Resumo: Os festivais gastronômicos contribuem diretamente para a conexão do visitante às tradições culinárias locais. Esta pesquisa teve como objetivo compreender como os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade de festivais gastronômicos associados aos saberes locais em Minas Gerais, a partir da perspectiva de seus organizadores e expositores. Por terem seus ofícios, atualmente, reconhecidos ou em processo de reconhecimento como patrimônio cultural nacional, foram considerados a Festa do Queijo do Serro e o Festival da Quitanda de Congonhas. De abordagem qualitativa, os procedimentos metodológicos compreenderam levantamento bibliográfico e documental, e realização de entrevistas com organizadores e produtores expositores dos festivais gastronômicos, e profissionais especialistas nas áreas de gastronomia e patrimônio. Como resultado, por meio do método de análise de conteúdo, obteve-se que o reconhecimento e a celebração do saber local associado à alimentação contribuíram para a criação de ambos os festivais, fortalecendo a região de origem e promovendo orgulho entre seus produtores. Observou-se também que o domínio dos ofícios associados aos saberes locais e os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade entre os organizadores e os produtores, e destes com os visitantes, aspectos indutores na definição das características hospitaleiras regionais.
Palavras-chave: hospitalidade, festival gastronômico, alimentação, patrimônio cultural, Minas Gerais.
Abstract: Gastronomic festivals directly contribute to connecting visitors to local culinary traditions. This research aimed to understand how cultural aspects influence the hospitality relations of gastronomic festivals associated with local knowledge in Minas Gerais, from the perspective of their organizers and exhibitors. Because their crafts are currently recognized or in the process of being recognized as national cultural heritage, the Serro Cheese Festival and the Festival of Quitanda de Congonhas were considered. With a qualitative approach, the methodological procedures included a bibliographical and documentary survey, and interviews with organizers and exhibiting producers of gastronomic festivals, and specialist professionals in the areas of gastronomy and heritage. As a result, through the content analysis method, it was found that the recognition and celebration of local knowledge associated with food contributed to the creation of both festivals, strengthening the region of origin and promoting pride among its producers. It was also observed that mastery of crafts associated with local knowledge and cultural aspects influence hospitality relations between organizers and producers, and between these and visitors, inducing aspects in the definition of regional hospitable characteristics.
Keywords: hospitality, gastronomic festival, food, cultural patrimony, Minas Gerais.
Resumen: Los festivales gastronómicos contribuyen directamente a conectar a los visitantes con las tradiciones culinarias locales. Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo los aspectos culturales influyen en las relaciones de hospitalidad de los festivales gastronómicos asociados al saber local en Minas Gerais, desde la perspectiva de sus organizadores y expositores. Debido a que sus artesanías son actualmente reconocidas o en proceso de ser reconocidas como patrimonio cultural nacional, se consideraron la Fiesta del Queso de Serro y la Fiesta de la Quitanda de Congonhas. Con un enfoque cualitativo, los procedimientos metodológicos incluyeron un levantamiento bibliográfico y documental, y entrevistas a organizadores y productores expositores de festivales gastronómicos, y profesionales especialistas en las áreas de gastronomía y patrimonio. Como resultado, a través del método de análisis de contenido se encontró que el reconocimiento y celebración de los saberes locales asociados a la comida contribuyó a la creación de ambas fiestas, fortaleciendo la región de origen y fomentando el orgullo entre sus productores. También se observó que el dominio de los oficios asociados a los saberes locales y aspectos culturales influyen en las relaciones de hospitalidad entre organizadores y productores, y entre estos y los visitantes, induciendo aspectos en la definición de las características hospitalarias regionales.
Palabras clave: hospitalidad, fiesta gastronómica, alimentación, patrimônio cultural, Minas Gerais.
Artigos
HOSPITALIDADE E SABERES LOCAIS EM FESTIVAIS GASTRONÔMICOS DE MINAS GERAIS
Hospitality and local knowledge in the gastronomic festivals of Minas Gerais
Hospitalidad y saber local en las fiestas gastronómicas de Minas Gerais
Recepción: 12 Diciembre 2022
Aprobación: 24 Agosto 2023
A gastronomia do estado de Minas Gerais é comumente associada à hospitalidade, ao acolhimento e ao bem receber, tanto que a mineiridade, ou o modo mineiro de receber, configura-se como um símbolo de hospitalidade. Muito disso, deve-se ao fato de que, ao receber seus visitantes, o mineiro compartilha sua cozinha, promovendo momentos de comensalidade, como no café da tarde mineiro, chamado de merenda, em que dois alimentos tipicamente mineiros dividem a mesa: a quitanda, cuja produção está presente em praticamente todas as cidades, e o queijo, atualmente tendo as regiões produtoras da Canastra e do Serro como destaques nacionais e internacionais.
A palavra kitanda possui origem africana e significa tabuleiro onde são expostos os gêneros alimentícios à venda nas feiras. No século XVIII, quitandeira era o termo utilizado para designar as negras de tabuleiro, ou seja, negras que vendiam alimentos pelas ruas (Bonomo, 2014). Usual no Nordeste do Brasil, designa a pastelaria caseira, composta por biscoitos, broas, roscas, sequilhos, bolos, dentre outros quitutes do café da tarde (Frieiro, 1982), refere-se também aos pequenos comércios de gêneros comestíveis, similares aos empórios ou hortifrútis. Já a tradição de produção do queijo na região do Serro, Minas Gerais, foi introduzida pelos colonizadores portugueses da região da Serra da Estrela há mais de dois séculos. Com a decadência do ciclo do ouro, a produção agropecuária intensificou-se, tendo o queijo como principal produto em razão da sua qualidade e volume de comercialização, sendo reconhecido como símbolo gastronômico da identidade cultural da região (IPHAN, 2021).
A gastronomia constitui um dos atrativos de um destino turístico, ao passo que ser objeto de um festival gastronômico consagra essa importância ou visa a promovê-la como diferencial desse lugar. A publicação “Mapa gastronômico de Minas Gerais” (Secretaria de Turismo de Minas Gerais, 2022), desenvolvida pelo governo do Estado, aponta mais de 130 festivais gastronômicos que acontecem durante todo o ano, distribuídos por diversas regiões mineiras, ou circuitos, assim chamados no documento: Circuito do Ouro, das Águas, Canastra, Serra do Cipó, Velho Chico, dentre outros.
