Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a realização de transferências fundo a fundo e avaliar se ela tem contribuído para a coordenação e cooperação federativa de políticas voltadas à segurança pública no Brasil. Para tanto, o trabalho foi dividido em três etapas: (i) levantamento dos valores do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), destinados aos estados e ao Distrito Federal, no período de 2000 a 2022, antes e depois da adoção das transferências fundo a fundo; (ii) realização de entrevistas semiestruturadas para levantar as percepções dos gestores responsáveis pela elaboração e coordenação do processo de descentralização e pelo acompanhamento da execução dos recursos descentralizados; e (iii) análise dos mecanismos de coordenação/cooperação previstos nos planos de aplicação elaborados pelos estados no período supracitado. Os achados da pesquisa confirmam resultados de estudos anteriores sobre o poder de indução das transferências fundo a fundo na cooperação e coordenação de políticas nacionais, também para a área de segurança pública. Verificou-se que a ampliação de recursos e a obrigatoriedade de seu compartilhamento com os estados favoreceram o alinhamento das políticas estaduais às diretrizes estabelecidas pela União, mas que ainda é incipiente a interação entre os órgãos, organizações e membros da sociedade em relação ao tema.
Palavras-chave: Federalismo, coordenação, cooperação, transferências fundo a fundo, Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
Resumen: El objetivo de este artículo es analizar si las transferencias de fondo a fondo han contribuido a la coordinación y cooperación federal de las políticas dirigidas a la seguridad pública en Brasil. Para ello, el trabajo se dividió en tres etapas: (i) Relevamiento de los montos del Fondo Nacional de Seguridad Pública asignados a los estados y al Distrito Federal en el período 2000-2022, antes y después de la adopción de las transferencias fondo a fondo; (ii) Realización de entrevistas semiestructuradas para conocer la percepción de los gerentes responsables de preparar y coordinar el proceso de descentralización y monitorear la ejecución de los recursos descentralizados; y (iii) Análisis de los mecanismos de coordinación/cooperación previstos en los planes de aplicación elaborados por los estados en el período. Los hallazgos de la investigación confirman los resultados de estudios previos sobre el poder de inducción de las transferencias fondo a fondo en la cooperación y coordinación de políticas nacionales también para el área de seguridad pública. Se verificó que la ampliación de los recursos y la obligatoriedad de compartirlos con los estados favorecieron el alineamiento de las políticas estatales con las directrices establecidas por el Gobierno federal, pero que la interacción entre organismos, organizaciones y miembros de la sociedad sobre el tema es aún incipiente.
Palabras clave: Federalismo, coordinación, cooperación, transferencias fondo a fondo, SUSP.
Abstract: This article aims to analyze whether fund-to-fund transfers have contributed to federal coordination and cooperation of policies aimed at public security in Brazil. To this end, the work was divided into three stages: (i) Survey of National Public Security Fund amounts allocated to the states and the Federal District in the period from 2000 to 2022, before and after the adoption of fund-to-fund transfers; (ii) Conducting semi-structured interviews to raise the perceptions of managers responsible for preparing and coordinating the decentralization process and monitoring the execution of decentralized resources; and (iii) Analysis of the Coordination/Cooperation mechanisms foreseen in the Application Plans prepared by the states in the period. The research findings confirm the results of previous studies on the induction power of fund-to-fund transfers in the cooperation and coordination of national policies for public security. It was verified that the expansion of resources and the obligatoriness of their sharing with the states favored the alignment of state policies with the guidelines established by the Union but that the interaction between bodies, organizations, and members of society on the subject is still incipient.
Keywords: Federalism, coordination, cooperation, fund-to-fund transfers, SUSP.
Artigo
Transferências fundo a fundo: coordenação e cooperação federativa na segurança pública do Brasil
Transferencias fondo a fondo: coordinación y cooperación federativa en seguridad pública en Brasil
Fund-to-fund transfers: federative coordination and cooperation in public security in Brazil
Recepção: 13 Dezembro 2022
Aprovação: 18 Abril 2023
Desde a sua origem, o modelo federativo de organização do Estado tem buscado mecanismos para fazer com que seus membros possam participar de forma coordenada das políticas nacionais (Abrucio, 2005; Abrucio, Franzese, & Sano, 2013; C. M. Carvalho & Afonso, 2018; Machado & Palotti, 2015). Em ambientes permeados por realidades diversas, nos quais autoridades centrais coexistem com autoridades locais, a necessidade de cooperação e coordenação nas relações federativas cresce em importância (C. M. Carvalho & Afonso, 2018; Ribeiro, Moreira, Ouverney, Pinto, & C. M. F. P. Silva, 2018; Segatto & Abrucio, 2016).
