocorridas entre 17 de abril e 2 de maio de 1823, instaladas no prédio que abrigou o Tribunal da Relação - que os julgou como rebeldes - e serviu também de carceragem para alguns de seus colegas de infortúnio (BRASIL, 2003, p. 35; BRASIL, 2015, p. 41-42). Foi no prédio da Cadeia Velha que, em 1792, no pavor da leitura da sentença condenatória aos sediciosos mineiros, que José de Resende Costa Filho, após permanecer preso naquele local por quase dois anos, escutou, em primeira vez, sua condenação à morte na forca; que depois reverteu-se, em virtude de uma carta régia de Dona Maria I, a comutação de sua pena em degredo para a África.18 E, no contexto, pouco mais de 30 anos depois, voltou àquele local de agonia! Em registro inusitado de sua presença naquele prédio, Theodoro José Biancardi (1777-1849), responsável pela decoração do local e oficial da Secretaria da Assembleia Constituinte, de acordo com informações transmitidas por Alexandre José de Mello Morais (1816-1882), informou que:
[...] quando estava mandando assoalhar a boca do alçapão, de repente, vê um homem, vestido de preto, ajoelhar-se perto da boca do alçapão, que se estava fechando, e, unindo as mãos, levanta os olhos para o céu, e disse estas palavras, que, tradicionalmente conservadas, me foram repetidas: “louvado sejais, meu Deus: quando, em 1792, eu sai por aqui, para cumprir a sentença que me foi imposta por ocasião da Conjuração Mineira, não me passou pelo pensamento que seria eu hoje um dos membros da Assembleia Geral Legislativa e Constituinte do Brasil!!! Louvado seja o Senhor meu Deus”. (CASTRO, 1926 apudBRASIL, 2015, p. 51).19
Já o padre Manuel Rodrigues da Costa, apesar de ter cumprido prisão no Convento da Ordem Terceira de São Francisco, ao entrar no prédio da Cadeia Velha deve também ter sentido difíceis lembranças dos sofrimentos passados por seus companheiros de levante. Não esteve ali recluso, pois, em decorrência de seu estado de religioso, como se disse, foi enviado para Lisboa para lá receber sentença condenatória, o que não ocorreu, ficando ele, assim como os demais eclesiásticos, esquecido em conventos naquela localidade portuguesa.
Mas, depois de conviverem no ambiente político contestatório de Minas Gerais e serem punidos por isso, José de Resende Costa Filho e Manuel Rodrigues da Costa deram a volta por cima, passando de traidores a apoiadores do Império, mostrando-se fiéis à monarquia. A partir de 1809, de acordo com pesquisas de Wederson de Souza Gomes, empreendidas sobre a atuação de Resende Costa Filho e seu desempenho político no âmbito do Império luso-brasileiro, em cartas a Dom José Antônio de Meneses e Sousa Coutinho, o Principal de Sousa, integrante da regência governativa em Portugal e irmão de dom Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares, após o estabelecimento da família real no Rio de Janeiro, hostiliza aqueles que vacilavam na sua fidelidade e respeito ao monarca. Exemplo disso foram seus ataques, em várias missivas, aos moradores de Buenos Aires, que, com a deposição do rei de Espanha, Fernando VII, por Napoleão Bonaparte, da França, flertavam com a revolução, sendo classificados por ele como “traidores” (GOMES, 2019, p. 130). Em uma dessas epístolas, se refere a isso escrevendo: “[...] me é de um grande bem a sufocar-se a hidra Revolucionária dos Buenaristas” (apudGOMES, 2019, p. 131).
Por outro lado, ao aludir essa mesma situação na província de Montevidéu, elogiou seus moradores e a administração local, chamando-os de “patriotas” por eles terem se mantido fiéis à monarquia espanhola, mesmo após a deposição de seu rei (GOMES, 2019, p. 130).
Essa postura, aliás, contrastava com o que ele divulgava na época em que se preparava o movimento sedicioso mineiro. Em certa ocasião, antes de sua prisão, repetia aos ventos ideais sediciosos de liberdade e rompimento dos laços coloniais, a fim de “sacudirem[-se] fora da obediência que devem prestar aos seus legítimos soberanos”, como escreveu Basílio de Brito Malheiro do Lago, em trecho da carta-denúncia ao referir-se aos nacionais do Brasil, que divulgavam, como fazia Resende Costa Filho, proposições independentistas e republicanas. Já após a prisão do padre Carlos Correia de Toledo (1731-1803), que o aliciou, e se ver na categoria de investigado, decidiu, em conjunto com seu pai de igual nome, protestar fidelidade à rainha Maria I, escrevendo em carta de delação de 30 de junho de 1789: “Beijamos humildemente as mãos de V. Exa. Deus guarde a V. Exa. por dilatados anos. [...] Fiéis e humildes servos de Vossa Excelência” (AUTOS, 1978, v. 2, p. 463); e, na sequência, em depoimento prestado em 8 de julho, conta em detalhes o que sabia da revolta, escrutinando os planos da sedição e seus principais participantes, atestando que aquelas informações eram frutos de prelações que ouviu e de conversas que manteve com personagens importantes da trama sediciosa (AUTOS, 1976, v. 1, p. 255-256).
