RESUMO: Este ensaio aborda a agressão ao monumento do Borba Gato em julho de 2021, em São Paulo, reconstruindo a emergência antropológica da imagem e a elaboração de outras historicidades públicas a partir de tradições afro-atlânticas. O texto cruza as reconfigurações temporais produzidas pelo evento com algumas reações da comunidade historiográfica, especialmente no que se refere ao seu impacto sobre importantes recursos conceituais: patrimônio, monumento/documento e regime de historicidade. Demonstra-se que a operação iconoclasta perpetrada pelo coletivo Revolução Periférica desafia a historiografia a reelaborar as noções por meio das quais ela traduz eventos que tematizam, de forma nova, o racismo socialmente vigente.
Palavras-chaves: Monumento do Borba Gato, iconoclastia, documento/monumento, regime de historicidade.
ABSTRACT: This essay addresses the aggression on the Borba Gato monument in July 2021, in São Paulo, reconstructing the anthropological emergence of the image and the elaboration of others public historicities based on Afro-Atlantic traditions. The text crosses the temporal reconfigurations produced by the event with some reactions from the historiographic community, especially regarding the impact of the event on important conceptual resources: heritage, monument/document, and regime of historicity. It demonstrates that the iconoclastic operation perpetrated by the collective Peripheric Revolution challenges historiography to re-elaborate the notions through which she translates events that thematize, in a new way, the socially prevailing racism.
Keywords: Borba Gato Monument, iconoclasm, document/monument, regime of historicity.
Dossiê: Tempos da história
Auto de fé para o Borba Gato: historicidades públicas e chaves historiográficas
Auto-da-Fé for Borba Gato: Public historicities and historiographical keys
Received: 01 April 2023
Accepted: 11 July 2023
Que efeito temporal ativa a destruição dos coletivos sociais nos monumentos públicos? Como ele desdobra as temporalidades vigentes numa dada sociedade? Como atinge as noções mobilizadas pelos historiadores para compreender tais fenômenos? Este texto abordará tais problemas a partir do caso do incêndio praticado pelo coletivo Revolução Periférica, em 24 de julho de 2021, na estátua do Borba Gato, e discutirá o monumento como dispositivo temporalizador, evidenciando as disrupções históricas que os usos iconoclastas de monumentos acionam na esfera pública.
O ataque ao Borba Gato junta-se às muitas contestações monumentais anticoloniais que se popularizaram durante a pandemia de Covid-19, após a morte de George Floyd, em maio de 2020, mas guarda algumas peculiaridades. O incêndio do Borba Gato moveu algumas das classificações de passado, presente e futuro, as quais entraram em curto-circuito. A respeito disso, atentemos para as palavras do Revolução Periférica quando assumiu publicamente, no dia do ocorrido, a agressão à estátua:
Não podemos permitir que esse símbolo do Genocídio se perpetue. Borba Gato fez parte do passado, mas não precisa fazer parte do nosso presente. Homenageá-lo é perpetuar o culto ao assassino que ele foi. É uma afronta a todos os espíritos dos homens e mulheres que ele matou. Manter Borba Gato em seu pedestal significa uma autorização para que, amanhã, sejam construídos monumentos para homenagear o genocida Jair Bolsonaro ou os milicianos que atuam nas favelas de todo o país, semeando a morte. ( CAPRIGLIONE, 2021, n. p., grifos nossos).
As demandas contemporâneas por políticas de memória antirracistas parecem tornar fundamental a aceitação de que, na praça pública, quando o racismo se torna intolerável, surge o problema de pensar o que fazer com o legado da cultura histórica anterior ou o “passado culturalmente dominante” ( BEVERNAGE, 2021, p. 24). As declarações do coletivo Revolução Periférica deslocam o monumento, articulando não apenas o passado presente (“[...] não precisar fazer parte de nosso presente [...]”), mas o passado no futuro (“[...] homenageá-lo é perpetuar o culto[...]”) e o futuro como passado (“significa autorização para que, amanhã [...]”). O ato expõe temporalização da história e geração de historicidade por meios violentos que desafiam a cultura patrimonial da praça.
Nos casos dos ataques aos monumentos, como ao de Borba Gato, no Brasil, ou ao de Edward Colston, na Inglaterra, a demanda por políticas de memória antirracista impõe a fragilidade dos conceitos usados por historiadores para compreender a relação entre história e memória. Por um lado, muitos profissionais de História celebraram a queda das estátuas a partir de motivos éticos ou demandas por cidadania atuais ( LEAL, 2020; GRINBERG, 2020; BAUER, 2020; AVELAR, 2020). Outros, principalmente historiadores da arte, defensores do patrimônio, e mesmo teóricos e pesquisadores da historiografia, compreenderam as justificativas das derrubadas, mas questionaram os seus métodos, apontando a anacronia contida nos ataques e seu potencial poder de apagamento do passado ( GABRIEL, 2021; OPSOMMER, 2020; LEAL, 2020; ARAÚJO; MARQUES; PEREIRA, 2021; MARQUES, 2022; SANTIAGO JR., 2022). Frequentemente, a defesa do patrimônio salta ao primeiro plano como questão.
Ou seja, pensar as maneiras de temporalização e de historicização da estátua de Borba Gato como uma pira em chamas obrigou os historiadores a revisitar alguns instrumentos teóricos. Nesse sentido, estas páginas tematizam algumas especificidades da reação da comunidade historiadora e suas classificações temporais. A ansiedade causada pela destruição recente de monumentos como ataque patrimonial, por vezes, escamoteia a compreensão do funcionamento das esculturas. Em parte, ser contemporâneo aos ataques coloca os sujeitos, em especial os historiadores, em posição de investir no espaço público, algo diverso da premissa do distanciamento analítico das destruições da imaginária. Isso porque muitas ações atuais são diferentes da já conhecida “destruição de monumentos” ocorrida nas mudanças de regimes políticos, tema caro às histórias das revoluções, à iconoclastia ou à destruição da arte, todos campos de pesquisa consolidados ( HUNT, 2007; FIGES, 2001; BESANÇON, 1997; GAMBONI, 2014).
O dissenso entre os historiadores sobre as agressões aos monumentos é tomado como sintoma das demandas da cena pública para o profissional de história contemporâneo ( FREITAS; OLIVEIRA, 2014). Este foi confrontado por um evento (a queima da estátua) que partiu de chaves, conceitos e imagens provenientes de outras tradições culturais do passado: a afro-brasileira e a atlântica. Esta deslocou as categorias historiográficas nativas de monumento/documento, patrimônio, regime de historicidade, entre outros, as quais foram mobilizadas pelos historiadores para compreender tais usos públicos do passado.
Nesse sentido, este texto parte de uma sociologia do conhecimento tal como a proposta por Fredrik Barth (2000), para quem o conhecimento é produzido por múltiplas tradições que se confrontam, interferem-se e se distorcem. Tentamos, pois, no confronto entre as ações iconoclastas do Borba Gato, demonstrar as disrupções das noções historiográficas. Se o conhecimento sobre o passado é produto de ações, noções, “técnicas e sensações por mais das quais pessoas sentem que estão em contato com o passado” ( MELLO, 2021, p. 4), quando a comunidade historiográfica o produz disciplinarmente, no confronto com outras tradições de passado, podem surgir curtos-circuitos.
A base desta análise, portanto, será a reconstituição da emergência antropológica da imagem do Borba Gato como figura em iconoclastia 1. O texto está dividido em cinco partes: a primeira articula o ataque ao monumento do Borba Gato e a reação imediata dos historiadores; a segunda lança o evento em suas temporalidades particulares em diálogo com tradições afro-atlânticas; a terceira reflete sobre o desmonte da categoria de monumento/documento por tais tradições. Por fim, as duas últimas partes voltam-se diretamente à reflexão teórica: a quarta repensa as noções historiográficas de monumento/documento e patrimônio, ao passo que a quinta visita o tema da temporalidade e dos regimes de historicidade. Esperamos, com isso, demonstrar como formas de temporalização da história no espaço público impõem desafios teóricos ao profissional de história como agente/sujeito na cena política.
Em 24 de julho de 2021, o coletivo Revolução Periférica, por volta das 13h30, ateou fogo ao monumento Borba Gato, estátua figurativa em homenagem ao bandeirante do século XVII ( DAMASCENO; VERPA, 2021). O coletivo paulistano colocou pneus usados na base da escultura de 13 metros de altura e, durante o ato, portou uma faixa com o nome do grupo e a palavra de ordem “A favela vai descer e não vai ser carnaval”, 2 vinculando o protesto às periferias brasileiras, que se espalham pelos morros de cidades, como São Paulo, e seu potencial de revolta. O grupo paulistano iniciou, ao mesmo tempo, a gravação dos atos com smartphones e lançou as imagens nas redes sociais, que rapidamente viralizaram e foram comentadas nos principais jornais brasileiros e nas redes sociais em geral.