Sendo o federalismo cooperativo um sistema que busca pactuar acordos entre os entes por meio de arranjos de corte territorial (Grin & Abrucio, 2018), a implementação de políticas com amplitude nacional pressupõe a integração de ações nos diversos níveis de governo (V. A. Carvalho & M. R. F. Silva, 2011). Nesse contexto, destaca-se a importância da construção de acordos em que seja observada a autonomia dos entes federados, a fim de se promoverem as condições nas quais seja possível a cooperação, sem imposição de prioridades pelo governo central (Grin & Abrucio, 2018; Menicucci & Marques, 2016).
No Brasil, verificou-se a preferência por um arranjo de cooperação federativa estruturado, preferencialmente, por meio de políticas públicas (Grin & Abrucio, 2018). Conforme Lotta (2014), um sistema nacional de políticas costuma gerar maior convergência federativa. Entre os diferentes tipos de apoio, a modalidade de transferência fundo a fundo tem revelado um poder estruturante diferenciado sobre a agenda dos governos (Grin & Abrucio, 2018; Machado, 2011; Machado & Palotti, 2015; Simão & Orelhano, 2015).
Exemplos de estratégias nacionais voltadas às políticas de saúde, assistência social e educação, mostram que o governo federal tem conseguido instituir regras e padrões para os comportamentos dos demais entes federados nacionais (Abrucio, 2002; Araújo, Freitas, & Lins, 2020; Arretche, 1999; Franzese, 2010; Madeira & A. B. Rodrigues, 2015). Embora existam estudos sobre as transferências de recursos na modalidade fundo a fundo para outras políticas, o tema é relativamente recente sob o prisma da segurança pública e ainda são escassos os diagnósticos específicos sobre seus impactos.
O que se observa na área de segurança pública é que, a partir da década de 1990, o governo federal tem buscado reorganizar as relações intergovernamentais com a criação de programas de segurança pública, sem conseguir, no entanto, promover o efetivo alinhamento das políticas entre unidades federativas (Soares, 2007; Spaniol, Moraes, & C. R. G. Rodrigues, 2020). Na prática, as medidas implementadas pouco contribuíram para compatibilizar o funcionamento das forças policiais com as exigências do estado democrático de direito (Costa & Grossi, 2007; Madeira & A. B. Rodrigues, 2015; Spaniol et al., 2020).
Como medida de enfrentamento a esse problema, seguindo as estratégias adotadas em outras políticas sociais, a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018modernizou o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e estabeleceu a obrigatoriedade de transferência para os estados de, no mínimo, 50% de seus recursos, via modalidade fundo a fundo (Faria, 2020). Como contrapartida ao recebimento dos recursos, exigiu-se, dentre outros requisitos, o alinhamento das políticas estaduais à política nacional de segurança pública, de forma coordenada, com objetivos, metas e indicadores definidos (Faria, 2020).
A expectativa é de que a utilização da modalidade de transferência financeira fundo a fundo seja um mecanismo indutor de coordenação e cooperação federativa também para a área de segurança pública, na medida em que os estados, para recebê-la, devem cumprir as orientações prescritas pela política nacional de segurança pública. Assim, este estudo tem como objetivo geral analisar a realização de transferências fundo a fundo e avaliar se ela tem contribuído para a coordenação e cooperação federativa de políticas voltadas à segurança pública no Brasil.
Ao se discutir políticas públicas, é imprescindível tratar da forma como o Estado organiza-se política e administrativamente (Franzese & Abrucio, 2009). O estado federal surge em 1787, com a constituição americana, quando as colônias abdicam de sua soberania individual para a criação de uma nova esfera de governo: a União (Gadelha, 2018). Apesar de constituintes de uma mesma organização político-territorial, os estados federados mantêm parte de sua autonomia e estabelecem relações de interdependência com o governo federal, levando a legitimidade das decisões a ser compartilhada por mais de um nível de governo (Abrucio & Franzese, 2007; Segatto & Abrucio, 2016). Para Elazar (1987), a possibilidade de atuação simultânea, em uma estrutura institucional não centralizada, com difusão de poderes entre os diferentes centros, é uma das características que definem o federalismo (Franzese & Abrucio, 2009).
