Debate

A migração brasileira para a Guiana Francesa perspectivas atuais

Brazilian Migration to French Guiana: Current Perspectives

Manoel de Jesus de Souza Pinto [1]
Universidade Federal do Amapá, Brasil
Jorge Lucas de Oliveira Dias [2]
Universidade Federal do Amapá, Brasil

A migração brasileira para a Guiana Francesa perspectivas atuais

Revista del CESLA, núm. 22, pp. 153-178, 2018

Uniwersytet Warszawski

Recepção: 04 Agosto 2018

Aprovação: 20 Novembro 2018

Resumo: Este artigo tem como finalidade, a partir de temas como a migração, a clandestinidade e as relações de trabalho, analisar a constante presença de trabalhadores brasileiros na Guiana Francesa e Suriname, tomando como ponto de referência a fronteira norte do Brasil, e mais especificamente, o município de Oiapoque-AP. Parece-nos relevante neste trabalho entender o quadro geral das recentes mudanças em relação a este fenômeno histórico e as atuais tendências em relação aos postos de trabalho ocupados pelos imigrantes brasileiros, legal ou ilegal na região, principalmente após a inauguração da Ponte Binacional. A metodologia deste trabalho foi desenvolvida a partir da observação participante com grande auxílio da escrita etnográfica e análise documental. Neste sentido, este artigo pretende explorar os atuais fluxos migratórios, e identificar possíveis tendências e mudanças nas relações de trabalho no Platô das Guianas sejam em áreas de garimpo ou mesmos em núcleos urbanos como Caiena.

Palavras-chave: Guiana Francesa, Amapá, migração, relações de trabalho.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the constant presence of Brazilian workers in French Guiana and Suriname, in relation to topics such as migration, clandestinity and labor relations, taking as a point of reference the northern border of Brazil, and more specifically, the municipality of Oiapoque-AP. It seems relevant to us to understand the general picture of the recent changes in relation to this historical phenomenon and current trends in relation to the jobs occupied by Brazilian immigrants, legal or illegal, in the region, especially after the inauguration of the Binational Bridge. The methodology of this work was developed from participant observation with great help of ethnographic writing and documentary analysis. In this sense, this article intends to explore current migratory flows, and to identify possible trends and changes in labor relations in the Guiana Plateau whether in mining areas or even in urban centers such as Cayenne.

Keywords: French Guiana, Amapá, migration, work relationships.

Introdução

As pesquisas de campo que proporcionaram sustentação metodológica para este artigo ocorreram ao longo de quase 15 anos, realizadas em Macapá-AP, Santana-AP, Oiapoque-AP, no lado brasileiro, e em Saint Georges, Caiena, Kourou e Saint Loran du Marroni, na Guiana Francesa. Para efeito de sistematização, podemos dividi-las em três fases: a primeira realizada no território brasileiro, principalmente na faixa de fronteira entre o Estado do Amapá e a Guiana Francesa. A segunda, no Departamento Ultramarino Francês, quase sempre em núcleos urbanos, tendo a cidade de Caiena como referência principal. No Estado do Amapá, por todo ano de 2004 a 2008, pesquisamos e aplicamos entrevistas, estruturadas ou semiestruturadas, com cerca de 200 pessoas, incluindo principalmente imigrantes que passavam pela cidade de Macapá[3]. Ora estavam retornando de Caiena ou de garimpos ilegais, ora estavam voltando de seus Estados de origem para seus postos de trabalho. Podemos incluir, neste total de entrevistados, também trabalhadores que estavam indo pela primeira vez para a região de fronteira (município de Oiapoque-AP), para aguardar uma oportunidade de atravessar para o lado francês. Notadamente, entre nossos informantes, existiam aqueles mais bem qualificados, que moravam na Guiana Francesa há bastante tempo e assim repassaram informações preciosas para nossa pesquisa. É importante destacar que desde o momento que resolvemos pesquisar este tema (final de 2006), começamos os processos de entrevistas e o arquivamento de todas as matérias publicadas tanto em jornais paraenses quanto amapaenses.

O outro local estratégico e escolhido para realização de entrevistas, observações e estudos foi o município de Oiapoque-AP. Por isso, no segundo semestre de 2014[4], realizei cerca de três viagens de campo com o propósito de compreender melhor a dinâmica do fenômeno estudado, tendo como ponto de referência este município. Nesta empreitada, contamos a ajuda de bolsistas que faziam parte de um projeto de nossa autoria intitulado “Macapá como rota de imigração para Guiana Francesa”, vinculado à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Amapá. Na oportunidade, o tempo foi dedicado a encontrar informantes, preencher os questionários e entrevistar as autoridades locais (Polícia Federal, Polícia Militar, Poder Judiciário, Prefeitura, Associações de Classes e os Grupos Organizados no município). Os questionários usados cobriam a maioria dos aspectos da vida dos trabalhadores brasileiros, desde a decisão de trabalhar na Guiana Francesa, a informações básicas objetivando saber quem são esses imigrantes: formação educacional, histórias anteriores de trabalho, deslocamentos, idade, sexo, motivos para emigração dentre outras.

A terceira parte da pesquisa realizada em território francês se deu em dois momentos[5]. A primeira viagem explanatória para conhecer a área de estudo foi em 2004. Ficamos cerca de uma semana em Caiena, e neste período fiz inúmeras entrevistas com imigrantes brasileiros em um bairro conhecido como Cabassou. Na oportunidade, fomos informados dos principais problemas enfrentados em Caiena pelos brasileiros e por outros grupos étnicos, e que tipo de ajuda recebiam do Departamento Francês. Ainda nesta primeira viagem, visitamos os lugares mais frequentados por nossos compatriotas em Caiena, como os restaurantes que ofereciam comidas típicas do Brasil, principalmente da culinária da região Norte do país. Para a nossa surpresa constatamos que a maioria dos frequentadores dos restaurantes brasileiros eram franceses, que preferiam os nossos pratos à comida chinesa, por exemplo. Desde o momento em que aguardávamos a saída da van, em um ponto de embarque numa área central de Caiena, até a chegada em Saint-Georges/Oiapoque, fizemos importantes anotações sobre a viagem. Além disso, vivenciamos dezenas de situações de tensão ao longo do trecho Caiena/Saint-Georges, no que tange à presença de trabalhadores brasileiros sem documentação, o que permitiu refletir um pouco sobre a difícil condição da clandestinidade. Além das informações obtidas, fizemos vários registros fotográficos sobre Caiena e da rotina dos brasileiros nesta cidade. Ainda nesta visita, através da ajuda de amigos, visitei um canteiro de obras e alguns estabelecimentos comerciais, procurando brasileiros em suas jornadas de trabalho.

A segunda visita à cidade de Caiena, a mais demorada, ocorreu de 30 de outubro a 29 de novembro de 2006. Foi o principal período do trabalho de campo. Além do tempo dedicado a entender as relações de trabalho de imigrantes brasileiros na Guiana Francesa, tivemos a oportunidade de visitar locais de trabalho, restaurantes, casas de show, o Centro de Detenção de Imigrantes Ilegais, agências de câmbio e viagens, entrevistar trabalhadores que atuam na informalidade, e principalmente conseguimos ter acesso a informações e documentos no Consulado brasileiro em Caiena. Os dados obtidos na primeira viagem, além de atualizados, foram ampliados e reelaborados, e novas áreas e locais de estudo foram escolhidas para entrevistas, como por exemplo, o bairro da Matinha, bastante conhecido por abrigar centenas de famílias brasileiras. Além disso, desta vez priorizamos conhecer melhor como é a vida de clandestinos e a condição de clandestinidade em solo francês, inclusive, como dissemos acima, tivemos a oportunidade - nos passando por funcionários do Itamaraty - de entrar no Centro de Detenção da Polícia Aduaneira Francesa (PAF) e presenciar a situação de humilhação de centenas de brasileiros que são deportados toda semana para Belém-PA e Macapá-AP. O ritual é o mesmo todas as segundas, quartas e sextas, uma equipe de funcionários do Consulado expede uma espécie de “Carteira de Identidade Provisória” (ARB) com um único propósito: atestar a nacionalidade brasileira em seu próprio país, para a Polícia Federal brasileira. Apenas para evidenciar um dado estatístico, no início de novembro de 2006, mais de quinhentas pessoas, entre homens e mulheres, já tinham sido expulsas do Departamento Francês.