Quando o Borba Gato ardeu, os historiadores brasileiros receberam a estreia aparente do Brasil na “onda” 3 internacional de iconoclastia. Já havia muita discussão pública no Brasil sobre as derrubadas tão logo a estátua de Edward Colston caiu na cidade de Bristol, na Inglaterra, em 9 de junho de 2020. Jornais de grande circulação requisitaram especialistas em história, história da arte, patrimônio, antropologia e sociologia para que dessem declarações e entrevistas sobre o assunto. Vários historiadores escreveram para os veículos, assim como usaram de plataformas de história pública, tais como podcasts, blogs ou vídeos em canais, como o Spotify, Youtube e Instagram, para participar do debate.
Assim, no ano de 2020, foi enorme a quantidade de textos que surgiu, tal como eventos acadêmicos e lives que permitiram a aproximação entre profissionais de história das universidades e das redes de ensino básico com o público mais amplo. 4 Os historiadores brasileiros indagavam várias questões, dentre elas, porque tal contestação não havia chegado ao Brasil. Parecia ser evidente, portanto, a invisibilidade dos nossos monumentos. Ao mesmo tempo, os debates demonstravam certo temor, uma vez que até vigílias em proteção a monumentos, como o de Borba Gato, foram montadas. Era evidente, em muitas manifestações, uma reação entusiasmada pelo debate, acompanhada por certa ansiedade e o desejo de contestação de monumentos históricos locais. Quando o Borba Gato foi atingido das chamas em 2021, mais de um ano depois do ataque à efígie de Colston, pareceu que a espera fora encerrada: o Brasil ingressava, em plena pandemia de Covid-19, na “onda” iconoclasta.
O evento foi saudado pela historiadora e antropóloga pública Lilia Schwarcz como o ingresso brasileiro na “Primavera dos Monumentos”, que “começou com o Edward Colston” (BORBA GATO, 2021). Como evento político, ela associou o protesto às contestações do século XIX pela autonomia dos povos, historicamente conhecida como “Primavera dos Povos”. A analogia da historiadora entre a derrubada de monumentos, a derrubada do Antigo Regime e a emergência dos nacionalismos metaforizou a mudança de regime de historicidade e o ingresso dos brasileiros na modernidade dos monumentos. 5 Schwarz brincou com uma conhecida metáfora histórica - a primavera -, na compreensão de que as derrubadas dos monumentos permitiam perceber uma diferença no tempo presente.
Em outro espectro político, mas verbalizando raciocínio comum, a historiadora Mary Del Priori apontou, em agosto de 2021, no programa televisivo Fantástico!, da Rede Globo de Televisão, que as derrubadas eram ataques anacrônicos ao passado: uma vez que não poderíamos julgar “Borba” pelos (nossos) valores do presente, derrubar a sua estátua era como se ela fosse o próprio passado de mortandade indígena, o que significava não compreender o passado. Del Priori defendeu, ainda, que a compreensão de que a ação de derrubar o monumento produzia outra temporalidade, desta vez anacrônica, ou seja, uma sobreposição de valores do presente às experiências do passado, gerando uma incompreensão histórica.
No mesmo sentido, o jornalista Eduardo Bueno, que preenche funções de historiador público, afirmou que o monumento de Borba ardeu “nas chamas da intolerância” ( BUENO, 2021), explorando, ainda, o nome do coletivo como “periférico”, “aquilo que nunca vai chegar ao centro, nunca chega ao âmago, e eles estiveram muito longe de atingir o âmago dessa questão” ( BUENO, 2021, n.p.). Repetindo argumentos sobre a cegueira do coletivo, Bueno afirmou a destruição do monumento como atitude “retrógrada”, ato de barbárie, com todos os tons e metáforas do termo: o bárbaro é o ignorante, o ser do mundo não-moderno ou pré-moderno. Se a mensagem política de Del Priori soou como um aviso especializado, encontramos a de Bueno na acusação de anacronia, termo comum também entre profissionais de história para designar um erro central da compreensão da diferença entre o presente e o passado. A derrubada, nesse contexto, seria uma regressão temporal ou uma inversão civilizacional.
Sobreposta às chamas do Borba Gato, prosperaram as metáforas da ardência da história, das chamas da ignorância, da queima do passado e do apagamento da história. A força da metáfora do passado que queima ( GRUNNER, 2021), como a estátua de Borba Gato, presente em reportagens e postagens em redes sociais, permite observar que, ao atear fogo à estátua, o coletivo Revolução Periférica diferenciou a sua intervenção dos tipos de agressão contra as estátuas até então famosos na “onda” iconoclasta da pandemia de Covid-19: contra o afogamento de Edward Coslton; as machas vermelhas (sangue) em Leopoldo II ou Churchill; e as decapitações ou arrastos de Colombo (respectivamente na Inglaterra, EUA e Colômbia); a queima de Borba Gato emergiu com outras capacidades metafóricas aparentadas ao auto de fé. 6
Agredir estátuas é, entre outras coisas, uma ação substitutiva ( BREDEKAMP, 2015): agride-se não apenas aos valores que elas sustentam, mas àqueles que sustentam tais valores. Essas agressões punem as estátuas como se elas tivessem (ou fossem) corpos de pessoas: afogar, decapitar, arrastar, despedaçar, queimar esculturas figurativas, principalmente em estilo clássico, são ações que foram cometidas contra pessoas e que, em alguns casos, ainda o são. No Brasil, por exemplo, circulam desde o massacre de Canudos cenas públicas, que por vezes se tornam virais na internet: bastaria lembrar o massacre no Carandiru, em 1992 (as fotos-ícones dos corpos no chão no presídio) ( MASSACRE [...], 2021); as cabeças decapitadas em rebelião em presídio no Maranhão ( PRESOS [...], 2014), em 2014, e no Ceará ( PASSARINHO, 2019), em 2016; e o caso de Cláudia Ferreira, mulher negra arrastada por um carro de polícia pelas ruas do Rio de Janeiro em 2014 ( ARRASTADA [...], 2014). Esses corpos flagelados, geralmente de população negra ou parda, são imagens do terror espetacularizadas e, por vezes, normalizadas.
Os monumentos como a estátua do Borba Gato são corpos cujas figuras incorporam uma imagem - a do bandeirante histórico Borba Gato. Nesse sentido, podemos dizer que as estátuas históricas são corpos materiais de imagens imateriais que frequentemente (se) confundem (com) pessoas: se apenas no sentido figurativo (ao representar uma pessoa) uma estátua pode ser decapitada, no sentido literal, como monumento figurativo, o corpo da imagem tem de fato uma cabeça que pode ser decapitada, um corpo a ser arrastado, afogado ou lançado em uma fogueira. Perceba-se, portanto, a potência simbólica que o ato de intervir junto a estátuas faz, produzindo um grafema, um traço/sinal em espera de uma narrativa. 7
As ações cometidas contra os monumentos fazem parte do repertório das punições e horror públicos, as quais foram submetidos criminosos, hereges, refugiados, prisioneiros de campos de concentração e extermínio, povos colonizados da América e da África em geral. O Borba Gato foi atingido por uma modalidade cristã de matar ídolos e bruxas como o auto de fé. Em especial, na América Latina e Caribe, o uso do fogo foi mais frequente do que nos países europeus e na América do Norte, regiões nas quais as estátuas foram frequentemente grafitadas, encobertas, arrastadas, decapitadas ou quebradas. Na América do Sul e Caribe, várias estátuas foram incendiadas: em Temuco, no Chile, em 2019 ( MONTES, 2020), em Fort-de-France, na Martinica, em 2020 ( PINEL-FEREOL, 2020), e no Rio de Janeiro, em 2021, por exemplo.
Em realidade, queimar a imagem do Borba foi funcional do ponto de vista técnico: seria mais difícil decapitar ou arrastar a escultura gigantesca, sustentada por trilhos em sua estrutura interna. O fogo, além de funcional, permitia uma potência extra para uma imagem do passado encarnada:
Então, puseram-lhe fogo! E que fogo! Centenas de pneus velhos foram empilhados no pedestal pelos jovens em apenas 2 minutos. Daí, foi jogar gasolina e… FOGO! As labaredas e a fumaça preta envolveram o corpo do assassino. A cena era tão surreal que levou os policiais militares que atenderam à “ocorrência” a uma espécie de estupor. Todos apontavam as câmeras de seus smartphones para o fogaréu de onde mal se viam os contornos do bandeirante. ( CAPRIGLIONE, 2021, n.p., grifos nossos).