Conforme Elazar (1987), a ideia de federalismo como um pacto é baseada no reconhecimento mútuo, na tolerância e no respeito entre as partes, sem que precise haver, para tanto, a presença de centros de poder superiores ou inferiores, mas apenas arenas de decisão política com maior ou menor dimensão (Franzese, 2010). Para o autor, o objetivo do pacto não é apenas assegurar a integridade dos componentes, mas estabelecer um conjunto de regras que garantam autonomia e gestão compartilhada. Conforme Franzese (2010), as relações intergovernamentais estão em fluxo constante, renovando parcerias entre os diferentes centros de poder, sem perder seu status de unidade independente. Embora exista algum grau de verticalidade e assimetria nas federações, seu funcionamento envolve, em certa medida, relações contratualizadas e negociadas entre os níveis de governo (Abrucio, Franzese, & Sano, 2013).
Representada pela estrutura de uma matriz, a teoria do federalismo como pacto fornece elementos para compreender a não centralização no exercício efetivo do governo (Franzese, 2010). Dessa forma, evidencia não apenas a existência de arenas com abrangências diferenciadas, mas, também, a premissa de que deve haver interação entre essas diferentes células para que o sistema funcione (Franzese, 2010).
A evolução conceitual do federalismo cooperativo mostrou que a cooperação entre entes federados não significava a descentralização de tarefas e responsabilidades entre estes, mas, sim, a não centralização, afirmada por meio de amplos poderes legislativos e fiscais, partilhados por entes que realizam a manutenção do maior controle possível sobre os programas e políticas em nível local (Gondar, 2011). Em um processo não necessariamente harmônico, cada ente federativo utiliza seus recursos em busca dos melhores resultados para si.
A multiplicidade de centros decisórios aumenta a complexidade das políticas públicas que dependem da convergência de escolhas governamentais em direção à realização de objetivos nacionais (Soares & Machado, 2018). Assim, a coordenação federativa torna-se requisito para o desenvolvimento das políticas públicas, devido à interdependência entre as ações desenvolvidas por entes pertencentes aos diferentes níveis de governo (Abrucio, 2005). Nesse sentido, o conceito de cooperação está relacionado a parcerias e arranjos integrados nos planos territorial e das políticas públicas (Abrucio, Franzese & Sano, 2013), enquanto a coordenação pode ser definida como o processo de criação ou utilização de regras de decisão pelos quais diferentes atores ocupam-se, coletivamente, de um mesmo campo (Lotta, 2014).
Conforme Soares e Machado (2018), o federalismo brasileiro passou por fases que se alternaram entre democracia e autoritarismo, implicando maior ou menor nível de descentralização e diferentes níveis de autonomia entre seus entes. Diante desse contexto, a Constituição Federal de 1988 ressalta a importância da União conferindo-lhe um papel de coordenação e cooperação com os entes, para a realização dos projetos de fortalecimento político, social e material (Gondar, 2011; Machado & Palotti, 2015; Segatto & Abrucio, 2016).
Registre-se que, na área de segurança pública, o federalismo descentralizado implantado no Brasil a partir da Proclamação da República implicou a criação de um sistema policial altamente competitivo (Costa & Grossi, 2007). Nos momentos de maior autonomia estadual, não se verificaram esforços significativos de cooperação intergovernamental na área; como resultado, as políticas de segurança pública no Brasil têm sido, em regra, pensadas e implementadas de forma fragmentada e pouco planejadas (Ballesteros, 2014; Costa & Grossi, 2007).
A Constituição Federal de 1988 resgatou o conceito inserido na Constituição Federal de 1937 e definiu as instituições responsáveis por prover a segurança pública (Lima & Mingardi, 2016). Contudo, as reformas constitucionais dos anos 1980 trouxeram poucos avanços para a gestão dessa área (Madeira & A. B. Rodrigues, 2015). A manutenção das estruturas organizacionais das polícias e a falta de regulamentação e organização das atividades produziram um ambiente descoordenado entre os diferentes níveis de governo (Instituto de Economia Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBS], 2019).
No Brasil, em regra, as políticas de segurança pública têm sido apenas paliativas em situações de crise. A literatura mostra que as estratégias nacionais para a segurança pública, criadas com a redemocratização, não foram capazes de alterar a política de intervenções pontuais, sem alinhamento estratégico e sem objetivos e metas definidos (V. A. Carvalho & M. R. F. Silva, 2011; Faria, 2020). Nos últimos 30 anos, vários planos e programas nacionais de segurança pública foram apresentados; todos eles procuraram implantar políticas de segurança pública que combinassem as três esferas de atuação governamentais, visando prevenir a violência e reduzir as incidências criminais, porém, acabaram vigorando apenas durante um ciclo político, sendo abandonadas nas gestões seguintes (Spaniol et al., 2020).