Não podemos negar que o processo de escolha das pessoas para as entrevistas em Caiena foi bastante emblemático. A situação de clandestinidade afasta bons informantes, e a solicitação de gravar as informações geralmente não é bem aceita pela população brasileira em Caiena. Além disso, outro problema clássico é a falta de informações precisas sobre o número exato de brasileiros na Guiana Francesa. A população em situação regular é bem menor do que a população que reside de forma clandestina. Vale ressaltar ainda que existem dezenas de situações sui generis vivenciadas por esses brasileiros na Guiana Francesa, pois, geralmente, por exemplo, componentes de um mesmo grupo familiar são tratados de forma diferenciada pelo governo francês. Os filhos nascidos em solo francês possuem privilégios, principalmente quando o pai ou a mãe têm documentos que comprovam vínculo empregatício. Mas geralmente, apenas a mãe ou o pai são legalizados. Por isso, mesmo os filhos estudando em escola francesa, pode ocorrer de sua mãe, segundo as novas resoluções e leis francesas de migração, ser deportada por falta de documentos.

Durante todas as fases das pesquisas, principalmente as mais recentes (2010-2016), visitei lugares estratégicos para a condução deste estudo: fomos ao mercado central, a lojas comerciais, a canteiros de obras e casas noturnas frequentadas por brasileiros. Enfim, tentamos experimentar uma situação próxima a que os antropólogos chamam de observação participante, principalmente pelo fato de fazer uma imersão no cotidiano urbano daquela cidade e tentar sentir o peso do trabalho na vida desses trabalhadores.

Ao longo do texto, muitas histórias de vida aparecem intercaladas na forma de breves relatos. A utilização destes fatos narrados pelos informantes deu-se por acreditar que depoimentos pessoais deste tipo emprestam um poder de síntese à narrativa, além de oportunizar voz aos verdadeiros atores da pesquisa. No entanto, é importante lembrar neste momento que os depoimentos, ao mesmo tempo em que revelam sentimentos comuns (ex: “sofremos muito preconceito aqui”), registra também um dado momento, uma realidade temporal, um estado de espírito. Explicando melhor: dependendo da situação financeira, emocional e profissional, os imigrantes desenham/representam para si próprios e para os outros uma Guiana Francesa específica, extremamente subjetiva.

Apesar do medo inicial, a maioria dos entrevistados foi extremamente solícitos. Ao longo de quase 15 anos de pesquisa de campo, realizei cerca de centenas de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas em Caiena, em Oiapoque-AP e Macapá-AP) e quase 500 conversas/entrevistas informais, que eram registradas logo em seguida, de forma detalhada[6]. Alguns informantes inclusive se empolgavam e falavam até mais do que eu esperava. É importante registrar neste momento a coragem de todos os trabalhadores brasileiros que residem em Caiena e adjacências, que apesar das adversidades ainda encontram bons motivos para sonhar; e essas utopias servem como uma espécie de bálsamo para enfrentar, tanto os preconceitos quanto a solidão. O mínimo que posso fazer é poder recompensá-los através desta pesquisa, apresentando uma imagem real de suas vidas em solo francês.

Na primeira seção tentaremos recuperar alguns momentos do trabalho de campo em diversos momentos das pesquisas realizadas, a partir da presença brasileira na Guiana Francesa. Apenas para efeito de contextualização, queremos analisar depoimentos e relatos, e desenhar o cenário desses primeiros deslocamentos de trabalhadores, elaborando as principais características dessa fase. Na segunda seção, faremos uma discussão sobre as principais características do movimento migratório para a Guiana Francesa. A partir do survey realizados (2004-2014), queremos apresentar algumas análises quantitativas (dados sociodemográficos) da recente migração brasileira para o Departamento Ultramarino Francês. Ainda nesta parte do trabalho, abordaremos as temáticas sobre o que é ser imigrante na Guiana Francesa, ou seja, como podemos analisar estes sentimentos e percepções por parte dos trabalhadores brasileiros.

No bojo de todas estas temáticas, mostraremos as fragilidades e as dificuldades dos brasileiros frente à burocracia francesa, e desta forma relatar como os mesmos ficam expostos às indústrias do emprego e do trabalho semiescravo na região. Este comentário acima tem a ver com pagamentos compulsórios (milhares de euros) que imigrantes brasileiros têm que pagar todos os anos, por ocasião da revalidação de seus vistos. Além disso, pretendemos mostrar a migração feminina no Departamento Francês. Recentes relatórios de instituições multilaterais confirmam o progressivo aumento da participação feminina nas migrações internacionais, e a realidade guianense não é diferente. Nesse sentido, queremos apresentar a realidade enfrentada por milhares de brasileiras no mercado de trabalho local, suas jornadas de trabalho e área de atuação, sempre objetivando reconstruir alguns fatores que caracterizam o ato migratório feminino no mundo contemporâneo e globalizado.

Na terceira seção do artigo realizamos uma etnografia[7] da clandestinidade sob o ponto de vista metodológico, das atividades de campo. Para isso, apresentaremos inúmeros relatos de trabalhadores brasileiros e suas trajetórias de vida no território guianense. Os riscos de naufrágios, as fugas na mata, a saudade da família, os roubos, os acidentes, a malária, as mortes silenciosas, o anonimato, são temas que serão abordados de forma minuciosa, com detalhamento. Assim, diversas narrativas dos trabalhadores brasileiros na Guiana Francesa reproduzem situações de desespero, condições de vida, de prostituição, de casamentos por vistos, de tragédias pessoais, família, de ressentimentos, de solidão, de deportação e de direitos humanos. Lembrando apenas que todas essas situações descritas terão como pano de fundo a temática da ilegalidade, que dificulta ainda mais a permanência de brasileiros em terras.

O campo e os desafios interpretativos

No decorrer de mais de uma década de pesquisas no Platô das Guianas, e de centenas de entrevistas, nos mais diversos contextos, (festas, dentro de vans, em bares, shows, locais de trabalho, praças, hospitais, romarias, penitenciárias, cultos, missas e etc.) foi possível avaliar sonhos, dimensão de realidade, projetos de vida, angústias, decepções a partir dos depoimentos dos diversos tipos de imigrantes brasileiros que procuram trabalho e melhores condições de vida na Guiana Francesa. É interessante perceber como as metas vão se modificando ao longo dos anos, surgindo novos indicadores de resistência e desafios. A capacidade de resiliência dessas pessoas é bastante alta, e o que poderia parecer uma derrota há 10 anos, atualmente se naturalizou como parte do cenário cotidiano.

Durante todas as fases destas pesquisas, principalmente depois de 2010, visitei lugares estratégicos para a condução deste estudo: fui ao mercado central, a lojas comerciais, a canteiros de obras e casas noturnas frequentadas por brasileiros. Enfim, tentei experimentar uma situação próxima a que os antropólogos chamam de observação participante, principalmente pelo fato de fazer uma imersão no cotidiano urbano daquela cidade e tentar sentir o peso do trabalho na vida desses trabalhadores.

Muitas histórias de vida aparecem intercaladas na forma de breves relatos, mesclando desabafos, mágoas com o Brasil e ao mesmo tempo reconciliação, com a ideia de retorno por cima, com dinheiro para investimentos. O que não ocorre frequentemente, já que alguns retornos respondem por deportações e o dinheiro ganho em moeda europeia acaba sendo utilizado para remessas as famílias e tentativas de gastos com processos de regularização documental. A utilização destes fatos narrados pelos informantes deu-se por acreditar que depoimentos pessoais deste tipo emprestam um poder de síntese à narrativa, além de oportunizar voz aos verdadeiros atores da pesquisa. Mas é válido lembrar neste momento que os depoimentos, ao mesmo tempo em que revelam sentimentos comuns (ex: “sofremos muito preconceito aqui”); registra também um dado momento, uma realidade temporal, um estado de espírito. Explicando melhor: dependendo da situação financeira, emocional e profissional, os imigrantes desenham/representam para si próprios e para os outros uma Guiana Francesa específica, extremamente subjetiva.

Apesar do medo inicial, a maioria dos entrevistados foram extremamente solícitos. Ao longo desses quase 15 anos de pesquisa de campo, realizei cerca de centenas de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas e quase uma centena de conversas/entrevistas informais, que eram registradas logo em seguida, de forma detalhada. Alguns informantes, inclusive se empolgavam e falavam até mais do que eu esperava.

