Debate
Uma lei para minorias?: Reconhecimento, participação e democracia na criação da nova Política Brasileira de Imigração
A Statute for Minorities?: Recognition, Participation and Democracy in the Creation of the New Brazilian Immigration Policy
Uma lei para minorias?: Reconhecimento, participação e democracia na criação da nova Política Brasileira de Imigração
Revista del CESLA, núm. 22, pp. 179-202, 2018
Uniwersytet Warszawski

Recepção: 29 Junho 2018
Aprovação: 10 Outubro 2018
Resumo: Utilizando os conceitos de justiça social e participação paritária de Nancy Fraser, esse artigo pretende avaliar a afirmação de que a nova lei de migração é um avanço em relação ao antigo Estatuto do Estrangeiro, baseado na lógica de Segurança Nacional e criado durante a Ditadura Militar. Para isso, todas versões da lei foram analisadas, evidenciando seus avanços e retrocessos, bem como a participação da Sociedade Civil no processo. Após isso, é possível concluir que as desigualdades institucionais dos migrantes impediram a mudança completa de paradigma da lei e a participação efetiva dos atores interessados.
Palavras-chave: Migração, minorias, democracia.
Abstract: Utilizing Nancy Fraser’s concepts of social justice and participatory parity, this article assesses the claim that the New Migration Statute in Brazil is an improvement compared to the previous 1980 Foreigners Statute which was permeated by the doctrine of national security and was adopted during the military dictatorship. To do so, every draft of the statute was analyzed, putting in evidence its improvements and setbacks, as well as the participation of civil society during the process of approving the Statute. In doing so, we concluded that the institutional inequalities between migrants and nationals prevented a complete change of the legal paradigm as well as effective participation of the interested actors.
Keywords: Migration, minorities, democracy.
Introdução
O fenômeno da migração internacional traz desafios para o sistema político contemporâneo, uma vez que supõe a existência de um não-cidadão, o migrante, que se move para o interior de um território relacionado a uma entidade estatal, impondo sua presença e sua liberdade de locomoção frente ao poder soberano do Estado, fundado geograficamente em seus limites (Reis, 2004). Nesse sentido, o migrante representa um paradoxo, a própria subversão da lógica de soberania clássica, uma vez que é cidadão de um país diferente daquele ao qual se submete, utilizando sua força de trabalho em benefício de um Estado que não o reconhece como parte de seu corpo formador (Ferreira, 2011). As fronteiras, enquanto formas tradicionais de divisão do Eu em relação aos Outros, podendo ser comparadas a muralhas, representam uma estrutura que obriga o Estado não só a definir o Eu, através do conceito de nacionalidade, como a adotar políticas específicas em relação ao Outro, gerando a Política Migratória. Essa política pode adotar uma postura cosmopolita que privilegia o direito de atravessar as fronteiras como Direito Humano, independente da nacionalidade do indivíduo ou da soberania nacionalista, que trata o migrante como um ser que merece ser controlado em oposição àqueles que possuem condições para serem considerados nacionais (Ferreira, 2011; Reis, 2004).
Historicamente, o Brasil tem optado pela última alternativa. O Estatuto do Estrangeiro, legislação que foi base da política migratória por trinta e sete anos até sua revogação em 2017, é uma lei de caráter securitizador, projetado durante a Ditadura Militar que concebe o migrante como um potencial terrorista e o impede de se integrar à sociedade brasileira em geral (Moraes, 2015). Assim, a sanção da Lei 13.445, a nova Lei de Migração, foi recebida pela literatura especializada como um passo importante para a superação da lógica estatista rumo a uma noção humanista da migração, embora seja consenso de que os vetos presidenciais geraram retrocessos na regulamentação do fenômeno (cf., por exemplo, Oliveira, 2017; Avanzi, Simon, 2017).
O presente artigo, entretanto, intenta dar uma nova visão do diploma em questão. Através de uma análise documental do processo de tramitação da lei, evidenciar-se-á os avanços e retrocessos que a matéria sofreu nas duas casas legislativas, além da real influência dos migrantes e da Sociedade Civil na criação das normas migratórias. Os resultados permitirão um avanço na discussão do tema, uma vez que a metodologia documental permite ressaltar elementos indetectáveis através da simples leitura do texto promulgado. A falta deste tipo de análise pode gerar a invisibilidade de um potencial processo de marginalização sofrido pelos migrantes, que não detêm direitos políticos, frente aos desejos dos membros do Poder Legislativo.
Na primeira parte do artigo, será descrita a metodologia utilizada em sua criação, enumerando também os documentos analisados. Em seguida, será feito um breve histórico da legislação migratória brasileira, bem como a tensão constante entre o Estado e o imigrante. A terceira parte descreverá a base teórica apontada, situando de forma mais clara a problemática da ausência de direitos políticos por parte dos imigrantes. Após isso, serão relatados os resultados da pesquisa, divididos entre a primeira tramitação no Senado, a tramitação na Câmara dos Deputados e a segunda tramitação no Senado e a apreciação dos vetos no Congresso Nacional[3]. Por fim, concluir-se-á qual o conteúdo democrático da Lei 13.445, ressaltando a participação dos imigrantes e da Sociedade Civil na sua produção.
Metodologia[4]
A metodologia documental escolhida segue a categorização proposta por Bardin (2011). O corpus selecionado é composto por todas as versões da lei, a saber, o projeto original, a versão original de autoria do Senador Aloysio Nunes, a versão da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, a versão da Comissão Especial da Câmara, a versão do plenário da Câmara, a versão aprovada na segunda passagem pelo Senado e a versão promulgada com vetos; os votos e substitutivos finais de todos os relatores que a proposta teve; as emendas apresentadas, aprovadas ou não; as atas com as transcrições das reuniões de aprovação do projeto em cada uma de suas fases, incluindo a reunião do Congresso que manteve os vetos presidenciais; as notas técnicas da Sociedade Civil, os arquivos em áudio e vídeo das audiências públicas realizadas; o anteprojeto de lei de migrações feito pela comissão de especialistas; e a mensagem de veto da Presidência da República.