Perceba-se o movimento metafórico que compreendia o passado dotado de vida da estátua, que era extinto pelas chamas, as quais “envolveram o corpo [não a imagem ou corpo da imagem] do assassino” e impediram de “ver os contornos [o rosto/figura] do bandeirante”. A cena foi montada para gerar resposta emocional, a qual se percebe, no trecho da jornalista Laura Capriglione, no “estupor” dos policiais e na própria retórica do texto.
Acrescente-se que o monumento foi atacado numa forma moderna de tratar a derrubada de ícones, especialmente após o advento da televisão: 8 a reprodução técnica midiática da derrubada. Desde o advento dos smartphones como plataformas individuais centrais da vida social contemporânea, essa possibilidade adquiriu novas dimensões, relacionadas à chamada viralização - reprodução e repetição sem limites, que transforma a imagem da derrubada em um evento em si mesmo.
O espetáculo gravado da queima garantiu alta potencialidade viral. Os atos iconoclastas contemporâneos têm sido agenciados para a repetição digital, que garante sua presentificação e perpetuação: o ato sobrevive enquanto o evento/imagem for repetido, acionando um monumento que foi transformado, pela sua derrubada gravada, em uma bio-imagem ( MITCHELL, 2016), cuja vida vem de sua reprodução/viralização digital alcançável a qualquer pessoa dotada de um celular. A quantidade de compartilhamentos e menções à queima do Borba Gato revela como muitos brasileiros, em especial os historiadores, repetiram a queima. Repetir é, nesse caso, em alguma medida, queimar de novo e participar do evento comunitário, cuja temporalidade pode ser estendida até um novo evento substituir o compartilhamento.
Nessa perspectiva, pode-se compreender a derrubada do Borba Gato como uma operação que confunde os níveis de compreensão dos corpos e tempos das coisas, que podem ser flagelados como se fossem pessoas e podem ser reproduzidos digitalmente enquanto durar o “calor” de sua atualidade. Os monumentos históricos, então, oscilam no espaço público entre serem acionados como se fossem os corpos do passado (ao invés de uma de suas imagens) e serem bioimagens da agressão sofrida/repetida.
O evento terminou por se desdobrar em outros: para evitar que o motorista do caminhão que levara os pneus para o local do protesto fosse preso, Paulo Roberto da Silva Lima, chamado de “Paulo Galo”, já conhecido agente dos movimentos sociais para trabalhadores de aplicativo durante a pandemia de Covid-19, foi à polícia e assumiu o protesto em nome do coletivo Revolução Periférica. Ele e sua esposa, Géssica Silva, foram ilegalmente presos. Colaborador do grupo independente Jornalistas Livres, Paulo Lima logo foi envolvido em intensa campanha abarcando os setores e grupos progressistas da sociedade brasileira, espalhando-se pela imprensa da grande mídia a defesa do “Galo” e puxando a hashtag #galolivre.
O grupo Jornalistas Livres acusou o abuso jurídico na manutenção da prisão do casal, “presos por atear fogo a um monstro de concreto e aço, enquanto o país queima vivos travestis, indígenas, moradores em situação de rua; chicoteia negros em supermercados; permite a morte pelo frio de dezenas de cidadãos brasileiros” ( LANZONI; CAPRIGLIONE , 2021, n.p.). O Jornalistas Livres investiu muito no evento, dentre outras coisas, porque a intervenção junto ao Borba Gato permitiu-lhe construir uma narrativa particular a partir das iniciativas do próprio Revolução Periférica. No dia 23 de julho, antes da agressão, o coletivo espalhou e colou faixas em postes e muros, notadamente perto de estações do metrô, anunciando a autoria do ato que viralizaria rapidamente na internet com a palavra de ordem “A favela vai descer e não vai ser carnaval” e convocando o Jornalistas Livres para divulgar o ato. O coletivo gravou as cenas do ato e as veiculou em canais alternativos, entre eles, o Jornalista Livres, que assumiu a defesa do casal. 9
O site do Jornalistas Livres, a partir do dia 25 de julho, divulgou as notas do Revolução Periférica. Em um dos vídeos do auto de fé, palavras de ordem eram usadas, conferindo dimensões extras às declarações formais do Revolução Periférica, tais como: “Borba Gato: bandeirante, assassino, genocida”, “Símbolo de um dos maiores crimes contra a humanidade”, “Massacre, escravização e extermínio de milhares de indígenas”, “Abaixo o culto aos mitos de ontem e de hoje” ( CAPRIGLIONE, 2021, n.p.), combinadas ou mesmo sobrepostas às cenas das chamas e fumaça na estátua. O texto que acompanhou o primeiro vídeo afirmou que, “organizados em alguma das principais favelas de São Paulo, esses jovens, autodenominados Revolução Periférica, têm profunda consciência de classe” e iniciaram uma “entrada de cena dos jovens moradores das periferias de São Paulo”, os quais, munidos da cultura das periferias, aprenderam que “O Estado Burguês é uma máquina de guerra permanente contra os pobres, os negros, os indígenas, os habitantes da periferia” ( CAPRIGLIONE, 2021, n.p.), atingidos por muitas mazelas, inclusive aquelas das mortes por Covid-19. Sua abordagem seria diferente das dos protestos “bem-comportados” da Avenida Paulista contra a “fala do genocida Bolsonaro”.
Aquela juventude saberia, melhor do que ninguém, o que seria genocídio, justamente porque ela era seu alvo, por isso transformou “a estátua monstruosa do bandeirante Manuel da Borba Gato, símbolo do Genocídio convertido em Heroísmo, no dia de mais um protesto pelo #ForaBolsonaro na avenida Paulista”. A reinterpretação da personagem histórica atingiu novos patamares quando se afirmou que “Borba Gato era um miliciano numa época em que não havia câmeras e nem leis” ( CAPRIGLIONE , 2021, n.p., grifo nosso).
As declarações que definem Borba Gato como genocida e miliciano são projeções de valores do presente na figura e no passado do personagem ( JORNALISTAS LIVRES, 2021). A projeção final que une todo o conjunto do protesto é certa leitura do ato como uma forma de protesto contra o então presidente Jair Bolsonaro: “Borba Gato é Bolsonaro” ( LANZONI; CAPRIGLIONE, 2021). Compreender uma personagem/imagem do passado como incorporação do presente apresenta o páthos definitivo do ato: a iconoclastia, por substituição, queimava o então presidente na concepção geral veiculada pelo Jornalistas Livres (2021).
“Paulo Galo” apresentou, meses depois, a memória do evento no podcast Pode Pah. Paulo Roberto da Silva Lima faz parte do contingente de milhões de trabalhadores de aplicativos, importante massa de trabalho da economia brasileira, frequentemente capturada pelos discursos do autoempreendorismo. Esse serviço tornou-se essencial no período da pandemia Covid-19, pois o confinamento isolou parte da população economicamente mais abastada, que dependia dos serviços de entrega. Esses trabalhadores em alto grau de vulnerabilidade à exposição ao novo coronavírus trabalhavam em condições precárias.
Paulo Galo foi o fundador do Movimento de Entregadores Antifascistas, em 2020, que tentava construir estratégias de reinvindicação de direitos a um grupo precarizado. Em julho de 2020, o coletivo iniciou uma greve sob o lema “Fome!” ( OLIVEIRA, 2020) 10 e Galo se destacou pela retórica em protestos antirracistas e antifascistas durante a pandemia. Segundo o próprio, quando criança, desejava ser rapper, ainda na época em que morava no Jardim Guarau, na zona oeste de São Paulo, e afirma ter sido formado politicamente pelos companheiros do rap e do hip hop. A partir dessas trocas, tornou-se leitor de Malcom X, Martin Luther King e outros. Em especial, citou Raízes Negras [1976], de Alex Haley, autor de uma biografia de Malcom X que depois gerou sua própria busca pela ancestralidade negra. 11 Galo se identifica como não sendo de esquerda, mas “de baixo”: “Eu não defendo a democracia burguesa. A esquerda olha de cima para baixo. A democracia não existe”. Além disso, defende que a burguesia controla todo mundo e que o seu horizonte seria a política de baixo para cima, do povo que “acredita no seu ódio” ( PAULO GALO, 2022).
Ainda em fevereiro de 2020, Galo recorreu ao Jornalistas Livres ( CAPRIGLIONE, 2020), sendo catapultado a partir de então, quando inúmeros veículos da imprensa colheram sua narrativa. A ação contra o Borba Gato, no ano seguinte, foi intencional, porque, segundo ele, as elites intelectuais e grupos da imprensa brasileiras estavam muito sensibilizadas pelas agressões mundiais aos monumentos. O protesto iconoclasta permitir-lhe-ia atrair atenção às vítimas da violência social e policial subvalorizadas no mercado do trabalho, notadamente negros e negras vulnerabilizados na pandemia de Covid-19.
