Estudios y Debates Pedagógicos

Educação, neoliberalismo e a atualidade do pensamento de Maurício Tragtenberg

Education, neoliberalism and the actuality of Maurício Tragtenberg's thought

Educación, neoliberalismo y el pensamento actual de Maurício Tragtenberg

Rodrigo Barchi
Universidade Ibirapuera, Brazil
Davi Fernandes Costa
Universidade Ibirapuera, Brazil

Educação, neoliberalismo e a atualidade do pensamento de Maurício Tragtenberg

Revista de estudios y experiencias en educación, vol. 21, núm. 47, pp. 410-426, 2022

Universidad Católica de la Santísima Concepción. Facultad de Educación

Recepção: 01 Abril 2021

Revised document received: 05 Setembro 2021

Aprovação: 09 Setembro 2021

Resumo: Este estudo busca analisar a influência do neoliberalismo na educação e atualidade do pensamento do educador brasileiro Maurício Tragtenberg (1929-1998) a partir da análise do papel da função do(a) professor(a) universitário(a). O texto está dividido em três partes. Primeiramente o intuito foi realizar um breve panorama da história e do desenvolvimento do neoliberalismo como perspectiva do sistema socioeconômico capitalista, assim como enumerar alguns de seus aspectos contemporâneos. Na segunda parte a análise se concentra em compreender como que os aspectos do neoliberalismo se desdobram e ressoam na educação, em especial sobre o ensino superior. E na última parte a intenção foi discutir a situação do professor universitário brasileiro sob a chancela neoliberal - tanto no que diz respeito às relações e acúmulo de horas de trabalho, quanto em relação à própria adequação do currículo a essa perspectiva - dialogando e atualizando a leitura de Tragtenberg em seus posicionamentos sobre o papel do profissional da educação.

Palavras chave: Educação, neoliberalismo, ensino superior, pedagogia libertária, Maurício Tragtenberg.

Abstract: This study analyzes the influence of neo-liberalism in education and the actuality of the thought of the Brazilian educator Maurício Tragtenberg (1929-1998) through the analysis of the role of the university professor. The text is divided into three parts. The first part is a brief overview of the history and development of neoliberalism as a perspective of the capitalist socioeconomic system, as well as some of its contemporary aspects. In the second part, the analysis focuses on understanding how the aspects of neoliberalism unfold and resonate in education, especially in higher education. In the final section, the intention was to discuss the situation of the Brazilian university professor under the neoliberal seal, both in terms of relationships and the accumulation of working hours, as well as the adequacy of the curriculum itself to this perspective, dialoguing and updating Tragtenberg's reading of his positions about the role of the education professional.

Keywords: Education, neoliberalism, higher education, libertarian pedagogy, Maurício Tragtenberg.

Resumen: Este estudio busca analizar la influencia del neoliberalismo en la educación y la actualidad del pensamiento del educador brasileño Maurício Tragtenberg (1929-1998) a partir del análisis del rol del (la) profesor(a) universitario(a). El texto se divide en tres partes. En primer lugar, el propósito era ofrecer una breve visión de la historia y el desarrollo del neoliberalismo como perspectiva del sistema socioeconómico capitalista, así como enumerar algunos de sus aspectos contemporáneos. En la segunda parte, el análisis se centra en comprender cómo se despliegan y resuenan los aspectos del neoliberalismo en la educación, especialmente en la educación superior. Y en la última parte, la intención fue discutir la situación del profesor universitario brasileño bajo el sello neoliberal - tanto en términos de relaciones y acumulación de horas de trabajo, como en relación a la propia adecuación del currículo a esta perspectiva - dialogando y actualizando la lectura de Tragtenberg en sus posiciones sobre el papel del profesional de la educación.

Palabras clave: Educación, neoliberalismo, educación superior, pedagogía libertaria, Maurício Tragtenberg.

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário que se oponham à esclerose burocrática da instituição. A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, ou seja, um aprendizado baseado numa motivação de participação e não em decorar determinados “clichês” repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examinam, que fazem com que o aluno saia da universidade com a sensação de estar mais velho e apenas com um dado a mais: o diploma, que em si perde o valor à medida que perde sua raridade. A saída é a autogestão.

(Maurício Tragtenberg)

1. Introdução

Desde os anos 90 do século XX o Brasil tem vivenciado uma série de mudanças muito significativas no Ensino Superior, iniciadas, em grande medida, a partir de um projeto neoliberal que buscou a privatização e mercantilização da educação (Minto, 2006). Se, por um lado, esse projeto trouxe também a ampliação de vagas nas universidades, favoreceu a ampliação dos cursos tecnológicos e do ensino a distância (Lira, 2011), por outro lado tudo ocorreu em detrimento da pesquisa e extensão que sofreram com a diminuição dos investimentos (Dutra, 2012).

No início do século XXI, a partir do governo Lula (2003), alguns avanços foram conquistados, como o aumento do número de universidades federais, criação do sistema de cotas, possibilidade de bolsas em universidades privadas para alunos de baixa renda por intermédio do PROUNI, ampliação do FIES, entre outros (Carvalho, 2014). Porém, o número de brasileiros com curso superior segue proporcionalmente baixo quando comparado aos países industrializados.