Os motivos que levaram estes primeiros trabalhadores a se dirigirem para o Departamento Francês, não são muito diferentes dos atuais, respondendo principalmente por falta de empregos e, os baixos salários destinados no Brasil a certas categorias de profissionais (pedreiros, carpinteiros, “mestres de obras” etc.). Os relatos colhidos por Arouck em sua pesquisa, ilustra bem esta situação, inclusive servem também para dimensionar as migrações mais recentes e atuais:

O Brasil só é bom pra quem tem estudos. Pra gente, que não conseguiu estudar não tem nada, só exploração. Quando eu estava em Macapá, ouvia dizer que aqui em Caiena se encontrava ouro no meio da rua. Tomei um barco quando tinha 16 anos e vim parar por aqui, onde estou até hoje. E os boatos não paravam por aí [...] Na década de 80, no auge da construção das instalações da cidade de Kourou, realmente a imagem que se difundia no Brasil sobre as possibilidades e oportunidades de trabalho e renda em Caiena eram animadoras: ‘chega-se pobre e sai rico’, ‘as gorjetas chegam a 100 dólares’, ‘tem dinheiro espalhado pela rua’ (Arouck, 2002: 104).

Recuperando um pouco a história das migrações brasileiras para a Guiana Francesa, através dessas informações seminais, podemos constatar, ao mesmo tempo, transformações e continuidades ao longo de quase quatro décadas de processo migratório. O desenvolvimento e o crescimento dos fluxos migratórios nos últimos dez anos provocaram mudanças de atividades no mercado de trabalho local, principalmente na cidade de Caiena. No entanto, algumas estratégias de absorção, recrutamento e seleção destes trabalhadores ainda ocorrem como no passado, e nas mesmas atividades profissionais de outrora. Atualmente, os brasileiros interessados em trabalhar não ficam mais esperando trabalho na praça mais importante de Caiena, até por que as redes sociais presentes na cidade cuidam disso. No entanto, as estruturas desses fenômenos migratórios ainda apresentam muitas semelhanças com o da década de 1960. Em relação a alguns aspectos, o quadro até se agravou ainda mais como, por exemplo, no que tange ao maior controle e vigilância da entrada e saída de imigrantes clandestinos.

No início do movimento migratório de brasileiros à Guiana, ainda nos anos 1960, como vimos anteriormente, destacaram-se as iniciativas de determinadas empresas e do próprio Estado francês na busca de trabalhadores brasileiros para trabalhar na área da construção civil (pedreiros, pintores, mestres de obra e carpinteiros); em face da falta de mão de obra disponível no mercado de trabalho local. Mesmo sem Kourou, a realização permanente de obras de infraestrutura na Guiana garantiu a regularidade do fluxo migratório brasileiro, principalmente para Caiena, com períodos de picos (1979, 1983, 1987) (Calmont apud Arouck, 2002).

Na década de 1980, também entrou em cena outro grupo profissional de trabalhadores: os garimpeiros[8]. Tradicionalmente conhecidos como forasteiros/aventureiros, esse segmento se fixou principalmente na região de fronteira, em garimpos ilegais, ou mesmo em garimpos legalizados do lado francês, atrás do tão sonhado Eldorado. Atualmente, o mercado de trabalho não é o mesmo de décadas atrás; mas mesmo assim, profissionais que possuem ofícios “clássicos”, ainda conseguem empregos com mais facilidade em relação a outros grupos de trabalhadores.

A maioria desses migrantes vem do Amapá, do Pará, Maranhão e do Amazonas, Estados estes entre os mais pobres do Brasil. Antes de deixarem o país, geralmente esses trabalhadores residem em suas cidades de origem ou em pequenas comunidades amazônicas nos quais trabalham em setores desprezados pela população local: atuam como carpinteiros, pescadores, artesãos, pedreiros, construtores navais, enquanto as mulheres geralmente são empregadas em casas de famílias ou trabalham em pequenos pontos comerciais. Quando, por algum motivo, essas pessoas são demitidas ou perdem seus pequenos negócios, muitas resolvem se aventurar no Departamento Ultramar Francês.

Motivados pela esperança de “mudar de vida”, estes imigrantes deixam para trás um país e, principalmente, uma região marcada por profundas desigualdades sociais; e levam consigo o sonho de um dia retornarem para casa em boas condições financeiras. Entretanto, diante da dramática situação de apartheid social das regiões Norte e Nordeste, muitos desses trabalhadores descartam o plano de retorno, principalmente quando pensam em segurança pública, saúde e previdência social; e assim o dilema da volta torna-se um verdadeiro pesadelo. Atualmente, os salários franceses são quatro a dez vezes mais alto do que os brasileiros, sem esquecer as alocations familiales, dinheiro pago pelo governo francês aos pais para cada criança nascida em território francês (Granger, 1999).

Migrantes brasileiros na Guiana Francesa: aproximações empíricas

Na verdade, população exata de residentes brasileiros na Guiana Francesa não é conhecida nem pelas autoridades locais e muito menos pelo Consulado Brasileiro no Departamento Ultramarino Francês. E isto ocorre por um motivo básico: a clandestinidade. Nos estudos de Arouck (2002), Pinto (2008), Police (2010) e Piantoni (2012) informações extras oficiais davam conta de cerca de 35 mil brasileiros na Guiana Francesa. Mas talvez esses “desencontros numéricos” não façam grande diferença para entender a dura realidade enfrentada por milhares de trabalhadores “com ou sem documentos”. Os dados oficiais (Consulado Brasileiro) de 2014 (cerca de 15 mil) servem apenas para identificar os legalizados. Muitos imigrantes apenas são contabilizados nas estatísticas oficiais, por ocasião de suas mortes ou enfermidades graves, que frequentemente ocorrem em áreas de garimpo ou em tragédias pessoais nas adjacências e distritos de Caiena, como também em algumas cidades do Departamento Ultramarino Francês. As deportações, que acontecem semanalmente, também atestam números impressionantes do volume migratório na região.

Os dados colhidos nas pesquisas de campo realizado durante uma década dois anos de trabalho, em Macapá-AP, Oiapoque-AP, Saint-Georges e Caiena, indicam que poucas mudanças ocorreram, ao longo das últimas duas décadas, em relação ao perfil do “típico dos imigrantes brasileiro na Guiana”. Apesar de não termos estatísticas exatas como ponto de referência para essas novas análises, a pesquisa qualitativa e os relatos orais obtidos com primeiros imigrantes que chegaram a Caiena no final da década de 1960 até o início dos anos 1980, são instrumentos fundamentais para fazermos algumas analogias e projeções, em vários aspectos. No entanto, quando afirmamos que poucas mudanças ocorreram em relação a este fenômeno, não queremos dizer que a realidade migratória permaneceu estática desde os anos 1960. Estes novos ciclos migratórios têm como destaque, por exemplo, o aumento da presença feminina no Departamento Ultramarino Francês. Esta feminização da imigração brasileira para a Guiana Francesa ocorre por vários motivos, alguns já mencionados neste trabalho: 99% nos relataram que vieram para a Guiana Francesa em busca de emprego e melhores condições de vida. Com bastante frequência, muitas mulheres brasileiras, que se tornaram mães ainda na adolescência, cruzam a fronteira para poderem criar seus filhos, que geralmente ficam com avós ou parentes próximos em suas cidades de origem.

Dos cem entrevistados no final de minhas pesquisas para o doutorado, cem no total, 73% foram homens e 27% mulheres. Segundo depoimento de pioneiros da década de 1970, como dona Maria e o senhor Durval. Poucas mulheres se aventuravam em atravessar a fronteira. Basicamente, eram aceitas apenas como empregadas domésticas em Saint-Georges e Caiena. Na verdade, as primeiras nortistas residentes em Caiena, eram esposas dos imigrantes brasileiros que trabalhavam na construção de Kourou, ainda nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Atualmente, a realidade está se modificando. Há um grande número de mulheres solteiras trabalhando de forma clandestina em áreas de garimpo e na própria cidade de Caiena. Pode-se concluir, portanto, que o número de mulheres brasileiras no mercado de trabalho local tende a aumentar nos próximos anos.