Para Gimenes (2011), a gastronomia está diretamente relacionada ao estudo das relações entre a cultura e a alimentação, caracterizando um conjunto de práticas e saberes, que envolve a história, cultura, técnicas de preparo, formas de serviço e de degustação em todos os aspectos que envolvem determinada preparação. Dessa forma, a inserção da gastronomia no âmbito do turismo explora esses aspectos.
Estudos sobre festivais gastronômicos internacionais (Akgunduz & Cosar, 2018; Drobotova e outros, 2019) apresentam a hospitalidade como um dos fatores promotores de experiências aos visitantes, contribuindo para retorno destes nas edições seguintes e na indicação para novos visitantes. No Brasil, algumas das características das pesquisas acerca do tema abordam a celebração como prática cultural e as relações entre patrimônio local e transmissão de saberes (Castro, 2012; Bortnowska, Alberton, & Marinho, 2012), a busca do prazer para além da questão fisiológica (Neves, 2016; Montanari, 2008) e também a movimentação econômica, cultural e social à região onde eles acontecem (Santos & Bastos, 2016; Furtado, 2015).
Para este estudo, dois festivais foram selecionados, sendo que ambos possuem o nome da principal iguaria da cidade associada ao nome do festival, representando, assim, os saberes culturais da região: o Festival da Quitanda de Congonhas e a Festa do Queijo do Serro. Outro critério considerado para essa seleção é que o ofício relacionado ao produto está em processo de registro ou já registrado como patrimônio cultural imaterial.
O modo artesanal de fazer queijo Minas é um patrimônio cultural imaterial registrado desde 2002 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) e desde 2008 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Além do valor social, promotor de melhoria de autoestima e qualidade de vida coletiva, e do valor econômico, gerador de oportunidades econômicas por meio da divulgação e vendas, o reconhecimento do saber fazer como patrimônio contribui diretamente para o valor identitário (IPHAN, 2014).
O valor identitário apresenta-se em algumas características tanto da produção do queijo, realizado com leite recém-ordenhado, quanto da quitanda, ao privilegiar os produtores locais de milho, leite e ovos, além do orgulho e sentimento de pertencimento que os produtores possuem com os aspectos culturais e os saberes da região. Até o momento, o ofício das quitandeiras encontra-se em processo de instrução para registro no IPHAN desde 2013.
A quitanda e o queijo são elementos ofertados quando o visitante se aproxima das barracas dos festivais, logo, esses saberes, transmitidos entre gerações, tangibilizam-se por meio dessas iguarias comercializadas nos festivais.
Esta pesquisa teve como objetivo compreender como os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade de festivais gastronômicos associados aos saberes locais em Minas Gerais. Por meio do método de análise de conteúdo, a abordagem metodológica elegida foi qualitativa, buscando-se compreender os motivos e os comportamentos dos fenômenos: como os festivais gastronômicos se formam a partir da extroversão dos saberes locais. Para a obtenção e coleta de dados, recorreu-se à realização de entrevistas com roteiros semiestruturados, desenvolvidos para cada um dos grupos de profissionais entrevistados: organizadores dos festivais, produtores expositores dos festivais e especialistas na área de gastronomia e patrimônio.
Como contribuição para o campo de estudos da hospitalidade, a pesquisa apresenta as relações de hospitalidade em dois festivais gastronômicos mineiros, cujas iguarias possuem relação direta com a patrimonialização de seus ofícios, sob a ótica dos organizadores e dos produtores expositores.
Fundamentado na dádiva (Mauss, 2003; Goudbout, 1998), o conceito de hospitalidade compreendido nas relações entre hóspede e anfitrião é abordado por autores como Grassi (2011), Raffestin (1997), Benveniste (1995) e Gotmann (1997, 2009). A compreensão sobre os espaços de hospitalidade apresenta-se, segundo a visão de Grinover (2009, 2013, 2019), Bueno (2006), Baptista (2008) e Lugosi (2008). A discussão teórica sobre alimentação centra-se em Contreras e Gracia (2011), Montanari (2008), Carneiro (2008) e Gimenes (2006, 2011). Por fim, para a conceituação de patrimônio cultural e gastronômico, adotam-se os documentos do IPHAN (2000), Bonomo (2014), Campos (2010) e Poulain (2006).
A hospitalidade é fundamentalmente compreendida como uma relação entre duas pessoas: aquele que recebe, o anfitrião, e aquele que é recebido, o hóspede (Raffestin, 1997; Pitt-Rivers, 2012; Camargo, 2004, 2015, 2021). Para compreender a hospitalidade, é necessário também o entendimento sobre a circularidade da dádiva. A circularidade da dádiva é um sistema de trocas, em que regras não escritas existem para que o ciclo de dar, receber e retribuir não se rompa, promovendo, assim, a manutenção das relações humanas e a coesão social (Mauss, 2003). A dádiva é um ciclo, uma relação em que o desequilíbrio é contínuo em função da dívida, que constantemente troca de mãos entre os atores da cena de hospitalidade: ora dão, ora recebem e ora retribuem (Godbout, 1998). Essas relações estão presentes no momento em que há a “transposição da soleira", ou seja, em que o estrangeiro é recebido de fora para dentro, do exterior para o interior, como uma tentativa de promover a igualização nesse espaço de acolhida (Grassi, 2011).
A hospitalidade clássica consiste em prover a satisfação das necessidades fisiológicas, de segurança e até de afeição, por meio de uma relação gratuita. É indispensável que haja uma autorização ou convite do anfitrião ao hóspede, e a hospitalidade é tratada como um “mecanismo” capaz de apresentar os limites (Raffestin, 1997; Grassi, 2011). A hospitalidade também é fundamentada como uma ligação entre um homem e outro, para que lhe seja compensado algum préstimo do qual foi beneficiário, visto que a etimologia de hostis aborda, ao mesmo tempo, o significado de hóspede e de estrangeiro, sendo que o segundo pode ser favorável (hóspede) ou inimigo (hostil). A existência dessa dívida é responsável pela circulação da dádiva e faz com que essa relação entre as duas pessoas mantenha-se assimétrica. O equilíbrio dessa relação só se efetiva quando há a retribuição enquanto a existência desse sistema de compensação determina uma comunidade, ou seja, um conjunto de indivíduos unidos pelos laços de reciprocidade (Benveniste, 1995). Numa sociedade em que a partilha e a troca são o cerne da comunidade e sua organização, a hospitalidade envolve um conjunto de comportamentos, mesmo com a coexistência da preocupação ou medo de forasteiros (Lashley, 2015).
