Resumo: Elaborado a partir de uma pesquisa de cariz etnográfico, o artigo discute conexões existentes entre violências ocorridas nas relações escolares, produção social da diferença étnico-racial e racismo estrutural. A pesquisa deu-se em uma escola pública do interior do estado de Minas Gerais, Brasil, e teve como participantes uma turma de estudantes da última série do ensino fundamental II. A imersão em campo teve uma duração de dois semestres letivos, envolvendo observação, conversas informais, registros em cadernos de campo, além da aplicação de questionários e de uma técnica de interpretação de desenhos. O percurso investigativo confirmou a presença de marcadores sociais de identidade/ diferença nas bases das principais situações de violência ocorridas no âmbito escolar, e revelou que a violência tende a ser naturalizada quando tais marcadores são étnico-raciais. Outros achados relevantes foram a estigmatização e a negação do corpo negro, compondo um quadro de normatização da branquitude no espaço escolar.
Palavras-chave: Violência escolar, racismo estrutural, educação básica, etnografia.
Abstract: Based on a survey of ethnographic orientation, this paper discusses the connections that exist between violence in school relationships, the social production of ethnic-racial difference, and structural racism. The research was done at a public school, and the participants were a class of students in their last year of middle school. Data was collected over two semesters of the school year, through observation, informal conversations, field notes, and the application of a questionnaire and technique used to interpret drawings. The investigative approach confirmed that there were social markers of identity and differentiated the basis of the main situations of school violence and revealed that violence tends to be naturalized when these markers are ethnic-racial. Other relevant findings were stigmatization and denial of the black body, composing a condition of normatization of whiteness.
Keywords: School violence, structural racism, basic education, ethnography.
Resumen: Elaborado a partir de una investigación de carácter etnográfico, el artículo analiza las conexiones existentes entre la violencia en las relaciones escolares, la producción social de la diferencia étnico-racial y el racismo estructural. La investigación se llevó a cabo en una escuela pública del interior del estado de Minas Gerais, Brasil, y tuvo como participantes a un grupo de estudiantes del último grado de la escuela primaria II. La inmersión en el campo tuvo una duración de dos semestres académicos, involucrando observación, conversaciones informales, registros en cuadernos de campo, además de la aplicación de cuestionarios y de una técnica de interpretación de dibujos. La trayectoria investigativa confirmó la presencia de marcadores sociales de identidad / diferencia en las bases de las principales situaciones de violencia ocurridas en la escuela, y reveló que la violencia tiende a naturalizarse cuando dichos marcadores son étnico-raciales. Otros hallazgos relevantes fueron la estigmatización y negación del cuerpo negro, componiendo un marco de normalización de la blanquitud en el espacio escolar.
Palabras clave: Violencia escolar, racismo estructural, educación básica, etnografía.
Investigación
À flor da pele: quando uma etnografia da violência escolar encontra o racismo estrutural brasileiro
“À flor da pele”: when an ethnography of the school violence finds the brazilian structural racism
A la flor de la piel: cuando una etnografía de la violencia escolar encuentra el racismo estructural brasileño
Recepção: 06 Abril 2021
Revised document received: 21 Junho 2021
Aprovação: 21 Junho 2021
Nas últimas quatro décadas, o estudo da violência alcançou muitos desdobramentos. Antes identificada apenas em sua forma dura ou concreta, no emprego deliberado da força física contra algo ou alguém, com a contribuição de autores como Bourdieu (1986, 2003) e, em outra perspectiva, Hirigoyen (1998, 2006), a violência passou a ser reconhecida também em expressões sutis, cujas forças envolvidas não são físicas, mas morais e/ou psicológicas.
As atualizações e flutuações do conceito também se aplicam, evidentemente, ao estudo da violência que se manifesta no âmbito escolar. Até meados do século XX, a questão tendia a ser reduzida a transtornos causados à escola por um ou mais estudantes rotulados como “problemáticos”. As limitações dessa abordagem, ainda muito ancorada na polarização agressor/vítima e em aventadas psicopatologias do primeiro, estavam em certo alheamento aos contextos socioeconômico e cultural. Faltava-lhe a compreensão de que a violência não é um evento, ainda que um evento específico possa torná-la visível, mas um processo - a ser pensado levando-se em conta, também, dinâmicas e condições estruturais da sociedade em que se produz.
Essa é a perspectiva adotada no presente artigo, que discute resultados obtidos por uma pesquisa de cariz etnográfico, desenvolvida em uma escola pública brasileira1.
A pesquisa, realizada com financiamento do programa federal Observatório da Educação, teve como objetivo mais amplo discutir as relações existentes entre manifestações de violência na escola e práticas de patologização da diferença sociocultural. No decorrer do processo, os dados chamaram à atenção para diversas questões, entre elas, a naturalização de insultos raciais no cotidiano escolar. Assim, no presente artigo nos propomos a discutir parte dos dados, em que se observam conexões entre violências ocorridas nas relações escolares, produção social da diferença étnico-racial e racismo estrutural no Brasil.
A imersão em campo teve uma duração de dois semestres letivos, envolvendo observações semanais e conversas registradas em cadernos de campo, além de questionários e desenhos produzidos pelos estudantes. O material proveniente dos questionários foi sistematizado a partir de categorias elaboradas com base em registros de observação. Quanto aos desenhos, recorremos novamente à antropologia, dessa vez enquanto tradicional usuária da interpretação de imagens feitas pelos sujeitos.