Segundo dados da OCDE (2019) apenas 21% dos brasileiros com idade entre 25 e 34 anos tem ensino superior completo, enquanto nos outros países vinculados ao órgão o índice gira em torno de 44%. Além disso, segundo dados do IBGE (2019), divulgados a partir de pesquisa de Síntese de Indicadores Sociais (SIS), apenas 32,7 % dos jovens, entre 19 e 24 anos, estão matriculados no curso superior.

Um diagnóstico prévio ao redor desses números aponta que o Brasil ainda precisa avançar muito sobre o acesso da maior parte da sua população ao ensino superior, principalmente no que diz respeito às classes de faixa de renda inferior, que sempre encontram maiores dificuldades de inserção e manutenção na universidade.

Entretanto, o que tem ocorrido por parte do Governo Federal, desde janeiro de 2019 com a tomada de poder pela extrema direita, e seus muitos ministros da Educação1, é o desmantelo completo do Ministério da Educação em todos os níveis, por meio de uma série de políticas que dificultam aos mais pobres o acesso ao ensino superior, como já vem sendo demonstrado em diversos trabalhos (Amaral, 2019; Costa e Silva, 2019; Pereira, 2019). Por exemplo, Taffarel e Neves (2019) fazem uma exaustiva análise desses ataques a partir da análise do plano de governo apresentado na eleição presidencial e das atitudes tomadas pelo Ministério da Educação até maio de 2019.

É nesse turbilhão de interesses, de forças que se contradizem, de pressões internas e externas, que se insere o trabalho do/a professor(a) universitário(a) brasileiro(a). E a partir dessa conjuntura que se buscou compreender seu papel, levando em conta a função social que a universidade exerce, ou deveria exercer.

O(a) professor(a) universitário(a) que trabalha no setor privado, invariavelmente convive com receio de demissões, com a instabilidade do número de aulas que serão atribuídas e com a mudança que o ensino a distância tem trazido, afetando a quantidade de aulas que havia anteriormente. Enquanto o (a) professor(a) universitário(a), que trabalha no setor público, tem seu trabalho afetado pelas políticas de diminuição de verbas, como demonstrado anteriormente. Ou seja, ambos estão propensos aos ataques do neoliberalismo.

E para pensar como se dá esse tipo de submissão forçada dos(as) professores(as) universitários(as) a esse regime exploratório do trabalho, buscamos nesse artigo levantar alguns pontos, da obra do pensador libertário Maurício Tragtenberg (1929-1998), que ajudem a compreender o trato dado à educação pelo pensamento neoliberal, em especial ao papel do professor universitário, e refletir sobre a atualidade de sua crítica no que diz respeito a essa questão.

A obra de Tragtenberg já realizava uma série de discussões ao redor do capitalismo, cujas perspectivas neoliberais se instalaram no Chile nos anos 70, e se avizinharam ao Brasil nos anos 80 e 90. Consideramos que trazer à tona esses pontos de seu pensamento, ao redor da relação entre capitalismo e educação, pode ajudar a compreender um pouco das perspectivas libertárias brasileiras sobre essa temática. Apesar da importância da militância e das perspectivas teóricas de seu pensamento, ao redor do marxismo e do anarquismo (Silva e Marrach, 2001), ainda são escassas as pesquisas e estudos específicos ao redor de seu pensamento sobre educação, trabalho e capitalismo, raro algumas exceções, como os estudos de Meneguetti (2009), Silva (2016)e Fonseca (2018).

Esse texto é dividido em três partes. Primeiramente o intuito foi realizar um breve panorama da história e do desenvolvimento do neoliberalismo como perspectiva do sistema socioeconômico capitalista, assim como enumerar alguns de seus aspectos contemporâneos. Na segunda parte a análise se concentra em compreender como que os aspectos do neoliberalismo se desdobram e ressoam na educação, em especial sobre o ensino superior. E na última parte a intenção foi discutir a situação do professor universitário brasileiro sob a chancela neoliberal - tanto no que diz respeito às relações e acúmulo de horas de trabalho, quanto em relação à própria adequação do currículo a essa perspectiva - dialogando e atualizando a leitura do pensador brasileiro Maurício Tragtenberg em seus posicionamentos sobre o papel do profissional da educação.

2. Sobre o neoliberalismo

Na perspectiva de Anderson (1995), o nascimento do neoliberalismo ocorre após o fim da Segunda Guerra Mundial, na Europa e na América Central, justamente onde reinava o capitalismo, sendo uma reação não apenas teórica, mas também política tanto contra o Estado intervencionista, como contra o Estado de bem-estar social.

Dardot e Laval (2016), por sua vez, afirmam que o neoliberalismo tem a sua origem anterior à Segunda Guerra, pois é um processo que se estende entre a crise do liberalismo do final do século XIX, até a grande crise da Bolsa de Nova York e suas consequências, entre o final dos anos 20 e início dos anos 30:

A partir de meados do século XIX, o liberalismo expõe linhas de fratura que vão se aprofundando até a Primeira Guerra Mundial e o entreguerras. A tensão entre os dois tipos de liberalismo, o dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos partidários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nunca cessou. Essa dilaceração que reduz a unidade do liberalismo a um simples mito retroativo constitui propriamente essa longa “crise do liberalismo” que vai dos anos 1880 aos anos 1930 e que pouco a pouco vê a revisão dos dogmas em todos os países industrializados onde os reformistas sociais ganham terreno. Essa revisão, que às vezes parece conciliar-se com as ideias socialistas sobre a direção da economia, forma o contexto intelectual e político do nascimento do neoliberalismo na primeira metade do século XX (Dardot e Laval, 2016, pp. 38-39).