Após uma primeira leitura dos documentos, foi feita uma tabela comparativa entre as versões da lei permitindo acompanhar a origem e evolução de cada uma de suas disposições sendo adicionadas, ao lado, o disposto nas emendas não aprovadas, junto com suas justificativas e a justificativa do relator para sua rejeição, bem como as disposições do anteprojeto da Comissão de Especialistas. Em seguida, foram separadas as sugestões concretas[5] encontradas nas notas técnicas e nas falas das autoridades que participaram das audiências públicas.
Após isso, as sugestões foram caracterizadas segundo as seguintes variáveis: esfera da sociedade que a propôs (Sociedade Civil, Ministério Público, Defensoria Pública ou Poder Executivo), aceite ou rejeição pelo Poder Legislativo, viés estatista ou humanista (com o uso das justificativas como suporte), tema da sugestão (garantias e princípios, vistos, concessão de residência, apátrida, identificação, controle migratório, impedimento de ingresso em território nacional, repatriação e deportação, expulsão, emigração, naturalização. infrações e disposições finais) e presença ou ausência de justificativa para aceite/rejeição pelo legislativo.
A partir de então, os dados foram analisados buscando responder as seguintes perguntas: (i) de que forma houve o embate entre as teses estatistas e humanistas no Congresso Nacional e de que forma ambas influenciaram o projeto final? (ii) houve o diálogo substancial entre Sociedade Civil e congressistas, ou seja, as sugestões foram incorporadas ou, ao menos, rejeitadas sob justificativa? (iii) a ausência de Direitos Políticos dos imigrantes e consequente falta de representação no Legislativo foram empecilhos para o aceite de suas proposições?
A lei e o fenômeno da migração no Brasil
Como dito anteriormente, vigorou por muitos anos o Estatuto do Estrangeiro, legislação claramente estatista e xenófoba, uma vez que trata o imigrante como uma ameaça constante aos interesses brasileiros. A lei demonstra sua lógica de proteção nacional ao consignar a permanência e a entrada do migrante no território nacional, bem como a emissão de vistos e sua prorrogação ou transformação, aos interesses nacionais (artigos 1º e 3º)[6], assim como ao determinar que, na aplicação da lei, seriam atendidos prioritariamente a segurança nacional, a ordem institucional, os interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil e a proteção do trabalhador nacional (artigo 2º, Define a situação jurídica..., 1980)[7].
Além disso, a lei ressaltava explicitamente que a migração objetivaria a atração de mão-de-obra qualificada, com potencial de desenvolvimento científico e tecnológico do país (artigo 16, parágrafo único)[8], o que justifica a criação do órgão para gerir a política migratória e o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) ser vinculado ao Ministério do Trabalho (artigo 128, caput, Define a situação jurídica..., 1980)[9].
A lógica securitizadora se manifestava desde o ingresso, que poderia ser vetado nos casos em que o imigrante contrariasse a cláusula abstrata e voluntarista de "ordem pública e interesse social" (art. 7º, II)[10], ainda que o visto já tivesse sido concedido (art. 26, caput)[11], até a expulsão que poderia acontecer por atentado à segurança nacional, à ordem política e social, à tranquilidade e moralidade pública ou até por ser inconveniente aos interesses nacionais (art. 65, caput)[12]. Dessa forma, o migrante é tido como mero objeto dentro da organicidade da sociedade brasileira, podendo ser prontamente excluído tendo por base a infração de conceitos amplos não necessariamente tornados concretos antes da sua suposta violação pelo indivíduo. Ademais, o artigo 106 trazia várias vedações para o exercício profissional do imigrante[13], incluindo ser proprietário de empresa jornalística ou mesmo orientador intelectual destas, o que reforça a ideia de que essa classe de pessoas são, per si, uma ameaça aos poderes constituídos, não podendo possuir ou administrar meios potenciais de subversão, como é o caso da mídia em um contexto autoritário como o da Ditadura Civil-Militar. Por fim, acrescenta a essa visão a disposição explícita de proibição da atividade política por parte do migrante, contida no artigo 107 do Estatuto do Estrangeiro[14].
O diploma revelou-se insuficiente para regulamentação da matéria desde sua promulgação (Oliveira, 2015), recebendo críticas em diversos aspectos. De um lado, a ausência de disposições para o brasileiro emigrante causava uma lacuna legal importante, em especial a partir dos anos 1980, quando a emigração brasileira para países desenvolvidos passou a ser bastante expressiva (Patarra, 2005; Reis, 2011). Por outro, o Estatuto do Estrangeiro se mantinha incompatível com a nova ordem constitucional e os instrumentos de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil (Reis, 2011). Em adição, o discurso brasileiro nos organismos internacionais, privilegiando os Direitos Humanos e a cidadania universal, estava em profunda dissonância com a prática interna, que era securitizadora e sectária, o que tornava a reforma da legislação um imperativo para a manutenção da imagem do Brasil no plano internacional (Reis, 2011).
Foram também pontos centrais de crítica, o caráter utilitarista da lei que vê o imigrante como mero objeto na condução do projeto estatal de desenvolvimento, a amplitude de suas cláusulas (Wermuth, 2015), as restrições injustificáveis em seus direitos trabalhistas, principalmente os relativos à atividade sindical, associativos (Lopes, 2012) e de propriedade, a inexistência de previsão de estratégias de integração do indivíduo (Alarcón, Diniz, 2007), o controle migratório feito por órgãos de segurança, a divisão das atividades de regularização entre três ministérios (Justiça, Trabalho e Relações Exteriores) e as restrições ao acesso à educação por parte de imigrantes indocumentados (Baraldi, et. al., 2011). Apesar da profusão crítica, a constitucionalidade destes dispositivos nunca foi aferida.