A antropologia passou a fazer uso de recursos iconográficos produzidos pelos participantes de suas pesquisas ao final da década de 1930, o que se deu por influência do trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson que, ao longo de três anos, analisaram aproximadamente 1200 desenhos produzidos pelos membros de uma comunidade balinesa. Desde então, outros pesquisadores da área passaram a incorporar os desenhos aos seus instrumentos, desenvolvendo-se, assim, variadas abordagens que trazem em comum “o entendimento de que a produção iconográfica dos sujeitos pode ser lida como uma estrutura narrativa tecida por imagens” (Abreu-Bernardes et al., 2015, p. 120).
As matrizes da técnica adotada podem ser encontradas em trabalhos desenvolvidos a partir da antropóloga brasileira Neusa Gusmão (Gusmão, 1999; Gusmão e Márques, 1996). Primeiro, buscamos contemplar os desenhos em sua totalidade, considerando cenário, personagens e roteiro sugerido. No momento seguinte, realizamos abordagens em pequenos grupos, ocasião em que reconduzimos os desenhos a seus autores e conversamos com eles a respeito.
O desenvolvimento do artigo se dá ao longo de três seções. Na primeira, realizamos uma breve revisão da literatura sobre violências entre pares na escola, com vistas ao estabelecimento dos marcos conceituais. Na segunda, em que buscamos constituir o campo da investigação, apresentamos o locus e os participantes, refletindo sobre violências que envolvem a produção social da identidade/diferença na escola. Na terceira, abordamos as percepções dos estudantes acerca de situações a que se convencionou chamar de bullying e de zoação, refletindo sobre a prática de tomar como natural e imutável aquilo que é histórico e, portanto, contingente.
Muito presente nos meios acadêmicos e midiáticos, a preocupação com eventos disruptivos ocorridos na escola é antiga conhecida das ciências sociais. Em obra póstuma, publicada em 1922, o sociólogo francês Émile Durkheim já postulava a existência de uma “criminologia da criança”, pela qual os delitos escolares pudessem ser medidos e estudados (Durkheim, 1977).
Defensor da ideia de que o principal compromisso da educação escolar deveria ser com a formação moral do indivíduo, assim entendida a sua preparação para integrar-se à ordem estabelecida, Durkheim esperava que esse estudo criminológico contribuísse para a descoberta de “quais são os delitos escolares mais frequentes; como a sua proporção varia dentro do território ou de acordo com os países; como isso relaciona-se com a idade da criança, suas condições familiares etc.2” (Durkheim, 1977, p. 84).
Fica claro que a preocupação do autor com aquilo que foi por ele tratado como um “delito escolar” se inicia da associação, que faz ao longo do conjunto da sua de obra, entre espírito de disciplina, gosto pela autoridade e moralidade. Durkheim acreditava que o ser individual deveria ser recalcado ante a coercitividade da consciência coletiva, sendo o papel da escola contribuir para a constituição do ser social, apto a agir em total obediência às normas postas (Durkheim, 1977).
Decorrido quase um século, a associação entre violência e vida escolar pode nos levar novamente ao encontro de sociólogos franceses. Diversos foram os autores que se lançaram ao estudo do tema, destacando-se, entre eles, o pesquisador Bernard Charlot, que, entre outras contribuições ao debate, deu início às elaborações conceituais pelas quais se distinguem violências na escola, da escola e contra a escola.
Analisando a produção da sociologia francesa da segunda metade do século passado, o autor também discute a distinção entre violência, transgressão e incivilidade, apontando avanços que seriam por ela representados, assim como aquilo que a fragilizaria. Para os franceses, sustenta Charlot (2002), predomina um uso restrito do termo violência, que tende a ser empregado apenas a situações envolvendo uso da força ou grave ameaça. De outro modo, comportamentos contrários às normas estabelecidas seriam tratados como transgressões ou como incivilidades, dependendo de fatores como o perfil da norma que se descumpre - se uma norma formal (leis, regimento escolar), ou uma regra de convivência social.
O autor analisa que a utilidade desta distinção estaria tanto em evitar generalizações ao estabelecer categorias mais precisas para diferentes situações, como por favorecer a designação dos lugares a partir dos quais se estabelecem formas próprias de tratamento. A sua fragilidade, em contrapartida, estaria na incapacidade de descrever o que realmente ocorreria naquelas escolas em que “o acúmulo de incivilidades (pequenas grosserias, piadas de mau gosto, recusa ao trabalho, indiferença ostensiva para com o ensino...) cria às vezes um clima em que professores e alunos sentem-se profundamente atingidos em sua identidade pessoal e profissional - ataque à dignidade que merece o nome de violência” (Charlot, 2002, p. 437).
A reivindicação de que ataques à identidade e à dignidade sejam reconhecidos e abordados como expressões de violência escolar encontra eco em muitas pesquisas desenvolvidas na área da educação. De forma semelhante, Debarbieux (2001) recorre aos estudos de Norberto Elias para postular que o desrespeito às normas de convivência estabelecidas no decorrer deste processo - por ele também chamado de incivilidade - seria uma expressão de violência.
Em obra posterior, escrita em coautoria com Catarine Blaya (Debarbieux e Blaya, 2002), manteve-se o entendimento de que tais processos envolvem violência, contudo, o uso do termo incivilidade foi reconsiderado, propondo-se a sua substituição pela noção de microviolência. Admitia-se, assim, o etnocentrismo presente no sugerido binômio civilização/barbárie, bem como seu potencial estigmatizante (Debarbieux e Blaya, 2002).
Concomitante a essas discussões, situações envolvendo relações conflitivas ocorridas na escola passaram a ser noticiadas e abordadas a partir de um termo que se tornou cada vez mais popular: bullying. Cunhado pelo psicólogo norueguês Dan Olweus ainda ao final da década de 1970, o termo bullying designa “um comportamento negativo (desagradável ou doloroso) cometido de forma intencional, repetitiva, por uma ou mais pessoas contra uma pessoa que apresenta dificuldade para defender a si mesma3” (Olweus e Limber, 2010, p. 124).