De acordo com Galo, no processo de leituras e vivência, ele desenvolveu o que chamou de consciência do seu ódio, que teria emergido notadamente quando sua filha nasceu. O vocabulário usado por ele é pertinente nesse sentido: “Foi quando acessei o meu ódio”. Usando de frases de efeito, ele afirma o potencial de revolta da periferia: “O ódio é a bomba nuclear da favela” ( PAULO GALO, 2022). O ódio é expresso no próprio ato iconoclasta ao Borba Gato: para qualquer observador, o ato de atacar a estátua de Borba Gato foi violento. O coletivo Revolução Periférica assumiu que se tratou de uma expressão de raiva. Meses depois, Paulo Galo ( PAULO GALO, 2022) falaria da necessidade de canalizar a raiva, que se consolidou quando seu cunhado foi assassinado.
A raiva do homem e da mulher negra, nesse caso, é um importante topos dos discursos dos movimentos negros estadunidense e brasileiro, e Galo a expõe quando revela suas motivações, 12 liga-se a um recurso frequente de ativistas, intelectuais ou artistas, que adotam a expressão emocional intensa e a raiva como instrumento para enfrentamento do racismo antinegro. Ao acompanhar o discurso de Paulo Galo, percebe-se uma concepção de tempo diferenciada: a vida da população negra é, nesse sentido, a experimentação da perpetuação contínua do racismo na sociedade, o qual mantém as pessoas negras em condições periféricas desde o passado colonial. A escravidão como um passado-presente significa efetivamente uma vida distorcida, acesso limitado à saúde e educação, morte prematura, encarceramento e empobrecimento ( HARTMAN, 2021). O ataque ao Borba Gato, inimigo histórico dos indígenas, bem como a escravidão, são invocados porque viabilizam o presente de abuso das vidas negras. Trata-se de um passado que não passa e por isso, quando foi levado ao presídio, Galo traduziu para os presidiários uma nova identidade para Borba Gato: este seria um “Jack” (entre outras coisas, gíria para estuprador ou pessoa que sem limites morais) e estupradores do passado e do presente não merecem homenagens.
O ataque ao Borba Gato foi para chamar atenção às causas da periferia. Trata-se de transformar o “Jack” do passado em uma oportunidade de reivindicações diversas em prol da existência. Tal como ocorrera na remoção da estátua de Cecil Rhodes, na África do Sul, na qual o #Rhodesmustfall tornou-se uma oportunidade para reivindicações múltiplas (presença racial na universidade, representatividade de gênero, melhoria de transporte etc.). 13 Trabalhando com um vocabulário recente, com as crises do governo Jair Bolsonaro na pandemia, Galo explicita que sua ação foi no sentido de “existir”. Por meio dos contatos e da visibilidade pública, ele e o coletivo vão “existindo” na medida em que são vistos.
Contudo, essa “atualização” tem mais dimensões temporais do que se imagina à primeira vista. O testemunho de Paulo Galo acrescenta a dimensão do evento para pessoas pardas e negras. Perceba-se que a lógica das imagens construída pelo coletivo é particular. As declarações do Revolução Periférica evidenciam um páthos de revolta/convocação e a violência do ato remete diretamente ao gênero da ocupação14 da praça pública, física e digital, por meio das redes sociais.
O perfil no Twitter do coletivo foi importante instrumento para viabilizar o debate, inclusive, porque suas postagens do dia 24 de julho de 2021 em diante apareceram em inúmeras reportagens de jornais e sites informativos. Em um tweet do dia do auto de fé, em meio à veiculação de fotografias realizadas, reproduziu-se o poema Vamos pra Palmares (2021b), de Dugueto Shabazz 15. O poema retomava a imagem de Palmares como utopia negra do passado, projetada para o futuro da emancipação negra, uma construção histórica e mítica realizada em meados do século XX e alicerçada em narrativas e vozes de artistas negros brasileiros, tais como Jorge Ben 16 e Gilberto Gil 17.
O trabalho de Shabazz (2021a) é parte da tradição do rap paulistano e se insere na valorização da população negra de periferia que tinha nos Racionais MC’s um de seus paradigmas. 18 Esse grupo já havia recordado de Zumbi na canção “Júri Racional”, do álbum Raio X Brasil, de 1993, associando muitos personagens negros, entre eles Nelson Mandela e Spike Lee, com “Zumbi, um grande herói, o maior daqui”. A canção do Racionais situava Zumbi como exemplo do passado. Já o poema de Shabazz fala de origens africanas multiculturais voltadas ao futuro, citando desde “Guardar a palavra de Allah” e “Alcorão”, até afirmar que vai “amarrar o patuá” e procurar “Uma estrela e o crescente para nos guiar/ Vamos sentido Oriente que eu conheço um lugar”. Na canção, o lugar é Palmares, retomado junto aos seus inimigos históricos, os bandeirantes, que estiveram/estão na luta histórica atualizada pela voz lírica:
Vamo cantar uma canção, hino de libertação
Antiga cantiga mandinga mantida recordação
A fé tá no tessubá, promessa tá no alcorão
Faz parte da nossa crença lutar contra a escravidão
[...]
Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares
Mesmo que eu tenha que cortar serras e ares
E que meu sangue regue o chão, solo de nossos lares
Pois todos quilombolas são nossos familiares
Índios e foras da lei, renegados e populares
Malquistos e malvistos vindos de vários lugares
Você não tá sozinho porque nós somos seus pares
No levante contra bandeirantes, militares
E se lealdade ao justo Rei jurares
E com as próprias mãos paliçadas cavares
Se por amor a justiça, a causa amares
E por causa da justiça ao amor armares
Quando rufares tambor, quando tambor rufares
Que nos sangrem os calcanhares, contra nós sejam milhares
É tempo de defender nossas raízes milenares
Se esperamos, vacilamos, vamos todos pra Palmares
Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares
Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares
Mesmo que no caminho me sangrem os calcanhares
Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares
Mesmo que os inimigos contra nós sejam milhares
Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares
Enfrento os Borba Gato e os Raposo Tavares
Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares. (
MINCHILLO, 2016, n. p).
A letra narra, em primeira pessoa, a trajetória de um africano escravizado no Brasil Colônia. De origem muçulmana, mas com menções a elementos provenientes de outras matrizes africanas, a voz lírica é entoada como encantamento/mandinga, funcionando como palavra de ordem, convocando as populações negras e periféricas brasileiras. A chave passado-presente da canção é relacionada a uma situação de periferização das populações na era neoliberal. A canção foi evocada pelo Revolução Periférica ainda antes do ataque ao Borba Gato 19 e mostra fraternidade entre quilombolas, indígenas e populares, evidenciando certa ideia de passado-futuro desejado na imagem de Palmares.
Segundo pudemos reconstruir, a canção fora composta por volta de 2007-2008 e vinha circulando em saraus e sendo retomada em trabalhos de professores estaduais e municipais de várias periferias brasileiras. Ela já havia sido musicada antes, mas o próprio Shabazz só criou sua versão em agosto de 2021, com produção de João Nascimento. Quando do lançamento, Shabazz afirmou que “Palmares vive dentro de cada um de nós que acredita que toda luta por justiça e liberdade é válida!” ( SHABAZZ, 2021b). O single da canção tinha por capa uma foto da estátua de Borba Gato sob as chamas lançadas pelo Revolução Periférica. A foto tornou-se o ato em ícone perpétuo de protesto de uma canção. Os valores da composição foram atualizados pelo Revolução Periférica: a histórica construção de Zumbi, o dia da Consciência Negra e Palmares tornaram-se leitmotiv para ação a política do presente em combate à permanência das imagens dos adversários históricos (Borba Gato e Raposo Tavares).
Por fim, em outubro de 2021, sob direção de Allan Lima e produção da Coleta Filmes, emergia o videoclipe ( COLETA, 2021). O videoclipe de Vamos pra Palmares, segundo o próprio Shabazz, mostrava imagens que retratam “a força da luta contra o racismo estrutural da nossa sociedade, além de trazer o registro histórico e de eventos recentes da resistência do movimento negro e dos movimentos sociais do Brasil” ( SHABAZZ, 2021b, n.p.). O videoclipe incorporou às imagens documentais da agressão ao Borba Gato de julho de 2021, entre outras imagens documentais de protestos e reinvindicações da população negra brasileira, cartazes sobre genocídio negro e/ou com o nome de Zumbi e a placa-símbolo da rua Marielle Franco, tornada monumento e quebrada na campanha eleitoral presidencial de 2018. O foco narrativo do vídeo foi um protesto organizado na Avenida Paulista e sua concentração no Vão do Museu de Arte de São Paulo, incorporando e ocupando o monumento arquitetônico em uma narrativa inesperada. O vídeo encerra com imagem aérea das faixas da avenida paulista com a frase “Vidas negras importam”, menção ao coletivo estadunidense Black Lives Matter, importante agente na ativação dos protestos durante a pandemia Covid-19 e nas derrubadas dos monumentos.