A presença do ritual da hospitalidade em nosso cotidiano e em nossas relações interpessoais define, segundo Camargo (2004, p. 17-18), a hospitalidade como “um conjunto de leis não escritas que regulam o ritual social e cuja observância não se limita aos usos e costumes das sociedades ditas arcaicas ou primitivas”. Recepcionar, hospedar, alimentar e entreter encontram-se relacionados pelo autor como tempos sociais da hospitalidade: recepcionar como acolher quem bate à porta; hospedar como proporcionar abrigo ou segurança; alimentar como prover refeições ou oferta de alimentos; e entreter como propiciar momentos agradáveis e marcantes ao hóspede. Ao contrário do que afirma o autor, a hospitalidade é questionada por Gotman (2009) se, sendo uma dádiva, pode ser incorporada pelo turismo ou se seria essa uma forma de disfarçar o negócio envolvido.
Caracterizada como uma das leis superiores da humanidade ou uma lei universal, a hospitalidade requer acolhida, a inclusão do outro no próprio espaço e, nesse momento, o espaço deixa de ser um local geográfico e passa a ser um local de experiências coletivas (Grinover, 2006).
Os espaços de hospitalidade, definidos como lugares de experiência, possibilitam aos seus visitantes o “conhecimento ou aprendizado obtido através da prática ou da vivência”, segundo Grinover (2019, p. 225). Para o autor, tal vivência deve transformar o visitante, a ponto de que ele perceba que saiu do espaço diferente de como entrou, modificado pelo que passou enquanto esteve em contato com esse espaço e seus acontecimentos. O acolhimento nos lugares de hospitalidade, de acordo com Baptista (2008), constitui “lugares abertos ao outro”, lugares de convívio onde os indivíduos interagem e são acolhidos mutuamente. São nesses espaços que o fenômeno da hospitalidade se revela e se concretiza, por meio das trocas entre os presentes.
Nos lugares de hospitalidade, a diferença entre ser um bom anfitrião e ser hospitaleiro nem sempre ocorre simultaneamente (Telfer, 2000). O bom anfitrião é aquele dotado de habilidades e que se esforça em proporcionar momentos agradáveis ao seu hóspede. Já o indivíduo hospitaleiro possui a hospitalidade genuína, recebendo seu hóspede sem razões aparentes e sem desejar ter algo em troca, ao passo que o bom hospedeiro somente demonstra hospitalidade caso tenha um motivo.
As festas populares, locais onde os ofícios e seus produtos finais são apresentados, desenvolvem-se em espaços de hospitalidade nos quais as manifestações da cultura popular fortalecem e nutrem a rede de relações sociais, denominada como “teia da vida” por Bueno (2006). Tais espaços de hospitalidade, juntamente com os lugares de convívio, que possibilitam a interação entre os indivíduos, são reconhecidos por Baptista (2008) como “lugares abertos ao outro”, como ocorre nos festivais gastronômicos. A hospitalidade apresenta um papel fundamental nos festivais gastronômicos, especialmente em relação ao acolhimento, sociabilidade e experiência, categorias de análise dessa pesquisa que serão aprofundadas.
Aberto ao morador e também ao visitante, o festival gastronômico comercializa alimentos e bebidas considerados ícones culturais. Criado com o objetivo de celebrar o orgulho e as tradições que a comunidade anfitriã deseja compartilhar com os visitantes “de fora”, essa modalidade de festival que promove os produtos culinários locais pode se converter em uma atração turística (Yaduo, 2010). A abordagem da hospitalidade como provedora de oportunidades para o empreendedorismo, com destaque para a criação de experiências gastronômicas, como festivais, aulas de culinária ou visitas a fazendas, que possibilitam ao turista acessar os valores e as tradições locais é realizada por Drobotova e outros (2019). Enquanto Akgunduz e Cosar (2018) apresentam a hospitalidade como uma das características simbólicas da cultura local, ao estudarem o Festival de Ervas Alaçati, na Turquia, Pérez-Gálvez e outros (2020) evidenciam as motivações que levam turistas a visitar locais onde experiências gastronômicas acontecem, como restaurantes, mercados, festivais, dentre outros. Espaços como o mercado gastronômico Los Patios de la Marquesa, em Córdoba, na Espanha, abordado em sua pesquisa, têm se transformado em atrações para turistas, visto que existe uma parcela deles que considera conhecer e degustar a gastronomia local como principal motivo para sua viagem.
Além do estudo da hospitalidade, a gastronomia também é considerada como um importante campo de conhecimento do turismo. Gimenes (2011, p. 426) afirma que “a gastronomia é um elemento importante no contexto do Turismo Cultural, permitindo ao visitante se aproximar da localidade visitada, vivendo experiências sensoriais e também culturais”. A materialização dessa experiência pode ocorrer por meio de diferentes ações: degustações, participação em festas, passeios de observação, atividades práticas ou até momentos em que o visitante reside por um tempo determinado em um local para, de fato, vivenciar a região.
No Brasil, as festas de São João no Nordeste (Castro, 2012), o Festival de Taquaruçu/TO (Santos & Bastos, 2016), o Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes/MG (Furtado, 2015), e o Festival da Lula em Arraial do Cabo/RJ (Neves, 2016) são exemplos de eventos que movimentam econômica, cultural e socialmente a região onde eles acontecem, tendo a comida como principal razão para a realização de tais festivais.
Degustar determinada iguaria em festivais gastronômicos vai além das percepções sensoriais de paladar e olfato de quem a consome, ou de ingredientes e técnicas utilizados para o preparo de um alimento (Flandrin & Montanari, 1998). Geralmente oferecida como demonstração de hospitalidade, a degustação se relaciona também a uma cultura que envolve o processo de produção de um alimento; aos elementos culturais e históricos; aos costumes e às regras desse consumo, ou seja, ao seu sistema culinário, visto que o ser humano se nutre também de significados coletivos (Fischler, 1995).
A comida oferecida como um gesto de amizade expressa a estima que se tem pelo convidado e demonstra hospitalidade (Contreras & Gracia, 2011). Comida é, também, cultura durante o processo de produção, preparo e consumo, pois o ato de alimentar-se vai além de saciar a necessidade biológica dos seres humanos (Montanari, 2008).
