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A instrumentalização financeira do espaço: Fundos de investimento imobiliário como estruturas de capital fixo
The financial instrumentalization of space: Real estate investment funds as fixed capital structures
Revista INVI, vol. 36, núm. 103, pp. 194-214, 2021
Universidad de Chile. Facultad de Arquitectura y Urbanismo. Instituto de la Vivienda

Dossier


Recepção: 31 Maio 2021

Aprovação: 18 Outubro 2021

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

Número do contrato: 2020/07497-1

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

Número do contrato: 2019/18881-0

Descrição completa: O trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2020/07497-1. O trabalho também é resultado do projeto de pesquisa “Imobiliário e Infraestruturas sob domínio de Grandes Grupos Econômicos: Financeirização e metropolização do espaço na São Paulo do Século XXI”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, processo nº 2019/18881-0

Resumo: Na atual conjuntura de dominância financeira sobre os processos produtivos, o crescimento e a consolidação dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII) na Região Metropolitana de São Paulo designam-se como um modelo cada vez mais relevante de instrumentalização do espaço urbano e, por conseguinte, de constituição de um regime específico de propriedade do capital cuja centralidade reside no juro e na renda. À vista disso, o presente trabalho demonstra como o desenvolvimento do instrumento repercutiu sobre a região metropolitana de São Paulo a partir da crise financeira mundial de 2008. Ademais, qualificou-se o FII como uma grande estrutura de capital fixo do tipo autônomo que, à luz e determinação das finanças, engendra mecanismos complexos de apropriação e reprodução do capital através do espaço urbano. A metodologia empregada, de natureza qualitativa, demonstra empiricamente o processo de expansão do FII sobre a metrópole, sendo posteriormente articulada ao debate teórico. O trabalho conclui que o entrelaçamento imobiliário-financeiro, viável através de instrumentos sofisticados, contorna as barreiras historicamente presentes no setor imobiliário, tomando-o como um grande vetor de expansão do capital financeiro.

Palavras chave: capital fictício, capital fixo, financeirização, fundo de investimento imobiliário.

Abstract: In the current condition of financial dominance over the production processes, the growth and consolidation of the Real Estate Investment Funds (FII, Brazilian REIT) in the Metropolitan Region of São Paulo are designated as an increasingly relevant model of urban space instrumentalization and, therefore, of the constitution of a specific capital ownership regime whose centrality resides in interest and rent. Because of this, the present work demonstrates how the development of the instrument had repercussions on the metropolitan region of São Paulo since the global financial crisis of 2008. Furthermore, the FII was qualified as an autonomous large fixed capital structure that, in the light and determination of finances, engenders complex mechanisms of capital appropriation and reproduction through the urban space. The qualitative method used here demonstrates empirically the process of expansion of the FII over the metropolis, being later articulated in the theoretical debate. The work concludes that the real estate and financial entanglement, viable through sophisticated instruments, circumvents the barriers historically present in the real estate sector, taking it as a great vector for the expansion of financial capital.

Keywords: Fictitious capital, financialization, fixed capital, real estate investment trust.

Introdução

Institucionalizado na década de 1990, o Fundo de Investimento Imobiliário (FII) foi um instrumento concebido no seio da reestruturação do sistema de financiamento imobiliário brasileiro (Botelho, 2005). Idealizado para captar e direcionar recursos do mercado de capitais para o setor imobiliário, o FII passou a se constituir como um mecanismo relevante a partir da crise financeira mundial de 2008. Desse evento, pode-se dizer que dois importantes vetores de crescimento foram destravados: no âmbito institucional, há a consolidação de uma base regulatória e ambiente de negócios mais consistentes; e no cenário macroeconômico, nota-se a redução paulatina da taxa básica de juros.

Observa-se, como reflexo dessas mudanças, a maior quantidade de FIIs registrados na Comissão de Valores Mobiliários [CVM] - autarquia federal responsável pela regulação e supervisão do mercado de capitais. Até 2008, havia apenas 48 fundos imobiliários em funcionamento, ao passo que, em setembro de 2020, esse número já havia chegado à marca de 511. No mesmo período, o valor da indústria saltou de $57,68 milhões para pouco mais de $25,31 bilhões, um aumento de 437%, enquanto o número de FIIs cresceu aproximadamente 11 vezes. Frente a esta ampla expansão, diversos autores têm se debruçado sobre o objeto, perpassando diversas temáticas como a sua consolidação, forma jurídica e lógica de inversão no território (Botelho, 2005; Fix, 2011; Franco, 2019; Martin et al., 2018; Sanfelici, 2017; Sanfelici & Halbert, 2018; Terpins, 2013; Volochko, 2008).

Na passagem do domínio do capital industrial para o capital financeiro, Chesnais (2005) anuncia a conformação de um regime específico de propriedade do capital, no qual a forma da propriedade patrimonial garante ao seu possuidor o direito à renda na forma de aluguéis e/ou aplicações no mercado de capitais. Consequentemente, impõe-se ao modo de produção uma apropriação crescente de parte do capital excedente produzido, o que acarretaria uma esterilização da produção pelos recursos financeiros (Dowbor, 2017). Isto é, os investimentos e o crescimento econômico passam a ser cada vez mais pautados pela expectativa futura de realização de um capital nem sequer incorporado ou produzido.