O vídeo encena a permanência do evento iconoclasta como parte da narrativa para o monumento de Borba Gato, fazendo dele o ícone do protesto. Junta-se a capa do álbum de Duguetto, Vamos pra Palmares, lançado em 2021, que também usa a imagem do ataque à estátua de Borba Gato. Nela, o artista evita o desaparecimento do evento no turbilhão de atualizações, sendo mais um ato de incorporação nas narrativas de re(existências) negras brasileiras, cuja memória se estende no tempo e não é anulada no correr do compartilhamento. Como símbolo, Palmares contra Borba Gato desmonumentaliza o racismo como homenagem na praça pública.
Narrando um episódio enquanto esteve preso por causa do ato contra a estátua, Paulo Gato conta que explicou aos colegas que desejava fazer uma revolução. Ele então travou o seguinte diálogo com o colega (de nome Rosa) na prisão: “Se eu parar aqui para te ajudar, essa cadeia toda te ajudar, você consegue fazer isso amanhã, essa revolução?!”, ao que Galo responde: “Não, irmão, não, revolução não é um dia, revolução é um processo, mano, que está sendo construído desde Palmares, Zumbi dos Palmares” ( PAULO GALO, 2022, n.p.). Na hora de rememorar o caso, ele invocou Palmares como uma memória negra diversa do passado hegemônico disponibilizado na praça pública.
Os efeitos produzidos pela agressão ao monumento de Borba Gato, tais como os discursos produzidos pelos Jornalistas Livres, pelo Revolução Periférica e por Paulo Galo e a retomada da memória negra de Palmares via obra de Dugueto Shabazz permitem entrever as frequências de historicidade intrincadas que se elaboraram no Brasil em 2021. O ataque trouxe à tona múltiplas enunciações na forma de áudios, postagens em redes sociais ( Twitter, Facebook, Instagram), textos escritos, podcasts, vídeos, cada qual operando o tempo, trazendo o passado das bandeiras para encontrar o presente, mas também para projetar o futuro. Paradoxalmente, o ataque remonumentalizou a estátua com a agressão que visava desmonumentalizá-la. Isso devido ao fato de que foi usada a temporalidade do monumento para questionar o valor de sua firma/assinatura atual na praça pública, ou seja, sua condição de documento. Em suma: agrediu-se a estátua como documento/monumento, deslocando-se os tempos da imagem.
Para entender melhor esse ponto, devemos tratar da estátua-como-monumento. Segundo Andrea Pinotti (2014), um monumento público possui uma base dupla de reação à morte e de atuação do poder. Um monumento se realiza quando o material se constitui como traço da presença de uma ausência, como um sepulcro ( sema) signo ( semeion) de um corpo ( soma) ausente. De alguma forma, o monumento responde ao trauma da morte, e sua produção vem de um gesto suplementar ou compensatório de uma falta. Por outro lado, o monumento corresponde à exigência conatural de autocelebração do poder, o qual se exibe quando localizado por um objeto de memória na praça pública.
Pode-se dizer, ainda, a partir do caso do Borba Gato, que um monumento também se realiza quando se reage à morte e ao poder. O ato fundador do monumento cívico, costumeiramente, consistiu em invocar a ancestralidade e enfrentar a morte e o esquecimento pela localização de uma imagem, a qual, firmada na praça pública, exibe o poder que homenageia. A atuação do monumento depende de performances públicas (tais como as celebrações) que acionem a ancestralidade evocada, tal como intencionado na instalação da imagem. A alternativa é haver performances de contestação, as quais podem chegar ao ponto de eliminação do monumento. O segundo aspecto ocorre nas disputas pelo/contra o poder soberano na praça pública: o monumento, mais do que imagem do poder que se autoexibe, torna-se, substitutivamente, figura do poder a ser efetiva ou simbolicamente derrubada. Ou seja, como artefato sujeito às demandas dos grupos sociais, um monumento funciona descontinuamente conforme seja usado pelos diversos grupos sociais para produzir suas temporalidades.
A cultura monumental que gerou figuras como o Borba Gato partiu da celebração pública de pactos históricos ( NAPOLITANO, 2022) formados no século XIX. Até os anos 1960, esse pacto deu origem a uma imaginária pública de ancestrais de determinadas etnias brancas ou tuteladas por grupos brancos. Tratava-se, nesse sentido, de uma política do tempo, ou seja, “um dado modo de se ordenar as relações entre passado, presente e futuro” que propõe (mas não determina) “o âmbito performático de nossas relações com o tempo histórico” ( ÁVILA, 2016, p. 190). Um dos constituintes daquele pacto histórico foi sua estruturação no racialismo/racismo da modernidade imperial, privilegiando homenagens a corpos brancos (em geral masculinos) ocupando a praça pública.
O que raramente é realçado é que a memória como monumento depende de sua materialidade como objeto cultural, cuja existência surge do seu firmamento em praça pública, ou, se preferir, de sua inscrição como documento. A condição de firma-registro 20 do ancestral (ou evento) como documento é pré-condição da permanência e possibilidade de seu funcionamento memorial. Ao ser documentada em suporte material, a imagem-memória enfrenta a morte e realiza o poder. No caso do Borba Gato, por exemplo, a primeira documentação do monumento na praça pública, a instalação, foi a condição necessária daquela memória bandeirante como fato social público, mas não sua condição suficiente, na medida em que sua perpetuação depende das performances dos atores ( FERRARIS, 2009). Ou seja, o quando de qualquer monumento, seu funcionamento como tal, depende dos atos sociais de experiências e memória registrados, repetidos ou modificados como/no suporte de pedra e nos eventuais paratextos nos quais é evocado 21, na forma de usos oficiais e celebratórios ou usos alternativos e até destrutivos, potencializando várias temporalidades.
As esculturas confundem as temporalidades para as quais apontam como monumento e documento. Por ser, dentre outras coisas, uma imagem-artefato, a estátua de Borba Gato é uma celebração da figura do bandeirante erguida em 1963. Ela remete ao passado colonial brasileiro, mantendo presente e para o presente um passado idealizado. Como homenagem, óbvio, trata-se de uma figura sobre um personagem do passado, sendo em si um ato anacrônico de interessar-se, num dado agora ( AVELAR, 2020), pela sua invocação e perpetuação ao futuro. Sendo assim, é um artefato que materializa um movimento entre tempos, confundindo-os. Entenda-se aqui que o uso do termo confundir remete etimologicamente ao termo “fundir”, ou seja, a tornar indistinto ou misto. O monumento não confunde porque bagunça os tempos, ele funde os tempos porque essa sempre é a proposta de um monumento que trabalha pela memória do poder contra a morte e o esquecimento ( PINOTTI, 2014), mas só consegue fazê-lo como documentação permanente na praça pública.
Exatamente por isso, o monumento em praça pública - e ele sempre poderia estar em outro lugar! - é um problema: não são três (passado-presente-futuro), mas várias as frequências temporais que se movimentam, na medida que haverá tantas temporalidades quanto façam trabalhar os grupos sociais que lidam com uma estátua.
Ora, se o monumento permite a produção de tempo junto e contra si, tanto por seu aspecto memorial como pelo seu aspecto documental, quais as dinâmicas de produção do tempo histórico a iconoclastia do Revolução Periférica instaurou? Como demonstrou Thaís Waldman (2019), a estátua do Borba Gato há anos tem sido contestada em várias performances públicas. A recorrência e contestação do passado bandeirante por meio dessa estátua tem deslocado o tempo histórico em diversas direções. O ancestral bandeirante existe por sua imagem sujeita a ser vista e evocada, tornando-se um mediador como monumento/documento na praça pública. A ação dos ancestrais faz parte do sistema social que confirma as leis e heranças sociais. No Borba Gato, atualizam-se os valores da ocupação de território indígena, aprisionamento e matança como ações fundadoras. 22
O Revolução Periférica, nesse sentido, rejeita a estátua do Borba Gato como documento/firma/inscrição na praça pública. O monumento funciona na praça pública a partir da evocação da memória e, ainda que seja um vestígio histórico, um resto do momento original no passado no qual foi erguido, pouco documenta do passado bandeirante (do século XVII) para o qual aponta. Para os transeuntes, conhecido ou desconhecido, perceptível ou não, ignorado ou ofensivo, frequentemente, o Borba Gato é uma imagem presente: faz ver o passado como personagem e torna aceitáveis os valores fundadores instalados permanentemente na praça pública.