No que se refere à idade, a maioria dos brasileiros concentra-se na faixa de 30 a 45 anos (56%). Em relação ao estado civil desses imigrantes, a maioria dos homens (86%) são casados. No entanto não devemos entender o termo casado ao “pé da letra”. Muitos se declaram casados por que deixaram mulher e filhos no Brasil. Por outro lado, as mulheres (77%) se declaram solteiras. Os dados informaram que geralmente elas possuem de 1 a 2 filhos. No caso dos homens, o número de filhos é maior, ficando entre 2 e 6. Na maioria das vezes, esses filhos já são adolescentes e de mães diferentes, fruto de dois, um ou mais relacionamentos. O índice de imigrantes solteiros é relativamente baixo, cerca de 5% do total de entrevistados. Praticamente, não existem mulheres casadas, com maridos no Brasil, trabalhando na Guiana Francesa, principalmente em Caiena. É evidente o grande número de jovens brasileiras que frequentam casas de show e bares na noite guianense. O problema da prostituição existe realmente e é bastante perceptível, mas é muito difícil de ser assumido, principalmente para quem faz desta atividade sua única fonte de renda. Obviamente que neste survey nenhuma mulher brasileira se declarou prostituta. O que deu para constatar é que a prostituição é, pelo menos para uma parte das mulheres brasileiras, uma ramificação das diversas tarefas que realizam no mercado de trabalho local. Ou seja, a prática de “namorar” com franceses e crioulos é uma atividade de trabalho complementar (Pesquisa de Campo, 2006). O depoimento a seguir ajuda a entender melhor esta situação:

Vamos aos bares e às boates para nos divertirmos. Temos nosso trabalho diário. Eu por exemplo “me mato” a semana toda fazendo unha. Quem não gosta de dançar e beber um pouco para matar a saudade do Brasil? (risos). Todas as mulheres aqui sabem o que os franceses e os crioulos querem e o que eles pensam da gente [...]. Em muitos casos, o lazer e a chance de ganhar um dinheiro extra andam juntos. Muitas se dão “bem” outras nem tanto [...] Por outro lado, tem meninas que vem do Pará e do Amapá para trabalharem diretamente em casas noturnas. Estas sim, vivem exclusivamente como profissionais do sexo em Caiena. No entanto, nem os brasileiros e nem os franceses fazem esta distinção. O que prevalece mesmo é que toda brasileira é garota de programa, o que acaba sendo uma meia verdade (Amapaense, 29 anos, sem documentos, trabalha em um salão de beleza em Caiena desde 2001).

Através de relatos informais e indiretos, ficamos sabendo que para muitas mulheres brasileiras a possibilidade de “arranjar” um casamento ou mesmo um namorado francês é uma espécie de “projeto de vida constante” ou mesmo um alento para enfrentar a vida difícil de Caiena. Todas conhecem algumas histórias com “final feliz”. Quando o sonho se transforma em realidade, muitas mulheres melhoram sua situação financeira e principalmente minimizam o problema da clandestinidade. Neste contexto, o casamento por visto se tornou, não só na Guiana Francesa, mas em outras realidades semelhantes, um grande negócio. O Cartório Jucá, um dos mais importantes de Macapá, recentemente apresentou números significativos de união matrimonial entre mulheres amapaenses e franceses. Vale lembrar que em relação a estas uniões, que ocorrem em território brasileiro, o acaso pouco ou quase nada tem a ver: na verdade, trata-se com frequência de um grande negócio. No decorrer de cada ano, em períodos estratégicos, como por exemplo, carnaval, muitos franceses são atraídos por agências de turismo para desembarcarem em Macapá atrás de “emoções fortes”. É justamente nestes momentos festivos, de pura descontração, que futuras famílias são criadas. A maioria dos casamentos entre mulheres amapaenses e franceses/crioulos, realizados em Macapá, ocorre desta forma. É quase impensável, por exemplo, a possibilidade de um francês conhecer uma brasileira na noite de Caiena e depois casar-se com ela em território brasileiro.

Em termos de síntese, os resultados desta pesquisa apontam a existência de um perfil básico do imigrante brasileiro na Guiana Francesa. No entanto, aos poucos, novas características começam a aparecer e compor um novo quadro migratório, alterando gradativamente os estilos e as características desses atores sociais.

Os dados colhidos neste survey, comparados com outros trabalhos sobre o perfil do imigrante brasileiro nos Estados Unidos (Margolis, 1994; Sales, 1993; Martes, 2000); por exemplo, revelam acentuadas diferenças. Resumidamente, os resultados desta pesquisa não apontam para tipos diversificados de imigrantes brasileiros na Guiana Francesa. Todos acabam obedecendo à lógica da desqualificação profissional, do baixo nível cultural e com pouca escolaridade. Como não sabemos oficialmente o número de brasileiros residentes na Guiana Francesa, não podemos saber com precisão a quantidade exata, por estados brasileiros, dos emigrantes que saem do Brasil. Mas certamente é das regiões Norte e Nordeste o maior volume de trabalhadores que atuam no mercado de trabalho guianense. Tanto matérias jornalísticas publicadas em revistas especializadas quanto trabalhos acadêmicos sobre o tema (Arouck, 2002; Bourdieu, 1990; Mam-Lam-Fouck, 1996), informam que os estados do Amapá, do Pará e do Maranhão são os maiores exportadores de mão-de-obra para a Guiana Francesa. Nosso estudo revelou de maneira explícita que a maioria vem de realidades rurais/interioranas e até ribeirinhas, como foi dito anteriormente. No caso do Amapá, por exemplo, tem gente de Porto Grande, de Oiapoque, de Calçoene, de Santana, de Tartarugalzinho e de distritos como Bailique e São Joaquim do Pacuí.

Muitos imigrantes destas localidades rurais estão fugindo também do esquecimento, da fome e do desemprego que afetam essas pequenas comunidades amapaenses. Apesar de terem alimentação (caça e pesca), estes recursos sozinhos não garantem a estabilidade familiar. Educação e saúde praticamente inexistem nestes municípios ou são acessados de forma precária pela população local. Trabalhar na Guiana Francesa aparece como uma alternativa imediata para muitos trabalhadores e significa uma possibilidade concreta de mudar de vida, diante de realidades tão cruéis.

É importante destacar também que podemos ampliar essas análises para outros Estados, como o Pará e o Maranhão. Neles encontramos praticamente os mesmos problemas suscitados além de outras variáveis econômicas. Existem muitos trabalhadores na Guiana Francesa provenientes de cidades do nordeste paraense: Bragança, Capanema, Santa Maria do Pará, Castanhal, Salinas, Capitão Poço, Oeiras do Pará etc. Algumas cidades localizadas às margens do rio Amazonas ou mesmo no arquipélago do Marajó também possuem representantes na Guiana Francesa: Breves, Soure, Salvaterra, Chaves etc.

Um dado interessante que a pesquisa constatou é que o número de trabalhadores provenientes de cidades maranhenses vem crescendo bastante nos últimos cinco anos. Em rápida consulta feita em dez hotéis e “pousadinhas” no município de Oiapoque-AP, constatamos através dos gerentes destes estabelecimentos que de cada dez hóspedes nestes locais, quatro nasceram no Maranhão. Nosso trabalho revelou ainda que a maioria dos maranhenses que resolveram “encarar” o lado francês dispõem de certas experiências, pois muitos já moraram em outras cidades do sul do Estado do Pará e estão longe das famílias há bastante tempo.

A busca por trabalho quase sempre é respaldada pela coragem e pela experiência profissional de cada um desses imigrantes. Os brasileiros trabalham muito e de forma diversificada para se manter e garantir as remessas mensais para seus familiares no Brasil. A maioria desse pessoal desenvolve atividades de trabalho extra e por isso trabalham nos três turnos. Essa tomada de decisão de se debruçar somente no trabalho feito pelos trabalhadores imigrantes tem muito a ver quando os mesmos percebem o alto custo de vida na Guiana Francesa, principalmente em Caiena. A decisão, por exemplo, de fazer uma poupança em território francês é uma atitude onde desejo e realidade atuam de forma conflituosa. As poucas casas de show na área portuária de Caiena, constantemente são frequentadas por brasileiros. São nesses locais que as economias, de meses e anos, feitas com grandes sacrifícios costumam se esvair. A dura realidade do custo de vida em Caiena (cerca de 30% a mais do que na metrópole) é a primeira constatação de um imigrante recém-chegado e, digamos assim, a primeira frustração do “sonho guianense” (Pesquisa de Campo, 1996).

A outra frustração constatada seria com a língua. Um importante instrumento de sociabilidade, para muitos brasileiros é um fator de limitação, e acaba restringindo importantes formas de acesso a outras redes sociais. O não domínio da língua francesa por boa parte dos trabalhadores brasileiros, também dificulta sua ascensão a postos de trabalhos mais qualificados e com melhor remuneração. No entanto, este problema não é um fator decisivo para o sucesso ou fracasso de nossos compatriotas em solo francês. Inclusive, o governo francês está dificultando ainda mais a burocracia para fornecer carte de séjour de dez anos para imigrantes que não tenham pelo menos um conhecimento instrumental da língua francesa.