De modo a compreender o atual regime de propriedade do capital, mobiliza-se a categoria de capital fixo como elemento teórico central da discussão. Subordinado à lógica financeira, esta pesquisa sustenta que o Fundo de Investimento Imobiliário funciona como uma estrutura de capital fixo que instrumentaliza o espaço e a sua produção. Assim, a contribuição deste trabalho reside na recuperação de uma importante categoria e determinabilidade do capital como forma de domínio das finanças sobre o espaço urbano.

O principal objetivo do presente trabalho é, então, compreender a atuação dos FIIs na formação de capital fixo a partir da racionalidade e práxis urbano-financeira. Complementarmente, deve-se adentrar na conjuntura do crescimento dos FIIs a partir de 2008, sendo necessária uma breve caracterização do momento e a forma como o instrumento foi inicialmente idealizado. Assim, verificar-se-á como e de que forma o seu desenvolvimento passa a integrar à lógica atual do regime de acumulação patrimonial.

O trabalho se divide em duas seções principais além da presente introdução e conclusão. A primeira parte aborda a origem dos fundos imobiliários, além do contexto macroeconômico e institucional que permitiu a sua consolidação a partir de 2008. Além disso, realiza-se a territorialização das propriedades imobiliárias geridas por FIIs na Região Metropolitana de São Paulo em diferentes períodos. A segunda seção ilumina a categoria do capital fixo sob o domínio imobiliário-financeiro. Em outras palavras, aborda-se como a forma do capital fixo transitou do período industrial para o financeiro, configurando-se como um tipo “autônomo” (Harvey, 2013) - sendo arrendado sob uma base de remuneração periódica - quando empregado pelos FIIs.

A metodologia aplicada à pesquisa é de natureza qualitativa e foi dividida em duas etapas. Inicialmente, para a análise territorial, foram compiladas em uma base de dados informações obtidas a partir de instituições como a CVM, Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais [ANBIMA], Brasil, Bolsa e Balcão [B3], Banco Central [BACEN] e de relatórios gerenciais de FIIs disponíveis. Ressalta-se que, além do recorte territorial, o trabalho considerou apenas os FIIs listados na Bolsa de Valores, visto que os seus dados são públicos e padronizados. Desses, apenas os FIIs que investem em propriedades físicas (chamados fundos de “tijolo”) foram contemplados, pois, àqueles que investem em títulos mobiliários não possuem expressão espacial direta. Logo, do total de FIIs registrados, cerca de 21% se enquadrou na delimitação proposta, englobando 411 propriedades imobiliárias dos mais diversos segmentos (corporativo, residencial, shopping center, hospital, galpão logístico, dentre outros).

A segunda etapa foi embasada em uma pesquisa sistemática que se debruçou sobre a transformação dos aspectos regulatórios dos FIIs a partir de leis, resoluções, normas técnicas e instruções normativas. Além disso, a discussão dos fundos imobiliários sob a categoria do capital fixo foi realizada a partir da revisão de literatura que perpassou aspectos dessa determinabilidade sob o domínio industrial para o financeiro.

A consolidação dos Fundos de Investimento Imobiliário: evidências da Região Metropolitana de São Paulo

O Fundo de Investimento Imobiliário (FII) é definido, segundo a Lei n.º 8.668 (1993) que o instituiu, como uma “comunhão de recursos capturados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários […] destinados à aplicação em empreendimentos imobiliários”. Apesar da descrição um tanto quanto simples, o instrumento é complexo e, embora tenha sido instituído no início da década de 1990, passou a crescer de forma expressiva no Brasil a partir da crise financeira mundial de 2008.

Inspirado no modelo do Real Estate Investment Trust (REIT) norte-americano, o FII foi inicialmente planejado como um instrumento capaz de direcionar recursos captados por meio do mercado de capitais, especialmente de investidores institucionais (como os fundos de pensão, bancos e seguradoras), para o financiamento do mercado imobiliário.

Em decorrência do cenário econômico fragilizado dos anos 1980, poucos FIIs foram criados na década de 1990. Por trás do pouco dinamismo do modelo recém-criado, Sanfelici e Halbert (2018) apontam que, além da falta de maturidade do instrumento - principalmente em seu aspecto regulatório -, o cenário macroeconômico também não era favorável, pois as altas taxas de juros tornavam os títulos públicos uma opção de investimento mais atrativa, dada a relação risco-retorno. Cabe destacar que, mobilizadas para combater a hiperinflação herdada da ditadura militar (1964-1985), as taxas de juros que barravam a migração de recursos para o mercado de capitais tinham, prioritariamente, o papel de assistir a estabilização da economia.

No período que se estendeu até 2008, os Fundos de Investimento Imobiliário foram lentamente reestruturados (Botelho, 2005; Franco, 2019; Sanfelici, 2017; Sanfelici & Halbert, 2018). Na prática, verifica-se nesse decurso o aprimoramento regulatório do instrumento (criação de normativas para a maior transparência na elaboração e divulgação de demonstrações financeiras, isenção tributária dos rendimentos distribuídos para investidores pessoa física e dos próprios FIIs, dentre outros) e um movimento ainda incipiente de transformação em seu modo de operação. Sobre esse último aspecto, pode-se citar: a abertura de capital de alguns fundos na bolsa de valores a partir de 2002, a expansão dos investimentos para outros segmentos (além do setor corporativo), a maior diversificação das carteiras de investimento (que passam de monoativos para multiativos) e a redução de exposição ao capital de investidores institucionais, passando a focar também nos investidores de varejo.