Revolução Periférica, Jornalistas livres e outros estão rejeitando tanto a monumentalidade do Borba Gato, ou seja, o que ocorre quando a estátua relembra o personagem histórico, como a documentalidade na praça pública, ou seja, o que remete à sociedade paulistana que o ergueu e o mantém como garantia da ordem social herdada. Nesse contexto, o Revolução Periférica, dentre outras coisas, aponta outro desejo: uma alternativa à memória do passado distante e ao documento no presente. Ou seja: o monumento foi queimado inclusive por aquilo que ele documenta. Trata-se de uma escolha de outra genealogia, do expurgo de ancestralidade em prol da presença de outras personagens. O ataque expôs a fragilidade do pacto histórico: a durabilidade da estátua de pedra é uma realidade física análoga à validade da ancestralidade bandeirante; tão logo o fogo consuma a imagem, a fragilidade da analogia se expõe.
Desse modo, o monumento foi atacado porque apresenta um enlace com o agora: se em primeiro lugar Borba Gato funciona também como um sinal de passado, como monumento é uma presença de um passado desejado por alguns grupos sociais como ordenador do presente. Foi tomado como ancestral legítimo, porque grupos sociais aceitavam e aceitam que a civilização, no avanço, podia expulsar nativos. Hoje, frente à demanda por cidadania dos povos indígenas, em particular, e na luta contra o racismo e a precariedade do trabalho, alguns grupos não toleram o valor dos “desbravadores” e deixam evidente que não podem mais ser celebrados na praça do presente: “Borba Gato fez parte do passado, mas não precisa fazer parte do nosso presente” ( CAPRIGLIONE, 2021, n.p.).
O problema levantado pelo Revolução Periférica nunca foi com o Borba Gato histórico, mas com a sustentação, na praça pública, de sua celebração. Na praça pública o monumento é desde sempre heterocrônico. A instalação da estátua de Borba Gato foi um gesto “anacrônico”, ou seja, de produção de fusão de tempos que se perpetua como documento. A estátua é um dispositivo temporalizador: ela transforma o usuário da praça em espectador de seu espetáculo histórico, firmando-se como ancestral. É uma característica de algumas estátuas monumentais, como a de Borba Gato, ser uma projeção dos valores dos presentes nos quais ela se perpetua, e não apenas uma projeção da sua primeira instauração. Esses presentes podem ser descontínuos, no sentido de que, uma vez que as posições de grupos sociais na hierarquia são desiguais - e, na sociedade brasileira, precarizada -, as experiências de tais grupos produzem expectativas diversas e conflituosas do que e quem pode ser um ancestral público. A escultura foi produzida para essa projeção- fusão de tempos em conflito.
Ao refletir sobre essas questões, percebe-se como o Revolução Periférica fez com o monumento o que “todos” podem fazer: procurar os valores comuns que o corpo de pedra deveria permitir identificar. Mas ao realizar essa operação, os agentes do coletivo não encontraram tais valores, não reconheceram esses valores como seus, e, em realidade, articularam sua antítese. O rompimento do reconhecimento histórico puxou a rejeição de Borba Gato na tensão social na pandemia de Covid-19. A agressão e a iconoclastia constituíram o rompimento e a redefinição da genealogia pública por meio de criação de um ícone queimado.
O auto de fé do Borba Gato foi um exercício violento da heterocronia ( MOXEY, 2013), ou multicronia ( GELL, 2014), possibilitada pela estátua. Se a experiência básica com o monumento tem por base o confronto com sua permanência na praça pública, ou seja, com a pétrea perenidade histórica disponível para ser comemorada/atualizada; a iconoclastia, do Borba Gato criou outra temporalidade, na medida que ofereceu novas durações para uma bioimagem que existia (existe) enquanto queimava (queima). A contradição da vida/morte da imagem é base da operatória iconoclasta, que faz uma imagem funcionar por sua destruição e a destrói por suas qualidades de monumento/documento.
Acima, acompanhamos as operações de elaboração de historicidade pública por um caso de destruição monumental. A partir de agora, retornaremos às tentativas de apropriação do evento do Borba Gato e das derrubadas pela comunidade historiográfica. Esta realizou intervenções por meio de inúmeros gêneros discursivos, tais como entrevistas, ensaios, lives, depoimentos e artigos científicos, respondendo às demandas da esfera pública, atuando tanto em jornais de grande e pequena mídia como em seus próprios canais de história pública. Nessas ações, emergiu um vocabulário recorrente que acabou por constituir uma tópica, com termos como: silenciamento, anacronia, vandalismo, monumento, documento, invisibilidade, apagamento, narrativa, memória, cancelamento, atualismo, presentismo, patrimônio, etc. Tais expressões tornaram-se correntes e disputadas.
Esses termos foram usados para propor análises, orientações e múltiplos posicionamentos contra ou a favor das derrubadas, embora, no geral, tenha havido simpatia dos profissionais de história para com a necessidade de rediscussão da memória pública. 23 Ainda assim, no calor da queda de Edward Colston ou da queima do Borba Gato, houve forte engajamento discursivo e emocional de historiadoras e historiadores, como se evidenciou nos vários compartilhamentos em redes sociais, de maneira que a comunidade brasileira participou ativa e digitalmente dos eventos, celebrando, vibrando ou reprovando os vários casos do “bota abaixo”. 24
O vocabulário tornou-se parte desse modus operandi e revelou certa economia moral sobre como se deveria pensar os eventos e configurá-los como tais. Frequentemente, historiadores tornaram-se defensores do patrimônio público. Ou seja: por meio da tópica, defendia-se a ordem institucional e se propunha o uso de canais oficiais de negociação que não passassem pela violência contra obras e monumentos. Essa tópica era também pública, uma vez que compartilhada por inúmeras formações profissionais e grupos sociais; e, para a comunidade historiográfica, permitia participar do debate público, além de traduzir o contemporâneo em termos nativos, instituindo estratégias de constituição de objetos e políticas.
De todo o conjunto citado, as categorias nativas 25 do documento/monumento (e seu correlato o patrimônio), do anacronismo e do regime de historicidade foram as que mais claramente entraram em choque com os usos públicos do passado realizados pelos manifestantes que agrediram as estátuas. Em vez de revisitar todos os usos desses termos pelos historiadores, a ideia, nesta parte final do texto, é confrontar as posições desenvolvidas pelos manifestantes em relação ao Borba Gato com algumas categorias nativas historiográficas. Se a hipótese exposta acima sobre o que ocorreu com Borba Gato for pertinente, o evento demonstrou um empenho em prol de outra historicidade da parte do coletivo Revolução Periférica e apoiadores, uma prática de desmonumentalização da documentação pública.
No final deste texto, iremos tratar apenas do problema do documento/monumento/patrimônio e do regime de historicidade. 26 Da parte dos historiadores, a destruição ou agressão dos monumentos enfrentou diretamente sua reclassificação como patrimônio cultural. Nas intervenções públicas e especializadas, prosperou a noção de que o monumento era uma narrativa 27 e um vestígio/documento histórico que deveria ser preservado. Prosperou, portanto, entre nós, uma discursividade patrimonialista para ou invalidar o questionamento dos monumentos ou validar criticamente a maneira como a ação violenta de sua remoção fora ou poderia ser realizada.
Vestígios solitários, coleções e acervos são importantes para a confecção do conhecimento histórico. A defesa dos historiadores dos monumentos ocorreu como um realce de seu valor documental-histórico, político e estético, que excede as demandas de grupos sociais específicos e coincidentemente mantém o substrato do pacto histórico ( NAPOLITANO, 2022). A condição de patrimônio permite a preservação dos monumentos como documentos sociais e sua sinonímia com fontes históricas, o que só pode significar que, ao tratar o tema das derrubadas de monumentos como questão sobre o patrimônio, o historiador automaticamente deveria ser acionado em sua defesa.
Em realidade, há uma longa discussão na historiografia sobre qual a função do patrimônio e do monumento na prática historiográfica. Hartog (2013) advoga que nunca foi ou não é função primordial do historiador tornar-se um defensor irrestrito da cultura patrimonial. Monumentos históricos seriam produtos de outra episteme - uma operação patrimonial ou patrimonialização -, que gera sua própria historicidade e atende a demandas próprias. Os historiadores podem abordar tais objetos a partir de outros recursos, como por meio do conceito de lugar de memória, o qual permite ao historiador tratar como objetos (documentos ou fontes) as memórias artificiais após a falência das memórias espontâneas na modernidade. Nesse esquema, o patrimônio e seu duplo-ancestral, o monumento, seriam objetos da pesquisa histórica e, como consequência, seria temerário compreender a patrimonialização como uma prática historiográfica em si mesma, como alertam François Hartog (2013) ou Henry Jeudy (2005).