A degustação de determinado prato ou iguaria consiste em “experimentar” simbolicamente os rituais, valores, vivências e tradições locais, aspectos evidenciados por Castro (2012), Furtado (2015), Santos e Bastos (2016) e Neves (2017). A degustação pode trazer percepções e sensações diversas, e seu simbolismo possibilita também remeter o indivíduo a momentos diferentes do tempo presente, ato chamado de “nostalgia alimentar” por Contreras e Gracia (2011), despertando interesse por retornar às fontes dos patrimônios culinários, por vezes buscada nos festivais gastronômicos por meio dos pratos típicos oferecidos.
Os pratos típicos mineiros compostos por galinha ao molho pardo ou frango com quiabo, angu, lombo de porco com farofa, tutu de feijão com torresmo e linguiça, feijão tropeiro e couve, são abordados por Abdala (2006), que caracteriza a dieta adotada pelos mineiros como “dieta de quintal”, com insumos de horta ou criação de animais. A autora discorre também sobre as quitandas e doces, provenientes da tradição portuguesa.
A história do queijo e da quitanda se cruza, inevitavelmente, na cozinha mineira. O queijo era produzido em função da necessidade de se aproveitar o leite e aparecia tanto no café da manhã, quanto na sobremesa, servido com doces. Com o passar do tempo, o queijo perdia sua umidade, ressecava e passou a ser utilizado em receitas, como na produção das quitandas, como o pão-de-queijo.
Para Dória (2018), há claramente a existência de uma mesma cozinha caipira, criada principalmente a partir de técnicas e ingredientes de três etnias guaranis, que se espalhou pelo que hoje compreende o Centro-Oeste, parte do Sudeste, Paraná, Santa Catarina e a região das Missões, no Rio Grande do Sul. Em função disso, o autor afirma que a chamada “cozinha mineira” é um mito, já que a comida servida no estado de Minas Gerais é a mesma do interior do estado de São Paulo e dos demais estados das regiões citadas acima, combatendo a ideia da possibilidade de fronteiras delimitadas e, consequentemente, que cada um desses estados tenha uma culinária de características singulares. Dessa forma, o autor agrupa esses estados num território que chama de Paulistânia, termo usado no passado para indicar a área percorrida pelos bandeirantes nos primeiros séculos da colonização, partindo de São Paulo.
A visão de Meneses (2020), por sua vez, contradiz tal afirmação. O autor defende que o estado mineiro era, no final do século XIX, uma região por onde passavam tropas com alimentos de regiões diversas, especialmente numa época em que se produzia mandioca, milho e trigo, que se constituiu a base da alimentação mineira. Por se tratar de uma região de passagem para outras províncias, uma “encruzilhada” de caminhos, recebeu a influência de alimentos que colaboraram com a construção de novos pratos, como a chamada “cozinha molhada”, representada por pratos como vaca atolada, frango com quiabo e canjiquinha, pratos considerados como patrimônio cultural do Estado.
A patrimonialização da alimentação surge como sinal das transformações das representações sociais, que ampliaram o entendimento do patrimônio, incorporando, além do material, o imaterial, além de criticar essa segmentação (Poulain, 2006). O conceito de patrimônio adotado para essa pesquisa foi incluído na Constituição de 1988, apesar de, desde 1937, existir uma legislação que o aborda, mas que incidiu sobre bens histórico e artísticos, de natureza material. Compreende-se como patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e imateriais, referentes à identidade, à ação e à memória dos grupos da sociedade, dentre eles os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, criações, ofícios, formas de expressão e obras destinadas às manifestações artístico-culturais. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2003), patrimônio imaterial são “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas [...] que as comunidades, os grupos e [...] os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.
Para compreender essas práticas, faz-se necessário apreender o significado de cultura:
[...] o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural, fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressões de sua identidade cultural e social: as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras (UNESCO, 1989).
A transmissão dos saberes acontece intergeracionalmente, colaborando diretamente para a perpetuação dos conhecimentos tradicionais e atividades desenvolvidas por indivíduos ou grupos (Mascarenhas, 2009). Fortalecer esses conhecimentos como referência cultural local e tradições do ofício, como o modo artesanal de produzir queijo ou quitandas, a aprendizagem do trabalho disseminada entre gerações e a venda por encomendas, traz orgulho, reconhecimento e valorização aos produtores, além da renda extra (Bonomo, 2014).
A questão do patrimônio imaterial é relativamente recente nas políticas sociais. Fonseca (2009) afirma a necessidade da conservação da integridade física dos bens por meio de tombamento, mas também destaca que as práticas de políticas públicas associam à ideia de imutabilidade, diferente do que acontece com as manifestações culturais. A autora apresenta o termo “patrimônio intangível”, ao invés de patrimônio imaterial, considerando a imaterialidade como relativa, pois se faz necessária a constante atualização de suas manifestações por meio de suportes físicos, mesmo não se materializando em produtos duráveis, bem como a atualização das políticas específicas de preservação. Segundo Campos (2010, p. 37), “não deve haver, então, tratamento legislativo díspar entre a preservação do bem material em detrimento da salvaguarda do bem imaterial”, mas não é o que se revela nas edições de leis, que perpetuam a distinção entre patrimônio material e imaterial.
Este estudo, de características exploratória e qualitativa, buscou compreender como os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade de festivais gastronômicos associados aos saberes locais em Minas Gerais, a partir da perspectiva de seus organizadores e expositores. Para atender tal objetivo, utilizou-se como método a análise de conteúdo (Bardin, 2006).
Entre os procedimentos técnicos, adotou-se a revisão de literatura para o levantamento de referências teóricas em livros, dissertações, teses e artigos de periódicos, com o objetivo de compreender o que já foi elaborado e analisado sobre o assunto. Para tanto, bases como Scielo, Ebsco, portal da Capes e Google Acadêmico foram utilizadas, cujas buscas pautaram-se nos termos hospitalidade, festival gastronômico (ou festivais gastronômicos), Minas Gerais, alimentação e patrimônio. Sites das prefeituras das cidades de Congonhas e Serro também foram consultados, assim como o do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG).
Realizada durante o período correspondente à pandemia de covid-19 no Brasil (março de 2020 a janeiro de 2022), o corpus da pesquisa também foi constituído por entrevistas realizadas com especialistas na área de gastronomia e patrimônio, organizadores e produtores expositores dos festivais, pautadas em roteiros semiestruturados.