Na área da Educação já se escreveu muito sobre o assunto, sobretudo por uma perspectiva voltada à psicodinâmica da personalidade em sua conjugação com o ambiente familiar. Em linhas gerais, além da notória vulnerabilidade das vítimas, haveria uma tendência de os agentes do bullying viverem em ambientes com violência doméstica (Antunes e Zuin, 2008; Fante, 2005) e de serem ou terem sido eles próprios os alvos dessa violência (Pinheiro e Willians, 2009). Descritos, principalmente, como crianças/ adolescentes com dificuldades de relacionamento interpessoal e baixa autoestima, os autores desse tipo de violência escolar teriam, ainda, uma acentuada necessidade de serem notados, além de baixa tolerância à frustração (Olweus, 1978). Assim, o bullying estaria bastante relacionado à questão da autoridade na dinâmica familiar, seja por sua ausência (associada à falta de limites), seja por sua presença violenta, como a adoção “de ‘práticas educativas’ que incluem maus-tratos físicos e explosões emocionais” (Fante, 2005, p. 61).
Ainda em relação aos autores de bullying, Pereira et al. (2009) elucidam que, mesmo predominando a imagem do estudante truculento, que faz uso da força física para alcançar seus objetivos, não se pode pensar em um único perfil. As pesquisadoras ressaltam que alguns destes adolescentes mostram-se no dia-a-dia, como “[...] pessoas muito agradáveis, [que] parecem preocupadas com os outros, atenciosas [...]” (Pereira et al., 2009, p. 459).
Em sentido semelhante, em pesquisas anteriores encontramos situações em que os adolescentes envolvidos na promoção deliberada de práticas que seriam habitualmente consideradas como bullying, não apresentavam muitas das características indicadas na literatura. Tratava-se de grupos de estudantes populares entre seus pares, que mantinham relações amistosas com professores e gestores, que apresentavam desempenho escolar entre bom e mediano, que não relatavam vivências familiares envolvendo negligências, abusos ou violências sofridas, que desfrutavam de boa autoestima e que entre os adultos da escola eram considerados como assertivos, não como agressivos (Márques, 2015).
Desta constatação veio a nossa busca por categorias auxiliares, que ajudassem a analisar aquilo que estava sendo visto nas escolas. Reconsideramos, então, o uso da categoria bullying de forma conjugada com a noção de mobbing, que remete à ideia de turba, da ação tumultuosa de um grupo que, uma vez reconhecido como identidade coletiva dominante, comporta-se como se investido do poder de agir segundo regras próprias e de burlar outros consensos.
Originalmente desenvolvida para fazer referência a situações de assédio entre adultos, especificamente no ambiente laboral (Leymann, 1996), a noção de mobbing veio a público por uma obra popular de Hirigoyen (1998), na qual, a partir de casos clínicos, a autora deu visibilidade às tramas do assédio moral em diversos ambientes.
Caracterizando-se por um comportamento persistente e hostil dirigido por um grupo coeso a um indivíduo ou pequeno grupo, o mobbing tem nos chamado à atenção por envolver tanto a existência de um alvo visivelmente portador de uma ou mais características desaprovadas ou desvalorizadas pela cultura local (sejam atributos físicos, socioculturais, comportamentais, cognitivos), quanto de agentes que, ao contrário, apresentam-se bem ajustados a esta mesma cultura (Hirigoyen, 2006).
Constatamos em campo que a ação deste coletivo se dá em conformidade com contextos socioculturais marcados por um padrão de competitividade elevado, em que a reprodução de desigualdades estruturais tem na violência sutil uma importante aliada. Seus agentes não consideram que as ações por eles cometidas sejam expressões de violência, mas um movimento “natural” em uma sociedade que também percebem como “naturalmente dividida” entre vencedores e perdedores.
Na presente seção buscamos constituir o campo da investigação em suas relações com a temática em discussão. Em consideração às escolhas metodológicas, recorremos à triangulação de elementos provenientes da observação, da aplicação de instrumentos (questionários e desenhos) e da consulta a fontes documentais - em especial o Projeto Político Pedagógico da escola (PPP) e levantamentos feitos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Conforme informado anteriormente, a pesquisa de campo deu-se em uma escola pública de uma cidade de médio porte do interior do estado de Minas Gerais, tendo como participantes uma turma da última série do ensino fundamental II. Por se tratar de uma pesquisa de orientação etnográfica, optamos pelo acompanhamento semanal de uma mesma turma escolar ao longo de dois semestres letivos. Nossa presença na escola deu-se em dias, horários e espaços variados, como sala de aula, corredores e áreas para alimentação e recreação. A turma abordada era composta por 31 alunos, sendo que destes 27 participaram da pesquisa.
Situada na região central da cidade, a instituição onde realizou-se a pesquisa atende a um público que apresenta um nível socioeconômico (NSE) caracterizado pelo INEP como médio, tendo matriculados no ensino fundamental II, por ocasião do trabalho de campo, quase 500 estudantes. Contando com 70 professores, oito gestores e 40 colaboradores, trata-se de uma escola da rede pública estadual bastante procurada pela população local.