Sentimentos e percepções sobre o que é ser imigrante na Guiana Francesa

Uma das características fundamentais do fenômeno da imigração é que, fora algumas situações excepcionais, ele contribui para dissimular a si mesmo sua própria verdade (Sayad, 1998). Ao iniciar minha pesquisa, em 2005, sobre a presença de brasileiros na Guiana Francesa, a partir de uma perspectiva de relações de trabalho, fui surpreendido pelo conteúdo diferenciado das narrativas dos entrevistados. Apesar de ter registrado respostas parecidas sobre determinados assuntos (ex: preconceito, saudades do Brasil) havia sentimentos e percepções diferenciadas sobre o significado dessas experiências migratórias. Era como se para cada um desses trabalhadores existisse uma verdade própria. A maneira pelas quais os informantes se comportavam diante de alguns temas, apenas reforçava a ideia de que aquelas respostas dadas constituíam um grande mosaico de experiências construídas ao longo de suas vidas, ou numa linguagem bourdieuseana, de hábitos.

Um dos assuntos mais complexos dentro do campo migratório trata-se do relacionamento entre o tempo do imigrante e o tempo da imigração. Segundo Sayad (1998) a imigração condena-se a engendrar uma situação que parece destiná-la a uma dupla contradição: não se sabe mais se se trata de um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário, se se trata de um estado mais duradouro, mas que se gosta de viver com um intenso sentimento da provisoriedade. Da mesma forma como se impõem a todos – aos imigrantes e também à sociedade que os recebe, bem como à sociedade da qual provém –, essa contradição fundamental, que parece ser constitutiva da própria condição do imigrante, impõe a todos a manutenção da ilusão coletiva de um Estado que não é nem provisório nem permanente (Sayad, 1998).

Caiena, primeiro de novembro de 2006. Em uma sala de um pequeno apartamento no bairro Central, pela parte da manhã, aproveito a visita à casa de um amigo e entrevisto dois brasileiros que trabalham há bastante tempo no Departamento Francês. Compõem o cenário uma pequena cozinha, garrafas de bebidas e um aparelho de rádio amador. A entrevista inicial foi com Francisco de Assis Pereira Ribeiro, 44 anos, natural da Paraíba. Sua família atualmente está residindo (três filhos e mulher) no município de Alenquer-PA. Numa conversa de quase 30 minutos, me explicou sua atual situação e seus planos para o futuro: Francisco não era “marinheiro de primeira viagem”. Ele chegou à Guiana Francesa em 1993, e por isso já tinha acumulado muitas experiências de trabalho. Atualmente, recebe uma espécie de seguro desemprego do governo francês (cerca de 420 euros mensais), pois, antes de ficar desempregado, trabalhava de forma legal numa empresa local, de acordo com as leis trabalhistas francesas. No período da entrevista, estava fazendo um “bico” na área da construção civil (ajudante de pedreiro), por este trabalho recebia uma diária de quase cinquenta euros. Atualmente estava fazendo uma espécie de “ponte aérea” entre Caiena e Alenquer-PA. Disse-me ainda que só estava na cidade para resolver uma “bronca”.

A “bronca”, na verdade, tratava-se de atualizar seu cadastro junto à Instituição que controla e fiscaliza esses benefícios trabalhistas que são pagos; e saber se o mesmo já se encontrava empregado ou pelo menos procurando um novo emprego. Para receber esses recursos financeiros do governo francês, Francisco deixou seu cartão bancário com uma amiga que, mensalmente, retira o dinheiro e o remete para sua conta bancária em território brasileiro. Por esse serviço paga quarenta euros. Como tem um visto de dez anos (sua carte de séjour vence somente em 2010), entra e sai do departamento francês a hora que quer. Orgulhoso de sua atual condição, garante que “pegou no pesado” para estar hoje desfrutando desse privilégio.

Na verdade eu “estou lá e aqui” (risos). Vou resolver essas broncas e retornar lá pelo dia 15 de dezembro para Alenquer. Quero passar o fim de ano no Brasil. Mas em janeiro estou de volta.

Eu vim pra cá em 1993. A primeira firma que trabalhei aqui foi na TEXMINA, que atuava no ramo da mineração... passei quatro anos nesta empresa. Depois dessa experiência trabalhei mais em três empresas, todas mexiam com ouro. Atualmente garimpo tá acabado em Caiena. A maioria das firmas está parada. Antes a gente ganhava “ porcentagem” hoje só querem pagar salário fixo, o que não compensa [...]

Atualmente, eu faço apenas “bico” e ganho do governo. Como nos meus empregos anteriores eu descontava meu “seguro”, atualmente recebo uma ajuda financeira pelo tempo que trabalhei. Nos primeiros dois anos e seis meses recebia 712 euros. Agora caiu um pouco, recebo 420. Espero receber por mais dois anos esse valor, no entanto está vindo outro presidente, que é muito racista, e já avisou que vai acabar com isso, com tudo o que é imigrante ilegal no país.

Tem dia que tem uma equipe de quatro, outro de cinco. Varia muito. Mas todos pretendem voltar ao Brasil. Apenas estão aqui a trabalho. Por que eles querem voltar? Pra quem não conhece Caiena, acha que aqui é bom, mas não é não [...] à vista do Brasil, lugar melhor que o Brasil não existe. Mas o que é que não tem aqui e tem no Brasil? Negócio de farra, de brincadeira [...] mulher [...] aqui não tem a liberdade que tem lá. Arranjar uma namorada aqui é muito difícil, principalmente se não souber falar o idioma francês.

Sempre eu penso isso, mas o Brasil não oferece trabalho pra gente. Não tem como arranjar um emprego [...] Então à gente sempre “se obriga a vim”. Não tem jeito.

O cara tem que caprichar muito [...] O que a gente ganha aqui se for cambiar no Brasil, torna-se um salário alto. Mas aqui as coisas são muito caras. Se o cara não economizar não consegue fazer nada. Pode trabalhar à vontade [...] (risos).

Ainda falo com muitos colegas que vieram comigo na primeira vez. Outros, assim que a gente entrou aqui para trabalhar, negociaram com o governo [...] A questão era a seguinte: o governo francês queria que a gente voltasse para o Brasil e por isso “comprava o documento da gente”. É, ele negociava o visto, principalmente de quem tinha Carte de Séjour de 10 anos. Agora, não poderia retornar mais [...] Teve gente que vendeu e hoje trabalha clandestino. Eu conheci um cara que ganhou (na época a moeda era o franco) cerca de 32 mil reais para voltar ao Brasil. Ele montou um negócio, que faliu logo em seguida [...] Essa mesma pessoa trabalha atualmente como clandestina.

Em relação a oferta de trabalho, a Guiana não tem nem comparação com o Brasil. Aqui não tá bom, mas à vista do Brasil tá bom demais [...] No Brasil trabalho não existe, não tem. Aqui a gente arruma trabalho [...] não é coisa pra gente crescer, juntar dinheiro, mas pra sobreviver dá [...] Quando não estou no Brasil, mando em média 200 euros para minha mulher.

Neste relato, Francisco Ribeiro discorreu sobre vários temas: retorno ao Brasil, como foram suas primeiras experiências como trabalhador no Departamento Francês, benefícios trabalhistas e previdenciários, saudade de casa, as diferenças entre o nosso país e a França em relação a oportunidades de trabalho e até sobre a possibilidade de “poupança” em território guianense. De maneira geral, ele consegue transmitir em seu discurso uma ideia compartilhada por centenas de outros trabalhadores brasileiros em Caiena, e de forma mais genérica, na Guiana Francesa: o dilema ad finitun das comparações, das analogias, entre duas sociedades extremamente diferentes, mas ao mesmo tempo importante para ele. Ao afirmar que “estar lá” e “aqui”, como fez questão de enfatizar, logo no início da entrevista; significa que ele já tomou uma decisão, que é de ficar nos dois lugares (Pará e Guiana Francesa). Em um sentido weberiano, esta ação é racional visando os fins, pois a relação “custo/benefício” é previamente calculada. Outra entrevista fundamental para este trabalho de pesquisa foi com o Cônsul Geral do Brasil, Carlos A. L. de Carvalho, que aconteceu no início do mês de novembro, na Sede do Consulado (444 Chemin Saint-Antoine BP 793 – 97337 – Caiena). Em quase 50 minutos de entrevista, o Cônsul falou pela Instituição e por ele mesmo de assuntos de alta complexidade, obviamente relacionados à presença de imigrantes brasileiros, legalizados ou não, em todo o território do Departamento Ultramarino Francês.

O início da entrevista foi num clima meio tenso. No mês de outubro de 2005 aconteceu um incidente bastante grave entre a polícia francesa e os comerciantes brasileiros que abasteciam os garimpos ilegais do lado francês. Numa verdadeira operação de guerra, inúmeras barcaças foram destruídas no momento que estavam em terras francesas, estacionadas. O fato teve repercussão imediata em Macapá, principalmente na imprensa local e junto à classe política. Apenas para se ter uma ideia da repercussão do caso, esta notícia foi divulgada pelo site Terra, um dos mais vistos no Brasil, no dia 28 de outubro de 2006.