Seu comportamento mostra dubiedade e compromisso com os jogos do poder e as circunstâncias, e o caso do prestar fidelidade atesta isso. No excerto prestativo ao exercício de lealdade ao rei espanhol, José de Resende Costa Filho, ao referir-se ao governo de Buenos Aires como revolucionário, alude os buenaristas em tom negativo, já que eles pretendiam edificar, naquela parte da América Hispânica, uma junta governativa autônoma. Ideia nada obstante ao proposto nas reuniões inconfidentes, que previam Minas Gerais como unidade autônoma do Império português e da qual ele mostrava-se favorável ao incentivar positivamente tal situação no final do século XVIII. E José de Resende Costa Filho vai mais longe: informou em seu depoimento que havia a proposta de se constituir em Minas Gerais uma república centralizada e que o governo a ser formado deveria retirar a sua autoridade de uma concordância popular, de interesses locais comuns; contrastando com seu posicionamento posterior de crítica às ações empreendidas pelos moradores da província de Buenos Aires contra a dominação espanhola. E ainda continuou em seu depoimento informando que o poder administrativo em Minas seria dividido em casas legislativas espalhadas pela capitania, provavelmente em número de sete parlamentos (câmaras), com competência para legislar sobre matéria de interesse local, respeitando-se os princípios básicos de uma legislação geral que atenderia toda a capitania (AUTOS, 1981, v. 4, p. 208). Como avalia Wederson Gomes, “[...] o posicionamento crítico que o intelectual possuía acerca dos revolucionários é relevante para pensarmos a própria fidelidade que ele dedicava à nação e à monarquia portuguesa” (GOMES, 2019, p. 132).
Ainda em sua perspectiva, Resende Costa Filho compreendia que as monarquias ibéricas, que enfrentavam na primeira década do século XIX turbulências políticas ocasionadas pelo expansionismo francês na Europa, deviam unir seus súditos em condições de derrotar aquela ameaça externa ao reforçar laços entre a metrópole e suas colônias nas Américas. Nessa concepção, e atentando-se à realidade do Império luso-brasileiro, defende laços de fidelidade e respeito ao monarca português, principalmente ao se mostrar terminantemente contrário à Revolução Pernambucana de 1817, evento que levou mais longe a luta por independência, com a fundação de uma república que durou algumas semanas, revelando sua flagrante condenação a aquele episódio e ao tratar seus líderes como “infames rebelados” (GOMES, 2019, p. 132-133).
No entanto, na Assembleia Constituinte de 1823, José de Resende Costa Filho não se envolveu em debates políticos intensos20. Protestou votos de fidelidade ao rei e mostrou-se partidário de que as decisões políticas deveriam centralizar-se no Rio de Janeiro, em clara oposição as disputas políticas que arrefeciam os debates acerca da união por um pacto constitucional que não permitisse que províncias como a da Bahia, a Cisplatina (atual Uruguai), a do Pará e a do Maranhão reivindicassem o direito de se manterem unidos ao reino de Portugal. No contexto, optou-se pela adesão em torno do príncipe-regente Dom Pedro de Alcântara, que congregava em torno de si interesses do centrossul do Brasil e a permanência de estruturas coloniais, como a escravidão, a unidade territorial e o modelo monárquico, que interessava às elites políticas e econômicas continuar.
Também como seu colega mineiro, o padre Manuel Rodrigues da Costa teve participação discreta na Assembleia Constituinte; à semelhança da também sua atuação contida na revolta de 1789. Ele se envolveu em debates vinculados a temas ligados à liberdade religiosa,21 à catequese de indígenas e à anistia aos presos políticos que lutaram para que o Brasil se emancipasse de Portugal22.
Em 5 de maio, o deputado Antônio Martins Bastos, eleito pelo Rio Grande do Sul, inicia discussão acalorada, acusando Dom Pedro, que estava presente, de agir de maneira arbitrária e anticonstitucional em ações de repressão a opositores políticos que defenderam posicionamento diverso do governo do príncipe-regente no adesismo ao projeto de independência; e, em virtude disso, a administração central, no Rio de Janeiro, passou a perseguir governos provinciais que continuaram a seguir determinações de Lisboa, como Bahia, Maranhão, Cisplatina e Pará. Os conflitos armados que se seguiram levaram a diversas prisões, até o apaziguamento daquelas regiões. E a fala de Antônio Bastos direcionou-se nesse sentido: o de que se deveria ofertar anistia plena aos revoltosos que lutaram contra a Independência do Brasil, assim como a favor dos revolucionários que propuseram medidas independentistas contra a Coroa portuguesa em 1817 (BRASIL, 1874a, t. 1, p. 21)23.