Em 2008, dois eventos bastante relevantes se desdobram. O primeiro, ocorreu por uma nova atualização na legislação dos FIIs pela Instrução CVM 472 (2008) que ampliou a base de investimentos do instrumento, permitindo a aplicação de recursos em títulos mobiliários com lastro imobiliário, como as Letras Hipotecárias, Letras de Crédito Imobiliário e os Certificados de Recebíveis Imobiliários1. Por conseguinte, os FIIs deixam de ser mobilizados como veículo de investimento exclusivos em imóveis físicos (fundos de “tijolo”) e também passam a investir nos títulos mobiliários citados (fundos de “papel”). Ademais, outras estruturas mais complexas também surgem, como os Fundos de Fundos (FoFs - Fund of Funds), que adquirem cotas de outros FIIs, e os fundos híbridos, que aplicam em duas ou mais modalidades citadas.

O segundo evento é engendrado pela crise financeira originada a partir do estouro da bolha imobiliária do subprime nos EUA que afetou severamente economias do Norte ao Sul Global. Em resposta, o governo brasileiro adotou medidas anticíclicas e apostou no setor imobiliário como peça-chave para manter a economia aquecida. Nesse caso, uma série de providências foram tomadas, como a manutenção do gasto público, a sustentação da linha de crédito habitacional e o lançamento do programa “Minha Casa, Minha Vida” (Almeida, 2011). Além disso, o BACEN passou a reduzir gradativamente a taxa de juros, que caiu de 13,75% em janeiro de 2009 para 8,75% em julho do mesmo ano.

Devido à queda, a relação inicialmente apontada por Sanfelici e Halbert (2018) se inverte. Com os juros menores, os títulos públicos tendem a perder atratividade fazendo o capital migrar para investimentos com retornos (e riscos) maiores. No Figura 1, é possível observar que a redução da taxa de juros desempenha um importante papel ao favorecer a ampliação do patrimônio líquido dos FIIs, especialmente pela migração de recursos advindos de investidores do tipo pessoa física. No decorrer da crise político-econômica desencadeada em meados de 2013 - momento em que a taxa de juros voltou a subir -, a indústria de fundos imobiliários praticamente se estabilizou, apresentando um crescimento bastante tímido. No entanto, o porvindouro contorno da crise a partir do estabelecimento de um novo governo com um viés econômico liberal trouxe os juros a níveis mínimos históricos (chegando a 2% em agosto de 2020), fato que desencadeou uma nova retomada, mais intensa inclusive, de desenvolvimento dos FIIs.


Figura 1
Histórico da Taxa básica de juros e do Patrimônio Líquido dos FIIs.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da CVM, ANBIMA e BACEN. Referência janeiro de 2021.

Ao passo do cenário macroeconômico favorável e de um ambiente de negócios mais seguro (dadas as mudanças regulatórias citadas), no início desse segundo momento, constituem-se FIIs geridos e administrados por Grandes Grupos Econômicos (GGEs). De acordo com Rocha (2013, p. 04), um Grupo Econômico pode ser considerado “uma estrutura empresarial de grande porte e diversificada, formada geralmente por uma empresa holding que constitui seu núcleo”. Tal definição é amplamente observável na indústria de FIIs, sobretudo a partir de 2010, período em que fundos de maior porte passaram a ser estruturados. Cita-se, por exemplo, o FII Kinea Renda Imobiliária (KNRI) cujo patrimônio líquido saltou de $47,6 milhões, em junho de 2010, para valores atuais que giram em torno de $690 milhões2. A Kinea, cabe ressaltar, é uma gestora de investimentos pertencente ao grupo Itaú Unibanco Holding S.A., maior instituição financeira da América Latina (Murphy et al., 2021).

O panorama geral revela que os dez maiores administradores detêm 78,99% de participação na indústria de FIIs, enquanto os dez maiores gestores possuem 58,2%. Ou seja, há uma grande concentração de patrimônio imobiliário em mãos de alguns poucos Grupos Econômicos. Também é possível observar uma forte centralização de atividades, em que um mesmo grupo cumpre as atribuições de administração e gestão dos FIIs. Como observado na Tabela 1, seis das dez maiores empresas desempenham ambas as funções.

Tabela 1
Classificação dos dez maiores administradores e gestores de FIIs por participação no mercado

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da ANBIMA, ref. Setembro de 2020

Em relação à origem da fonte de recursos, verifica-se pontualmente a expansão da base de investidores em 2011 e, de modo mais sustentado, a partir de 2017. Em 2020, a marca atingiu a expressiva quantidade de um milhão de investidores em FIIs, que continuou a crescer. Segundo dados da B3 (2021), atualmente há quase 1,3 milhões de investidores, cuja composição é majoritariamente de pessoas físicas (99,55%), seguido por outros (0,35%), investidores institucionais (0,09%) e não residentes (0,01%). A maior concentração de investidores pessoa física também reflete maiores posições de custódia e volume negociado no mercado de capitais, de 73,8% e 68,2%, respectivamente; enquanto a exposição dos investidores institucionais flutua em torno de 20% para ambas as posições.