Os sub-empreiteiros e as relações de trabalho de brasileiros na Guiana Francesa

O ingresso do trabalhador brasileiro no mercado de trabalho guianense, principalmente em Caiena, ocorre de forma aleatória e não sistemática. Na área da construção civil, por exemplo, existem centenas de pequenas empresas prestadoras de serviço, seja para a população em geral ou mesmo para o governo francês. São nestas pequenas firmas que os trabalhadores brasileiros começam a ter as primeiras experiências de trabalho. Os primeiros contratos são firmados de forma verbal, e quase sempre de forma clandestina com trabalhadores ilegais. Geralmente denominados de “bicos”[9] pelos próprios trabalhadores imigrantes brasileiros, essas relações de trabalho são caracterizadas principalmente pelas altas jornadas de trabalho, remuneração em forma de diárias, e principalmente pela falta de garantia assistencial em casos de acidentes de trabalho. Estas informações foram prestadas por um trabalhador brasileiro que conheceu bem os problemas enfrentados nos primeiros meses de trabalho em território francês:

Cheguei na Guiana pela primeira vez em 1998. Durante quase dois meses tudo deu errado pra mim. Meu dinheiro acabou, vim com uma malária do Oiapoque e na segunda semana em Caiena quase fui preso pela polícia. Na batida policial, comecei a passar mal e desmaiei [...] foi o que me salvou. Tava em uma situação que não tinha força nem pra voltar para pra casa. Minha família nem sabia aonde estava. Morei e comi de favor por um bom tempo. Após esta fase ruim, as coisas boas começaram a aparecer. Depois de quatro meses, consegui um patrão, tirei minha carte de séjour de um ano e comecei a trabalhar declarado. A empresa que trabalhava, com cerca de vinte empregados, prestava serviço para o governo francês e construía algumas obras dentro da mata fechada. Depois, essa empresa faliu. No entanto, já tinha feito muitas amizades, arranjei outro emprego numa empresa maior, com mais estrutura. Aqui em Caiena é assim, se você tem documento não falta emprego. Até mesmo sem papel você ainda arranja alguma coisa. Penei muito no início por aqui. Me lembro que trabalhava até a noite chegar e no outro dia, de madrugada, já estava acordado pois morava longe, no Cabassou. Vou fazer dez anos de Guiana Francesa. Aqui é bom de conseguir trabalho, mas a saudade do Brasil é muito grande. Quando estou aqui quero ir pra Macapá, e quando estou em Macapá quero voltar pra Caiena, pois já não me acostumo mais como antigamente. Não incentivo ninguém a trabalhar aqui. Mas também não tiro as forças de ninguém... Para quem não tem medo do trabalho, a Guiana Francesa é uma boa escolha [...] (Eurico Padilha Monteiro, 39 anos, paraense, trabalha atualmente na área da construção civil).

É importante observar que essas pequenas empresas, que geralmente são dirigidas por empresários franceses, podem ser compreendidas como um arranjo, uma espécie de ordenamento de interesses entre a “esperteza” dos empresários locais e a necessidade de trabalhar dos imigrantes. A subempreitada e a sub­com­tra­tação, na verdade, são formas atípicas de trabalho, e que se generalizaram em toda a Guiana Francesa, e de forma mais visível em Caiena, de forma legal ou ilegal. De fato, são através dessas frágeis relações de trabalho que ocorre a integração da maioria dos brasileiros no mercado de trabalho local. Pela natureza dessas relações trabalhistas, podemos enquadrá-las como atividades pertencentes ao ramo da economia informal (Singer, 1999), já que estes trabalhadores não existem para o Governo Francês, pois não são declarados pelos seus patrões junto aos órgãos competentes.

Essas empresas, que já atuam há bastante tempo no território guianense, combinam “trabalho imigrante com (i)legalidade e (in)formalidade”; e, anualmente oferecem milhares de vagas para quem deseja trabalhar nestas condições. As subempreiteiras geralmente utilizam formas de contratação que podem ser sintetizadas da seguinte forma: os imigrantes trabalham para um subempreiteiro, que trabalha para um empreiteiro, que trabalha para um construtor de obras, que trabalha para o dono da obra. Essa metodologia utilizada favorece as altas jornadas de trabalho, a exploração do trabalhador imigrante; a informalidade; a clandestinidade e os baixos salários pagos em forma de diária. Além disso, sem nenhum direito garantido, muitos imigrantes chegam a trabalhar quase como escravos e com grandes chances de calotes no final do serviço prestado. Às vezes, na hora de “acertar as contas” muitos trabalhadores brasileiros acabam ganhando como indenização “uma deportação para o Brasil”; pois certos empresários pensando somente em seus lucros, ao invés de cumprir o acordo estabelecido, chamam a polícia e denunciam esses trabalhadores como imigrantes clandestinos.

Na verdade, está informalização do mercado de trabalho guianense, principalmente no setor da construção civil, possibilitou a ascensão de um novo ator estratégico: o subempreiteiro; mas de forma curiosa, deixou em aberto a possibilidade deste novo nicho de mercado ilegal ser explorado inclusive pelos próprios imigrantes brasileiros estabelecidos e legalizados na Guiana Francesa. Esta entrevista que foi feita no Aeroporto de Caiena confirma essa situação:

P- O senhor vai para Macapá? R- Sim. P- Como é seu nome? R- Raimundo dos Santos Rosário. P- O senhor trabalha aqui? R- Sim. Tenho cerca de 20 anos trabalhado em Caiena. Estou até cansado de fazer esta rota. Quase toda sexta vou para Macapá e retorno na segunda. Minha família que mora em Santana, vive pedindo para eu parar com isso. Tudo que eu tenho hoje agradeço a Guiana. Tenho uma vila de casa em Santana-AP, e acho que realmente chegou a hora de parar, “Comecei trabalhando com mestre de obra e hoje tenho uma pequena empresa de construção civil. Tenho muito conhecimento na cidade. Inclusive policiais graduados da Gendarmerie. P – O senhor tem muitos brasileiros trabalhando em sua firma? R – A maioria é de brasileiro... P – O senhor gosta de trabalhar mais com brasileiros ou com imigrantes de outros países? R - Mais com brasileiros [...] O problema é que a maioria desses trabalhadores não tem “papel”[10]. A metade dos operários são brasileiros que trabalha comigo são fixos, a outra não.

Essa situação de ilegalidade, precariedade e instabilidade enfrentada por centenas de imigrantes brasileiros no mercado de trabalho local acabou criando um clima tenso nas relações de trabalho entre pequenas firmas e trabalhadores ilegais. Recentemente, inúmeras denúncias estão chegando ao conhecimento da justiça guianense (Tribunal de Grand Instance), justamente devido a essas práticas ilegais patrocinadas por pequenos empresários franceses/guianenses. Alguns casos tiveram grande repercussão na sociedade local e chegaram até ao Itamaraty, em Brasília. A história mais conhecida diz respeito aos cerca de 60 garimpeiros que trabalharam por mais de 30 meses nas minas (Dorlem e Uaiqui) do empresário francês Jean Béna; e que para sair do “cativeiro do ouro” tiveram que ser resgatados em helicópteros pelo Governo Francês. A fim de intimidar os trabalhadores, esse empresário possuía um grupo de seguranças que, armados, agiam em bando, com extrema violência contra aqueles que se rebelavam ou mesmo tentavam sair dessas relações de trabalho. Esse grupo é acusado de mortes, tortura, assédio sexual e estupros. Um ex-funcionário de Béna desabafa: “Nossas relações com este empresário sempre foram duvidosas. Ele falou que ia pagar mensal, depois mudou a conversa e disse que seria por produção. O resultado foi que não recebemos nada e nós só conseguimos sair de lá, por graça de Deus”. Mesmo com os bens confiscados pela justiça guianense, este empresário ainda não saldou a enorme dívida trabalhista que possui com dezenas de trabalhadores brasileiros. Vale ressaltar que depois de serem resgatados pela polícia francesa, muitos passaram a sobreviver de “bicos” em Caiena, onde receberam permissão do Governo Francês para aguardar a decisão judicial sobre o caso.