Justamente para romper esses ciclos de descontinuidade, em 2018 foi criado o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSP), o primeiro, após o período de redemocratização, a ter sua duração estipulada - dez anos -, prevendo avaliações anuais a partir do segundo ano de vigência (Spaniol, et al., 2020). Com propostas de curto e médio prazos, o plano ressalta a necessidade de atuação coordenada e integrada dos órgãos de segurança pública, com o necessário envolvimento do governo federal (Spaniol, et al., 2020).
Também em 2018, a Lei nº 13.675, de 12 de dezembro de 2018, instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e propôs que a União fosse a instância responsável pela política nacional de segurança pública, bem como pela articulação, coordenação e pelo acompanhamento das ações necessárias a sua implementação (Soares, 2022).
A divisão de autoridade entre níveis de governo não permite imposição, mas requer indução à base de condições vinculadas, ainda que os interesses do governo federal e dos demais entes possam distinguir-se (Grin & Abrucio, 2017; Machado & Palotti, 2015). O sucesso de uma estratégia de indução exige que o governo central conte com recursos financeiros, políticos e administrativos para a adesão dos demais níveis de governo (Arretche, 1999; V. A. Carvalho & M. R. F. Silva, 2011).
Evidências endossam a proposição de que são as políticas e os programas sociais formulados pelo governo central e implementados pelos entes federados locais, sob a sua regulação (Arretche, 2009), que organizam e dão consistência às ações governamentais (Machado & Palloti, 2015). Condicionar e garantir a efetividade das transferências e a adesão dos governos locais à agenda do governo federal revelaram-se uma estratégia de forte poder de indução sobre as escolhas dos primeiros (Lotta & Favaretto, 2016; Soares & Machado, 2018). Nesse contexto, as transferências financeiras condicionadas apresentam-se como um instrumento estratégico de indução, na medida em que favorecem o alinhamento das prioridades dos entes federados locais àquelas eleitas pelo governo federal (Machado & Palloti, 2015). Tais transferências assumem as mais variadas formas (Gomes, 2009), sendo as transferências fundo a fundo o principal mecanismo utilizado (Cunha, Lins, & Soares, 2020; Machado & Palloti, 2015).
Para analisar a realização de transferências fundo a fundo e avaliar se ela tem contribuído para a coordenação e cooperação federativa de políticas voltadas à segurança pública no Brasil, este trabalho foi dividido em três etapas: (i) levantamento dos valores do FNSP destinados aos estados e ao Distrito Federal no período de 2000 a 2022, antes e depois da adoção das transferências fundo a fundo; (ii) realização de entrevistas semiestruturadas para levantar as percepções dos gestores responsáveis pela elaboração e coordenação do processo de descentralização e pelo acompanhamento da execução dos recursos descentralizados; e (iii) análise dos mecanismos de coordenação e/ou cooperação previstos nos planos de aplicação elaborados pelos estados no período citado acima.
Conforme resumido no Quadro 1, para a realização das entrevistas foram selecionados gestores da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENASP/MJSP), que tivessem, pela natureza do cargo ocupado, participação direta e poder de decisão nas atividades de planejamento, operacionalização e monitoramento da política de descentralização de recursos do FNSP. Para análise, foi utilizada metodologia elaborada por Machado (2014) em sua pesquisa acerca dos padrões de indução de políticas sociais por meio de transferências intergovernamentais condicionadas1.

Até o exercício de 2018, o FNSP não contava com uma fonte própria de recursos. Com a publicação da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que atribuiu ao FNSP participação no percentual de arrecadação das loterias federais, houve incremento no montante dos recursos a ele repassado (Figura 1).

O acesso aos recursos do FNSP exigia dos estados e do Distrito Federal a elaboração de planos estaduais de segurança pública. No entanto, conforme Soares (2022), o baixo volume de recursos e a falta de critérios de distribuição que garantissem a realização de repasses contínuos geraram uma pequena produção de planos, confirmando a falta de atratividade do modelo proposto. Ao analisar o histórico de descentralizações evidencia-se que, antes das transferências fundo a fundo não havia uma regularidade de descentralização dos recursos. Primeiramente, em nível nacional, nem todos os estados eram contemplados anualmente com os recursos. Em segundo lugar, não havia garantia de que um estado que recebesse recursos em determinado ano viesse a ser contemplado novamente no exercício seguinte. Essa realidade dificultava a realização de um planejamento contínuo pelos estados e diminuía o poder indutor do governo federal (Soares, 2022).