Com uma estrutura física adequada em relação ao quantitativo de alunos, o edifício ocupa uma ampla área verde, com plantas ornamentais e algumas árvores frutíferas. A instituição dispõe de 15 salas de aula, sanitários feminino e masculino, cozinha, ginásio poliesportivo, uma pequena biblioteca, um laboratório de informática, salas para gestores e professores e sanitários de uso exclusivo a docentes e funcionários. Nas salas, problemas de acústica e pouca ventilação são as principais causas de reclamações, tanto por alunos como por professores. Abanando leques improvisados ou disputando um lugar próximo ao ventilador, estuda-se em meio a conversas, gritos e risadas.
A imersão em campo teve início com um processo de observação livre da rotina escolar, que depois de duas semanas evoluiu para a observação da turma em questão. Decorridos quase dois meses do seu início, depois de já ter conversado com vários dos alunos e de ter adquirido algum conhecimento dos códigos fundamentais e do vocabulário mais usual entre os jovens, elaboramos e aplicamos um questionário misto. Na primeira parte deste instrumento foram apresentadas questões oportunas ao delineamento do perfil, como: idade, gênero, identidade étnico-racial, classe social e hábitos de lazer.
O grupo de estudantes participantes tinha idades que variavam entre 14 e 16 anos, era constituído por 15 alunas e 12 alunos, que se identificaram, principalmente, como de classe média (48,2%) e classe média-baixa (33,4%). Solicitados a apontar as três atividades que seriam mais praticadas em suas horas livres, os adolescentes revelaram o seu apreço por atividades digitais, confirmando dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil (2017)4 segundo os quais é crescente a tendência à hiperconexão na faixa etária compreendida.
Os dados apresentados na Figura 1 permitem diversas análises. Nos limites deste artigo, chamamos a atenção para a prevalência de atividades envolvendo objetos-tela (televisão, games, notebook, smartphones), que prescindem a presença física do outro.
A tendência à passagem da presença física a uma onipresença virtual não é assunto recente. Desde o início dos anos 2000, vários pesquisadores observaram a emergência de formas de sociabilidade juvenis pautadas pelo uso de tecnologias e, mais especificamente, pela virtualidade, nas quais as interações dão-se inicialmente entre imagens. Na sociabilidade telemática, a superexposição da intimidade divide espaço com elevadas expectativas em relação a um corpo fabricado por dispositivos de poder, tais como a mídia. Dispositivos que, explicam Gomes e Miranda (2014, p. 88), “adotam uma lógica, ao mesmo tempo, durável e flexível o bastante para normalizar as diferenças, entre as quais a raça é uma das mais controladas”.
Os dados obtidos na primeira parte do questionário convidam a reflexões interessantes. Apresentados a uma questão fechada sobre a identidade étnico-racial, 20 dos 27 adolescentes identificaram-se como brancos, seis como afrodescendentes e um optou pela alternativa “outros” e preencheu o espaço a este fim reservado com a palavra “moreno”. Chamou a nossa atenção o fato de que nenhum aluno da turma em questão tenha se identificado como negro e nem como mestiço.
A questão que se coloca a respeito dos dados acima mencionados envolve posicionamentos políticos que fazem parte do debate da etnicidade e, em especial, do enfrentamento das consequências de décadas de ideologia do branqueamento em terras brasileiras. Delineada no decorrer do século XIX a partir da crença na superioridade biológica dos brancos em relação a outros povos, a tese da possibilidade de um branqueamento da população brasileira por meio da miscigenação seletiva teve relação tanto com uma política de imigração europeia quanto com a transformação de uma incensada “identidade mestiça” em signo cultural nacional (Seyferth, 1995).
Tais ideias passaram a ser mais problematizadas a partir da década de 1980, com o desvelamento da mestiçagem enquanto discurso ideológico favorecedor do apagamento da corporalidade e da importância do povo negro na história do país.
O fato de nenhum dos alunos da turma ter se identificado como mestiço pode sugerir, em um primeiro momento, a superação da ideologia do branqueamento. Tal suposição, entretanto, não se sustenta ante o cruzamento dos dados com as respostas fornecidas a outras questões e com a atividade de produção de desenhos. Identificamos, ao final, a forte presença de uma “branquitude normativa” que, ao impor a crianças e adolescentes a identidade branca como modelo universal de humanidade (e, portanto, como índice de normalidade), leva parte dos jovens afrodescendentes a identificarem-se como brancos. É o que pôde ser visto na primeira sessão de produção de desenhos.
Em referida sessão, depois de explicarmos a atividade, a solicitação feita aos estudantes foi que representassem em imagens como é “ser legal” e “não ser legal” na escola. Dos 27 desenhos realizados, 23 apresentaram estrutura semelhante, caracterizada por duas figuras estáticas do mesmo gênero do autor do desenho, separadas por uma linha, cada qual ocupando um lado do papel. Nestes desenhos, além da aparência voltada aos aspectos de peso e medidas corporais, também ocuparam lugar de destaque: traços fisionômicos (ênfase em formato de rosto, nariz, olhos), cor e textura dos cabelos, cor da pele e dos olhos, dimensões corporais. Tais elementos foram utilizados em associação a representações de condição socioeconômica e de estado de espírito, como ilustra o desenho que segue (figura 2).
No seu desenho, a aluna, a quem chamaremos de Júlia, ilustra como é “ser legal” e “não ser legal” na escola delineando, primeiro, os traços de uma identidade socialmente valorizada naquele ambiente. As legendas que acompanham a imagem indicam que “ser legal” envolve ter “cabelo liso”, ostentar “um sorriso encantador”, ser “uma pessoa estudiosa e inteligente” e ter acesso a certos bens de consumo, como “calça de marca” e “o sapato mais caro”. O contrário disso seria alguém “sem estilo”, cujo cabelo é “uma bagunça”, é “nerd” e “triste”. Alguém negro, segundo a percepção da jovem.