Trabalhadores brasileiros e o mercado de trabalho informal guianense

É quase impossível analisar as relações de trabalho dos brasileiros na Guiana Francesa sem entrar na complexa temática do mercado de trabalho informal, que tem como pano de fundo a própria noção de economia informal. O conceito de “informalidade”, embora muito adotado pela Economia e pelas Ciências Sociais brasileiras, refere-se a fenômenos demasiadamente diversos para serem agregados por um mesmo conceito ou noção. Segundo Castro (2002), os termos formal e informal estão marcados de ambiguidades e a sua aplicação a contextos diferentes varia de acordo com o sentido que querem dar à compreensão da dinâmica de inserção de grupos excluídos das relações salariais, e residentes nas periferias das cidades. Para esta autora, desde a década de 70 do século XX, existia uma vasta literatura tratando acerca da categoria trabalho informal. Castro, tomando como referência as análises de Lautier (1991, 1994), destaca os principais discursos para explicar as complexas relações de trabalho e o lugar da informalidade: havia o paradigma da informalidade, do subemprego e o da pobreza. Constantemente, o termo economia informal era aplicado a geração de rendas como prática de certas camadas sociais que precisavam completar seu orçamento em função dos salários baixos, do subemprego e dos limites alcançados pela solidariedade familiar (Castro, 2006).

Conhecendo, por exemplo, a realidade guianense, é importante destacar que o significado de “informalidade” depende sobretudo do de “formalidade” em cada país. Na região Norte, como na própria sociedade brasileira, o entendimento popular de “trabalho formal” ou “informal” deriva da ordem jurídica, e está ligado diretamente a contratos de trabalho registrados oficialmente em carteiras de trabalho. Tanto no Brasil quanto na França, e por tabela na Guiana Francesa, o padrão de informalidade sofreu grandes transformações nas últimas décadas, principalmente com as premissas neoliberais. A legislação local desses dois países, a partir das transformações neoliberais, por exemplo, já prevê contratos de tempo parcial, contratos específicos para pequenas empresas, contratos temporários etc. No entanto tanto aqui como lá, frequentemente trata-se a informalidade como se fosse um fenômeno uniforme, objetivo e mensurável. Na Guiana Francesa, de forma específica, as questões do subemprego ou informalidade só podem ser entendidas como resultados da própria legislação francesa e do próprio contexto econômico e político que caracteriza esse DUF.

O crescimento da informalização no mercado de trabalho guianense poderia ser explicado, pelo menos numa perspectiva instrumental, associado a dois fatores principais: o primeiro parece que está relacionado diretamente com o grande número de trabalhadores sem documento (carte de séjour); e o segundo fator pode ter origem no interesse dos próprios empresários locais, que através dos mecanismos de subcontratação, reduzem os custos para obterem, assim, uma margem de lucro maior.

Em termos de mercado de trabalho, é razoável supor que no início dos anos 1990 (segunda fase migratória de brasileiros para a Guiana Francesa) a informalidade e/ou subemprego nunca foram percebidos como um problema, nem para o Governo Francês e nem para os trabalhadores brasileiros. Até hoje, talvez se não fosse pelo excesso de imigrantes ilegais, a informalidade sob a égide da legalidade seria bem aceita em todo Departamento Ultramarino Francês. Aliás, esse aspecto informal serviu até como combustível para o próprio crescimento da economia guianense. Também não podemos esquecer que no ramo da construção civil (principal área de trabalho dos brasileiros em Caiena), nunca existiram certezas e estabilidades a longo prazo, pois o investimento nessa área depende bastante de fatores políticos e econômicos. Desta forma, pode-se até dizer que o próprio setor da construção se nutre desses aspectos informais, principalmente em termos de mão-de-obra. Talvez seja por isso que Sena (2002) observa que depois de muito debate, verificou-se que as atividades informais são subordinadas às atividades formais. Dessa maneira, percebe-se a existência de problemas no mercado de trabalho informal, como no caso da instabilidade apresentada no ramo da construção civil, uma vez que as atividades informais se inserem nos espaços deixados pelas atividades formais. A autora considera ainda que as atividades informais também são atividades capitalistas e, como tais, são um elemento importante que possibilita o funcionamento do sistema.

Em Caiena, por exemplo, velhas e as novas formas de trabalho atípicos misturam-se, tornando particularmente difícil a identificação das causas de seu recente crescimento. Como nos reportamos anteriormente, a incorporação de diversos segmentos étnicos ao mercado formal ainda estava em processo quando novas informalidades surgiram. Apenas para se ter uma ideia, nas calçadas e nas esquinas de Caiena já é comum a presença de “imigrantes ambulantes” vendendo produtos chineses. Segundo Noronha (2003), para os juristas não há contratos formais ou informais; mas sim legais e ilegais.

O caráter ilegal dos contratos de trabalho na Guiana Francesa tem muito a ver com a falta de registros que comprovem o status de empregado, a falta de contracheque. Ter seu nome constando em uma folha de pagamento na sociedade francesa equivale a uma carteira assinada no Brasil. Sobre esse pequeno detalhe, vejamos o que disse esse imigrante francês:

É incrível como essa sociedade tem confiança nas folhas de pagamento. Em todo lugar em que você se apresenta, só lhe pedem isso. Com a gente é preciso provar que ganhamos nosso dinheiro sem roubar. Um imigrante é feito para trabalhar, e você tem que provar que está trabalhando; se você não trabalha, então pra que você serve? Até para morrer, quando você não morreu no trabalho, você precisa provar que trabalhou; de outro jeito você não pode nem morrer (Sayad, 1998: 53).

Segundo Portes (1994), existem limitações e insuficiência de visões que identificam “informalidade” com algum tipo de pobreza ou que não distingue práticas criminosas de outras situações ilegais não criminosas ou não previstas em lei. Baseado na sociologia econômica, este autor afirma que a “informalidade” depende de redes sociais. Sem estes elos comunitários, os contratos “informais” não seriam possíveis. O controle de um grupo étnico sobre determinadas atividades informais, como acontece em Caiena, é um bom indício de que mecanismos sociais são requeridos para selar contatos “informais”. O comentário a seguir serve bastante para entender as estratégias de grupos imigrantes que fazem da informalidade um mecanismo de reprodução social:

O contexto no qual tais oportunidades (lucrar com atividades informais) são transformadas em empreendimentos informais depende da capacidade das comunidades de mobilizar os recursos sociais necessários para enfrentar o poder das leis estatais e assegurar transações de mercado tranquilas (Portes, 1994: 434).

Depois desses comentários introdutórios, é importante destacar que na Guiana Francesa o uso da expressão informalidade engloba também aspectos de ilegalidade. Como já demonstramos ao longo deste trabalho, as práticas informais podem ser corroboradas tanto pela via do empregador como também pela natureza das relações de trabalho desenvolvidas pelos imigrantes brasileiros. Dezenas de brasileiros trabalham como empregados domésticos (cuidando de jardins, na limpeza de casas, em pequenos restaurantes) ou no ramo da construção civil. É importante destacar neste momento que a economia informal (não legal, isto é, não registrada como atividade econômica) só pode criar empregos “informais”, mas a economia formal frequentemente abre postos de trabalho “informais”.

A condição de imigrante ilegal de um grande número de brasileiros facilita em grande parte uma relação de subordinação entre empregado e empregador. Por isso, a permanência e a “reprodução de acordos informais” têm uma relação direta com a convivência prévia de um grupo de pessoas em posição socialmente inferior ou estigmatizada, no caso os imigrantes sem documentos.

Segundo Noronha (2003) existem três abordagens para explicar o fenômeno da informalidade. De forma sucinta apresentaremos as caracterizações destas correntes de pensamento e logo em seguida tentaremos identificar qual das três pode explicar a origem do trabalho informal na Guiana Francesa.

A primeira - denominada de velha informalidade – afirma que a “informalidade” deriva de condições de um país em desenvolvimento, em que muitas atividades não são suficientes atrativas para o investimento capitalista. Trata-se de um ponto de vista exclusivamente econômico, na medida em que o investimento é a variável-chave. A segunda, considera o trabalho “informal” o resultado natural da busca por maximização de lucros por empresas em países com extensivo código de trabalho e elevado custo indireto de folha salarial, sobretudo em momentos de aumento da competição internacional por mercados - aqui designada de informalidade neoclássica. Por fim, outros argumentam que a “informalidade” resulta de mudanças nos processos de trabalho, novas concepções gerenciais e organizacionais e novos tipos de trabalho, os quais não exigem tempo nem locais fixos - podemos nos referir a esse tipo como nova formalidade ou informalidade pós-fordista (Noronha, 2003: 118).

Sem tirar o mérito das abordagens apresentadas, parece que o mercado de trabalho informal se apresenta na Guiana Francesa de forma heterogênea, complexa, não existindo somente uma causa para essas ondas de informalidades. Se formos tomar como referência a tipologia descrita acima, temos que compreender que as três abordagens se completam.

Seja em Caiena ou em outros contextos, inclusive na própria sociedade brasileira, o fato concreto é ainda se atribuir ao mercado informal certos papéis, desde “bolsão de miséria”, amortecedor do desemprego, até chegar mais recente a sua positivação pelo debate sobre flexibilização e a reestruturação produtiva (Castro, 2006). Continuando, a autora chama atenção que nestes casos as formas de trabalho tradicionais passavam a ter uma funcionalidade no complexo sistema de subcontratação que passa a reger uma boa parte das relações de trabalho. A vinculação entre o mercado formal e o informal de trabalho encontra outros significados. E assim, é impossível separa os dois setores: formal e informal.

Além de concordar com as análises realizadas por Castro (2007), gostaríamos de ampliar esses comentários e lembrar que o trabalho informal na Cidade de Caiena cumpre, sob o ponto de vista prático, uma função que garante o funcionamento da Cidade, pelo menos em alguns setores da economia local. Numa entrevista com um brasileiro estabelecido em Caiena há quase 15 anos, ficamos sabendo que uma boa parte das joias produzidas na cidade, por exemplo, vem do mercado clandestino e do contrabando. No entanto, depois de certificado, o que era ilegal e produzido no campo da informalidade, incorpora-se de legitimidade, rendendo divisas fiscais para o próprio governo francês.

Considerações finais

No que se refere ao tema central do artigo, que pretendeu apresentar as posturas tomadas em campo pelo pesquisador, buscando a melhor forma de apreender, discorrer e refletir sobre as realidades vivenciadas por centenas de trabalhadores imigrantes brasileiros na Guiana Francesa, identificamos que os depoimentos obtidos respondem por graus diferentes de saturação diante as expectativas e o efetivamente vivenciado nos projetos migratório de cada pessoa. Talvez a primeira coisa que devemos rever seria evitar juízo de valor em certas análises. Deportações cíclicas, casamentos inventados, trabalho clandestino e falta de ocupação momentâneas não podem servir eternamente como indicadores de projetos migratórios não exitosos, de que as coisas deram totalmente erradas. A capacidade de interação dos imigrantes brasileiros na Guiana Francesa com um desses temas pode indicar também novas orientações sobre tema. Decididamente esse cenário faz parte do jogo, do campo migratório, e as estratégias dos sujeitos envolvidos são múltiplas, inclusive camufladas, de furta cor.

À guisa de conclusão, vale lembrar que ao fazermos ciência, escolhemos caminhos teóricos, trilhas metodológicas. As próprias dificuldades na realização do trabalho exigem reorientações e mudanças de atitudes. Às vezes acertamos no alvo, outras passamos perto dele. O tema abordado neste estudo é cercado, por todos os lados, de complexidades e tudo indica que o fenômeno das migrações internacionais por trabalho deverá se acirrar nas próximas décadas. As consequências humanas deste novo fenômeno social começam a ser desenhadas e pelo jeito são sombrias. As perspectivas parecem que não estão muito a favor dos trabalhadores dos países mais pobres do mundo. Apesar do quadro de incertezas que se apresenta para as próximas décadas, pelo menos em um aspecto, nossa pesquisa chegou a uma conclusão importante: o trabalho humano, mesmo disfarçado de várias formas (trabalho escravo, trabalho parcelado, trabalho precário, trabalho informal, trabalho ilegal, pequenos trabalhos, etc.) continua imprescindível para a existência da reprodução da vida em sociedade. Sua centralidade ainda é responsável pela reprodução do capital como também para a reprodução social de milhões de trabalhadores.

Referências

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Bourdieu, P. (1990). Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense.

Castro, E. (2007). Fronteiras e territorialidades: atores locais e conexões transnacionais. In: S. Feldman, Sarah, A. Fernandes, O urbano e o regional no Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Salvador: EDUFBA; UNESP, 251-268.

Castro, E. (2006). Crise do Capitalismo e Transformação no Mundo do Trabalho neste final de Século In: M.J. Costa Jackson. Trabalho, educação profissional e empregabilidade. Belém: UFPA.

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Margolis, M. (1994). Little Brazil: imigrantes brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus.

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Pesquisa de Campo (2006). Retorno do Projeto de pesquisa: O fetiche do emprego – um estudo sobre relações de trabalho de brasileiros na Guiana Francesa, realizado em Macapá, Oiapoque e Caiena; e primeiros passos ao projeto: As Novas Faces da Migração de Brasileiros para a Guiana Francesa. Relatório de Pesquisa. Macapá e Caiena.

Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp.

Notas

[3] A maior parte destes depoimentos foi realizado no Terminal Rodoviário de Macapá. Algumas entrevistas, no entanto, deram-se em residências ou em bares da cidade. Por ocasião do trabalho de campo no município de Oiapoque, também realizamos várias entrevistas.
[4] Durante os meses de setembro, do dia 6 ao dia 12; de outubro, do dia 19 ao dia 28; de novembro, do dia 6 ao dia 10, estive realizando trabalho de campo no município de Oiapoque onde pude me encontrar com interlocutores fundamentais para a construção deste trabalho. Objetivando desenvolver a pesquisa, dediquei-me à observação do fluxo migratório nesta região de fronteira, bem como ao próprio funcionamento da cidade. Realizei conversas informais, apliquei questionários e entrevistei de forma estruturada cerca de dez pessoas (trabalhadores imigrantes brasileiros e as pessoas mais antigas da comunidade).
[5] A primeira viagem exploratória que fiz à Guiana Francesa, e mais especificamente à cidade de Caiena, ocorreu no mês de outubro de 2004 (sete dias). A minha segunda ida a campo, no primeiro semestre de 2006, por um período de trinta dias, serviu para um maior aprofundamento das questões levantadas na primeira viagem. Neste segundo momento, ampliei o volume de informações sobre a realidade dos brasileiros na Guiana Francesa, aumentei o número de entrevistas estruturadas, concluí, ou melhor, completei o survey com cem trabalhadores (homens e mulheres) que já tinha iniciado em Macapá/Oiapoque, que tinha como meta elaborar o perfil socioeconômico dos imigrantes brasileiros que trabalham na Guiana Francesa.
[6] Vale esclarecer que além dessas trinta entrevistas estruturadas/semi-estruturadas, realizei um survey (aplicação de questionários) nas cidades de Macapá-AP, Oiapoque-AP e em Caiena, num total de cem pessoas.
[7] O termo etnografia nesse trabalho é compreendido apenas como registro, descrição. Não temos a pretensão de aprofundarmo-nos nas discussões do campo da antropologia a respeito desse conceito.
[8] O Projeto de Lei 7505/06 que cria o Estatuto do Garimpeiro já foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Para exercer a atividade, o trabalhador deverá ter o título minerário emitido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). De posse do título, será possível trabalhar como autônomo, em regime de economia familiar, em parceria com o titular do direito de exploração, empregado em alguma empresa ou em cooperativa. O Estatuto prevê ainda que o trabalhador poderá prestar serviços para mais de uma empresa ou cooperativa que tenha atuação em áreas distintas. Por outro lado, exige dos exploradores de minerais a recuperação de áreas onde houver prejuízo ambiental. Também passa a ser proibida a atividade para menores de 18 anos (Agência Brasil, 01.12.2007).
[9] Expressão utilizada para designar uma relação precária de trabalho, geralmente acertada verbalmente e por poucos dias.
[10] O termo “papel” é uma referência a autorização de trabalho (carte de séjour) que a maioria dos imigrantes brasileiros não possui.

Autor notes

[1] professor da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Mestre em Sociologia Geral pela Universidade Federal do Pará; Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido da Universidade Federal do Pará/NAEA e Pós-Doutorado no exterior (CAPES) no CNRS-GUYANE de 2010 a 2012. Coordenador do Projeto de Pesquisa “As novas faces da migração brasileira para a Guiana Francesa” (DPq/UNIFAP). E-mail: manoel-pinto@bol.com.br.
[2] aluno do curso de graduação em Licenciatura em Sociologia da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP); Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PROBIC/UNIFAP); Monitor voluntário no Grupo de Pesquisa: “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Antropologia visual, da Imagem e Som, Memória e Identidades” (NAIMI/UNIFAP); Membro do projeto de pesquisa científica: “As novas faces da migração brasileira para a Guiana Francesa” (DPq/UNIFAP); Graduado em Recursos Humanos na Universidade Paulista; Aluno do curso de Especialização em Estudos Culturais e Políticas Públicas da Universidade Federal do Amapá (PCULT/UNIFAP) e Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Interdisciplinares em Cultura e Políticas Públicas (CNPq/UNIFAP). E-mail: jorgelucas.ap@gmail.com.
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