Apesar disso, as mudanças na política migratória no nível legal foram pontuais até a promulgação da Lei 13.445, a Lei de Migração, que revogou o Estatuto do Estrangeiro, supostamente sanando os defeitos do ato normativo anterior. Segundo estudo realizado por Claro (2015), apesar do Século XXI ser um período de intensa produção normativa sobre o tema migração no Brasil, com 132 diplomas em quinze anos contra 149 de todo o Século XX, somente 14 desses atos são de origem legal, sendo os demais portarias (22) e resoluções do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) (96), órgão responsável pela gestão migratória de refugiados e apátridas. Essa conformação que deixa aspectos importantes dependentes de atos executivos, tem consequências contraditórias já que, se por um lado permite a oxigenação do autoritário Estatuto do Estrangeiro através da participação generosa da Sociedade Civil nos conselhos governamentais (Claro, Fauth Júnior, 2015), por outro causa insegurança jurídica, pois se tratam de normas facilmente revogáveis[15].
Em 2009, objetivando dirimir essas contradições, o Poder Executivo apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 5655 que, se por um lado resolvia parte do problema ao transformar o Conselho Nacional de Imigração em Conselho Nacional de Migração, dando competências relacionadas também à emigração, por outro, mantinha a lógica securitizadora e utilitarista em relação ao tratamento do migrante (Wermuth, 2015), não retirava vedações dos direitos ao livre emprego e propriedade e ainda aumentava o período de residência para naturalização de quatro para dez anos (Campos; Silva, 2015)[16], representando muito mais uma atualização do Estatuto do Estrangeiro do que sua superação (Moraes, 2015).
Em 2013, a Secretaria Nacional de Justiça, vinculada ao Ministério da Justiça, emitiu a Portaria n° 2.162/2013 em que se criava uma comissão de especialistas para discutir e propor um anteprojeto para uma nova Lei de Migração (Oliveira, 2017). Em complementação, realizou-se a primeira Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (I COMIGRAR), que seguiu um modelo inclusivo e com ampla participação dos interessados no tema, através da eleição de 556 delegados representando a Sociedade Civil, os migrantes e órgãos governamentais em inúmeros eventos locais e regionais com ampla discussão dos temas relacionados à migração e ao refúgio, além de participação via internet, através da plataforma “Participa Brasil” (Claro, Fauth Júnior, 2015). As sugestões da COMIGRAR foram compiladas e levadas ao conhecimento da Comissão de Especialistas (Comissão de Especialistas, 2014).
Em 2014, foram concluídos os trabalhos da Comissão de Especialistas, gerando um projeto com cinco características principais: compatibilização da legislação com a Constituição e com os tratados de Direitos Humanos, transformação do paradigma de segurança nacional para uma abordagem humanista, criação de coerência sistêmica na legislação migratória, escuta da Sociedade Civil e preparação do Brasil para as migrações internacionais contemporâneas (Comissão de Especialistas, 2014). Apesar disso, o projeto não foi submetido ao Congresso, sendo o novo marco migratório oriundo de um projeto de lei de autoria do Senador Aloysio Nunes que já tramitava no Senado (Oliveira, 2017).
Os migrantes como minoria e o Reconhecimento como categoria democrática
Müller (2003), refletindo sobre qual o sentido de povo na democracia, chega à conclusão de que o termo é equívoco, assumindo conotações diferentes que dão contornos distintos para a forma popular de governo. Assim, o autor concebe quatro sentidos para o termo “povo” que são: o povo ativo, entendido como aquele formado por pessoas com Direitos Políticos no uso destes e que, dessa maneira, podem eleger seus representantes, ser eleitos, propor matérias de iniciativa popular e votar em consultas populares; o povo como instância global de atribuição de legitimidade que aparece a partir do momento em que o ordenamento construído conforme a vontade das leis promulgadas por um corpo eleito é respeitado e adquire um sentido geral de legitimidade dentro da generalidade dos cidadãos do Estado; o povo como ícone, que representa a degeneração do sentido anterior, aparecendo quando a vontade popular não é respeitada pelas instituições onde o povo é usado como mero artifício discursivo para atribuição de legitimidade; e o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado, que pode ser entendido como o conjunto de pessoas que, ao se submeterem à jurisdição de um Estado, tem direito a prestações essenciais para sua sobrevivência digna, isto é, os Direitos Humanos e Fundamentais.
Um Estado só pode ser democrático se permite que o povo participe ativamente do poder, que é utilizado na medida da vontade popular e recebe legitimidade pelo consenso da generalidade de seus cidadãos, e garante a todo aquele que está em seu território um aparato mínimo de direitos. A partir dessa construção, cumpre-se a fórmula americana de governo pelo povo (povo ativo), do povo (povo enquanto instância legitimadora) e para o povo (povo destinatário) (Müller, 2003). A exclusão surgiria em um contexto de negação legal ou social deste último sentido, trazendo como consequência o afastamento de grupos sociais da vida digna e do Estado de Direito (Müller, 2003). Uma vez que o modelo pressupõe a centralidade do respeito aos Direitos Humanos dentro da Democracia, ressalta-se a abertura de conteúdo dessa classe de normas que são, por sua própria definição, resultado de uma luta histórica e progressivos, variando no tempo, embora seja vedado o retrocesso na matéria (Mazzuoli, 2014).
O fato de imigrantes não terem direitos políticos, ainda que residentes permanentemente no Brasil, gera uma situação de déficit democrático potencial durante a formulação de qualquer política migratória, uma vez que não há a possibilidade de participação paritária daqueles diretamente afetados pelos diplomas discutidos[17] (Batista, 2009). Assim, a análise da legitimidade de qualquer política relacionada a esse grupo necessita de uma prévia superação da noção liberal de democracia, rumo a uma concepção multicultural e participativa da mesma.