Essa discussão, demasiada francesa, não prosperou no Brasil 28, país carente de instituições potentes 29 para proteção de acervos - a despeito da atuação extraordinária do IPHAN, de inúmeros museus, cinematecas etc. - contra os constantes descasos governamentais e privados à cultura. A valorização epistêmica do patrimônio na historiografia se consolidou na passagem do século XX aos anos 2010, pela ressignificação do historiador em agente patrimonial, preocupado com a guarda, organização, acesso e educação patrimonial. O trabalho continuado e integrado dos historiadores em museus e acervos, a atuação de GTs ANPUH BR de História e Patrimônio Cultural, de Imagem, Cultura Visual e História, 30 os compromissos assumidos pela Associação Brasileira de História Oral 31 e, mais recentemente, o papel da educação patrimonial na Rede Nacional do Profhistória e os diálogos com a história pública demonstram como o patrimônio foi assumido pela comunidade historiográfica. José Newton Meneses (2018, p. 69) afirmou que o patrimônio “É História porque quer registrar o tempo da construção memorialística geradora do sentido patrimonial, e é pública porque assume os discursos das coisas que é de todos, para a fruição de todos e para o bem de todos”. Nesse contexto, a agressão aos monumentos como o Borba Gato cai nas inúmeras histórias de destruição patrimonial no Brasil que envolvem menos manifestantes políticos do que o descaso social ( MACHADO, 2021) e governamental ( KNAUSS, 2022).
Na discursividade patrimonial, portanto, a agressão ao Borba Gato ocupa uma posição de destruição de memória e documentação. Assim, muitas vezes, a preservação do monumento/documento tornou-se princípio para defesa patrimonial. Nessa perspectiva, a estátua, além de narrativa/monumento, é fonte histórica. Contudo, o estatuto da fonte histórica não é evidente como se pode imaginar a princípio. Em realidade, ele foi constituído nas tradições historiográficas, junto com a própria noção de método. Hoje, o consenso é de que fonte ou documento histórico é algo que emerge do questionamento do historiador e, nesse sentido, Borba Gato documenta a sociedade que o ergueu, procurando a eternização política da ordem social e legitimidade do poder constituído.
A estátua também foi suporte para inúmeras práticas documentadas nela e em outras fontes que permitem aos historiadores a reconstrução da história da sociedade. Por ser um documento de suas várias temporalidades - os diversos presentes pelas quais passou e acumulou -, o monumento é material da pesquisa e ensino da história. Ele é um vestígio histórico, um resto de vários passados, sendo que documenta menos o passado histórico para o qual aponta (as Bandeiras) do que as expectativas dos diversos presentes vividos e projetados pelos grupos sociais.
Essa potência documental do patrimônio para os historiadores se confronta com alguns usos públicos do monumento. Para os habitantes da cidade, conhecido ou desconhecido, perceptível ou não, ignorado ou ofensivo, o Borba Gato está sujeito ao quando de seu uso. Na praça pública, diferente do arquivo formal, o monumento documenta a própria presença, projetando um ancestral para fazer ver um enredo e tornar aceitável os valores fundadores ali instalados. Isso quer dizer que o estatuto cultural de um monumento para os grupos sociais que o usam é flexível, amplo, descontínuo e, por vezes, desconectado da própria noção de fonte histórica, reverberando mais uma noção difusa de documento-suporte para inscrição de múltiplos (e por vezes novos) atos sociais.
Documento, como categoria metódica (e antropológica) dos profissionais de história, não é a mesma coisa que o funcionamento documental da estátua no espaço público. Nesse último caso, a temporalidade gerada é múltipla, transitando em diversas frequências de memória. O auto de fé do Borba Gato permitiu ao Revolução Periférica e seus apoiadores a retomada da memória histórica de Palmares, lançando a estátua numa narrativa alternativa. Por outro lado, o mesmo ato rejeita a permanência documental da homenagem na praça pública, desafiando a ordem patrimonial. Nesse caso, os grupos sociais estão rejeitando tanto a monumentalidade do Borba Gato, ou seja, o que ocorre quando a estátua relembra o personagem histórico, como a sua documentalidade na praça pública, no que remete à sociedade que o ergueu e o mantém. O Revolução Periférica almeja uma alternativa à memória do passado distante e ao documento da vivência presente. Seria importante, portanto, compreender quais os usos memoriais e documentais dos monumentos pelos grupos para saber exatamente o que fazer ou desenvolver a compreensão historiográfica de fonte histórica, monumento e patrimônio na praça pública.
A condição de praça pública é o diferencial, 32 porque nela o monumento/documento possui valores refratados pelas disputas acirradas. O aspecto central aqui é entender a lógica de um objeto sujeito à iconoclastia por sua posição de assentamento de ancestralidade na praça pública. A posição na arena política é o foco do problema, entendido como uma homenagem a um sujeito branco, hoje concebido como parte de um projeto político genocida no passado e no presente. Homenagear o Borba Gato, dessa maneira, foi um caminho da patrimonialização ou monumentalização do racismo. Ana Flávia Magalhães Pinto (2020) e Carlos da Silva Jr. (2021) têm chamado atenção ao problema central, que foi ignorar como parte da memória patrimonial brasileira foi erguida como uma monumentalização/patrimonialização do racismo por meio da promoção de ancestrais e eventos flagrantemente racistas e/ou genocidas das populações não-brancas. No modelo da imaginária do Borba Gato (a estátua histórica), tem-se a perenização patrimonial que espetaculariza a glória antinegra e anti-indígena. A ação do Revolução Periférica desafia esse tempo perene do fundador em prol de um repensar na temporalidade na praça pública.
A partir de então, o historiador agente patrimonial precisa repensar a sua relação com o racismo patrimonializado e sua atuação nas políticas antirracistas para despatrimonializá-lo na praça pública, sem com isso desfazer-se da própria ideia de patrimônio. Trata-se de uma demanda por um modelo patrimonial que enfrente esse desafio e mantenha as políticas de preservação. Um aprendizado possível com o auto de fé do Borba Gato é que precisamos de outra orientação para dupla monumento/documento e para o patrimônio.
Outro recurso na tradução dos eventos das derrubadas entre os profissionais de história foi a reflexão sobre a temporalidade e o regime de historicidade. Não é de hoje que o culto patrimonial tem sido apontado como um dos maiores exemplos de como as sociedades ocidentalizadas espetacularizam o passado sem lhe conferir capacidade transformadora ( CANCLINI, 2016). Em alguma medida, a crítica especificada por François Hartog (2013) ao patrimônio permitiu a este caracterizar o regime de historicidade presentista, ou seja, uma experiência socialmente compartilhada de historicidade fixada no presente, incapaz de perspectivar o futuro ou o passado. Segundo Hartog (2013), o tempo da memória no presentismo é um tempo do agora que se interessa pela maneira atual como se lembra, e não pelo lembrado. Também segundo Henri-Pierre Jeudy (2005), o patrimônio teria se tornado uma máquina identitária que, nas contradições do modelo monumental do século XIX, tornou-se simulacro no qual cada grupo teria que ter o seu patrimônio. 33
Mais densa na análise, a abordagem construída por Valdei Araújo e Mateus Pereira sobre o atualismo das derrubadas apresenta importante contribuição à compreensão da experiência de produção da historicidade contemporânea. O atualismo é um regime não autêntico de temporalidade 34 e, diferente do presentismo, permite compreender que, na tentativa de participar do contemporâneo - o atual -, invoca-se o passado ou o futuro, fixando-se nas demandas atuais. Não se trata, portanto, de um presente em inchaço, como parece em Hartog (2013), mas de uma ampliação de referências ao passado e ao futuro em formas atualistas ( CARDOSO, 2022). Nesse sentido, recorrer aos monumentos, para destruí-los ou não, significa mostrar as novidades que o passado possui para preencher o presente, sem, contudo, jamais fazê-lo. Visto por esse ângulo, Black Lives Matter e Revolução Periférica atuam na cena política por meio do ver e ser visto no agora, estando imersos na necessidade de viver o tempo impróprio. Ainda assim, existiriam dois caminhos para as derrubadas:
É possível perceber, portanto, os dois tipos de atualização na questão da derrubada de estátuas: uma atualização atualista, daqueles que defendem a manutenção das estátuas como patrimônio congelado, e a atualização histórica, reivindicada pelos grupos que não só não se sentem representados por esse patrimônio, como sofrem com as consequências das violências cometidas no passado ao qual estão vinculados parte dessas estátuas. ( ARAÚJO, 2022, p. 16).
Para Araújo, alguns coletivos que atacaram os monumentos apresentaram uma importante diferença na atualização: participar do presente para rejeitar o passado indesejado, dilatando o presente independente de um horizonte de futuro definido. No rol dessa reflexão, Mayra Marques (2022, p. 181) aponta que, no atualismo, passado e futuro parecem não ter potencial transformador e “só são levados em consideração quando são atualizados e mobilizados de acordo com os propósitos de um presente autocentrado”. Segundo Araújo, Marques e Pereira (2021), as reações violentas contra estátuas podem parecer um movimento contra-atualista, mas reivindicam uma atualização do patrimônio dos monumentos e da história. Um dos motivos das agressões seria a limitada imaginária pública, que no presente é majoritariamente branca e heterossexual. Haveria, nesses coletivos, um desejo de inserir outro passado na praça pública, de participar por meio do ver e ser visto ao agir.