A partir de 2018, com o acréscimo dos recursos do FNSP e com a destinação obrigatória de 50% dos recursos (provenientes das loterias federais) aos estados e ao Distrito Federal, sem a necessidade de formalização de convênios ou contratos de repasse, as transferências fundo a fundo tornaram-se um atrativo para que os estados elaborassem seus planos de aplicação e planos estaduais de segurança pública (Soares, 2022).

Como se pode observar na Figura 2, a partir de 2019 o padrão de descentralizações e empenhos de recursos do FNSP pelos estados foi alterado. Isso permitiu que todos passassem a ser contemplados com os recursos do FNSP. Ao analisar os mapas a partir de 2019, além de um aporte mais substancial de recursos, observam-se outros dois fatos: a distribuição nacional dos recursos e a continuidade dos repasses. Essas informações indicam que, a partir das transferências fundo a fundo, os estados passaram a ter uma previsibilidade de recebimento de recursos, o que lhes proporciona a capacidade de realizar planejamentos em longo prazo. Tal resultado ratifica o estudo de Soares (2022), mostrando como a previsibilidade de recebimento dos recursos aumenta a atratividade desse modelo de transferências e, consequentemente, o poder indutor da política, na medida em que favorece o alinhamento das prioridades dos entes federados locais àquelas eleitas pelo governo federal (Machado & Palloti, 2015).
Com a finalidade de verificar outros efeitos das transferências fundo a fundo sobre o processo de coordenação e cooperação federativa em segurança pública, foi utilizada pesquisa realizada por Soares (2022), na qual o autor buscou mensurar a aderência dos planos estaduais ao PNSP. Para atingir seu objetivo, o estudo de Soares (2022) analisou 33 categorias, conforme demonstrado na Tabela 1.
O estudo de Soares (2022) utilizou como base 20 planos estaduais de segurança pública. A aderência foi medida de acordo com a presença das categorias na elaboração dos planos estaduais. Como se pode observar na Tabela 1, Soares (2022) verificou que houve apenas 56,35% de aderência dos planos estaduais ao PNSP.
Soares (2022) classificou o índice de aderência constatado em sua pesquisa como “aderência não satisfatória”. Todavia observa-se na pesquisa outra informação relevante para o presente estudo: nos planos analisados pelo autor, apenas duas categorias apresentaram 100% de aderência ao PNSP - valorização dos profissionais de segurança pública e redução de homicídios. Estas duas categorias guardam relação direta com os eixos que foram priorizados como diretrizes para a elaboração dos planos de aplicação e que são requisitos para o recebimento dos recursos do FNSP pelos estados.3
Outro achado importante sobre a contribuição das transferências fundo a fundo para a coordenação e cooperação federativa em segurança pública, constatado por Soares (2022), tem relação com a edição da Portaria nº 631, de 6 de julho de 2019do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que estabeleceu os critérios para definir o percentual de recursos do FNSP a ser disponibilizado para cada estado. Foram considerados aspectos geográficos, populacionais, socioeconômicos, índices de criminalidade e violência, proteção de fronteiras, fortalecimento da Rede Integrada de Banco de Perfis Genéticos (RIBPG) e a criação de unidades especializadas das polícias civis específicas para o combate à corrupção.
Como exemplo, até o exercício de 2019, ano de criação dos critérios de rateio, apenas o estado do Maranhão possuía unidades especializadas da polícia civil para o combate à corrupção. No exercício de 2019, 15 estados criaram 23 unidades especializadas; e no exercício de 2020, 11 estados criaram 20 unidades especializadas - o que representa 100% dos estados com unidades especializadas de combate à corrupção (Soares, 2022).
As entrevistas realizadas com os gestores da SENASP/MJSP foram analisadas e enquadradas, de acordo com suas características, como contrato de execução (prevalência pelo governo federal) ou gestão compartilhada (cooperação entre União e estados), conforme metodologia elaborada por Machado (2014).
Os marcadores selecionados foram agrupados em três categorias gerais: (i) poder de agenda, (ii) controle sobre o comportamento estadual e (iii) interação organizacional (Tabela 2).