Miguel (2005), fazendo um esforço para mapear as correntes da Teoria Democrática, define a democracia liberal como aquela corrente que coloca a legitimidade democrática na possibilidade de se expressar livremente, no sufrágio universal e periódico e na livre competição entre os grupos de interesse. Dessa forma, a democracia seria uma simples aferição da vontade dos indivíduos, devendo a decisão da maioria ser acatada. Já a noção multicultural é aquela que trabalha a tensão entre a diferença e a igualdade, reconhecendo a legitimidade de grupos minoritários de colocar seus interesses coletivos dentro da esfera pública, tendo o direito de serem ouvidos e fazendo jus a prestações que solucionem disparidades relacionadas a suas especificidades.
Partidária da corrente, Fraser (2009) trabalha a ideia de Justiça Social através de uma noção tripartite: a justiça social seria permitir a participação paritária de todos os membros da comunidade através de políticas de redistribuição, ligadas aos elementos materiais de reconhecimento, ligadas aos elementos culturais e de participação, ligadas aos elementos políticos. A autora critica as teorias de justiça que deixam de lado alguma dessas dimensões, argumentando que elas são indissociáveis, embora irredutíveis uma a outra (Fraser, 1995).
A ideia de uma teoria da justiça que englobe a dimensão do reconhecimento através da paridade de participação é útil para superar a noção anterior de reconhecimento de minorias como questão ética (Fraser, 2007), advinda de Charles Taylor e Axel Honneth que, em uma releitura do jovem Hegel, desenharam o contorno contemporâneo do reconhecimento (Souza, 2000). A necessidade de reconhecimento seria advinda não da própria identidade coletiva da minoria, mas de sua posição desigual dentro da sociedade em questão, permitindo sua inclusão na agenda de grupos que lutam por mudanças sociais (Fraser, 2007).
Da mesma forma, a dimensão da participação só pode ser analisada em um contexto social definido, sendo as minorias afetadas não só nos casos em que sua voz não pode ser ouvida no debate político, mas também e principalmente quando a própria definição da esfera política os exclui da possibilidade de participar, dentro do fenômeno que a autora chama de “mau enquadramento” (Fraser, 2009). Essa parece ser a situação dos imigrantes no Brasil, dada a ausência de Direitos Políticos, situação extremamente grave, já que:
[a]queles que sofrem da má representação estão vulneráveis às injustiças de status e de classe. Ausente a possibilidade de expressão política, eles se tornam incapazes de articular e defender seus interesses com respeito à distribuição e ao reconhecimento, o que, por sua vez, exacerba a sua má representação. Em tais casos, o resultado é um círculo vicioso em que as três ordens de injustiça se reforçam mutuamente, negando a algumas pessoas a chance de participar como pares com os demais na vida social (Fraser, 2009: 25).
Em suma, para que a demanda de algum grupo seja justa, este deve demonstrar, em um processo dialético, que não só possui uma dificuldade de participar como par da esfera pública como também que o objetivo visado o incluiria melhor nessa sem retirar espaço de outros grupos (Fraser, 2007). A construção feita pela autora permite a conclusão de que a democracia teria não só um aspecto material, a vontade majoritária com respeito às minorias, mas também um aspecto procedimental, uma vez que é essencial que os grupos marginalizados possam participar da dimensão decisória estatal (Fraser, 2009).
A tramitação do PL 288/2013 no Senado Federal
Tendo por base os conceitos anteriormente apresentados, o presente artigo visa discutir se a recente Lei 13.445/2017 que revogou o Estatuto do Estrangeiro e se tornou o novo marco migratório do Brasil, realmente superou a lógica estatista e securitizadora e se a mesma foi gestada em um processo realmente democrático com a participação dos grupos envolvidos em paridade.
No início da tramitação do PL 288/2013, de autoria do Senador Aloysio Nunes, o presidente do Senado Federal, utilizando as competências concedidas pelo artigo 48, X, do Regimento Interno do Senado Federal[18] designou as comissões de Assuntos Sociais, de Constituição, da Justiça e Cidadania e de Relações Exteriores e Defesa Nacional como competentes para apreciar a matéria, essa última em caráter terminativo. Nesse sentido, destaca-se a decisão pela não contemplação da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa entre as comissões responsáveis por analisar o projeto, uma vez que essa comissão tem a tarefa explícita, dada pelo inciso VII do artigo 102-E do Regimento Interno do Senado, de:
fiscalização, acompanhamento, avaliação e controle das políticas governamentais relativas aos direitos humanos, aos direitos da mulher, aos direitos das minorias sociais ou étnicas, aos direitos dos estrangeiros, à proteção e integração das pessoas portadoras de deficiência e à proteção à infância, à juventude e aos idosos (Senado Federal, 2011: 35, grifos nossos).
A ausência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias fez com que a Comissão de Relações Exteriores, a quem coube a decisão terminativa, fosse a grande modificadora do projeto, uma vez que as Comissões de Assuntos Sociais e de Constituição e Justiça possuem competências relativamente restritas, tendo analisado a proposta somente sobre a ótica do trabalho e da previdência social. No caso da primeira, e da constitucionalidade e juridicidade, no caso da segunda, o que gerou, ao fim, apenas quatro emendas que solucionavam problemas de técnica legislativa e harmonia do ordenamento. Pontos importantes e inovadores do projeto que poderiam ser analisados pela Comissão de Direitos Humanos, como o visto humanitário, não receberam qualquer avaliação específica.