Contudo, será um (ou vários) caso (s) de atualização realmente? Nossa hipótese é que a questão é mais complexa quanto ao auto de fé do Borba Gato. A opção por tocar fogo no monumento da parte do coletivo Revolução Periférica implicou em decisões que integraram performances com diferentes temporalidades. O coletivo iniciou sua ação por perfis de redes sociais para ativar o Borba Gato, a qual, após o auto de fé, viralizou como uma rede pública de compartilhamentos. O ato transformou o monumento em uma bioimagem-em-queima, que foi lançada para longe, numa reprodutibilidade/compartilhamento em múltiplas plataformas digitais.
A imagem do Borba Gato mergulhou atualizada em compartilhamento no arquivo da web em seu imediatismo. Em sua repercussão, a prisão de Paulo (Galo) Roberto da Silva Lima ampliou a “onda”, agora por meio do corpo negro em abuso jurídico. A iconoclastia e a prisão geraram múltiplas emissões de imagens e vozes, na medida em que os compartilhamentos foram acompanhados de todo tipo de atos: canções, palavras de ordem, depoimentos, apoios, rechaços, vídeos etc. Isso significa que a cada migração da figura de Borba Gato acrescentou-se a potencialidade de novas histórias, tanto sobre o bandeirante, como sobre os próprios sujeitos, produzindo uma visualidade multivocal. A imagem virou ferramenta política e cada narrativa ampliou o recuo temporal e a projeção de futuro.
No que se refere ao recuo temporal, o fogo no Borba Gato incorporou uma tática coletiva constituída internacionalmente nos últimos anos. O auto de fé, ainda que diferente de um afogamento, decapitação ou arrasto, repete no Borba Gato o que ocorreu com Colston e outras intervenções recentes, conformando uma temporalidade pública comum/global mais duradoura, numa atitude que recorreu ao passado para participar dos projetos anticoloniais. Não por acaso, manifestantes, jornalistas, historiadores e/ou não historiadores, em jornais, redes sociais, artigos cotidianos ou especializados relacionaram entre si os eventos das várias derrubadas, distendendo sua duração na pandemia e para antes dela, dilatando o tempo local/global (histórico), conferindo-lhe espessura no arquivo da web, na medida em que se desarquivou imagens e eventos na Inglaterra, EUA, África do Sul, Bélgica, Chile, Portugal, Colômbia, entre outros países.
Contra o desaparecimento da imagem no arquivo-web surgiu a atitude de manter e repetir o evento efêmero em diálogo com uma memória, não apenas de derrubadas, mas de iniciativas ativas de resistência. Uma demonstração disso é o videoclipe Vamos para Palmares, de Dugueto Shabazz, cujo poema havia sido usado pelo Revolução Periférica ainda antes do auto de fé e depois foi retomado junto às imagens deste, mesclando memórias numa atitude historiadora ( MAUAD, 2016), recorrendo aos materiais disponíveis, a fim de impedir o desaparecimento das imagens no arquivo e organizar, a partir do mítico quilombo, um futuro.
A atitude do Revolução Periférica e de muitos dos usuários foi no sentido de construir um horizonte de expectativa. O racismo como experiência do presente demanda retomar o passado-presente da escravidão para re-existir no agora; por vezes, sobreviver precariamente, enfrentando a vulnerabilidade na praça pública com símbolos brancos. Nessa seara, a rejeição da memória e presença do monumento/documento é uma rejeição das temporalidades do ancestral bandeirante e uma invocação negra de passados e futuros outros, evitando homenagens (a genocidas) do presente que abram espaço às homenagens no futuro.
Rejeitar o que Pinto (2020) e Silva Jr. (2021) chamaram de patrimonialização do racismo na praça pública é mais do que ampliar o direito à memória na imaginária urbana. Trata-se de rejeitar essa imaginária, partindo de outra genealogia do passado - que neste caso se alimenta de imagens do rap, hip hop e da idealização de Palmares -, em prol de outro presente no futuro. Temos aqui um exemplo de invenção negra de historicização produzida a partir da memória afro-brasileira, investida, nesse caso, de práticas iconoclastas como meio estratégia na pandemia Covid-19.
Perceba-se que tratamos da condição antropológica de emergência do Borba Gato como imagem-monumento/documento a partir de certa performance afro-brasileira contra um dado passado que se projeta rumo outro futuro. Viralizado na sociedade, a queima do Borba Gato, em diálogo com os outros urban fallism, foi uma ferramenta política de historização pública descontínua e problemática, repleta de desejo de hoje-amanhã. O pathos da iconoclastia, menos do que redentor, fez parte de certa pragmática do tempo, e permite emergir um horizonte para despatrimonializar o racismo.
A historiografia precisa enfrentar o racismo cotidiano como um produtor de temporalidades diferenciadas. Não é de hoje que estudiosos negros defendem que o racismo produz tempos diversos ( PONTON III, 2022) . Em alguma medida, o mesmo poderia ser dito de outras fobias (misoginia, lgbtqia+fobia, etc.). O genocídio e o massacre são tanto processos históricos herdados como experienciados como enredos aprendidos, que definem pertencimentos coletivos pela exclusão ( APPADURAI, 1998). Por sua vez, o racismo insere sujeitos na ordem social pela expoliação de pessoas precarizadas no mundo do trabalho, no acesso aos serviços de saúde e educação, sujeitas a violências várias. Excluídos da temporalidade hegemônica da nação branca apresentada pelos monumentos, como o caso do Borba Gato, grupos sociais racializados definem a sua posição na narrativa do massacre pretérito e expoliação cotidiana. O racismo, nesse sentido, é um antigo sistema de temporalidade inautêntica por excelência, instaurado antes do e constituindo o regime moderno de história e os sucessivos presentismos/atualismos.
Contra o racismo, as tradições afro-atlânticas têm reagido produzindo tempos diversos e alternativos. Suas práticas sociais, frequentemente, recorrem aos tempos do corpo e do inconsciente, como chamou atenção Maria Beatriz do Nascimento (2007). Para ela, a narrativa negra construída a partir do inconsciente negro, impunha a renúncia às formas disciplinares modernas e a projeção de outros passados e outros futuros. Nessa remontagem do tempo, pode-se dizer que o novo passado que surge é do tipo que “terá sido” quando as pessoas desmontarem o ancestral indesejado do monumento, que impede o acesso efetivo à própria história. Exilado o Borba Gato, ergue-se Palmares, não apenas como passado possível, mas como abertura de futuro graças à desobstrução do presente.
A comunidade historiográfica é composta por sujeitos cuja ação mobiliza categorias nativas metodicamente instituídas para articular a experiência do presente, na qual também agem outros sujeitos cujas práticas produzem conhecimento sobre o passado ( MELLO, 2021). Como sugere Stephan Palmié (2013), há diversos tipos de profissionais que historicizam o passado, e os antropólogos e historiadores são apenas alguns deles, constituindo tradições culturais ( BARTH, 2000). Noções metódicas (anacronismo, documento, monumento, tempo, memória e patrimônio), ainda que presentes na arena pública, são categorias nativas sujeitas a serem volatizadas nas interações sociais.
A organização social brasileira implica na necessidade de pensar o passado escravocrata como algo que cerca o presente em distintas operações que passam, inclusive, pela afirmação da ordem patrimonial, da liberdade, da humanidade e da democracia ( WILDERSON III, 2021). Também implica em compreender os tempos singulares remontados por meio de referências informadas por tradições culturais afro-atlânticas, como o mito de Palmares, e que produzem, pela superação do documento/monumento e do racismo patrimonializado, futuros insurgentes com as historicidades culturalmente dominantes, gerando descontinuidades e curtos-circuitos com a historiografia.
As reflexões historiográficas precisam enfrentar essa descontinuidade. Sem compreender o racismo como constituição de historicidade excludente - se poderia dizer da exceção? - em diversas situações históricas, e, em especial, dialogar com as temporalidades intensas produzidas pelos sujeitos que enfrentam a exclusão, tais como o Black Lives Matter e o Revolução Periférica, a tradução desses fenômenos para a história disciplinar permanecerá apartada do desafio fundamental: como incorporar as formas públicas de repensar o passado sem hierarquizar as ações dos sujeitos sociais a partir das categorias nativas historiográficas? E como fazer isso promovendo uma negociação real, informada também pela comunidade historiográfica, e, realmente democrática, para a reconstituição da política de tempo da praça pública? Essas perguntas permanecem em aberto.
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