Ou seja, é a partir da fragmentação do liberalismo, causada pela tensão entre os reformistas sociais e os que eram defensores de um ideário de bem comum, que se estabelece uma longa crise em suas entranhas, que dará origem ao germe do neoliberalismo.

As ideias neoliberais, principalmente difundidas por Friedrich Hayek, alertavam que o suposto igualitarismo proposto pelo Estado de bem-estar social europeu, era na verdade uma grande ameaça, pois destruía a liberdade dos cristãos e desestimulava a concorrência entre os cidadãos. Ele defendia a desigualdade como algo positivo, pois considerava como o motor motivacional do ser humano. Segundo Anderson (1995), essa mensagem permaneceu apenas na teoria por volta de vinte anos. Entretanto isso se modifica no início da década de 1970, com a chegada da crise econômica do pós-guerra:

A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as ideias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais (Anderson, 1995, p. 10).

Com isso os sindicatos e os movimentos operários passam a ser um dos grandes alvos do neoliberalismo. Por pressionarem por melhores salários e melhores condições de vida para os trabalhadores, são vistos como egoístas e corporativistas. Quando conquistavam melhorias salariais e conseguiam reduzir suas horas de trabalho estariam, mesmo que minimamente, afetando o lucro dos donos dos meios de produção e atrapalhando o desenvolvimento do capitalismo. Esse seria o principal motivo da crise, segundo as ideias neoliberais, que começam a ter cada vez mais relevância a partir desse momento.

Os países que buscaram seguir essas orientações passaram então a manter os sindicatos sob controle, burocratizando-os, deixando-os próximos ao governo, além disso, tinham como meta suprema a estabilização monetária e a total contenção de gastos com o bem-estar social. Também vale destacar a criação de um exército de reserva de trabalho, ou seja, do aumento proposital no número de desempregados, o que também enfraquecia os sindicatos, e a redução de impostos sobre os rendimentos mais altos como podemos observar em Anderson (1995).

Outro ponto importante para se compreender o neoliberalismo é sua posição anticomunista:

[...] O ideário do neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra. O novo combate contra o império do mal - a servidão humana mais completa aos olhos de Hayek - inevitavelmente fortaleceu o poder de atração do neoliberalismo político, consolidando o predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte. Os anos 80 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nesta região do capitalismo avançado (Anderson, 1995, p. 11).

Dessa forma, o neoliberalismo escolheu o comunismo como seu bode expiatório tornando-o, em sua propaganda, o monstro contra qual todos os “cidadãos de bem” deveriam se levantar, o inimigo que deveria, a todo custo, ser derrotado.

Além de suas posições ideológicas, parece importante verificar o que foi implantado pelos primeiros Estados que incorporaram a política neoliberal:

O que fizeram, na prática, os governos neoliberais deste período? O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente - esta foi uma medida surpreendentemente tardia -, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado (Anderson, 1995, p. 11).

A ânsia neoliberal pelas privatizações e pela precarização do trabalho é ponto crucial para compreendermos como ocorrem as transformações nas relações laborais e nas práticas pedagógicas do cotidiano escolar e dos(as) profissionais da educação superior. No entanto, sempre é necessário - como veremos adiante - realizar a devida contextualização e distinção em como essas políticas afetam os países hegemônicos da Europa e América do Norte, e os territórios emergentes e pobres da América Latina.

Há de se destacar que se em um primeiro momento apenas partidos da chamada “direita radical” punham em prática as ideias neoliberais e inicialmente neoliberais e socialdemocratas se colocavam como inimigos mortais, com o passar dos anos essa distância foi se extinguindo a ponto de governos que se colocavam como socialdemocratas assumirem abertamente políticas neoliberais.

Com relação ao avanço do neoliberalismo e o que suas políticas teriam conquistado, vale ressaltar que:

[...] em todos estes itens, deflação, lucros, empregos e salários, podemos dizer que o programa neoliberal se mostrou realista e obteve êxito. Mas, no final das contas, todas estas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70. Nesse aspecto, no entanto, o quadro se mostrou absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve nenhuma mudança - nenhuma - na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE. Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma lembrança distante (Anderson, 1995, p. 16).

Se os meios tinham por objetivo alcançar, como fim, a reanimação do capitalismo mundial, realmente há um fracasso retumbante como se observa a partir da análise realizada por Anderson (1995). Não apenas isso, quando pensamos no estrago causado pelo neoliberalismo na América Latina isso se torna pior. O primeiro país a sofrer as consequências da ideologia neoliberal foi o Chile, no período do ditador Augusto Pinochet:

O impacto do triunfo neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras partes do globo, particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia se converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais. De fato, ainda que em seu conjunto tenha chegado a hora das privatizações massivas, depois dos países da OCDE e da antiga União Soviética, genealogicamente este continente foi testemunha da primeira experiência neoliberal sistemática do mundo. Refiro-me, bem entendido, ao Chile sob a ditadura de Pinochet. Aquele regime tem a honra de ter sido o verdadeiro pioneiro do ciclo neoliberal da história contemporânea. O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos. Tudo isso foi começado no Chile, quase um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. No Chile, naturalmente, a inspiração teórica da experiência pinochetista era mais norte-americana do que austríaca. Friedman, e não Hayek, como era de se esperar nas Américas (Anderson, 1995, pp. 17-18).