Conforme se pode observar na Tabela 2, os marcadores foram pontuados de acordo com os seguintes parâmetros:

Questionados sobre o processo de elaboração da política de transferências fundo a fundo, os entrevistados foram unânimes em mencionar que a criação ocorreu com esforços da União, sem a participação de estados e municípios. Na fala dos entrevistados, não se percebe que tenha havido qualquer iniciativa por parte da União para contemplar opiniões dos demais entes, seja no desenho e na elaboração da política ou na fase inicial de implantação. Sob esse aspecto, verifica-se uma tendência centralizadora do governo central, que estabeleceu uma política com amplitude nacional sem contribuições locais.
Acerca da cooperação entre a União e os estados na formulação e implantação da política, os gestores afirmaram que o planejamento inicial teve uma atuação mais centralizada na União, a qual definiu, em lei, um dos eixos que deveriam ser priorizados com o aporte de recursos do FNSP. No entanto, tem-se oportunizado ambientes de discussão com os estados a fim de se aprimorar a política vigente, corroborando a tendência mais cooperativa e menos centralizadora pela União nas tomadas de decisão.
Sobre a participação dos estados no estabelecimento de metas a serem atingidas por ocasião do recebimento de recursos do FNSP, o entrevistado 1 esclarece que, embora a União estabeleça os eixos a serem contemplados pela política, estes definem apenas uma linha de atuação, à qual os estados devem se ajustar para apresentar seus planos de aplicação. A definição de metas fica a cargo dos estados. Percebe-se a atuação da União como coordenadora ao definir, por meio dos eixos, as prioridades para a segurança pública nacional, ao mesmo tempo que se observa o viés cooperativo na operacionalização da política, uma vez que dá aos estados liberdade de definir sua estratégia de atuação por meio dos planos de aplicação.
Em relação a concepção e desenho da política, verificou-se um forte viés centralizador pela União, mesmo que tenham sido apontadas evidências da participação dos estados no aprimoramento da política. Em linhas gerais, tal tarefa caracterizou-se como unilateral por parte do governo federal. Já em relação às metas, percebe-se que as definições ficaram a cargo dos estados, segundo as diretrizes pautadas pela União, caracterizando a gestão compartilhada. Portanto, o poder de agenda possui uma inclinação para o contrato de gestão, com o índice de 0,33, conforme Quadro 2.

Sobre a definição e controle dos fluxos financeiros, os entrevistados esclareceram que o volume total de recursos do FNSP decorre de previsão legal, a qual estabeleceu como fonte de recursos a participação no total dos valores arrecadados com as loterias, bem como a definição em portaria ministerial dos percentuais relativos à previsão dos recursos disponibilizados aos estados. No entanto, o entrevistado 3 menciona a participação dos estados no processo de aprimoramento da política no momento de rediscussão dos critérios de rateio. Conforme o entrevistado, anualmente são revistos os indicadores com a finalidade de aperfeiçoamento da política. A União vale-se da contribuição dos estados para adequar os percentuais de repasse à realidade e ao desempenho da segurança pública de cada um deles. Dessa forma, ao viabilizar a participação dos estados no aprimoramento da política, verifica-se um caráter mais cooperativo entre União e estados.
Questionados quanto a exigência de alinhamento dos planos de aplicação aos eixos definidos pela União limitar a autonomia estadual na elaboração de suas ações de segurança pública, os entrevistados esclareceram que os eixos são apenas uma diretriz e que cada estado, de acordo com o seu diagnóstico, tem o poder de decidir sua atuação. Os eixos informam como a União vai priorizar a segurança pública, mas conferem autonomia para que o ente escolha quais ações encaixam-se melhor em sua realidade.
Sobre monitoramento, avaliação e controle, segundo os entrevistados, a União verifica a aderência dos planos estaduais aos eixos estabelecidos. Esse procedimento materializa a indução pela União da participação dos estados de forma coordenada, com os objetivos estabelecidos pela política nacional. O controle fica por conta tanto de verificações em nível estadual, com destaque para a participação dos conselhos estaduais de segurança pública, conforme apontado pelo entrevistado 2, como da produção de relatórios de monitoramento, apresentados semestral e anualmente pelos estados. No curso do exercício financeiro podem ser tomadas medidas corretivas tanto pelos estados quanto pela União, até mesmo com o bloqueio de créditos.