Posto os dados, pode-se inferir que a entrada dos GGEs na indústria de FIIs se conecta diretamente à maior quantidade de investidores no mercado de capitais e, consequentemente, de recursos - vide Figura 2. Por conseguinte, a inserção de tais grupos no mercado não só aumentou a oferta de fundos disponíveis, como também reforçou algumas tendências: a carteira dos FIIs se tornou cada vez mais diversificada (multiativos) e os FIIs ficaram mais diversos (com diferentes “tipologias” - tijolo, papel e híbrido). Em tese, essa diversificação ocorre porque tais Grupos Econômicos portam racionalidades que buscam reduzir o risco dos investimentos e maximizar seus retornos.


Figura 2
Histórico da Taxa básica de juros e da quantidade de investidores em FIIs (em milhares).
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da B3. Dados consolidados até fevereiro de 2021.

Dado o panorama, pode-se dizer que a consolidação e o crescimento dos Fundos de Investimento Imobiliário têm como principais vetores: (i) a queda da taxa de juros; (ii) uma base regulatória e ambiente institucional mais consistente; (iii) a constituição de grandes fundos administrados e geridos por Grupos Econômicos; e (iv) o aumento na base de investidores, principalmente do tipo pessoa física. Apesar dos movimentos de complexificação e desenvolvimento do instrumento ficarem mais claros, ainda concerne compreender em que medida o seu ganho de escala se reflete sobre a metrópole.

Desde o início dos anos 2000, diversos estudos vêm se debruçando sobre o avanço da financeirização sobre a produção imobiliária e, consequentemente, os seus efeitos na produção do espaço da cidade de São Paulo (Botelho, 2005; Fix, 2011; Miele, 2007; Rufino, 2017). Como centralidade pujante, a concentração regional de atividades econômicas, a presença de grandes players globais e um mercado imobiliário já consolidado fazem deste território uma escolha lógica para a atividade desempenhada pelos fundos imobiliários, congregando uma expressiva quantidade de FIIs.

Ao investigarem as formas específicas de produção e consumo do espaço urbano, esses autores demonstram como o capital financeiro atuou de maneira concentrada na consolidação de eixos corporativos no quadrante sudoeste de São Paulo, como nas Avenidas Faria Lima e Berrini. Estabelecendo-se como continuidade das áreas tradicionalmente valorizadas da cidade, os eixos passam a representar um importante “retrato da ‘cidade global’ pela própria feição do conjunto de empreendimentos construídos” (Rufino, 2013, p. 6), que se caracterizam principalmente por edifícios corporativos de grande porte e alta qualidade (do padrão construtivo, tecnologias disponíveis e serviços condominiais). Ainda que restrito a espaços específicos, o entrelaçamento entre o capital financeiro e a produção imobiliária foi responsável por uma enorme exacerbação da valorização imobiliária (Rufino, 2013), cujo preço de aquisição do metro quadrado pode alcançar aproximadamente $5.500/m², como é o caso do recém construído Edifício Faria Lima Plaza (Samor, 2020).

Ao passo em que a matriz institucional do instrumento amadureceu e o cenário macroeconômico se tornou mais favorável ao desenvolvimento da indústria de FIIs, o Figura 3 destaca três períodos que evidenciam a escala e proporção que o fenômeno adquiriu na Região Metropolitana de São Paulo ao longo das últimas duas décadas. A partir dos Fundos de Investimento Imobiliário listados na Bolsa de Valores (B3), a pesquisa compilou 411 propriedades detidas por FIIs que foram representadas tão somente nos períodos elencados. O primeiro momento, entre 2000 e 2007, situa um estágio ainda incipiente que antecede o período de crescimento mais sustentado, notado no ínterim de 2008 a 2014. O período entre 2015 e 2020, engloba o momento de estabilização e posterior crescimento da indústria, demonstrando a intensificação de determinadas dinâmicas que já transcorriam desde a fase anterior.


Figura 3
Mapa de calor das propriedades geridas por FIIs na RMSP entre 2000-2020.
Fonte: Elaboração própria a partir da compilação de dados da CVM, ANBIMA e relatórios gerenciais.

Apesar do recorte estudado enfatizar a conjuntura de crescimento dos fundos imobiliários sobre o espaço a partir da crise financeira mundial de 2008, apresenta-se brevemente o período anterior (2000-2007) a fim de ilustrar a dimensão dos FIIs em um momento no qual os seus principais vetores de crescimento ainda não haviam se consolidado. Nesse intervalo, verifica-se que grande parte das propriedades geridas por FIIs, majoritariamente corporativos, encontrava-se dispersa e dentro dos limites administrativos do município de São Paulo.