Considerando a totalidade dos desenhos, assim como Júlia, outros 16 estudantes associaram “ser legal na escola” a ser branco, de cabelos e olhos claros, o que chamou muito nossa atenção devido à exígua presença de crianças e adolescentes com este fenótipo na instituição e na turma em particular. Destes, 12 alunos apresentaram como contraponto ao que “é legal” figuras claramente marcadas por traços de uma corporalidade negra. É o caso do desenho a seguir (figura 3), em que a pele das personagens desenhadas não foi pintada tal como na figura 2, contudo, outros traços distintivos foram ressaltados:
Comparando os dois desenhos, nota-se a percepção das jovens de que, na escola em que estudam, “não é legal” ter pele escura (figura 2) ou nariz largo (figura 3), ter cabelos e olhos pretos (figuras 2 e 3), ter cabelos crespos ou volumosos (figuras 2 e 3). Da mesma forma, “não é legal” usar apenas o uniforme da escola, sem calçados e acessórios valorizados (figuras 2 e 3) e não ser esguia (figura 3). Nota-se, também, que este conjunto de atributos é por elas associado a ser uma pessoa feia (figura 3) e triste (figura 2).
Como parte da atividade, foi solicitado às autoras dos desenhos que apontassem com qual das personagens se identificavam mais. Ambas revelaram identificar-se mais com a personagem de pele branca e olhos claros, ainda que nenhuma delas o fosse. E em suas justificativas, as duas jovens mencionaram o “estilo” e o “jeito de ser” da personagem escolhida.
O achado, que sugere o resultado de um longo processo de estigmatização por vezes ocultado em ocorrências corriqueiras, reforça a atuação da branquitude normativa como dispositivo de poder cujos efeitos incidem sobre o corpo negro, sobre a maneira como este corpo é visto e representado em um contexto em que a identidade branca ocupa o lugar de norma e se impõe como meta a ser alcançada.
As respostas dadas a uma questão aberta apresentada na segunda parte do questionário reforçam esse entendimento. Os 27 alunos participantes foram solicitados a escrever em poucas palavras o que seria, na opinião deles, o principal motivo pelo qual ocorreriam comentários e piadas sobre alguém na escola. Ainda que diversificadas, as respostas puderam ser agrupadas em três grandes categorias, que permitem compreender o campo da investigação: corporalidade, gênero e sexualidade, traços de personalidade e outros.
Das 27 respostas, 19 abordaram dimensões da corporalidade, como peso, estatura, fisionomia, cor da pele e textura dos cabelos. Destas, 11 respostas trouxeram conteúdo relacionado especificamente a atributos étnico-raciais. São elas:
“Acho que ser da raça negra” (A3).
“Quando a menina tem cabelo ruim e se acha top” (A21).
“Ter cabelo sarará e não cuidar” (A4).
“Porque a pessoa é BV5 ou porque é negra e fica brava se falam do nariz dela” (A11). “Quando a pessoa é beiçuda, se tem cabelo ruim, se gagueja, se não toma banho, se não pega ninguém, se é apelão, tudo vira zuera” (A8).
“O racismo que existe com as pessoas de pele mais escura” (A15).
“Cor da pele, jeito do cabelo, jeito de falar e de vestir” (A5).
“Se implicam com o beiço da pessoa e ela apela” (A27).
“Acho que qualquer coisa é motivo, mas ter cabelo ruim, ser gorda e ser n00b6 pega mais” (A12).
“Ter cabelo muito muito enroladinho, ser feia e ser gorda” (A1).
“O povo fala dos playba7 e zua os gordo e quem [tem] cabelo de preto” (A26).
As respostas, das quais emergem representações sobre os traços, a pele e os cabelos do negro, dizem muito a respeito do racismo estrutural presente na sociedade brasileira e, portanto, também presente no cotidiano da escola.
O racismo estrutural envolve a reprodução de um conjunto de práticas discriminatórias pelas quais se garante que um grupo étnico-racial goze de privilégios em detrimento de outros. No caso do Brasil, país do continente americano que por mais tempo resistiu a abolir a escravidão (e que quando o fez, deixou os negros em total desamparo), o racismo estrutural aparece bem conjugado à violência simbólica. Desenvolvida pelas instituições e seus agentes com o fito de legitimar crenças e comportamentos dominantes, trata-se de uma expressão da violência que tem relação com o exercício da autoridade e que “encoberta as relações de poder em jogo quanto mais consegue encobertar a si mesma” (Bourdieu, 2003, p. 8).
Isso fica claro quando observamos, no dia a dia escolar, a presença de um sistema de oposições em que tudo o que é referente ao negro recebe uma valoração negativa que se encontra naturalizada e, por isso, acaba sendo reproduzida também entre adolescentes negros. Do potencial de mascaramento e manipulação da violência simbólica, resulta uma de suas características mais perversas: a participação ou “cumplicidade tácita” daqueles a quem se volta (Bourdieu, 1996, p. 16).
Cumpre observar que a referida “cumplicidade” não consiste em um exercício consciente e deliberado, mas ao contrário. Como explica o autor, o fundamento dessa forma de violência reside em um conjunto de disposições estabelecidas histórica e socialmente, que são reproduzidas pelo poder simbólico como se fossem algo da ordem da natureza. Isto é o que permite a sua efetivação através de um ato que está “aquém da consciência e da vontade” individual (Bourdieu, 2003, p. 54), e com o qual a escola contribui enquanto é conivente com a reprodução acrítica de estereótipos relacionados a marcadores sociais da diferença, como raça/etnia, sexo/gênero.