Apesar de suas competências claramente estatistas, dados pelo art. 103 do Regimento Interno[19], o substitutivo da Comissão de Relações Exteriores inova em vários pontos, com clara influência do anteprojeto da Comissão de especialistas, à época recém aprovado (Moraes, 2015), destacando-se (i) a revogação completa do Estatuto do Estrangeiro, que o relator da matéria considerou ser incompatível em seu inteiro teor com a nova ordem constitucional; (ii) a substituição do termo “estrangeiro” por “migrante”; (iii) a inclusão do migrante temporário, residente fronteiriço, apátrida e emigrante brasileiro no escopo da lei, com título exclusivo dedicado ao último; (iv) determinação de critérios mais claros de expulsão[20] e inclusão da extradição, que ficava na parte originalmente não-revogada da lei, entre as disposições do Projeto. Entretanto, houve a inclusão da vedação de autorização de residência para condenado por infração tipificada no Brasil, ressalvadas condutas de menor potencial ofensivo. A sugestão, feita pelo Senador Lasier Martins, ocorreu, segundo o parlamentar, para impedir a entrada de “indivíduos de conduta duvidosa” no país.
O substitutivo ao projeto recebeu vinte e três emendas, a maioria delas rejeitadas. O Senador Lasier Martins, propôs, sem sucesso, a supressão da permissão de disposição regulamentar sobre hipótese de concessão de residência, sob o argumento de que feriria a prerrogativa do Parlamento para regular uma matéria tão importante, e da garantia de livre circulação de povos tradicionais em terras tradicionalmente ocupadas[21], sustentando que a desconsideração das fronteiras poderia ser usada para fins ilícitos.
O mesmo Senador propôs, com êxito, o aumento da idade mínima para inexpulsabilidade[22] de migrante idoso de 60 anos, marco inicial da categoria para o Estatuto do Idoso para 70 anos, marco inicial para o Código Penal, argumentando que o marco penal seria o mais adequado, para que “não sirva como sugestão para criminosos internacionais buscarem abrigo em nosso país”, além da permissão para que o Supremo Tribunal Federal desconsiderasse o terrorismo como crime político para fins de extradição, argumentando ser a medida necessária para manter o compromisso constitucional do Brasil com a Democracia.
As demais emendas aprovadas sanavam omissões e melhoravam a técnica legislativa nas áreas de vistos, deportação[23] e cooperação penal internacional. Dessa maneira, é possível observar que o processo de tramitação no Senado Federal apresentou aspectos claros de deficiência de diálogo, como a ausência de um momento público de participação da Sociedade Civil, já que não há registro de audiência pública realizada para discutir o projeto, além da ausência da Comissão de Direitos Humanos no debate, fazendo com que uma comissão que trata de projetos relacionados ao papel estatal nas relações internacionais e defesa nacional fosse o principal ator nessa fase do projeto. A oxigenação do substitutivo pela influência do anteprojeto da Comissão de Especialistas, apesar de auxiliar a aproximar a proposição dos Direitos Humanos e do diálogo social, não foi completa, deixando lacunas importantes.
Podemos citar, como diferenças substanciais em relação ao anteprojeto, (i) a inclusão de exceções ao gozo de direitos e garantias por parte de migrantes indocumentados e visitantes, excluindo benefícios como acesso à justiça, direitos de associação e trabalhistas e reunião familiar; (ii) a exclusão da possibilidade de trabalho por parte do portador de visto de estudante, excluindo uma parcela da população mundial da possibilidade de estudar do Brasil, além de gerar uma diferenciação injustificável do migrante e do brasileiro estudantes, já que, segundo Niquini et al. (2015) uma parcela considerável da população concilia as duas atividades; (iii) a possibilidade de regulamento dispor sobre hipótese de repatriação[24] trazendo o risco de discricionariedade excessiva por parte do Executivo; (iv) ausência de capítulo específico sobre acolhida humanitária[25]; e (v) a possibilidade de cancelamento de autorização de residente fronteiriço para prática de atos no Brasil por condenação penal.
As alterações sugeridas pelo Senador Lasier Martins, que tem justificativas claramente securitizadoras, também apresentam um prejuízo para a noção humanista de migração, uma vez que não só impedem aquele que foi condenado de se inserir na sociedade brasileira, como também utilizam um marco penal para um instituto que é administrativo (e que nem poderia ser diferente, sob pena de penalizar duplamente o migrante), quando o marco de sessenta anos que guia uma lei que tem a proposta de garantir os direitos fundamentais do idoso, se afigura mais adequado.
A tramitação da PL 2516 na Câmara dos Deputados
Durante a tramitação do Projeto de Lei na Câmara dos Deputados, foi criada uma comissão especial para debater a proposta, composta por vinte e seis membros e tendo por base legal o disposto no inciso II do artigo 34 do regimento interno da Casa[26]. O projeto tramitou apensado no PL 5655/2009 descrito anteriormente e nos PLs 206/2011 que dispunha sobre obrigatoriedade de registro para migrantes; 3354/2015 que dispunha sobre vistos; e 5293/2016 que dispunha sobre expulsão.
A comissão realizou no total, dez audiências públicas com representantes da Sociedade Civil, do Poder Executivo, do Ministério Público, de organismos internacionais e da Defensoria Pública da União, além de três visitas técnicas ao Rio Grande do Sul, São Paulo e Acre, recebendo também notas técnicas de várias instituições. A análise do diálogo feito através desses mecanismos de participação direta revelou a existência de pelo menos cento e vinte e oito propostas concretas distintas que permitiram a mudança em vários dispositivos, dando a lei um caráter mais humanitário.