A partir de 2008, fatores já citados como a queda dos juros, o aumento na quantidade total de fundos imobiliários e maior captação de recursos por meio do mercado de capitais se reflete na expansão dos FIIs pela metrópole. Observa-se, concomitantemente, um movimento de concentração-descontração. Ainda que permaneça a importante concentração no vetor sudoeste da cidade, em uma dinâmica de contínua sofisticação dos empreendimentos ali desenvolvidos (rating A+ ), verifica-se a intensificação de um movimento de desconcentração suportado em grande medida pelo crescimento de outros segmentos como o de galpões logístico e o de shopping centers. Esses últimos setores passam a se ancorar em diferentes regiões, em uma lógica seletiva que privilegia corredores rodoviários e a proximidade de grandes estruturas de mobilidade.

Apesar de a taxa básica de juros ter subido devido à crise político-econômica (entre 2014 a 2017), os investimentos no setor não foram desmobilizados, mantendo-se praticamente lateralizados. O comportamento do setor frente à nova alta dos juros é relevante porque a sustentação do capital sob égide dos fundos imobiliários, sem migrar para outros circuitos, já demonstra sinais de consolidação do setor.

A partir de 2017, após a conformação da nova tendência de queda para os juros, a indústria de FIIs voltou a crescer de maneira impetuosa (rever Figura 1). Verifica-se como reverberação espacial desse processo o fortalecimento das tendências anteriormente identificadas durante o segundo período. Em outras palavras, há a intensificação da atuação e do interesse dos FIIs no quadrante sudoeste, bem como um maior espraiamento na região metropolitana, motivado principalmente pelo contínuo crescimento e expansão de outros segmentos (shopping centers e galpões logísticos).

Apresentado o panorama do desenvolvimento dos Fundos de Investimento Imobiliário na metrópole de São Paulo, verifica-se que a consolidação do instrumento foi muito pautada pelo cenário macroeconômico favorável e pelo avanço institucional que proporcionou um ambiente de negócios mais seguro e transparente. Inicialmente idealizado como um mecanismo de financiamento do setor imobiliário, ele passa cada vez mais a se constituir como um meio exemplar de reprodução do capital por meio da prospecção e capitalização de rendas.

O avanço do domínio financeiro sobre o território influi cada vez mais sobre as formas de produção do espaço. Conforme demonstrado pelo caso dos FIIs, a intensa instrumentalização do espaço por mecanismos financeiros sofisticados, que buscam fluxos de renda cada vez maiores, impõe novas lógicas e dinâmicas sobre como o capital circula e se realiza. Sob essa constatação, entende-se que abordar o ambiente construído sob a categoria e forma de capital fixo permitirá iluminar a conformação do novo “regime específico de propriedade do capital” (Chesnais, 2005) cuja base da renda e do juro é o imobiliário.

Iluminando o capital fixo sob o domínio imobiliário-financeiro

A presente seção sustenta que com a consolidação do Fundo de Investimento Imobiliário, estes passam a funcionar como estruturas de capital fixo do tipo “autônomo” cujo crescimento na última década via mercado de capitais propiciou a expansão de seus investimentos imobiliários. A grande mobilização de recursos permitiu a dilatação da carteira imobiliária dos FIIs e, assim, uma maior prospecção sobre uma parte do mais-valor produzido nessa base ampliada. Por conseguinte, pergunta-se: quais determinações o capital fictício impõe ao capital fixo, e quais são as consequências dessa associação sobre o espaço urbano? Com este fim, mobiliza-se a categoria de capital fixo como elemento basilar da discussão, que atualmente se distingue da determinação da cidade industrial e passa a ser cada vez mais subordinada aos processos da metrópole financeira.

Observar o território e a cidade como capital fixo não é uma abordagem necessariamente nova no campo da crítica da economia política. No fim da década de 1970, Folin (1977) já apontava que o aspecto central dessa relação consistiria no modo particular em que o espaço físico adentra no processo de produção e reprodução do capital. Em sua colocação, não se tratava em contemplar o espaço construído como lugar no qual os processos de circulação do capital ocorrem, mas revelar de que maneira o espaço se torna parte do processo de criação ou realização do mais-valor.

Sobre esta reflexão, outras questões surgem e são igualmente postas pelo autor, como: sob quais formas a concentração dos meios de produção e da força de trabalho ocorre no espaço e quais contradições emergem dessa postulação. Aqui, algumas rápidas considerações devem ser feitas de modo a contextualizar melhor a discussão. Inicialmente, deve-se ter em mente que o autor considera o modo de produção de base e domínio industrial do período. Além disso, a abordagem da cidade como capital fixo possui uma dimensão ampla - de totalidade -, na qual a estruturação do espaço como “máquina” surge como uma condição da reprodução social (Folin, 1977).

Antes de avançar sobre as questões postas à luz das finanças, cabe realizar uma breve caracterização da categoria. Assim, o capital fixo pode ser inicialmente definido não como “uma coisa, mas um processo de circulação do capital através do uso de objetos materiais” (Harvey, 2013, p. 283). Circunscrito à sua forma material, ele é lentamente consumido no processo produtivo, sendo o seu valor de uso amparar e alavancar a incorporação de valor, pelo trabalho vivo, aos bens produzidos. Na prática, uma máquina ou um imóvel são capital fixo quando se realizam na esfera da circulação (como mercadoria) e passam a ser empregados na produção. Em outras palavras, tal determinação ocorre exclusivamente pelo seu modo de utilização, ou seja, no seu uso no processo produtivo como meio para se produzir novos valores.