Propôs-se como pergunta de pesquisa: como os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade de festivais gastronômicos associados aos saberes locais em Minas Gerais? Para ajudar a respondê-la foram levantadas previamente e discutidas com os entrevistados três proposições: (P1) a extroversão dos saberes locais de uma comunidade é um componente potencial para a criação de um festival gastronômico; (P2) a valorização dos aspectos culturais é um dos elementos que influenciam planejamento, organização e produção do festival gastronômico; (P3) a hospitalidade na relação entre organizadores e expositores contribui para um resultado positivo no festival gastronômico.
Para o tratamento dos dados, foi realizada a transcrição literal dos diálogos gravados e salvos em arquivos de áudio e para sua análise, utilizou-se o método de análise de conteúdo (Bardin, 2006), sendo empregadas as fases de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na primeira etapa da organização dos dados, adotou-se o software MAXQDA para a seleção dos termos e dos trechos significativos das entrevistas.
No primeiro momento, realizou-se a leitura flutuante: foram lidas e interpretadas as entrevistas dos grupos selecionados. Seguiu-se a construção de um quadro contendo as frases exatas, os pontos-chave e as unidades de significado.
Na sequência, foi realizada a escolha de índices e construção de indicadores. Foram analisadas as unidades de contexto, ou seja, as principais falas dos entrevistados. A codificação deu-se a partir de trechos das entrevistas, que levaram à formação de unidades de registro (parágrafos, frases, palavras), que foram agrupadas tematicamente em categorias e subcategorias. Trata-se do processo pelo qual “os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados em unidades, as quais permitem uma descrição exata das características pertinentes do conteúdo” (BARDIN, 2006, p. 103-104).
A partir desse agrupamento, deu-se início à etapa que busca compreender o sentido da fala dos entrevistados e supostas significações ou outras mensagens correspondentes à mensagem original.
Por fim, após a exploração do material, realizou-se o tratamento dos resultados, de modo a apresentar inferências e interpretações. Por meio da sistematização das significações, ocorreu a análise interpretativa, tendo como objetivo final a resposta da problematização da pesquisa.
Categorias de análise (Quadro 1) foram estabelecidas a partir do referencial teórico e da interpretação da entrevista realizada como pré-teste (11/08/2020), com um integrante da União dos Artesãos, Artistas Plásticos e Produtores de Congonhas e Região (UNIARTE). Acolhimento, sociabilidade, experiência, referência cultural e transmissão do saber constituem as categorias adotadas para a análise das entrevistas com os produtores/expositores, organizadores e especialistas. Durante esse processo, percebeu-se que tal escolha apresentou a possibilidade de transversalidade da interpretação, em razão da potencialidade polissêmica desses termos.
Nota-se que os dados da pesquisa não podem ser generalizados, pois foram obtidos por meio de entrevistas, cuja análise é válida para esse contexto. Também deve-se considerar o fato de que não é possível entrevistar todos os sujeitos envolvidos, e há ainda aqueles que não verbalizam por completo suas experiências (Bauer & Gaskell, 2002).
Com o objetivo de estabelecer o entendimento das principais características dos festivais estudados, suas semelhanças e diferenças sob a perspectiva dos entrevistados, o quadro 2 sistematiza as informações necessárias para essa análise.
Nota-se que, de acordo com a perspectiva dos organizadores e dos produtores, as relações entre os atores dos festivais são boas e ambos celebram e memorizam os ofícios e tradições locais. Os expositores participam em ambos os festivais durante seu planejamento por meio de reuniões de alinhamento com os organizadores. Uma diferença é notada quanto à expectativa de cada profissional em relação aos festivais de suas cidades: enquanto que no Serro o objetivo é de que o festival seja cada vez mais voltado para a população, especialmente como prestígio aos produtores, em Congonhas pretende-se atrair mais visitantes para a cidade. Outra diferença observada é que o queijo produzido na região do Serro possui certificação de Indicação de Procedência desde 2011 (INPI), mas não há certificação similar para as quitandas de Congonhas.
A entrevistada 1 (24/11/2021), chef de restaurante mineiro, define festival gastronômico como a “preservação cultural de um povo” e pontua a importância do festival:
Você conhece o povo pela sua gastronomia [...]. O festival é uma preservação do povo em si, preservação da cidade, do vilarejo, preservação de toda a cultura popular daquela região. Eu acho que quanto mais tem, tiver festival, mais [...] a cultura do povo vai se manter. Se não tiver esses festivais, vai acabar. (Entrevistada 1, 24/11/2021).
A entrevistada 8 (18/01/2022), servidora pública da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER-MG), define festival gastronômico como “um festival onde tem uma série de serviços, produtos agregados, mas que tem como lugar comum ou objetivo comum apresentar, de fato, a temática envolvida com o alimento”. O entrevistado 4, historiador e professor (10/01/2022) afirma que festivais gastronômicos “são manifestações que nascem de uma aderência real do valor que se tem de determinado bem culinário como identitário” e destaca sua importância para a manutenção do comprometimento de celebrar fundamentalmente a comida local, o orgulho e as tradições culinárias dessa população.
O relato do entrevistado 3 (16/12/2021), professor de gastronomia, corrobora com Gimenes (2011) e Pérez-Gálvez e outros (2020), que discutem a importância das experiências culturais vividas pelos visitantes, fato que os aproxima da gastronomia local, podendo este ser o principal motivo para sua viagem. Ele afirma que os festivais gastronômicos “são fundamentais pra resgatar nossa gastronomia, pra trazer novas propostas, apresentar o que nós temos. É sempre uma troca” (Entrevistado 3, 16/12/2021).
O acolhimento é destacado por Binet-Montandon (2011) como o momento inaugural dos ritos de hospitalidade. Camargo (2004), Raffestin (1997) e Van Gennep (2011) inscrevem o acolhimento nos ritos de hospitalidade, que possuem como características o ato de receber, ofertar comida, abrigar e entreter o hóspede.
O acolhimento como parte da cultura mineira associado à comensalidade é abordado pelo entrevistado 4 (10/01/2022):
A alimentação e as práticas alimentares são, principalmente na cultura brasileira e especificamente na cultura de Minas Gerais, a forma de manifestação mais pura desse acolhimento, dessa tolerância com a diferença e acolhimento de si. É levar pra sua cozinha, é comer da sua comida, é beber da sua bebida.