TABELA I – Principais sugestões aceitas e não aceitas pelo relator, por tema. A definição das sugestões a compor esta tabela foi baseada na recorrência e na capacidade da proposta de reduzir as desigualdades, conforme sustentado pelo expositor. As propostas em negrito são da Polícia Federal.
| Tema | Sugestões atendidas | Sugestões não-atendidas[27] |
| Garantias e princípios | - Garantia de acesso à saúde, educação e assistência social independente da condição migratória e nacionalidade, confidencialidade quanto aos dados pessoais e direito à informação quanto a suas garantias; - Concessão de todas as garantias a indocumentados; - Garantia de isenção de taxas e direitos trabalhistas a visitantes. | - Incorporar o direito humano de migrar; - Assegurar direitos políticos, ainda que dependentes de mudança constitucional; - Estabelecer no artigo 3º a proibição de distinção entre brasileiros e migrantes e progressiva redução da distinção entre brasileiros e migrantes; - Acrescentar a igualdade de custos para retirada de documentos; - Acrescentar a observância à pluralidade de definições culturais de família no caso de reunião familiar; - Acrescentar direito a portabilidade da previdência social. |
| Vistos | - Visto humanitário para nacionais de países com graves catástrofes ambientais. | - Incluir graves condições socioeconômicas como hipótese de acolhida humanitária; - Colocar o visto como documento que dá direito (e não expectativa) de ingresso no território nacional; - Garantir ao estudante a possibilidade de exercer atividade remuneratória; - Incluir parágrafo único garantindo que o visto não será forma de discriminação no art. 6º; - Acrescentar possibilidade de emissão de documento de identificação em caso de viajante sem documento. |
| Concessão de residência | - Garantia de ampla defesa, contraditório e recurso; - Previsão de residência para menores desacompanhados; - Retirada de proibição de autorização de residência para condenados criminalmente. | - Acrescentar permissão de residência em caso de absoluta impossibilidade de retorno ao país de origem. |
| Apatridia | - Aprofundamento do procedimento para apátridas, com garantia de recurso, não-devolução e reunião familiar. | |
| Identificação | - Garantia de acesso a direitos no período entre a solicitação do documento de identificação e sua emissão, | - Colocar limites em relação a valores de emissão de documentos. |
| Controle migratório | - Criar órgão para gerir o controle migratório, retirando da competência da Polícia Federal[28]; - Garantir a presença de tradutor em todas as medidas de retirada do território nacional; - Estabelecer garantias para o migrante na inauguração do capítulo; - Proibir expressamente a estadia na área de fiscalização por mais de 12 horas, proibindo a estadia de crianças e adolescentes sozinhas. | |
| Impedimento de ingresso em território nacional | - Garantia de entrevista individual, ato fundamentado e devido processo legal quando do impedimento de ingresso. | - Suprimir responder a processo criminal como causa de impedimento de ingresso; - Suprimir o indício de falsificação de documento como causa de impedimento de ingresso. |
| Repatriação e Deportação | - Garantia de notificação a Defensoria Pública da União em caso de repatriação e deportação; - Proibição de repatriação de menores desacompanhados; - Garantia de devido processo legal e ampla defesa; - Proibição de privação da liberdade por razões migratórias; - Previsão de redução do tempo concedido para regularização no caso de repatriação com base em ato contrário aos princípios e objetivos da Constituição Federal. | - Maior previsibilidade aos institutos, retirando a hipótese de regulação ampla pelo Executivo. |
| Expulsão | - Proibição de expulsão para migrante que resida há mais de quatro anos no Brasil; - Garantia de reconsideração com efeito suspensivo. | - Maior previsibilidade ao instituto, retirando a hipótese de regulação ampla pelo Executivo. |
| Naturalização | - Tornar mais garantista e detalhado o procedimento de perda de nacionalidade. | |
| Emigração | - Criação de um banco de dados com informações quantitativas e qualitativas. | |
| Infrações | - Retirada da infração de empregar imigrante indocumentado; - Acréscimo de infração para quem se furtar ao controle migratório. | |
| Disposições finais | - Isenção de taxas e emolumentos para concessão de vistos e documentos para migrantes vulneráveis; - Previsão de Conselho Nacional de Migração. - Anistia a migrantes indocumentados; - Previsão de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia para coordenar as ações dos três entes da federação. | - Revogação do crime de reingresso de estrangeiro expulso. |
A Comissão alterou trechos do substitutivo do relator para, nas partes relativas à reunião familiar[29], a expressão “sem distinção de gênero ou orientação sexual” se tornar “sem qualquer discriminação” sob a alegação de que os termos "gênero" e "orientação sexual" não eram bem aceitos pela Casa e, na parte relativa a impedimento de ingresso, a comunicação obrigatória a Defensoria Pública da União ser relativizada e a previsão de devido processo legal retirada sob a alegação de que burocratizariam em demasia a atividade estatal.
Em plenário, foram apresentadas três emendas ao projeto, além de uma subemenda apresentada pelo relator. A emenda nº 1, de autoria do Deputado Herculano Passos tinha por objeto a facilitação da permissão de entrada em caso de turismo nas regiões fronteiriças e foi rejeitada por não observar o princípio da reciprocidade[30]. A emenda nº 2, de autoria do Deputado Ivan Valente, criava diretrizes para a manutenção de viajante na área internacional de aeroporto, garantindo entre outras coisas, a permanência máxima de vinte e quatro horas e o acesso do migrante à bagagem de mão. O relator, embora tenha feito elogios à proposta, optou por rejeitá-la por violar um acordo feito entre a Comissão Especial e o Governo, com a garantia de amplitude do texto no que dizia respeito aos procedimentos dos agentes públicos. Novamente, o plenário acatou a decisão do relator e arquivou a proposta. A terceira emenda, do Deputado Otávio Leite, propunha responsabilizar empresas pelo custo de repatriação somente em caso de dolo ou culpa e criava infrações relacionadas ao transporte de imigrantes indocumentados, sendo acatada somente a primeira sugestão.
A subemenda do relator apresentava em sua maior parte correções de redação, sendo mudanças relevantes o acréscimo da proteção ao mercado de trabalho nacional como princípio da lei, flexibilizações no visto para ensino, pesquisa ou extensão e para o visto de trabalho e a previsão de validade da medida de repatriação quando não há manifestação da DPU, desde que essa tenha sido informada previamente. A subemenda foi integralmente acolhida. Durante a votação, houve acordo entre o relator e o Deputado Fernando Francischini para retirada da previsão de entrada condicional de migrante sobre o qual recaia medida de repatriação. A justificativa para a retirada foi a amplitude do dispositivo, que poderia gerar empecilhos para aplicação do instituto.