Por mais que os ideólogos do neoliberalismo evoquem constantemente a ideia de democracia, o apoio a Pinochet contradiz completamente essa ideia, o discurso de liberdade individual busca esconder que a única liberdade que se propõem realmente é a liberdade de consumo, a qual também é bastante irrisória enquanto discurso e prática relativa, tendo em vista que com o aumento da desigualdade que proporciona, diversos cidadãos ficam fora da cadeia de consumo, sendo privados, inclusive dos objetos básicos para a sobrevivência.

Vale lembrar que o governo ditatorial de Augusto Pinochet, iniciado a partir de um golpe de estado em 1973 e finalizado em 1990, após enaltecer uma série de indicadores estatísticos sobre a economia - que não necessariamente significaram avanço econômico, social, político e cultural - que mais eram resultado da exploração da massa trabalhadora precarizada e empobrecida devido ao neoliberalismo implantado à força, foi um dos mais autoritários e sanguinários da história da América Latina e privatizou diversos setores estratégicos do país, como demonstra Anderson (1995).

O esboço de contextualização histórica do neoliberalismo, suas influências e seus efeitos sobre a economia e a vida das pessoas que realizamos até aqui nos permite compreender alguns pontos do tipo de relação econômica, social e política que a proposta oferece e vem sendo realizada, principalmente no caso brasileiro, caracterizando não somente uma série de transformações nas políticas públicas ao redor do papel do Estado, mas também na própria vida cotidiana. Nesse sentido entendemos que a definição de neoliberalismo que Anderson propunha ainda nos anos 90, continua sendo atual e muito instrumental para discutirmos as suas influências no campo da educação:

Tudo que podemos dizer é que este é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao movimento comunista de ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século passado (Anderson, 1995, p. 22).

Percebe-se que o movimento do neoliberalismo ocorre em escala mundial e atinge todos os setores da sociedade. Seu domínio busca transformar todas as relações humanas em relações comerciais, seu modelo é sempre o modelo do mercado. Aliás o mercado é o novo Deus que deve ser sempre seguido e obedecido. É claro que a educação não ficaria fora dessas propostas. É o que buscaremos ver a seguir.

3. Neoliberalismo e educação

Como vimos anteriormente, uma das propostas fundamentais do neoliberalismo é a privatização da maior parte possível dos setores mais importantes da sociedade com o argumento de que esse processo traria mais eficiência, transparência e lucro a todos. E a educação não fica fora desse processo.

Segundo Laval (2019) o Brasil está na vanguarda da escola neoliberal. O processo de privatização que o país vivencia, comandado por grandes conglomerados monopolizando o mercado (como Kroton, Estácio, Ânima), iniciou-se no ensino superior e agora avança também para o ensino básico, como bem demonstrou Conceição (2019). Esse processo, na forma que ocorre no Brasil, é um paradigma sem comparação com nenhum outro lugar:

[...] A taxa de admissão nas universidades é inferior no Brasil e o grau de desigualdade entre estudantes de origens sociais diferentes é superior, apesar das medidas tomadas pelos governos Lula para ampliar mais igualitariamente o ensino por meio de um sistema de cotas sociais e raciais. O mesmo acontece em todos os níveis no ensino privado, que é muito mais disseminado no Brasil do que na França. Sob certos aspectos, o sistema educacional brasileiro já é muito mais “neoliberalizado” do que o sistema francês e muitos outros sistemas educacionais europeus. Podemos dizer até que o Brasil chegou antes do que outros países ao estágio do “capitalismo escolar e universitário”, caracterizado pela intervenção direta e maciça do capital de ensino. [...] De modo geral, o crescimento notável do ensino superior privado no Brasil nos últimos vinte anos, sob a dominação de grandes oligopólios cotados em bolsa (Kroton, Estácio, Anhanguera etc.), faz do país um caso único no mundo. E a orientação do atual governo ameaça acelerar ainda mais essa dominação capitalista na escola e na universidade, especialmente pelo desenvolvimento de um ensino privado a distância (Laval, 2019, pp. 12-13).

Entretanto a privatização não é a único ataque que o neoliberalismo impõe à educação. Há toda uma lógica de pensamento que vai se enraizando no pensamento pedagógico proposto pelas políticas públicas de governos que têm interesse nesse modelo. Isso leva a escola e a universidade a se parecerem cada vez mais com uma empresa, adotando, por exemplo, estratégias e nomenclaturas empresariais. O modelo que se propõem é inevitavelmente o modelo privado, e não apenas isso, a educação passa a ser vista exclusivamente por seu potencial econômico. Como explica Laval (2019), o modelo republicano que entendia a escola como um espaço de construção do cidadão é substituído, na escola neoliberal, pelo espaço no qual se forma o consumidor.