Chama-se atenção para essa categoria por duas razões fundamentais apontadas por Marx (2011), as quais serão posteriormente discutidas à luz das novas lógicas e dinâmicas impostas pelo domínio financeiro.

A primeira, relaciona-se com a formação do capital fictício, tão central nas atuais relações de dominação da produção e reprodução do capital. De acordo com Marx (2011, p. 611-612), a “antecipação dos frutos futuros do trabalho” não se origina no sistema de crédito, mas “no modo específico de valorização, de rotação, de reprodução do capital fixo”. Logo, a relação entre a formação de capital fixo sobre o espaço urbano como forma de sustentação do capital fictício (através de títulos mobiliários) também se torna um aspecto de grande importância.

A segunda, diz respeito ao grau de desenvolvimento do capital que pode, em tese, ser ponderado a partir da dimensão quantitativa e da eficácia do capital fixo. A depender do grau de produtividade já alcançado, parte da riqueza social total produzida seria retirada da esfera de consumo imediato para ser empregada no interior do processo de produção (Marx, 2011).

Retomando o problema central, a produção do espaço adentra em um sentido igualmente amplo e encadeia uma série de relações e simultaneidades que subordinam o “espaço de produção” de artefatos e mercadorias (Lefebvre, 1991). Percebe-se, como movimento geral, que o setor imobiliário desempenha o papel de segundo circuito - paralelo ao da produção industrial - que amortece os choques causados pelo arrefecimento da indústria ao absorver os excedentes de capital provenientes desse domínio. Nessa circunstância, o espaço se torna cada vez mais relevante como meio de produção e “formação de capital”, ou seja, de realização de mais-valor (Lefebvre, 2002).

No âmago do segundo circuito, o capital se divide em duas categorias: capital fixo para a produção e fundo de consumo (como habitação, por exemplo). No primeiro tipo, parte do ambiente construído é consumido no processo de produção, sendo utilizada para “produzir” mais-valor. Já na segunda categoria, o fundo (que não é o imobiliário) se caracteriza por agregar as mercadorias (os bens imóveis) como bens de consumo, ligando-se à reprodução da força de trabalho. Em relação à primeira categoria, de capital fixo para a produção, ela ainda se subdivide em mais duas classes: (i) a de grande escala e longa durabilidade, como é o caso das infraestruturas; (ii) e a de capital fixo do tipo “autônomo”, que é emprestado ao invés de ser vendido e, dessa forma, propicia ao produtor capitalista um valor de uso sobre uma base de remuneração periódica (Harvey, 2005, 2013).

Atualmente, os limites da segmentação proposta não são tão claros, pois a infraestrutura pode muito bem ser mobilizada sob a forma “autônoma” do capital fixo; ou seja, ela também passa a ser cooptada, sob a lógica financeira, como meio de capitalização a partir da geração de renda. Cita-se, por exemplo, a concessão de aeroportos, linhas metroviárias, ou mesmo grandes obras de reurbanização, como o recém-concluído Vale do Anhangabaú em São Paulo.

Nesse sentido, o capital fixo - seja na forma de infraestrutura ou imobiliário -, é cada vez mais regido pela perspectiva de captura das rendas futuras dos empreendimentos através de instrumentos financeiros sofisticados. Apesar de ambas as formas se imbricarem cada vez mais no território sob a mesma lógica financeirizada, o seu modo de produção ainda apresenta algumas particularidades que devem ser postas.

Percebe-se, nesse sentido, que a produção de infraestruturas tem a promoção e participação predominantemente direta do Estado, seja por meio da produção estatal (cada vez mais ausente) ou pelo emprego de instrumentos de estruturação e gestão do território, bastante dependentes da participação privada, como as Parcerias Público-Privadas (PPPs), as Operações Urbanas Consorciadas (OUCs) e os Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (EETUs), dentre outros. Mesmo que o domínio de tais infraestruturas seja privado (pela concessão ou privatização), o seu uso direto é socializado (Rufino et al., 2021), quer dizer, desempenha um importante papel na reprodução da força produtiva, além do capital.

Apesar da produção estatal “desvalorizada” (Jaramillo, 1982) prosperar sob os novos contornos dos instrumentos citados, a produção do bem imobiliário como “máquina” continua bastante aderente ao modo de construção promocional privada. Nesse modo de produção, o imóvel que passa a ser empregado como capital fixo inicialmente circula sob a forma mercadoria e, sendo assim, perpassa pela esfera da realização do mais-valor. No entanto, desde o momento em que é adquirido pelo FII e passa a ser arrendado, o imóvel funciona como capital fixo, pois incorpora o seu valor de uso ao meio de produção.

Como resultado, o FII impõe novas racionalidades, práticas e métricas financeirizadas à gestão de seus ativos imobiliários e, consequentemente, sobre o espaço urbano. Aqui, cabe retomar à luz dessa nova ótica a relação entre capital fixo e capital fictício, inicialmente posta por Marx. Enquanto valor de uso, cujo propósito é produzir novos valores, o capital fixo compromete a produção futura e antecipa o trabalho porvindouro porque o retorno do capital nele investido ocorre de forma fragmentária. Isto é, o retorno do capital fixo ocorre em um horizonte de tempo maior devido ao seu alto custo inicial e também pelo modo como ele é lentamente consumido no processo de produção (Marx, 2011).