O poder simbólico de que nos fala Bourdieu é fundamentalmente o poder de construir a realidade pela enunciação, de estabelecer a forma como nós devemos perceber o mundo social e o que nele devemos enxergar. A diferença, nesse processo, é socialmente produzida a partir de “jogos de oposição”, nos quais a identidade normativa é representada pelo branco, que se torna referência única para o que é normal, bom e belo, reforçando, assim, as engrenagens da antiga ideologia do branqueamento.
Em sua crítica ao uso ingênuo da imagem de país mestiço, Munanga (2004) reflete sobre a profundidade da introjeção de um ideal de branqueamento, o que faz ponderando que não se pode perder de vista o quanto, em sociedades com um passado escravocrata como a nossa, a questão da identidade do afrodescendente envolve um processo doloroso. A imersão em campo não deixa dúvidas de que este processo chega aos corredores e salas de aula de várias maneiras. No caso em estudo, tanto por meio do racismo escancarado, quanto fomentando uma sofrida negação do corpo negro, para a qual o bullying contribui diretamente.
Em conversas informais ocorridas durante a imersão em campo, foi comum ouvir de alunos e mesmo de professores que no Brasil não há racismo. De maneira semelhante, ouvimos no decorrer da pesquisa que, no nível de ensino em que se encontravam (fundamental II), quase não se via situações de bullying naquela escola. Contudo, quando os estudantes foram submetidos a uma questão fechada na qual se perguntava se nos últimos 12 meses teriam se sentido, ao menos duas vezes, maltratados, ridicularizados ou ofendidos deliberadamente por um mesmo colega ou grupo de colegas, 16 dos 27 participantes responderam que sim.
Para compreender a aparente incongruência, buscamos identificar o que os estudantes consideravam como bullying e, ao mesmo tempo, desvelar como eles interpretavam as situações a que teriam sido submetidos os quase 60% da turma que responderam afirmativamente à questão em discussão.
Solicitamos aos alunos, então, que identificassem em uma lista aquilo que eles próprios já teriam feito a um mesmo colega de escola ou pequeno grupo, ao menos duas vezes nos últimos 12 meses.
Em linhas gerais, ridicularizar (“fazer piada”, “tirar sarro”, “zoar com a cara”, “provocar”), isolar (“ignorar”, “fingir que não existe”, “não convidar para festas/ passeios”, “não aceitar em redes sociais”) e difamar (“contar os segredos”, “fazer fofocas”, “espalhar histórias”, “falar pelas costas”) foram as ocorrências mais assinaladas, enquanto agressões verbais (“gritar”, “xingar”) e físicas (“empurrar”, “bater”) foram as menos mencionadas. As situações que não receberam qualquer menção por parte da turma foram: “chantagear” e “ameaçar”.
Na sequência, apresentamos uma questão aberta na qual pedimos aos estudantes que nos apresentassem três exemplos de situações que seriam por eles consideradas como bullying. As variadas respostas puderam ser organizadas em cinco categorias, representadas na imagem que segue (Figura 4):
Conforme se vê na Figura 4, agressões físicas (40%), ameaças à integridade física (28%) e agressões verbais (17%) totalizaram 85% dos exemplos apresentados, o que indica a interiorização de um conceito de bullying bastante restrito, no qual são consideradas prioritariamente violências duras ou concretas - aquelas que se materializam em ataques contra o corpo ou que se explicitam verbalmente em tom ameaçador. Assim, como os principais grupos de agressões cometidas contra um mesmo colega no intervalo de um ano (ridicularizar, isolar e difamar) envolvem ataques mais sutis, cujos alvos são a identidade e o psiquismo, os estudantes têm dificuldades para se reconhecerem e serem reconhecidos como autores e mesmo como vítimas de bullying.
Como parte das estratégias para conhecer e compreender as percepções dos participantes a respeito, semanas depois lhes foi solicitado que produzissem um segundo desenho: uma cena conflitiva de seu dia a dia escolar.
Em atendimento à solicitação, a maior parte dos adolescentes apresentaram cenas em que um ou dois personagens se dirigiam ao outro com comentários mordazes. As categorias que mais apareceram no conteúdo destes comentários feitos pelas personagens desenhados foram: 1) peso e/ou aparência física; 2) atributos étnico-raciais; 3) comportamentos, traços de personalidade e estados emocionais; 4) qualidade ou estado de conservação de roupas e calçados; 5) atributos de gênero e/ou orientação sexual; 6) condição socioeconômica familiar; 7) higiene pessoal. Na maioria dos desenhos, duas ou mais destas categorias encontravam-se em associação, como, por exemplo: roupas rotas associadas a higiene pessoal precária; sobrepeso associado a gula e preguiça, entre outros.
Tais dados indicam que os estudantes percebiam a carga de conflitualidade das interações mencionadas, contudo, quando perguntados se consideravam que seu desenho tratava de uma situação de bullying, menos de 30% responderam afirmativamente e 15% disseram que não tinham a certeza. Quando perguntados se tratava-se de algo que pudesse ser considerado como uma forma de violência, mais 85% responderam que não. Por fim, para mais da metade dos alunos, o que se tinha era uma prática corriqueira na escola, da qual conflito e mal-estar fariam parte, por eles chamada de “zoação”.
Algumas das primeiras pesquisas mencionando a “zoação” identificaram-na como uma entre outras expressões do bullying. Assim se observa no trabalho de Marriel et al. (2006), para quem, nas relações escolares, a “zoação” se traduz como uma forma sutil de violência. Em seu estudo, as pesquisadoras constatam que a gíria “leva a sinônimos como encarnação, humilhação, violação e outras maneiras de violência invisível” (Marriel et al. 2006, p. 44).
Em reflexão mais recente sobre a noção de bullying no caso brasileiro, Bazzo (2017) pondera que, dadas as sutilezas que distinguem “rir de” e “rir com”, a compreensão da “zoação” convida a retomar discussões de clássicos da antropologia, como Radcliffe-Brown, autor de uma das mais conhecidas análises “da ambivalência que perpassa todo o tempo o exercício da jocosidade” (Bazzo, 2017, p. 211).
Revisitando o autor mencionado, constatamos que as “relações jocosas”, estudadas por Radcliffe-Brown em sua clássica pesquisa sobre a estrutura das relações de parentesco em sociedades africanas tradicionais, consistem em relações “entre duas pessoas em que uma delas é autorizada, pelos costumes, e em alguns casos tem obrigação, de zombar ou fazer graça de outra que, por sua vez, não pode se ofender8” (Radcliffe-Brown, 1940, p. 90). Trata-se, assim, de uma forma sarcástica e provocativa de interação social, na qual estão implicados, de maneira ambígua, tanto sátiras quanto censura.
Antes deste autor, em uma pesquisa sobre a vida social do povo Crow, do território estadunidense, o também antropólogo Lowie (1912, apud Mauss, 2013) concluiu que esse tipo de relação, em que se faz presente certo “direito à grosseria”, cumpre sempre uma função mais séria do que o mero entretenimento. Por detrás da zombaria reside a reprimenda pública a um membro do grupo por seu desajuste em relação a alguma regra ou valor instituído.
Assim, embora as relações jocosas tivessem chamado à atenção dos pesquisadores devido ao emprego do humor acre como estratégia para a mediação de situações potencialmente conflitivas, nos trabalhos de ambos, Radcliffe-Brown e Lowie, é ressaltado que se trata de um processo ambíguo, com um forte componente de controle social.
Na escola onde se deu a pesquisa, constatamos que a jocosidade da “zoação” é apenas um dos motivos pelos quais a sua ocorrência tende a ser dissociada de bullying, mesmo que sua operacionalização e seus efeitos sejam tão similares. Como a mordacidade da prática se volta ao enquadramento dos que destoam da identidade normativa - contribuindo para a produção da diferença como condição desviante a ser subalternizada, corrigida ou excluída-, outros dois elementos concorrem para sua “invisibilidade”: os limites do conceito de bullying circulante na escola (com ênfase em agressões físicas e ameaças) e a assimetria entre os envolvidos quando o “zoeiro” se apresenta bem ajustado à cultura local. Em tais casos, a “zoação” é vista, no máximo, como uma brincadeira da qual resultaram mal-entendidos causados pela falta de espírito esportivo do “zoado”.
O desenho do estudante a quem chamaremos de Jonas, de 15 anos, permite outras reflexões a respeito (Figura 5).
O adolescente desenhou uma situação em que dois meninos brancos e de cabelos lisos, situados na parte superior da cena, combinam entre si a “zoação” que farão com outro, negro e de cabelos enrolados, representado em tamanho um pouco menor e na parte inferior da cena. As expressões faciais dos três meninos indicam que a situação é divertida para os primeiros e causa aborrecimento ao último. Ao ser partilhada com o autor do desenho, essa constatação foi por ele naturalizada como sendo “parte da zoação”, pois, do contrário “não teria graça”.
No diálogo estabelecido com a pesquisadora, o jovem revelou que a sua identificação era com um dos “zoeiros”, o que fez, em um primeiro momento, procurando atenuar a situação ao enfatizar que estava se referindo não ao autor da ideia, mas àquele que atendia a um chamado para a “brincadeira”. No momento seguinte, a atenuação deu espaço à franca naturalização, quando o adolescente observou que “sempre teve zueira [na escola], mas agora tudo é bullying”. Quando perguntado sobre os componentes raciais da cena, o discurso de negação se manteve, dessa vez protestando que “agora tudo é racismo”.
Aqui convém destacar que a naturalização não se limita ao entendimento de que agressividade, disputas e conflitos no ambiente escolar expressariam algo que é da “natureza humana” e que, portanto, não deveriam ser objeto de intervenção. Nesse sentido, é preciso atentar aos três movimentos implicados na naturalização de um evento social, como explicam Monteiro et al. (2014, p. 423):
Num primeiro [movimento], um grupo pretende obter privilégios em relação a outro; num segundo, é acionada uma estratégia de desqualificação do sujeito, a partir da escolha arbitrária de alguma característica corporal como marca da sua insuficiência; num terceiro, esta característica é apontada como causa da insuficiência, de tal modo que o sujeito se torna inexoravelmente situado numa posição de inferioridade.
Para aprofundar a reflexão, recorremos ao trabalho de Costa (1994), que nos auxilia a compreender que, quando a diferença é socialmente produzida pelo discurso de forma a transformar determinadas identidades em “algo”, chegamos bem próximos ao campo das respostas carregadas de violência naturalizada - ainda que não o saibamos.
Entendemos que entre estas respostas a que o autor se refere, a mais presente nas relações escolares do Brasil atual seja a atribuição de incapacidades àqueles que se expressam ou funcionam sob uma lógica que não coincide com as certezas circulantes. Destituídos de elementos com os quais poderíamos nos identificar com eles, transfigurados em “dessemelhantes”, nos autorizaríamos, no coletivo, a dar vazão à violência interditada aos que reconhecemos como “semelhantes”.
Aqui cabe observar, como faz o autor, que as mais diversas culturas criam dispositivos para garantir que o desprezo e a crueldade fiquem submetidos a um ordenamento que determina as circunstâncias em que a sua manifestação se torna socialmente aceitável. É então que Costa (1994) nos lembra que, nas culturas contemporâneas, a forma mais conhecida de organizar a crueldade consiste justamente em desumanizar alguns, especificamente “aqueles considerados diferentes, os que não funcionam segundo a regra, segundo modelos de conduta oferecidos pelos que são tidos como ‘exemplos de sujeitos morais’ a serem respeitados” (Costa, 1994, p. 80).
Um mecanismo que acompanha este processo e que encontramos nos desenhos em geral foi a substituição da conversação entre (do diálogo) pelo discurso sobre, do qual não participa o alvo do inquérito. Trata-se, em síntese, da substituição de um sujeito por um objeto.
Na escola investigada, cujo Projeto Político Pedagógico (PPP) incorpora o ideal de uma educação para a cidadania de todos e todas, temas como respeito às diferenças e tolerância estão muito presentes nos planos de aula e em cartazes nos corredores. Em suas primeiras páginas, o PPP ressalta o compromisso institucional com os “valores democráticos” e com a “pluralidade” que os acompanha, reforçando a ideia de que a diversidade é algo esperado e desejável.
Em consonância com tais diretrizes, no dia a dia escolar fala-se muito sobre o indígena, o negro, o deficiente, a mulher..., contudo, ao aprofundar a permanência em campo, constatamos que pouco se ouvem as vozes destes sujeitos. Cria-se um conjunto de discursos que, a final, lhes conferem aquilo que em Foucault (2002) é chamado de “estatuto de verdade”. É quando quem define a identidade do indígena, do negro, do deficiente, da mulher... e de quem mais não couber de imediato no ideal de “sujeito moral típico” é alguém que representa a identidade normativa.
Talvez isso ajude a entender por que, ao responder o questionário, o outro hipotético, o indígena com quem nenhum dos alunos esteve ou o deficiente físico que nunca estudou com eles, tenha sido associado pelos estudantes a uma “diversidade boa” (A9), que “é saudável” (A2), pois “ser diferente é normal” (A15), ao mesmo tempo em que, nos desenhos e no cotidiano da pesquisa de campo, o outro com o qual se partilha o espaço vivencial tenha sido alvo de violências que não se anunciam enquanto tal.
“Aqui não há violência [...]; episódios de bullying são raros” e “são tratados com rigor”, ponderou uma das gestoras quando buscamos autorização para a realização da pesquisa. Para a profissional, o fato de naquele semestre não ter havido um único registro de agressão física, confirmava sua fala.
Decorridos meses de contato semanal com a realidade escolar, além de reconhecer a louvável agilidade da gestão na tomada de providências em situações envolvendo agressões físicas e ameaças, constatamos, também, a presença de uma noção de bullying muito restrita, na qual praticamente não estavam contempladas violências sutis ou que não se dessem pelo uso da força, bem como reduzida percepção de situações envolvendo racismo. Práticas que foram identificadas em campo, como ridicularização, isolamento e difamação, poucas vezes foram reconhecidas e tratadas como violência, ainda que sua ocorrência se desse de modo continuado (característica de bullying) e tendo como alvos, entre outros, a corporalidade negra.
O percurso investigativo permitiu identificar marcadores sociais de identidade/diferença nas situações de violência entre pares, sugerindo, assim, a presença de violência simbólica como adjuvante de outras violências que se dão na escola. Tais marcadores, envolvendo principalmente raça/etnia, mas também sexo/gênero e classe social, falam muito sobre a forma como, na sociedade brasileira, as desigualdades são socialmente construídas, naturalizadas e legitimadas.
A questão étnico-racial, neste sentido, merece destaque. Os dados indicaram que a branquitude normativa se faz presente no cotidiano escolar, expressando-se na forma como são vistos os corpos e as identidades de negros e brancos, nas representações que se fazem de um e de outro. Atribuindo-se ao estereótipo do “branco de olhos e cabelos claros” a principal representação de como é “ser legal” na escola, e ao negro a representação de alguém que “não é legal”, os estudantes revelaram a permanência de um processo de estigmatização e de negação do corpo negro contra o qual a educação brasileira vem lutando duramente nas últimas décadas.
Como parte deste processo, não são raros, na escola, insultos raciais, cujo conteúdo versa sobre os cabelos, os traços, a pele do negro. Constituindo em ataques à identidade de um povo e ao psiquismo de sujeitos que se encontram em fase de formação, tais insultos não são considerados nem como racismo e nem como bullying pela maior parte dos estudantes, ainda que poucos discordem que se trata de uma prática que envolve conflito e que provoca sofrimento e mal-estar. Tratada como “zoação” devido ao recurso ao humor mordaz, a prática de escarnecer de atributos físicos associando-os a comportamentos e traços de personalidade consiste em uma forma bastante conhecida de controle social, que pode ser melhor compreendida com a revisita a trabalhos clássicos da antropologia sobre as “relações jocosas” (Mauss, 2013; Radcliffe-Brown, 1940).
Por fim, concluímos que a jocosidade da “zoação” é um dos motivos, entre outros, pelos quais, na escola, a sua ocorrência tende a não ser considerada como expressão de violência. Como a mordacidade da prática geralmente se volta ao enquadramento dos que destoam da identidade normativa, outros dois elementos concorrem para sua “invisibilidade”: os limites do conceito de bullying circulante na escola e a assimetria entre os envolvidos, uma vez que o “zoeiro” geralmente se apresenta bem ajustado à cultura local, cabendo o papel de “zoado” aos que receberam a marca do entendimento da diferença como desvio.
*Correspondencia: fernanda.marques@uniube.br.