Segundo Braga (2015), o Brasil inicia seu processo rumo às políticas neoliberais no governo psdebista de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), durante seu mandato o país caminha para se alinhar ao novo padrão estipulado pelo capitalismo, por meio de diversas reformas, entre elas as reformas educacionais que, alinhadas com as propostas do FMI (Fundo Monetário Internacional) e com o Banco Mundial, buscam transformar a figura do professor em um “faz-tudo” com cada vez mais atribuições e cada vez menos formação. Essas modificações afetaram diretamente o trabalho docente:

A categoria docente foi fortemente atingida por essas transformações que alcançaram a totalidade social, impactando no âmbito das instituições educacionais. A incorporação dos princípios de gestão empresarial pelas instituições educacionais públicas trouxe significativas mudanças para o trabalho docente. A atual intensificação, precarização e individualização, via processos meritocráticos, implicou no próprio esvaziamento do sentido do trabalho do professor, e com ele a agudização do estranhamento do trabalhador em relação à sua atividade laboral, dificultando a luta e diminuindo a atuação política dos educadores nos espaços disponíveis, colocando em segundo plano, a resistência ativa [sobretudo coletiva], nos termos defendidos por Saviani (Braga, 2015, p. 354).

Esse processo foi continuado pelos governos petistas, com Luís Inácio Lula da Silva (20032010) e Dilma Rousseff (2011-2016), em grande medida por meio do Programa Mais Educação que implementou uma política educacional vinculada à Pedagogia das Competências e ao Neotecnicismo(Silva e Silva, 2014). É relevante ressaltar que mesmo dando continuidade às políticas neoliberais o governo petista também se caracterizou por inaugurar inúmeras universidades federais, além das cotas sociais e raciais citadas anteriormente, o que teve papel importante no processo de diminuição de desigualdade.

O caráter de projeto neoliberal no campo educacional está totalmente atrelado à lógica de exclusão proposta pela política educacional da nova direta. Um discurso cheio de promessas de modernidade e meritocracia:

O discurso educativo do neoliberalismo configura-se a partir de uma reformulação dos enfoques economicistas do "capital humano". Esta reconceituação supõe manter alguns princípios que sustentavam aquelas perspectivas, mas articulando-os a novos diagnósticos sobre as atuais condições de regulação dos mercados (especialmente do mercado de trabalho) e a novas promessas (Gentili, 1995, p. 193).

A teoria do capital humano passa a exercer grande influência, ou seja, o mercado passa a ditar quais são as prioridades que a escola deve ter na formação dos estudantes, preparando-os com habilidades que sejam convenientes ao grande capital. Dessa maneira, o neoliberalismo compreende, com foco em sua visão economicista, que a educação deve estar a serviço do mercado.

O neoliberalismo formula uma promessa de qualidade que se deriva desta lógica mercantil. Tal promessa não é universal. Precisamente, porque a universalidade contradiz a própria dinâmica competitiva na qual ela está fundamentada: sem competência meritocrática é impossível alcançar critérios de qualidade na distribuição do serviço. Sob esta perspectiva a qualidade remete ao estabelecimento de um rígido sistema de diferenciação e segmentação da oferta educacional. Em suma: a qualidade somente pode ser conquistada através da flexibilização dos mercados educacionais (Gentili, 1995, p. 199).

Mesmo o conceito de qualidade, tão utilizado nos últimos documentos educacionais, está muito vinculado à lógica do mercado. Não apenas isso, quando se começa a dizer que uma escola pública possui qualidade e outra não, já se está diante de uma distinção que afeta diretamente a noção de “público”. Por que essas escolas são diferentes? Por que alguns têm direito de estudar em uma escola melhor? Na lógica neoliberal essa disputa entre escolas é fundamental:

[...] o principal fator não é a intervenção direta do capital, mas a introdução da competição entre os “consumidores de escola”, uma competição que supostamente trará mais eficiência. O neoliberalismo escolar resultou, na verdade, numa verdadeira guerra entre classes para entrar nas “boas escolas” de um sistema escolar e universitário cada vez mais hierarquizado e desigualitário. É por esse motivo que a análise não pode se restringir ao fenômeno econômico de mercantilização da escola, mas entender-se à lógica social de “mercadorização” da escola pública, que está ligada à luta generalizada das classes sociais dentro do mercado escolar e universitário. Portanto, não basta “defender” o setor público, pois este último foi profundamente transformado pela construção de um sistema hierarquizado do qual ele é apenas uma parte. É preciso lutar contra as dinâmicas desigualitárias que destroem as bases da escola pública. [...] (Laval, 2019, pp. 13-14).

É perceptível que aquilo que avança junto com a política neoliberal é a lógica da concorrência de mercado. As escolas então passam a ser encaradas como concorrentes. Os professores e as professoras se vêm às voltas com preocupações com relação às avaliações externas que dirão qual escola fez o melhor trabalho, qual turma está mais avançada, quem é “mais eficiente”.

Em nossa experiência e vivência no cotidiano escolar, presenciamos e notamos o quanto é comum ver, em escolas públicas, longas discussões em reuniões pedagógicas sobre a importância do resultado das avaliações externas que, no caso do Estado de São Paulo, têm influência na política de “bonificação por resultados”, outro mecanismo neoliberal que pretende “premiar” as escolas com o melhor desempenho. Nesse modelo as escolas entram em uma espécie de concorrência, de comparativo dos índices, como vemos em Laval:

A representação da educação dada pelo neoliberalismo pode parecer de uma simplicidade bíblica: como toda atividade, pode ser aproximada a um mercado concorrencial, no qual empresas ou quase empresas especializadas na produção de serviços educacionais, submetidas aos imperativos do rendimento, têm a finalidade de atender aos desejos de indivíduos livres em suas escolhas mediante o fornecimento de mercadorias ou quase mercadorias. Essa concepção quer que se admita como evidente que as instituições sejam “conduzidas” pelas demandas individuais e pelas necessidades locais de mão de obra, e não por uma lógica política de igualdade, solidariedade ou redistribuição em escala nacional. Nesse novo modelo, a educação é considerada um bem de capitalização privado (Laval, 2019, p. 109).

Se a concorrência entre instituições não é invenção do neoliberalismo, sem dúvida seu modelo hipervaloriza essa questão em detrimento de valores como solidariedade, compreensão, afeto, valores esses fundamentais na construção de cidadania como nos alertava Freire (1996). Na lógica neoliberal os indivíduos precisam estar a todo momento concentrados em superar as metas e enxergar os outros como rivais.

Nesse modelo despreza-se, por exemplo, o trabalho realizado com alunos de diferentes classes sociais. Escolas que possam estar mais distantes dos grandes centros, com difícil acesso a alunos(as) e professores(as), não possuem incentivos diferenciados. Também não se leva em conta o trabalho pedagógico que efetivamente possa estar sendo realizado, o desempenho limita-se aos resultados das avaliações externas. Como já apontava Tragtenberg (2004, p. 53), cada vez mais a nota (ou os resultados das avaliações) tornam-se o equivalente ao salário dos estudantes.

Como demonstra Laval (2019, p. 118), outro processo que marca o avanço dessas políticas na educação é a “culpabilização” dos educadores, por parte das secretarias de educação, com base em resultados de avaliações externas, ou por meio da reclamação de que os(as) educadores(as) se protegem mutuamente para não serem avaliados, ou seja, a lógica neoliberal está sempre pronta a contestar a qualidade dos professores e a acusá-los de cooperativistas pela luta por melhores condições por meio dos sindicatos.

Como vimos, as políticas neoliberais na educação têm como foco colocar as escolas em disputa. Como se a qualidade em educação fosse algo mensurável por meio de avaliações externas e pela qualidade de estrutura predial. Com o perverso discurso meritocrático, que desconsidera uma infinidade de variáveis, e o discurso da suposta melhora da eficiência, compromete-se o principal compromisso da educação pública que é a formação da cidadania plena. Nesse sentido, Tragtenberg (2012), já nos alertava da importância de se libertar de amarras burocráticas que limitavam o alcance da educação, como buscaremos demostrar a seguir.

4. Críticas libertárias de Maurício Tragtenberg na educação: professor policial, cão de guarda e capitalismo selvagem-neoliberal

A universidade exerce um papel fundamental no sistema democrático. Primeiramente por sua função social no que se refere ao desenvolvimento do país e também por seu objetivo de melhorar a vida da população por meio de estudos que tragam ou proponham melhorias para os cidadãos. Dessa forma, pesquisa e extensão podem e devem ser incentivadas.

Isso se faz ainda mais importante por conta da ascensão da extrema direita e seus discursos reacionários, sendo assim necessário, por parte dos(as) educadores(as) preocupados(as) com o social, o econômico, o ambiental, o justo e o solidário, que esse papel da universidade seja enaltecido e fortalecido, para resistir ao discurso que avança em nome do negacionismo científico, do revisionismo histórico, da guerra cultural contra as perspectivas progressistas e contra a proteção social por parte das instituições públicas. Um exemplo concreto foi a reação dos presidentes dos EUA e do Brasil, durante a crise de pandemia causada pela COVID-19, negando a gravidade da doença, ou desmerecendo a importância do isolamento social, ou seja, fazendo um discurso anticientífico e demagógico. Essa situação sofre uma modificação a partir do momento em que Joe Biden assume como presidente estadunidense em 20 de janeiro de 2021, incentivando o uso de máscaras e realizando campanhas para a vacinação em massa da população, o que levou o presidente brasileiro a um isolamento político ainda maior.

Por outro lado, isso não muda o fato de que o papel da universidade também esteja atrelado à manutenção do status quo da cultura dominante. Esse ponto já havia sido alertado por Tragtenberg:

A universidade está em crise. Isso ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, na qual as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores, ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais (Tragtenbrrg, 2004, pp. 11-12).

Essa crise da universidade está diretamente ligada à crise da sociedade de classes e suas evidentes desigualdades e injustiças. Não é possível viver fora da crise enquanto milhões de pessoas são privadas do básico necessário para a sobrevivência, por exemplo. Tragtenberg demonstra que a universidade reflete essas desigualdades que são rapidamente percebidas pelos jovens que entram no espaço universitário.

Também é importante destacar, no pensamento de Maurício Tragtenberg, que para tentar não demonstrar que reproduz o discurso dominante que representa, a universidade desenvolve um suposto saber neutro que estaria distante das questões das desigualdades sociais, acima dessas mazelas mundanas do posicionamento político. Evidentemente que essa intenção não se confirma, já que esse saber está sempre atrelado à ideologia. E, como nos alertaram Marx e Engels (2007, p. 47), “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”.

É também na universidade que encontramos os(as) professores(as) socialmente mais valorizados(as). O(a) professor(a) universitário(a) brasileiro(a) possui uma valorização que pode às vezes não ser salarial, mas sim social com relação aos professores(as) do ensino básico. Essa diferença já era questionada por Tragtenberg:

Uma coisa que eu sempre perguntei: por que a defasagem brutal entre o professor de primeiro e terceiro grau? É uma imoralidade social brutal o professor de terceiro grau ganhar 200 a 300% mais do que o professor de primeiro grau. Isso acaba com qualquer sistema escolar. É menor a responsabilidade social de uma professora que fica cinco horas com uma criança do que a do professor que fica com um barbudo de pós-graduação com aquela angústia da tese? Você, então, é qualificado de acordo com a classe social que serve. E qual é a maior glória do professor? Deixar de ser professor. Isso é o fim! Uma carreira de professor cuja maior glória é deixar de ser professor! Depois dizem que a administração é racional. Se uma organização estrutura a carreira cujo ápice está na condição de você abandonar a sala de aula, e quanto mais abandona maior é a prova de que você tem status... (Tragtenbrrg, 2012, p. 36).

No momento em que Maurício Tragtenberg escreve a diferença salarial entre professores universitários e professores do ensino básico é abissal. Entretanto hoje essa diferença não é necessariamente a mesma, tendo em vista que há escolas particulares que pagam valores maiores do que inúmeras universidades, por exemplo. Entretanto permanece, em grande medida, um certo status social, atribuído aos professores universitários.

O avanço do neoliberalismo na educação brasileira, em conjunto com os ataques do Governo Federal, tem se traduzido para a categoria dos/as professores/as do Ensino Superior em diminuição de salários e demissões em massa, conforme diversos apontamentos realizados pelas categorias profissionais no Brasil, como sindicatos e federações de trabalhadores da educação, na última década.

Os que têm se mantido em seus cargos sofrem com a redução de investimentos em pesquisa, no caso das universidades públicas, e diminuição do número de aulas, no caso das universidades privadas, por conta do avanço desenfreado da educação a distância. O ensino remoto proposto como solução temporária por conta da pandemia ampliou esse quadro com demissões em massa. De acordo com Accarini (2020) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores), do início da pandemia até setembro de 2020 mais de 1800 professores do Ensino Superior haviam sido demitidos e 60% dos que mantiveram seus empregos haviam tido diminuição salarial. Para agravar ainda mais a situação, diversos veículos da mídia receberam denúncias de que algumas universidades vinham usando robôs no lugar de professores para corrigir atividades, sem que os alunos/as soubessem.

Segundo Tragtenberg (2012, p. 80), a figura do professor, a partir da imposição da sociedade capitalista, se aproxima, cada vez mais, da figura do proletário e, dessa forma, espera-se que ele se torne, um guardião desse sistema, que precariza seu trabalho, por meio da burocracia e de uma hierarquia administrativa pedagógica que detém o controle. Nesse sentido:

Você está numa sociedade capitalista em que tem que pagar tudo. Você não é professor mercenário e até para respirar você paga. Numa economia capitalista, o salário é o elemento central. E num país onde o salário é de escravo, é muito difícil você falar em pedagogia, falar de técnicas de educação, falar da função formativa do professor, do professor como detentor do saber. Não se iludam, não há tanto saber assim para deter. E isso até o terceiro grau. Quem está preocupado com o professor monopolizador do saber, fique tranquilo que não existe, porque o ensino ficou um lixo, ficou um comércio. A universidade hoje forma semianalfabetos. [...] (Tragtenbrrg, 2012, p. 37).

Tragtenberg, como é próprio de seu estilo, escancara aqui seu tom provocativo. O professor brasileiro encontra-se limitado a um “salário de escravo” que o impossibilita em muitos aspectos. Limita seu mover-se livremente, limita seu pensar autônomo porque o coloca em condição precarizada.

Sendo assim, nesse ensino comércio não há porque se preocupar com o professor detentor do saber, porque há pouco saber em trânsito. Há cursos curtos que não atendem nem mesmo a própria defasagem que os alunos carregam.

A partir disso, o professor universitário encontra-se pressionado pelas demandas do mercado, por seu medo de perder o emprego, pela dificuldade em ter que dar conta das defasagens educacionais que os alunos carregam desde o ensino básico.

Nas faculdades brasileiras de educação o desafio da formação docente é sempre um debate central. Se no período democrático isso se apresenta como desafio, nos anos da Ditadura Militar esse processo era ainda pior. As características que eram cobradas, do(a) futuro(a) educador(a), muito tinham do modelo considerado ideal pelos militares:

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata, a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas educacionais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Forma-se o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o campus universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam das classes altas e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma (Tragtenbrrg, 2004, pp. 12-13).

Não vivemos, evidentemente, a mesma realidade do último quarto do século XX, quando Tragtenberg publicou seus principais textos. Mesmo com o alarmante avanço do conservadorismo, cada vez mais presente e pressionando os setores educacionais, por intermédio de grupos como o ESP (Escola Sem Partido), nossa realidade, ao menos nesse momento, não é a nem a mesma dos “anos de chumbo”, muito menos a da redemocratização dos anos 80 e 90. Mesmo assim é possível perceber que alguns elementos, da crítica exposta pelo autor, permaneceram de maneira muito viva na universidade e também nos cursos de formação de professores. Tragtenberg já nos alertava com relação ao modelo de professor e de aluno que os conservadores desejavam, ou seja, o Projeto do ESP não é nada novo, apenas uma retomada dos velhos anseios fascistas.