Portanto, a “antecipação dos frutos futuros do trabalho” (Marx, 2011) se liga diretamente à forma do capital fictício pela expectativa de apropriação de parte do mais-valor que ainda será produzido e realizado. Pelo caráter fixo desse capital, o capital fictício emerge como duplicata e forma particular de circulação (via título mobiliário, como é o caso das cotas para os FIIs), capaz de irromper com tal inércia e retornar, possivelmente, como valor na forma de renda. Em outras palavras, a cota de um FII - fração ideal do seu patrimônio líquido - representa um fragmento do capital real imobilizado que, condicionado pela lógica financeira, circula e, assim, pode gerar renda. Essa é uma condição determinante, pois “o capital fixo só retorna como valor na forma do capital circulante, ele só pode produzir renda nessa forma” (Marx, 2011, p. 613).

Na passagem da hegemonia do capital produtivo industrial para o capital financeiro, a determinação mútua entre capital fixo e capital circulante também se conserva sob essa nova dinâmica. Quando o valor do capital fixo se “desprende” da sua forma material e circula virtual e ficcionalmente, o espaço, em sua totalidade, se torna um objeto potente no qual o capital financeiro pode se entrelaçar e se expandir.

A ascensão financeira sobre as forças produtivas modifica a formulação dos problemas inicialmente postos por Folin (1977) sem, contudo, alterar a sua essência. Assim, o FII se designa como forma exemplar na qual os capitais se centralizam pelo imbricamento entre o imobiliário e o financeiro; principalmente os FIIs de tijolo que funcionam como uma grande estrutura de capital fixo do tipo autônomo, determinados pelo modo de atuação do capital fictício. Em outras palavras, o capital fixo deixa de se subordinar ao processo de concentração industrial e se centraliza a partir dos instrumentos financeiros.

Grosso modo, a centralização concerne a um fato qualitativo, conduzindo-se num processo de confluência de capitais individuais em um de maior porte; enquanto a concentração de capital se refere a um aspecto quantitativo, compreendendo um processo de expansão dos meios de produção e, consequentemente, da base de acumulação (Lencioni, 2008).

Sendo assim, a estrutura do FII centraliza frações de capital a partir do próprio mercado de valores mobiliários. Uma vez reunidos sob a sua estrutura, os recursos são investidos em bens imobiliários cujo principal objetivo é a geração de renda. À medida que o imóvel é arrendado sob a determinabilidade do capital fixo do tipo autônomo, “ele pode circular contanto que o valor nele incorporado seja recuperado durante o seu tempo de vida e contanto que ele seja acrescido de juro” (Harvey, 2013, p. 309).

Ao FII, a renda é assimilada sob a forma de juro sobre o uso do imóvel, sendo determinada pelos seus atributos qualitativos e localizacionais (que classificam o rating da propriedade). Do ponto de vista do produtor capitalista, o arrendamento da propriedade em uma base de remuneração periódica é vantajoso, pois além de obter valores de uso localizados sem incorrer no ônus da desvalorização da propriedade (Harvey, 2013), ele também não precisa imobilizar grandes quantias de capital que podem ser investidas em seu core business.

Quanto melhores os atributos das construções, melhor será o rating do edifício. Àqueles considerados prime (classificação A+) possuem uma relação risco-retorno mais atrativa, pois propiciam retornos maiores ao mesmo tempo em que, pelo perfil do inquilino - geralmente grandes empresas nacionais e transnacionais -, possuem menor risco de inadimplência. Ou seja, há uma maior estabilidade dos contratos que acarreta uma maior previsibilidade dos fluxos de caixa dos FIIs (Sanfelici, 2018).

Com efeito, a lógica por trás da propagação dos FIIs pelo território se baseia fortemente na prospecção de imóveis de grande potencial de valorização e geração de renda. Segundo Sanfelici (2018), a adoção de técnicas e cálculos financeiros sofisticados orienta os investidores financeiros para regiões de maior potencial de apreciação futura, como em regiões contempladas por instrumentos de transformação e gestão do território (PPPs, OUCs, EETUs, dentre outros).

Tendo em vista que poucos FIIs corporificam a figura do desenvolvedor imobiliário, pois consideram o risco de incorporação alto, os fundos expandem as suas operações sobretudo através de aquisições. Os reflexos territoriais desse padrão de atuação tendem a ser diferentes para cada segmento de atuação dos FIIs, o que retoma a dinâmica de concentração-desconcentração apontada na primeira seção do trabalho. Dada a natureza de cada segmento, determinadas porções do território passam a ser cada vez mais capitaneadas como meio de extração de renda mediado pela forma do capital fixo. Nesse sentido, recapitula-se o quadrante sudoeste da cidade como principal área de interesse dos FIIs corporativos, justamente por concentrar eixos empresariais altamente valorizados, como as Avenidas Faria Lima, Berrini e Paulista. Tendo em vista que a região agrega uma alta quantidade de serviços, empregos e investimentos públicos, consolidando-se como uma frente já “tradicional” de expansão e valorização imobiliária (Martin et al., 2018), verifica-se também a concentração de FIIs de outros segmentos que são, inclusive, complementares à dinâmica das atividades corporativas, como os FIIs de hotéis, hospitais e residências. Apesar do segmento de galpões logísticos ocupar outras regiões, de forma mais descentralizada, ele também procura áreas valorizadas de modo a assegurar altos rendimentos - como a região de Cajamar (zona norte da RMSP) que possui intensa atividade industrial e infraestrutura rodoviária.