O monitoramento e a avaliação dos resultados também são feitos de forma cooperada, com a apresentação de relatórios pelos estados e avaliação pela União. Sob o aspecto de controle e auditoria por meio da aplicação de restrições, em caso de desvios de finalidade observou-se uma atuação maior da União. Realizadas as análises, verificou-se uma aproximação maior com a gestão compartilhada comparativamente ao atributo controle de comportamento estatal, com o índice de 0,66, conforme Quadro 3.

Sobre a cooperação em nível estadual, não se verifica a obrigatoriedade de que todas as instituições de segurança pública estaduais participem de forma conjunta da elaboração dos planos de aplicação; embora perceba-se essa interação em determinados estados, não se pode afirmar que exista uma cultura de cooperação entre as instituições difundida em nível nacional.
Sobre o desenvolvimento de políticas públicas, o entrevistado 1 observa que estão sendo desenhados programas que funcionam como diretrizes para que os estados operacionalizem as ações de forma coordenada e sistêmica por meio da execução dos recursos do fundo nacional. Para o entrevistado 2, a União tem aprimorado a coleta de dados sobre a segurança pública dos estados, a fim de que as diretrizes nacionais possam alinhar-se ao encontro das demandas locais. O entrevistado 3 cita o exemplo do eixo valorização dos profissionais de segurança pública, para explicar que a transferências de recursos do fundo é uma importante vertente no planejamento, mas a maturidade e o aperfeiçoamento da política conjugam uma série de elementos e fatores:
[...] (o fundo a fundo) fortalece e dá condições ao aprimoramento da política, mas ele precisa ser complementado a partir de diagnósticos, a partir de uma rede, a partir de outros elementos de monitoramento que façam com que o recurso seja permanentemente repriorizado.
Observa-se, nas falas dos entrevistados, que a modalidade de transferência fundo a fundo possui a capacidade de alterar comportamentos e dinâmicas de planejamento, com a finalidade de contribuir para a coordenação e aprimoramento das políticas de segurança pública.
O entrevistado 1 afirma que houve um aumento na interação entre a SENASP e órgãos de segurança pública estaduais para o desenvolvimento de políticas públicas, após o início das transferências fundo a fundo:
Hoje a gente tem uma rede colaborativa. Cada estado tem um ou vários pontos focais, e hoje funciona muito bem. A gente tem uma interação grande. Realizamos periodicamente eventos. Por meio dessa rede a gente apoia quando o estado tem dificuldade, tem alguma dúvida, a gente apoia de forma remota ou às vezes de forma presencial.
O entrevistado 2 menciona que a sistemática possibilitou o aumento de diálogo entre as instituições proporcionando uma maior integração.
Questionado sobre a contribuição do método de descentralização dos recursos do FNSP para a integração e cooperação das unidades da federação, o entrevistado 1 responde afirmativamente, argumentando que tanto entre a SENASP e os órgãos estaduais, como entre os estados, formou-se uma rede colaborativa de troca de informações e boas práticas. Já o entrevistado 2 relata que se trata de um processo de amadurecimento, mas que se percebe uma integração entre as forças para utilização do recurso. O entrevistado 3 relembra que, historicamente, os recursos para a segurança pública no plano estadual acabam sendo bastante absorvidos pelas despesas de custeio e de pessoal. Para ele, a partir do momento em que se estabeleceu uma política nacional, os recursos transferidos fundo a fundo propiciaram a oportunidade da realização de investimentos de forma mais estruturante.
Sobre a necessidade de interação entre União e os estados, indagou-se se o governo federal depende da capacidade operacional dos estados para implementar a política nacional de segurança pública. Todos os entrevistados ressaltaram a importância de tal interação e afirmaram que a efetivação da política só é possível com a capacidade operacional dos estados. As respostas reforçam os apontamentos de Agranoff (1990 como citado por Franzese, 2010), que afirma que, embora a União detenha o poder para regulamentar e utilize as transferências de recursos vinculadas à implementação de programas federais, os governos locais possuem, nesse jogo federativo, o poder de implementação, diante do qual o governo central não detém capacidade de total controle.
Na opinião dos gestores, as transferências fundo a fundo contribuem para uma maior coordenação e cooperação federativa em segurança pública. Portanto, conforme análise realizada (Quadro 4), o atributo interação organizacional é caracterizado por uma gestão compartilhada, com o índice de 1,00.

O somatório dos índices de cada categoria individualizada totalizou 2 pontos de um total de 3 pontos possíveis. A média final das categorias resultou no índice de 0,66, caracterizando a política de transferências fundo a fundo como uma política de gestão compartilhada.