O avanço da proposta neoliberal, que se inicia nos anos 90 com Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), colabora com o cultivo dessa proposta de professor tecnocrata, que apenas trabalha com materiais prontos, que não deve levar em conta a realidade de seu aluno, que aceita as propostas das secretarias de educação sem nenhum tipo de questionamento, que não reclama do salário etc.

Já a figura do professor-policial permanece tão presente nas escolas, e mesmo nas universidades, que nos faz pensar que o texto foi escrito recentemente. É muito provável que quem tenha frequentado o ambiente escolar ou acadêmico se deparou, uma ou algumas vezes, com professores(as) que se preocupavam mais com provas e notas do que com o aprendizado, ou com professores(as) que tinham grande satisfação em alardear seu autoritarismo. Nos vários anos em que lecionamos em cursos universitários acompanhamos de perto essa relação e esse debate. Por diversas vezes, nas salas dos professores era possível ouvir aqueles que se vangloriavam pelo número de reprovados em suas avaliações ou do medo que suas presenças impunham aos estudantes.

Se essa figura é prejudicial na escola, na universidade ela é nefasta. Seu objetivo de controle prejudica a pesquisa e a construção do conhecimento, retira por completo a razão de existir do curso universitário, ou pior, transforma a universidade em uma produtora de diplomas e o aluno(a) em cliente, alguém que paga por um serviço e o recebe ao final do percurso para se tornar mais uma peça no tabuleiro do sistema do Capitalista. Esse professor apenas reproduz o discurso dominante, burocratizando os caminhos dos que encontra, servindo como perfeito representante da ideologia neoliberal.

Maurício Tragtenberg considera que esse professor-policial, exerce a função de “cão de guarda”, que funciona a favor do pensamento dominante e que tem por objetivo maior colaborar na formação de sujeitos obedientes e disciplinados que, de preferência, irão se tornar futuros funcionários exemplares e cidadãos completamente alienados.

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas também pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação por meio das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames - “esse batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática e há o currículo invisível - esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico (Tragtenbrrg, 2004, p. 14).

Sendo assim, os exames podem se tornar uma espécie de ritual de passagem, comparado com um batismo do saber, ampliando demais seu valor, transformando-se não em um instrumento de colaboração de aprendizagem, mas em outro instrumento de controle, há toda uma liturgia que atravessa a simbologia dos exames como rituais de passagem.

5. Considerações finais

A partir da argumentação desenvolvida nesse texto, é possível afirmar que o neoliberalismo avança de forma muito concreta na educação brasileira, reivindicando cada vez mais espaço, trazendo para dentro de escolas e universidades as nomenclaturas, os hábitos e a burocracia empresarial.

Fica evidenciado que a burocracia se torna assim o cerne do processo de ensino e a grande marca de uma educação que se compromete apenas com as classes dominantes. Nesses moldes há o perigo de que o papel do/a professor/a seja apenas de reprodutor de conteúdos, representante do interesse das elites dominantes.

Mais do que isso. Esse se torna justamente o modelo de trabalhador que o neoliberalismo espera e busca moldar: obediente, silencioso e adestrado. Alguém que faça coro ao seu discurso.

Além disso, o (a) professor(a) universitário também fica refém dos tramites burocráticos, tendo que produzir e publicar incessantemente, essa pressão faz com que a qualidade de sua pesquisa possa ser prejudicada, pois para algumas instituições mais vale um pesquisador que publique vários pequenos artigos do que um pesquisador que demore anos com uma grande obra. Isso pode ser bem problemático, principalmente nas ciências humanas, não significando que pequenos artigos não sejam importantes, entretanto, se a escolha não for do(a) pesquisador(a), pode-se cair em algo perigoso, que aproximaria a produção acadêmica da produção industrial.

Dessa maneira, é possível que o(a) professor(a) universitário(a) então encontre-se em um dilema, produzir a todo custo ou ser criterioso com sua produção. Comprometer-se com um projeto político pedagógico emancipatório ou garantir seu emprego por meio da completa obediência aos tramites impostos pelos burocratas que comandam as instituições de ensino superior.

Maurício Tragtenberg, como buscamos demonstrar, já alertava para como essa estrutura vinha se consolidando, suas críticas pontuavam justamente o perigo que se estruturava por conta dessas políticas educacionais.

A partir da discussão feita, constatou-se a impressionante precisão com que o pensador anarquista apresentou décadas atrás, os rumos que a educação brasileira estava trilhando e qual seria seu destino. Se não podemos chamar de premonição, podemos ao menos afirmar que já havia a possibilidade de se imaginar o que já vinha se constituindo enquanto projeto de educação a partir de suas análises.

Não apenas isso. Tragtenberg com sua crítica pontual nos leva a refletir sobre possibilidades de resistência aos ataques que, como educadores/as, estamos sofrendo desde sempre. A compreensão do papel da professora e do professor, não apenas universitário, mas também do ensino básico, como parte fundamental da resistência da educação e a rejeição do modelo empresarial para a escola, são possibilidades concretas para pensarmos outros caminhos educacionais para trilharmos nos próximos anos.

Referências

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Notas

1 No momento da produção desse texto, em março de 2021, o ministro atual é Milton Ribeiro, sendo o quarto ocupante do cargo em pouco mais de dois anos de mandato.

Autor notes

*Correspondencia: rodrigo.barchi@ibirapuera.edu.br

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