A aquisição de propriedades em regiões valorizadas da metrópole retoma ao segundo aspecto para o qual se chama a atenção para a categoria do capital fixo. À medida que parte da riqueza social total, isto é, os valores de uso produzidos, é retirada da circulação e do consumo imediato (fundo de consumo) para ser empregada no processo (im)produtivo, revela-se - na transição da indústria para as finanças -, um novo grau de desenvolvimento do capital.

Concretamente, há indícios que a concentração dos fundos imobiliários em determinadas regiões reforça o padrão de desenvolvimento territorial desigual (Sanfelici, 2017). Além disso, como os FIIs não tendem a adentrar na produção imobiliária e prospectam ativos com atributos bastante particulares (baseado no rating), é possível que o crescimento da indústria crie uma demanda de produtos imobiliários específicos. Como a demanda se baseia na forte expectativa de tais ativos gerarem ativamente fluxos de renda, observa-se a consolidação da indústria de FIIs como um exemplar e potente de transformação do espaço sob a lógica do regime de propriedade do capital financeiro, principalmente por meio da aquisição de produtos imobiliários nos eixos de valorização existentes na RMSP.

Conclusão

A discussão realizada buscou trazer à luz como o espaço urbano é instrumentalizado pelos Fundos de Investimento Imobiliário. Verificou-se que a queda da taxa básica de juros a patamares mínimos históricos e a melhoria do ambiente regulatório e institucional foram dois vetores que condicionaram fortemente o crescimento dos FIIs a partir de 2008. Ademais, a entrada de Grandes Grupos Econômicos e de investidores pessoa física também engendrou a indústria de FIIs. À vista disso, a grande capitalização dos fundos por meio do mercado de capitais permitiu a expansão da sua base de investimentos e, por conseguinte, uma maior prospecção e manutenção de seus fluxos de renda.

Nesse sentido, observou-se que determinadas regiões da metrópole de São Paulo são mais suscetíveis à presença de FIIs, principalmente àquelas mais valorizadas, dado que obtém - pela qualidade das construções, infraestrutura, renda e emprego ali disponíveis - uma melhor relação risco-retorno para a inversão. Contudo, na totalidade do setor, com atividades bastante diversas, notou-se um movimento bastante claro de concentração-dispersão, explicado pela especificidade de cada segmento (como no caso dos galpões logísticos que optam pela proximidade de rodovias).

A fim de compreender como o espaço adentra na produção e realização do capital, o FII foi analisado como uma grande estrutura de capital fixo do tipo “autônomo” que opera de forma bastante aderente, senão paradigmática, à lógica do regime de propriedade do capital financeiro. Visto o caráter imóvel de seus bens, o valor só pode retornar ao FII em forma de renda uma vez que a propriedade se fragmenta em títulos financeiros e assim circula; ou seja, na figura do FII, a inconveniência do valor que se imobiliza no espaço é transposta pelos títulos de propriedade (cotas) que representam frações ideais do patrimônio do fundo. Isto posto, a condição imposta pelo capital fictício ao capital fixo é a de uma elevada expectativa sobre a produção e consequente captura de níveis cada vez maiores de renda.

No espaço urbano, essa condição reforçará a lógica de desenvolvimento desigual da metrópole (Sanfelici, 2017), ampliando a valorização de áreas já privilegiadas. O modus operandi do FII aponta para a geração de demanda de produtos imobiliários específicos, que apresentam melhor relação risco-retorno; além de indicar - pela migração de bens do fundo de consumo para a estrutura dos FIIs - a consolidação do regime de propriedade do capital financeiro como um novo grau de desenvolvimento do próprio capital. Por fim, o enlace entre o imobiliário e o financeiro permite que as barreiras historicamente presentes no setor imobiliário (grande massa de capital imobilizado, falta de liquidez, maior tempo de retorno do investimento, etc.) sejam, em parte, contornadas. Logo, o espaço é mobilizado como um potente circuito de expansão do capital cuja expectativa de apropriação sobre parte da riqueza social total produzida se torna imperativa e crescente.

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Notas

1 Os títulos de base imobiliária citados são valores mobiliários securitizados que portam juros e são negociados no mercado de capitais. Cf. Letra Hipotecária (Lei n.º 7.684/88); Certificado de Recebíveis Imobiliário (Lei n.º 9.514/97); Letra de Crédito Imobiliário (Lei n.º 10.931/2004).
2 Valor de referência de outubro de 2021.
O trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2020/07497-1. O trabalho também é resultado do projeto de pesquisa “Imobiliário e Infraestruturas sob domínio de Grandes Grupos Econômicos: Financeirização e metropolização do espaço na São Paulo do Século XXI”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, processo nº 2019/18881-0 .


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