Plano de aplicação é o instrumento por meio do qual o estado apresenta seu planejamento para a utilização dos recursos do FNSP. Nele constam o diagnóstico da segurança pública local, a proposta de ações a serem realizadas pelo estado, os objetivos, os indicadores e as metas.
Como estratégia de coordenação, a Portaria MJSP nº 480, de 9 de novembro de 2021estabeleceu que cada projeto, atividade ou ação, indicados no plano de aplicação, deve estar alinhado com as ações, estratégias e metas do PNSP. Também devem ser compatíveis com o plano estadual ou distrital de segurança pública e defesa social e com o programa ou eixo de financiamento disponibilizado pelo MJSP. O alinhamento é verificado pelas equipes do MJSP, cuja aprovação é condição essencial para que o estado receba os recursos do FNSP.
Neste estudo foram utilizados os planos de aplicação vinculados ao Eixo de Redução da Criminalidade Violenta4, referentes ao exercício de 2019. Os 27 planos de aplicação foram analisados com o intuito de identificar elementos que confirmassem a autonomia dos estados na realização do seu planejamento, embora seguissem as diretrizes estabelecidas pelo governo federal.
Ressaltando a flexibilidade na utilização dos recursos, todos os estados apresentaram planos de aquisição de acordo com suas necessidades locais. Destaque-se que, das 27 unidades federativas, 20 priorizaram aquisições voltadas a inovações tecnológicas. Entre as justificativas, observam-se a ênfase no aprimoramento da comunicação e compartilhamento de informações entre as instituições. A realização de obras e intervenções prediais, em sua maioria, estavam relacionadas ao aperfeiçoamento de centros de comando e controle. Dez unidades federativas priorizaram, em seu planejamento, ações de capacitação que variaram entre pós-graduações, especializações em tecnologia, gestão e capacitações operacionais. Já as tradicionais aquisições de viaturas, equipamentos de proteção individual (EPIs) e armamento foram identificadas no planejamento de 15 estados.
A diversidade de aquisições, metas e indicadores apresentados nos planos corrobora o resultado obtido nas entrevistas com os gestores, o de que a política de descentralização fundo a fundo apresenta um viés mais cooperativo do que impositivo por parte do governo federal. A observância da autonomia dos entes federados dialoga com a literatura que afirma que o pacto federativo não se constitui pela imposição das prioridades definidas pelo governo central e sim por mecanismos de indução que sejam benéficos em nível local (Grin & Abrucio, 2018). A liberdade que os estados e o Distrito Federal tiveram ao apresentar indicadores e metas está alinhada com este entendimento.
No mesmo sentido, os resultados e impactos esperados guardam correspondência com as diretrizes estabelecidas pelo governo federal. Investimentos na melhoria da capacidade tecnológica, ampliação de rede de comunicação, compartilhamento de informações, qualidade das ações operacionais e de gestão reforçam a coordenação exercida pelo governo central. Assim, a análise dos planos de aplicação confirma a presença tanto de elementos de coordenação, como de cooperação em sua dinâmica.
A presente pesquisa teve por objetivo verificar a contribuição das transferências fundo a fundo para a coordenação e cooperação federativa de políticas voltadas à segurança pública no Brasil.
Com base nos dados analisados, pode-se inferir que a ampliação de recursos do FNSP, a elaboração de planos estaduais e os planos de aplicação pelos estados, bem como a previsibilidade de transferências, são elementos que podem contribuir para uma maior cooperação federativa voltada à segurança pública nacional.
A análise dos planos de aplicação também corroborou o resultado obtido nas entrevistas com os gestores: o de que a política de descentralização fundo a fundo apresenta um viés mais cooperativo do que de imposição pelo governo federal. A observância da autonomia dos entes federados dialoga com a literatura que afirma que o pacto federativo não se constitui pela imposição das prioridades definidas pelo governo central e sim por mecanismos de indução que sejam benéficos em nível local (Grin & Abrucio, 2018).
Como resultado, a pesquisa confirmou o que outros estudos já haviam verificado sobre o poder de indução das transferências fundo a fundo na cooperação e coordenação de políticas nacionais. A ampliação de recursos e a obrigatoriedade de seu compartilhamento com os estados têm favorecido o alinhamento das políticas estaduais às diretrizes estabelecidas pela União. A distribuição dos recursos de forma regular e baseada em critérios, o alinhamento dos planos estaduais e dos planos de aplicação às diretrizes nacionais e a percepção dos gestores confirmam a força indutora desse mecanismo de transferência.