O saldo do período de tramitação na Câmara é mais positivo do que o anterior: as audiências públicas chamaram a atenção para vários aspectos, principalmente os relacionados às medidas de retirada compulsória do território e de permissão de entrada, que passam despercebidos para aqueles que não trabalham com a temática. Ainda assim, algumas demandas não foram atendidas, com enorme prejuízo para a minoria que migra.
Entre esses, pode-se destacar a gestão migratória. É demanda antiga dos migrantes, bem como foi um pedido constante nas audiências que a atividade saísse das mãos da Polícia Federal, auxiliando a acabar com a noção penal da migração. Apesar disso, foi mantida a competência do órgão, em total dissonância com o ideal humanista do fenômeno migratório.
Outro dispositivo que restou inalterado, a hipótese de proibição de entrada para quem apresenta os documentos aparentemente adulterados, contribui para aproximar a lei da ideia de imigrante como subversivo em potencial e a ausência da obrigatoriedade de tradutor em procedimentos migratórios cria um distanciamento entre o Estado e o indivíduo que migra, onde só o primeiro possui o poder da fala, uma vez que o segundo não necessariamente domina o código em que se comunicam[31].
As alterações feitas pela Comissão Especial que retirou o termo “gênero e orientação sexual” e fragilizaram as garantias do impedimento de ingresso, também distanciam o projeto da igualdade apregoada pela Constituição e pelo Direito Internacional, já que no primeiro caso, excluem o reconhecimento da categoria dos migrantes pertencentes a minorias sexuais e de gênero e abrem o leque interpretativo da aplicabilidade da reunião familiar e da inexpulsabilidade e, no segundo caso, retiram do migrante o direito constitucional ao devido processo legal, afastando-o do status jurídico daquele considerado nacional.
Da mesma forma, a amplitude dos institutos da deportação, repatriação, expulsão e fiscalização que também foram pouco alteradas, geram insegurança para uma população que chega vulnerável em território nacional e, não raramente, é usada para propósitos políticos pelo Executivo. No caso específico da manutenção do migrante em aeroportos, a gravidade da situação enfrentada exige uma solução legislativa clara que, apesar de apresentada e elogiada pelo relator, foi rejeitada frente a um acordo feito entre poderes estatais[32].
A tramitação do Substitutivo da Câmara dos Deputados no Senado e do Veto no Congresso Nacional
O substitutivo da Câmara dos Deputados foi bem aceito pelo relator no Senado, Senador Tasso Jereissati. O parlamentar fez pequenas mudanças, das quais as mais relevantes são a supressão da previsão de prazo menor que sessenta dias para a deportação por ato contrário à Constituição, por entender ser um dispositivo incompatível com o preceito do devido processo legal e muito amplo; a supressão da previsão de um Conselho Nacional de Migração, por entender que havia vício de iniciativa[33]; e a supressão da proteção ao mercado de trabalho nacional como princípio da lei, por entender que a disposição violava o espírito da lei, revelando um protecionismo injustificável.
Durante a votação no plenário do Senado, o Senador Ronaldo Caiado requereu que se fosse votado de forma separada a permissão para que povos tradicionais circulassem livremente em áreas tradicionalmente ocupadas, a necessidade de fundamentação para impedimento de ingresso, a proibição de repatriação de pessoa sob acolhimento humanitário[34] e a necessidade de oitiva do Ministério Público para requisição de prisão cautelar em caso de extradição. Para ele, os dispositivos em questão afrontavam a soberania nacional e impediam o país de trazer segurança aos seus cidadãos. As justificativas, baseadas em ideias claramente securitizadoras não receberam grande adesão e todos os destaques foram aprovados. De forma semelhante, houve requerimento para a manutenção da redução do prazo em casos de deportação por ato contrário a Constituição, dispositivo que havia sido suprimido pelo relator, sendo este vencido e o dispositivo mantido na versão aprovada.
Entre os trinta e um vetos do Executivo, destacam-se (i) o veto à própria definição de migrante, vetada por ser considerada demasiadamente ampla por abranger o residente fronteiriço, o que supostamente violaria a Constituição, que faria distinção clara entre migrante residente e não-residente; (ii) a permissão de livre circulação de povos tradicionais, vetada por afrontar a soberania nacional e o controle de fronteiras; (iii) a anistia para os migrantes indocumentados, vetada por esvaziar uma suposta discricionariedade do Estado na matéria; (iv) a definição de grupos vulneráveis para o fim de isenção de taxas, por colocar entre eles o migrante que responde a processo criminal; e (v) a causa de inexpulsabilidade por tempo de residência, também por esvaziar uma suposta discricionariedade do Estado para gestão migratória. A recorrente presença da ideia de soberania e da discricionariedade estatal para gestão migratória nas justificativas possuem como pressuposto um direito estatal de decidir quem entra e sai de suas fronteiras, muitas vezes ignorando sua história pessoal e fatos relevantes como seu pertencimento a um grupo que enxerga de forma distinta a relação com o território ou seu tempo de residência no território nacional. Assim, caminha-se em direção ao apagamento do indivíduo da lei, em nome da vontade de uma coletividade que não o incluiria, o Estado do qual não é nacional.
Apesar dos vetos apresentados demonstrarem um viés estatista, baseados no corolário da soberania, rechaçado pelos participantes da Sociedade Civil, migrantes e parlamentares durante toda a tramitação do diploma, tendo inclusive o dispositivo referente à livre circulação de povos tradicionais sido aprovado ainda que sob argumentos contrários idênticos ao veto do Executivo, o Senado Nacional, durante reunião do Congresso Nacional, optou por manter o veto integralmente, em votação ampla de 36 votos pela manutenção e 04 contrários.
Conclusão. Lei de migração: uma lei para minorias?
Uma lei pode ser considerada democrática a partir do momento em que todos os grupos sociais afetados por ela podem contribuir de forma paritária no debate, expondo suas noções de mundo e suas propostas em uma estrutura dialética e pública.
A história da Nova Lei de Migração deu voz aos migrantes, de forma pública, em dois momentos: durante a COMIGRAR e durante as audiências públicas e visitas técnicas realizadas na Câmara dos Deputados. A primeira ocasião, sem precedentes na história brasileira, influenciou o anteprojeto do Ministério da Justiça e, por via reflexa, o PL 288/2013 no Senado Federal. Já a segunda foi a grande responsável pelas amplas mudanças que geraram o Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 7/2016.
Apesar disso, a ausência de direitos políticos dos migrantes causada pelo mau enquadramento dado pela Constituição Federal que exclui de forma permanente esse grupo dos espaços de representação e poder, agravada pelas dificuldades antes impostas pelo Estatuto do Estrangeiro no que dizia respeito à participação política, cria vazios onde não é possível o diálogo. Assim, as reuniões sem audiências públicas do Senado Federal geraram o aumento da idade mínima para inexpulsabilidade; o relatório da Câmara dos Deputados, inquestionável para aqueles que não possuem deputado para representá-los, mantém, sem justificar, a manutenção da gestão migratória nas mãos da Polícia Federal; as reuniões da Comissão Especial retiram a garantia do devido processo para a negativa de ingresso em território nacional; um acordo entre deputados e o Poder Executivo desfaz a possibilidade de regulamentação legal da manutenção de migrantes em zonas de fiscalização; e o Congresso Nacional mantém o veto a disposições progressistas e amplamente dialogadas pela Sociedade Civil e migrantes. Embora a plena participação dos migrantes na política só seja possível com uma mudança constitucional, não houve, em diversos momentos da tramitação, vontade política para que essa barreira fosse transposta, fazendo com que revezes substanciais ocorressem em contextos em que a Sociedade Civil não participava, tornando a vontade da coletividade estatal superior, de forma autoritária e não-paritária às pessoas que atravessam as fronteiras de um Estado com suas histórias e suas ambições.
Em conclusão, pode-se dizer que a Nova Lei de Migração, apesar de mais avançada que a lei anterior, foi aprovada com disposições e omissões que impediram um acesso mais amplo dos migrantes a liberdade de movimentação e cidadania. Da mesma forma, a vedação ao ambiente político que a Carta Magna brasileira impõe faz com que os migrantes tenham pouco poder de barganha frente aos organismos estatais, marginalizando-os no debate da lei e gerando um consenso possível que não lhes é favorável.
Assim, não há razão de dizer que houve participação paritária e que a lei de migração é uma lei para minorias, afastando de forma permanente o viés estatista da migração. Será necessário, portanto, que a mobilização da Sociedade Civil continue em todas as instâncias governamentais, com o objetivo de diminuir o estigma sobre esse grupo e permitir sua plena inserção na comunidade brasileira, em conformidade com os ditames de Direitos Humanos.
Gratidão
Os autores agradecem a participação da Academia Nacional de Estudos Transnacionais, cuja contribuição, através de seu programa de Iniciação Científica, possibilitou a realização da presente pesquisa.
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Notas
Art. 1o Em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais.
Art. 3o A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais.
Art. 16. O visto permanente poderá ser concedido ao estrangeiro que pretenda se fixar definitivamente no Brasil.
Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação da tecnologia e à captação de recursos para setores específicos.
Art. 7º Não se concederá visto ao estrangeiro: (...)
II - considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais;
Art. 106. É vedado ao estrangeiro:
I - ser proprietário, armador ou comandante de navio nacional, inclusive nos serviços de navegação fluvial e lacustre;
II - ser proprietário de empresa jornalística de qualquer espécie, e de empresas de televisão e de radiodifusão, sócio ou acionista de sociedade proprietária dessas empresas;
III - ser responsável, orientador intelectual ou administrativo das empresas mencionadas no item anterior;
IV - obter concessão ou autorização para a pesquisa, prospecção, exploração e aproveitamento das jazidas, minas e demais recursos minerais e dos potenciais de energia hidráulica;
V - ser proprietário ou explorador de aeronave brasileira, ressalvado o disposto na legislação específica;
VI - ser corretor de navios, de fundos públicos, leiloeiro e despachante aduaneiro;
VII - participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada;
VIII - ser prático de barras, portos, rios, lagos e canais;
IX - possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar, salvo reciprocidade de tratamento; e
X - prestar assistência religiosa às Forças Armadas e auxiliares, e também aos estabelecimentos de internação coletiva.
Art. 107. O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado:
I - organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem;
II - exercer ação individual, junto a compatriotas ou não, no sentido de obter, mediante coação ou constrangimento de qualquer natureza, adesão a ideias, programas ou normas de ação de partidos ou facções políticas de qualquer país;
III - organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar, com os fins a que se referem os itens I e II deste artigo.
X - determinar o destino do expediente lido e distribuir as matérias às comissões;
I - proposições referentes aos atos e relações internacionais (Const., art. 49, I) e ao Ministério das Relações Exteriores;
II - comércio exterior;
III - indicação de nome para chefe de missão diplomática de caráter permanente junto a governos estrangeiros e das organizações internacionais de que o Brasil faça parte (Const., art. 52, IV);
IV - (Revogado);
V - Forças Armadas de terra, mar e ar, requisições militares, passagem de forças estrangeiras e sua permanência no território nacional, questões de fronteiras e limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo, declaração de guerra e celebração de paz (Const., art. 49, II);
VI - assuntos referentes à Organização das Nações Unidas e entidades internacionais de qualquer natureza;
VII - autorização para o Presidente ou o Vice-Presidente da República se ausentarem do território nacional (Const., art. 49, III);
VIII - outros assuntos correlatos.
II - proposições que versarem matéria de competência de mais de três Comissões que devam pronunciar-se quanto ao mérito, por iniciativa do Presidente da Câmara, ou a requerimento de Líder ou de Presidente de Comissão interessada.
Autor notes