A entrevistada 1 (24/11/2021) afirma: “[O mineiro] sabe receber bem, sabe receber bem. Porque não tem ainda [...] uma casa que você vai visitar, um parente, um tio que não te receba com uma quitanda”. Por meio de tais afirmações, infere-se a atenção do anfitrião ao hóspede nos momentos de acolhimento, abordada por Camargo (2004), Raffestin (1997) e Van Gennep (2011).
O momento de “transposição da soleira”, referido por Grassi (2011), é descrito pela entrevistada 2 (12/01/2022), quitandeira que participa do Festival da Quitanda de Congonhas desde 2007:
Mês passado a gente teve uma [turista] de Fortaleza, Lilian Furtado, ela veio de Fortaleza, ficou vinte dias aqui em Congonhas. [...] E lá na feira ela começou uma entrevista com a gente e falou: “depois eu passo na sua casa”. Aí ela veio, ela comeu aqui sentada na minha mesa. [...] Ela encomendou pra eu fazer e ela passou aqui quase onze horas da noite com a mala dela toda pronta para sair no outro dia, pegando as quitandas pra estar levando para Fortaleza. [...] Na minha casa mesmo, aqui na minha cozinha. Tiramos até foto aqui.
A entrevistada 2 (12/01/2022) relata ter permitido a entrada da desconhecida após pedido, abrindo sua casa e compartilhando sua mesa como citado por Raffestin (1997), porém, a relação que começou com o pedido de entrevista, a inscrevia em uma relação comercial, confirmada na entrega das encomendas. Infere-se que, para Gotman (1997), essa hospitalidade tratou-se, na verdade, de uma encenação, já que, como dádiva, a hospitalidade não deveria envolver remuneração.
O desejo de estar junto e comunicar-se com o outro descrito por Hanke (2002), é apontado no relato da entrevistada 7 (16/01/2022), quitandeira da cidade de Congonhas. Note que a quitandeira destaca as relações que ocorrem em sua barraca durante o festival, que vão além do comércio. Ela faz referência à sociabilidade e destaca fatores como a curiosidade que os visitantes têm sobre os produtos e os produtores: “As pessoas que vêm pro festival, elas procuram, querem conversar, querem perguntar o porquê daquela quitanda. É uma curiosidade engraçada, sabe?”.
O fato da Festa do Queijo do Serro ser um dos poucos momentos de sociabilidade entre os produtores da região é elucidado pelo entrevistado 9 (21/01/2022), historiador e secretário de Cultura, Turismo e Patrimônio do Serro desde 2018:
A participação dos produtores não é alta. Porque o cotidiano do produtor de queijo é um processo de muita intimidade com o curral. Não dá pra você falar: “eu vou guardar [o leite] e amanhã eu faço o queijo”. [...] Ele valoriza a festa, mas por uma questão de organização do cotidiano, da atividade produtiva dele, ele se distancia um pouco desse ambiente.
O entrevistado 11 (06/01/2022), produtor do Queijo Santana e expositor em todas as edições da Festa do Queijo do Serro, corrobora com o entrevistado 9 (24/01/2022), quanto ao fato da festa proporcionar a oportunidade de sociabilidade entre os produtores e seus demais públicos.
A gente gosta muito da festa, porque eles expõem os produtos da gente e vêm várias pessoas que não conhecem e querem conhecer, vários amigos que já vem pra poder encontrar a gente, né? [...] E quando chega o dia da festa numa casa, está passando perto da gente, às vezes é até um conhecido da gente e não conhece.
Infere-se que o produtor também considera a festa como um espaço de hospitalidade (Grinover, 2019). Além de ser uma ocasião de manifestação da cultura da região, ocorre ali um momento importante para troca e acolhimento mútuo, com sua doação para o evento. O autor cita também possibilidades de fortalecer as relações sociais durante o evento, o que Bueno (2006) chama de “teia da vida”.
As experiências sensoriais e culturais permitem aproximar o visitante da gastronomia da localidade visitada (Gimenes, 2011). A importância da existência dos espaços de hospitalidade (Lugosi, 2008; Grinover, 2009) é pontuada pela entrevistada 5 (06/01/2022), gastrônoma e quitandeira de Congonhas, como parte da experiência dos visitantes, especialmente para as crianças vindas de áreas urbanas.
Então ele [Zezeca, responsável pela criação dos “cenários” no Festival da Quitanda de Congonhas] vem e coloca ali o moinho d’água mesmo pra moer o fubá na hora, os cabritinhos dele para tirar o leite de cabra ali na hora, sabe, pra mostrar o processo do queijo [...]. Isso é uma experiência muito bacana, né?
Sobre a construção e manutenção de memórias dos moradores e visitantes de Congonhas, a entrevistada 5 (06/01/2022) complementa: “Foi ele [Zezeca] que colocou a tradição do cobu [quitanda mineira assada, cujo ingrediente principal é o milho], de servir o cobu com chá de congonha.” Tais vivências enriquecem a experiência dos visitantes, especialmente daqueles cuja realidade se distancia desses relatos. A memória coletiva deixa de ter caráter individual, sendo compartilhada por um grupo ou sociedade, é o fenômeno de recordação das lembranças (Halbwachs, 1990). Ela se apresenta por meio de manifestações de grupos, pertencentes a essa coletividade, com a capacidade de preservar e transmitir suas tradições, sem necessidade da existência de um local para patrimônio imaterial, visto que ele próprio é “morada da memória” (Campos, 2010).
A compreensão espaço de hospitalidade onde acontecem os festivais gastronômicos como lugar de experiência, pelo fato de ser local de partilha coletiva e essencialmente relacional (Grinover, 2009), é descrito pela entrevistada 8 (18/01/2022):
[...] Você consegue ter um entendimento dos territórios a partir do festival em Minas Gerais [...], quem são as pessoas que fazem aquela atividade e estão mais envolvidas com aquilo, a relevância que aquilo tem para aquela comunidade, e a importância do festival em si para o território, né, enquanto gerador de riqueza, de trabalho, de valorização de um local, da valorização das pessoas.
Vê-se que a profissional destaca como parte dessa experiência o conhecimento da gastronomia local e sua importância para a comunidade, também apontado por Gimenes (2011).