A proposta, portanto, pretendia “socorrer a humanidade oprimida”, pela “anistia” que aliviaria “o mal de muitos homens”24. Assim, na sessão de 9 de maio de 1823, a discussão que previa indulto a todas as pessoas que abraçaram a causa da Independência, seja qual tenha sido sua opinião política, apareceu em plenário, e, na ocasião, Antônio Martins Bastos propôs a seguinte resolução:
1º Que se conceda plena, e completa anistia a todos aqueles que direta ou indiretamente se tenham envolvidos em objetos políticos, pelo que respeita a sagrada causa da Independência, e ao sistema de governo monárquico constitucional, que felizmente temos adotado; quer se achem presos, ausentes ou expatriados.
2º Que a presente anistia seja extensiva a todos as pessoas contra quem se tenham já começado processos ou pronunciado sentença. (BRASIL, 1874a, t. 1, p. 40).
No debate da proposta, o deputado José Martiniano de Alencar, pela província do Ceará, mostrando independência frente ao imperador, acusou o gabinete Andrada de prender, deportar e processar, em vários locais do Brasil, seus adversários políticos, estando dentre esses alguns próceres da Independência, como Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847), que havia fugido para Buenos Aires25.
Postos a votos o projeto, o gabinete Andrada combateu a anistia, que foi rejeitada por 35 contra 17 votos26. O padre Manuel Rodrigues da Costa votou a favor, pois ele sabia dos dissabores de ser preso, julgado e condenado por querer ver sua terra livre do jugo metropolitano e, também, autônoma para decidir sobre seus próprios caminhos.
Embora nos depoimentos a devassa da Inconfidência tenha se esforçado para se mostrar refratário a qualquer ideia crítica em relação ao domínio de Portugal na América, chegando mesmo a dizer em 30 de julho de 1789, a respeito das propostas rebeldes de Tiradentes, “que semelhantes coisas nem pensar se deviam”; ele se envolveu na conspiração, participando de encontros em que se debatiam temas centrais do projeto de sublevação. Em uma dessas reuniões, Tiradentes teria mencionado, em uma longa exposição, a riqueza de Minas Gerais, a submissão dos povos à opressão dos governadores e seus auxiliares (“Tiradentes, queixando-se-lhe amargamente dos Governadores destas Minas: que se achavam assoladas e que já se faziam intoleráveis os seus despotismos”) e a intenção de libertar a região da dependência com a Europa (“e que este país podia ser um Império”) (AUTOS, 1976, v. 1, p. 200-201).
O esforço de aproximar as ações políticas dos inconfidentes, nem sempre transparentes em virtude do ambiente hostil no qual os depoimentos foram captados, convertidos em devotados patriotas, com a linguagem usada nos idos de 1789 e de 1822, não resulta coerente. Afinal, como escreveu Reinhart Koselleck,
Um traço característico do tempo histórico é a reprodução continua da tensão entre, de um lado, a sociedade e sua mudança e, do outro, o processamento e a elaboração linguísticos das mesmas. Cada história nutre-se dessa tensão. Relações sociais, conflitos, suas soluções e seus pressupostos mutáveis nunca coincidem com as articulações linguísticas em virtude das quais as sociedades agem, se compreendem, interpretam, mudam e se reconfiguram. (KOSELLECK, 2020, p. 20).
Considerações finais
As trajetórias de José de Resende Costa Filho e Manuel Rodrigues da Costa, envolvidos na pretendida revolta mineira de 1789, na qual foram condenados e expulsos da América portuguesa em 1792, evidenciam dois casos de personagens que após a Independência do Brasil, em 1822, reabilitaram-se politicamente, mesmo que para isso fossem necessários o abandono dos princípios que de início defenderam, como o rompimento dos laços coloniais e do regime monárquico no território das Minas Gerais. Após o cumprimento de suas sentenças condenatórias, eles conseguiram regressar ao Brasil, e, aqui, abraçaram a causa monárquica, da mesma dinastia que haviam combatido décadas antes enquanto partícipes da Inconfidência Mineira.
E justamente essa mudança de postura, muito atrelada às circunstâncias econômicas que participaram no âmbito do Império luso-brasileiro, mesmo antes de regressarem ao local onde viviam antes de suas condenações, incorporando-se à estrutura política vigente. E coube ao marquês de Baependi ajudá-los a se reerguerem da pecha de traidores da monarquia luso-brasileiro para patriotas defensores de uma monarquia continuísta da casa reinante portuguesa em terras do Brasil. Ao acompanhar, a partir das poucas fontes documentais existentes, as experiências e as linguagens políticas desses dois ex-inconfidentes, é-nos possível evidenciar essa volta por cima, mostrando-os fiéis à monarquia. Seus compromissos com os jogos de poder e as circunstâncias mostram o quanto José de Resende Costa Filho e Manuel Rodrigues da Costa eram homens de seus tempos e que suas ações de fidelidade ocorrem em detrimento de dubiedades de suas ideias e ações. Independentemente disso, conseguem reabilitar-se, passando de traidores do Império luso-brasileiro a patriotas da monarquia brasileira.
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Notes
Author notes
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