A caracterização do ofício e do alimento como referências culturais de sua região, compreende as representações de identidade, objetos, saberes, ofícios e memória coletiva dos seus habitantes (Fonseca, 2000). A percepção de orgulho, reconhecimento e valorização das produtoras associada ao fortalecimento das tradições do ofício das quitandeiras, como referência cultural local e disseminada entre gerações (Bonomo, 2014), são fatores evidenciados pela entrevistada 2 (12/01/2022):
[...] Teve um [visitante] que veio de Belo Horizonte, foi na minha barraca, quando ele comeu, degustou um pedaço de broa, lágrima descia no olho dele. Falou: “Gente, eu me lembrei, quando eu comia a broa na casa da minha avó”. Então aqui, aí é muito bom, sabe, a gente se emociona porque as pessoas valorizam esse tipo de trabalho artesanal.
O mesmo sentimento é destacado pelo entrevistado 10 (24/01/2022), produtor do Queijo do Vau e expositor nas edições da Festa do Queijo do Serro em 2017 e 2018, revela ter orgulho em perceber a qualidade de seu produto sendo atestada pelo público, que ele caracteriza como “mais selecionado, exigente e de paladar apurado”:
Você vê o trabalho sendo degustado, sendo apreciado, sendo elogiado, né? E a gente só tem elogios, graças a Deus. Então, isso é um motivo de muito orgulho, muita, muita alegria. Saber que você está fazendo um produto e está tendo um eco, está tendo um retorno de um público mais selecionado, um pouco mais exigente, né, que tem um paladar mais apurado.
A entrevistada 6 (08/01/2022), atual vereadora de Congonhas que atuou também na Secretaria de Cultura da cidade, destaca seu compromisso pela busca e manutenção da tradição desde a criação do festival.
Desde o começo mesmo, a intenção, como eu te disse, era buscar realmente aquela quitandeira tradicional. E a gente tem gente que participa tem 21 anos do festival. Tem senhorinhas aí, a gente tem uma turma de São Brás, de Tatuí, que vêm desde o primeiro ano e são, assim, aquelas quitandas bem tradicionais, mesmo, de forno à lenha. [...] Eu não deixava nem refrigerante ser vendido dentro do espaço. Quem queria o refrigerante saía e buscava do lado de fora.
A entrevistada 8 (18/01/2022) compreende a gastronomia como o resultado da expressão cultural de um povo, não se limitando à questão fisiológica (Montanari, 2008):
A gastronomia, a culinária, a cultura alimentar, ela faz parte da expressão cultural de um povo, de uma comunidade, de um grupo. Então na hora que você traz, você dá a luz para esse alimento, para esses modos de fazer, da produção, para as pessoas que fazem aquilo, é uma forma de você estar reconhecendo, valorizando uma expressão cultural de um determinado território ou de um determinado grupo ou de uma determinada localidade... e por aí vai.
Nota-se no relato da profissional que são abarcados aspectos referentes às representações de identidade, saberes, ofícios e memória coletiva dos seus habitantes (Fonseca, 2000).
As tradições culinárias são geradas por meio da transmissão dos saberes e do modo como um alimento se transforma em comida (Mascarenhas, 2009). A entrevistada 7 (16/01/2022) afirma ter aprendido a produzir quitandas em família: “A gente aprende assim, é uma receita com a família, você vai manipulando e vai dando certo”.
Características do ritual de hospitalidade, aspectos reiterados por Camargo (2004) e Lashley (2015), são citadas pela entrevistada 5 (06/01/2022), que evidencia como se deu esse aprendizado e abarca costumes íntimos, instalados em sua família.
Eu morei muitos anos com a minha avó. [...] São seis irmãs. Então elas sempre fizeram muitas quitandas em casa, todas as minhas tias são superprendadas com quitandas, com bolos. Então, isso foi uma coisa importante, vindo desde criança mesmo, foi crescendo de ver a minha avó, ver minhas tias fazendo, participando da fabricação das quitandas ali em casa (Entrevistada 5, 06/01/2022).
A importância da intergeracionalidade para a perenidade do ofício das quitandeiras é indicada pela entrevistada 8 (18/01/2022), que aponta que esse conhecimento se atualiza, ou seja, sofre mudanças quando transmitido pelo grupo de detentoras do conhecimento, geralmente composto pelas quitandeiras mais velhas.
A gente tem quitandas que, com certeza, 200 anos atrás não existiam. Esse conhecimento, esse saber que passa de geração em geração e que se atualiza, seja pelo tipo de produto que a gente tem, seja por uma demanda da localização, seja por uma adaptação de território (Entrevistada 8, 18/01/2022).
Como aconteceu com as quitandeiras, o entrevistado 11 (06/01/2022) corrobora com o fato do aprendizado do ofício do queijo também ter sido transmitido dentro de sua família:
Aprendi com meus pais. Vendo eles lá fazendo. E aí foram me ensinando e eu fui aprendendo. [...] Olha, a gente segue a mesma receita dos avós da gente, dos antepassados. [...] Aí quando a gente se for, vai ficar, espero que a minha filha, a Gabi, continue, depois vão vindo outros.
Mesmo que as quitandeiras não compreendam as dimensões de um bem patrimonializado, elas reconhecem o ofício como próprio (Bonomo, 2014). Fortalecer as tradições do ofício, incluindo o aprendizado e a transmissão dos saberes, orgulha e valoriza os produtores, como afirma o entrevistado 4 (10/01/2022):
Patrimônio é um bem de valor que eu reconheço que seja nosso. É a fala de nós, tem a base em nós, somos nós que fazemos, nos identifica e nos orgulha. [...] E que nos dá a sensação de continuidade. [...] Mas a gente tem essa ideia: “eu quero continuar a ser assim, a manifestar assim, a ter o mesmo orgulho e quero transmitir isso pro futuro.” Olha só, transmitir, como que tradição é transmissão. É a vontade de transmitir ao futuro. É por isso que se mantém.
O apreço dos produtores em receber os visitantes e ofertar seus produtos logo que eles chegam às barracas, demonstra acolhimento, momento inaugural dos ritos de hospitalidade (Binet-Montandon, 2011), problematizados por Camargo (2004), Raffestin (1997) e Van Gennep (1967).
Para que os visitantes possam experienciar, mesmo que momentaneamente, os costumes e a gastronomia da região (Gimenes, 2011), diversas atividades são desenvolvidas, inferindo-se os festivais gastronômicos como espaços de hospitalidade, pelo fato de serem locais de partilha coletiva e essencialmente relacionais (Grinover, 2009; Lugosi, 2008).
A valorização da cultura local e a preocupação com a perpetuidade dos ofícios são citadas pelos entrevistados como forma de exaltar seus aspectos culturais (Fonseca, 2000), cujo fortalecimento traz orgulho, reconhecimento e valorização aos produtores (Bonomo, 2014), uma vez que as tradições culinárias se formam por meio da transmissão de saberes (Mascarenhas, 2009).
Os festivais gastronômicos possibilitam também momentos necessários para o fortalecimento da rede de relações sociais entre produtores, organizadores e convidados, sejam eles moradores da região ou turistas (Bueno, 2006), pois o desejo de estar junto e se comunicar com o outro é constituinte da sociabilidade (Hanke, 2002).
A pesquisa revelou que o domínio dos ofícios associados aos saberes locais e os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade entre os organizadores e os produtores e destes com os visitantes, aspectos indutores na definição das características hospitaleiras, o que corrobora com a primeira proposição (P1): a extroversão dos saberes locais de uma comunidade é um componente potencial para a criação de um festival gastronômico.
A segunda proposição (P2) constatada refere-se à valorização dos aspectos culturais e à salvaguarda do patrimônio imaterial, especialmente por meio da transmissão dos saberes evidenciados nos festivais, que cumprem seu papel de promover conhecimento sobre a manifestação cultural local. A celebração e memorização dos ofícios e tradições locais durante o festival são evidenciadas por meio do cuidado que os profissionais responsáveis pela organização apresentam e também dos produtores ao produzirem, demonstrarem e explanarem acerca de seus ofícios. É possível inferir que diversos fatores são considerados tanto no período que antecede os festivais, composto pelas reuniões de alinhamento entre expositores e poder público, quanto durante a realização destes, ao socializarem com os visitantes, os fatores culturais acerca dos ofícios e das iguarias a eles ofertadas. Segundo os entrevistados da região do Serro, infere-se que a patrimonialização do modo de fazer do Queijo Minas influencia diretamente a realização da festa. Esse fator é reforçado pelo entrevistado 9 (21/01/2022), Secretário de Cultura, Turismo e Patrimônio do Serro, quando afirma que resultou na alteração do perfil da festa e elemento de celebração: antes, o cavalo, e agora, o ofício do queijo.
Os organizadores e os expositores dos dois festivais relatam a existência de relações de hospitalidade e de parceria, evidenciadas pelas reuniões que ocorrem antes dos eventos e durante sua efetivação, visto que são grupos simbióticos: o poder público conta com a participação e envolvimento dos expositores para a realização e o sucesso dos festivais, enquanto que estes também dependem do apoio do poder público e demais instituições neles envolvidos.
A análise das entrevistas possibilita inferir que os aspectos culturais, como a recepção e atenção dos organizadores e produtores destinada aos visitantes, e a oferta de degustação nas barracas, consideradas características hospitaleiras regionais, além do domínio de seus ofícios associados aos saberes locais, influenciam diretamente as relações de hospitalidade entre os grupos frequentadores dos festivais. À medida que organizadores e produtores mantêm uma relação harmoniosa e que seja estendida aos visitantes, estes provavelmente se sentirão bem recebidos nos festivais, o que poderá colaborar para a perpetuação do ofício e do evento, o que valida a terceira proposição (P3): a hospitalidade na relação entre organizadores e expositores contribui para um resultado positivo no festival gastronômico. Buscando interdisciplinaridade entre hospitalidade, alimentação e patrimônio, a pesquisa apresenta a perspectiva dos organizadores e dos produtores, considerados aqui como anfitriões do festival.
A pesquisa teve como objetivo compreender como os aspectos culturais influenciam as relações de hospitalidade de festivais gastronômicos associados aos saberes locais em Minas Gerais. Nos dois casos analisados, os saberes locais das respectivas comunidades foram decisivos para a criação e manutenção da Festa do Queijo do Serro e o Festival da Quitanda de Congonhas. A valorização dos aspectos culturais e a salvaguarda do patrimônio imaterial, especialmente por meio da transmissão dos saberes, influenciam o planejamento, a organização e a produção desses eventos, que cumprem seu papel de promover conhecimento sobre a manifestação cultural local. É possível inferir que diversos fatores culturais acerca dos ofícios e das iguarias ofertadas são considerados, tanto no período que antecede os festivais, composto pelas reuniões de alinhamento entre expositores e poder público, quanto durante a realização destes, ao socializarem e oferecerem degustações aos visitantes.
As entrevistas evidenciam que os aspectos culturais, como a recepção e atenção dos organizadores e produtores destinada aos visitantes, e a oferta de degustação nas barracas, consideradas características hospitaleiras regionais, além do domínio de seus ofícios associados aos saberes locais, influenciam diretamente as relações de hospitalidade entre os grupos frequentadores dos festivais, fato que colabora para um resultado positivo para o festival gastronômico.
A abordagem das relações de hospitalidade analisada sob a ótica dos organizadores e dos produtores expositores, a Festa do Queijo do Serro e o Festival da Quitanda de Congonhas, cujas iguarias estão diretamente relacionadas à patrimonialização de seus ofícios, constitui uma das contribuições para o campo de estudos da hospitalidade.
Categorias criadas a priori e analisadas separadamente, evidenciaram, em vários momentos, potencialidade da transversalidade da interpretação, ou seja, compreendem mais de um sentido como experiência e sociabilidade, referência cultural e transmissão do saber ou acolhimento, sociabilidade e experiência. Ciente desse aspecto, sugere-se uma estratégia de aplicação de categorias de análise que possibilite a interpretação transversal dos documentos averiguados em futuras pesquisas. Outro aspecto relevante está no aprofundamento dos impactos dos festivais gastronômicos no turismo regional, além de pesquisar os visitantes dos festivais.
Como limitação da pesquisa, pela sua característica exploratória e qualitativa, vale ressaltar que os dados não podem ser generalizados, por não ser possível entrevistar todos os sujeitos envolvidos no mesmo cenário, e também porque alguns entrevistados podem não ter verbalizado suas opiniões por completo. Sendo assim, o exposto possibilita apenas um entendimento parcial do fenômeno (Bauer & Gaskell, 2002), cuja temática possibilita a realização de futuras pesquisas que compartilhem o estudo da hospitalidade, dos festivais gastronômicos e do patrimônio.
Sênia Regina Bastos: