Resumo: O presente estudo buscou compreender como a paisagem da Terra Média, presente na obra do escritor J. R. R. Tolkien, é transposta semioticamente das linguagens narrativas da literatura e do cinema para a cenarizada, tematizada e habitável do turismo, sobretudo como meio de hospedagem que se torna uma experiência de imersão do hóspede em um mundo possível ficcional. Para tanto, foram realizados, em sites de hospedaria, levantamentos de hospedagens temáticas durante o período de novembro de 2022 a abril de 2023 e, posteriormente, optou-se pelo foco nos meios de hospedagem do Brasil. Para auxiliar nas análises, o campo do Turismo e da Geografia foram essenciais, além do campo da Literatura e Narratologia. Para melhor compreensão dos dados, foram elaborados tabelas e gráficos. A partir da concretização das etapas, notou-se, em meio aos resultados, como a topografia local pode interferir diretamente na facilidade para possuir um posicionamento geográfico similar ao da Toca Hobbit. Além disso, constatou-se que há uma questão estruturante e limitante relativa às possibilidades dos códigos de linguagem específicos para cada um dos diversos sistemas representacionais. Ou seja, há clara complexidade e dificuldade na transposição do texto bidimensional para a realidade ancorada no mundo concreto e que enfrente a escassez de recursos físicos, espaciais e econômicos. Por fim, entende-se o potencial que este trabalho apresenta ao desenvolver um método que dá visibilidade à “tematização paisagística” enquanto construtora de experiências, contribuindo na implementação de uma atração turística pautada na “hospitalidade de mundos possíveis ficcionais". Do ponto de vista prático, a pesquisa buscou auxiliar futuros empreendedores a utilizarem novos parâmetros para concepção de projetos de hospedagem tematizadas, tendo como base o imaginário de Tolkien e o universo fantástico das Tocas Hobbit.
Palavras-chave: paisagem, mundo possível ficcional, transposição intersemiótica, acomodações temáticas, J. R. R. Tolkien.
Abstract: The present study sought to understand how the landscape of Middle-earth, present in the work of the writer J. R. R. Tolkien, is semiotically transposed from the narrative languages of literature and cinema to the cenarized, thematized and habitable of tourism, especially as an accomodation that becomes an experience of immersion of the guest in a possible fictional world. To this end, surveys of thematic lodgings were carried out in accommodation websites during the period from November 2022 to April 2023 and, subsequently, it was decided to focus on the accommodation in Brazil. To assist in the analyses, the field of Tourism and Geography were essential, in addition to the field of Literature and Narratology. For a better understanding of the data, tables and graphs were elaborated. From the completion of the stages, it was noticed how the local topography can directly interfere in the ease of having a geographical position similar to that of the Hobbit Hole. Besides that, it was found that there is a structural and limiting question concerning the possibilities of specific language codes for each of the various representational systems. That is to say, there is clear complexity and difficulty in transposing the two-dimensional text to reality anchored in the concrete world and facing the scarcity of physical and economic resources. Finally, it is understood the potential that this work presents by giving visibility to the "landscape thematization" as a builder of experiences, contributing to the implementation of a tourist attraction based on the "hospitality of possible fictional worlds". From a practical point of view, the survey sought to assist future entrepreneurs to use new parameters while designing themed accomodations, based on Tolkien’s imaginary and the fantastic universe of the Hobbit holes.
Keywords: landscape, possible fictional world, intersemiotic transposition, themed accomodations, J. R. R. Tolkien.
Resumen: El presente estudio buscó comprender cómo el paisaje de la Tierra Media, presente en la obra del escritor J. R. R. Tolkien, se transpone semióticamente de los lenguajes narrativos de la literatura y el cine a lo cenizarizado, tematizado y habitable del turismo, especialmente como alojamiento que se convierte en una experiencia de inmersión del huésped en un posible mundo ficticio. Para ello, se realizaron encuestas de alojamientos temáticos en los sítios web de hospedaje durante el periodo comprendido entre noviembre de 2022 y abril de 2023 y, posteriormente, se decidió centrarse en los ambientes de hospedaje en Brasil. Para ayudar en los análisis, el campo del Turismo y la Geografía fueron esenciales, además del campo de la Literatura y la Narratología. Para mejor entender los datos, se elaboraron tablas y gráficos. A partir de la finalización de las etapas, se notó cómo la topografía local puede interferir directamente en la facilidad de tener una posición geográfica similar a de la Madriguera Hobbit. Además, se ha constatado que existe una cuestión estructural y limitante relativa a las posibilidades de los códigos de lenguaje específicos para cada uno de los diversos sistemas representativos. Es decir, hay clara complejidad y dificultad en la transposición del texto bidimensional a la realidad ancorada en el mundo concreto y que enfrente la escasez de recursos físicos, espaciales y económicos. Finalmente, se comprende el potencial que presenta este trabajo al dar visibilidad a la "tematización del paisaje" como constructora de experiencias, contribuyendo a la implementación de un atractivo turístico basado en la "hospitalidad de mundos ficcionales posibles". Desde un punto de vista práctico, la investigación buscó ayudar a futuros emprendedores a utilizar nuevos parámetros para disenãr proyectos de alojamiento temáticos, basándose en la imaginación de Tolkien y el fantástico universo de las tocas hobbits.
Palabras clave: paisaje, posible mundo fictício, transposición intersemiótica, alojamentos temáticos, J. R. R. Tolkien.
Artigos
A TRANSPOSIÇÃO DA PAISAGEM FICCIONAL DA TOCA HOBBIT DAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN: UMA ANÁLISE DE HOSPEDAGENS TEMÁTICAS BRASILEIRAS
The transposition of the fictional landscape of the Hobbit Hole from the works of J. R. R. Tolkien: an analysis of Brazilian themed accommodations
La transposición del paisaje ficticio de la Madriguera Hobbit de las obras de J. R. R. Tolkien: un análisis de los alojamientos temáticos brasileños
Recepción: 13 Marzo 2024
Aprobación: 25 Julio 2024
A obra do escritor, filólogo e professor John Ronald Reuel Tolkien (1892 - 1973) se destaca, tanto pela sua influência enquanto estrutura arquetípica às narrativas de fantasia, quanto como fenômeno pop-cultural e turístico contemporâneos. É inegável, por exemplo, a importância histórica da trilogia literária The Lord of the Rings (LoR), pois tendo sido lançada originalmente em 1954, estima-se que a obra esteja entre as cinco mais vendidas no mundo, com um total de 150 a 170 milhões de cópias legais (Revista Bula, 2020): “ ‘O Senhor dos Anéis’ foi considerado o livro favorito do milênio pelos clientes da Amazon em 1999 e o romance preferido de todos os tempos na Grã-Bretanha, na pesquisa ‘The Big Read’ da BBC em 2003” (Revista Exame, 2019). Sua importância também ocorre quando se analisam os produtos derivados desta literatura: a série de filmes, lançados entre 2001 e 2003 e dirigidos por Peter Jackson, foi eleita entre as cem melhores obras cinematográficas de todos os tempos pela revista norte-americana The Hollywood Reporter, conquistando também 17 estatuetas do Oscar (Revista Exame, 2019). A influência transmidiática do universo mítico da Terra Média mantém-se em jogos de videogame e de tabuleiro, e no lançamento, em 2022, da série “Os Anéis do Poder”, pela Amazon Prime, rede de streaming da Amazon, que adquiriu o direito de produção da série televisiva que narra acontecimentos historicamente situados na Segunda Era da Terra Média, sendo até o momento a negociação mais cara da história da televisão (Revista Exame, 2019). Como resultado desse sucesso, o set de filmagens localizado na Nova Zelândia, especialmente a vila do Hobbits, consolidou-se como um atrativo bastante visitado por turistas interessados em conhecer as paisagens onde foram gravadas as cenas (Catraca Livre, 2020). O turismo, portanto, se apropria das paisagens do mundo possível ficcional do Condado, representadas na obra literária e nos filmes e demais produtos midiáticos, promovendo visitações e experiências concretas in loco.
Tem-se que o conceito filosófico de “mundo possível” parte do pressuposto de que nosso mundo real (primário e concreto) encontra-se circundado por uma infinidade de outros “mundos possíveis” (Bradley & Swartz 1979 apud Jeha, 1993, p. 84). Derivado desse conceito, o “mundo possível ficcional” refere-se às criações artísticas de um universo epistêmico, que existe por si, ainda que dependente do real e concreto como ponto de referência inspiracional:
"no plano da história, cada texto narrativo apresenta-nos um mundo com indivíduos e com propriedades, mundo esse cuja lógica nãotem de coincidir com a do mundo real, nem, por outro lado, distanciar-se completamente dele; isto observa-se de forma especialmenteelucidativa nos contos maravilhosos, nas narrativas fantásticas ou nos relatos de ficção científica [...]. De forma algo esquemática,podemos dizer que o mundo ficcional mantém com o mundo real uma correlação semântica que oscila entre a representação miméticae a transfiguração desrealizante. Seja como for, a verdade própria dos objetos ficcionais não depende de uma correspondêncialinear com o mundo real; ela só pode ser equacionada em função do mundo instituído pelo texto, incluindo elementos de verdadeintraficcional e de verdade interficcional” (Reis, 2018, p. 275-276).
O mundo habitado pelos seres nomeados como hobbits foi, na verdade, apresentado pela primeira vez aos leitores em uma obra que surgiu antes de O Senhor dos Anéis, mais exatamente no romance de aventura que J. R. R. Tolkien publicou em 1937 e intitulado O Hobbit. Nessa obra, o narrador relata acontecimentos da Terra Média durante a Terceira Era do nosso próprio mundo, onde Bilbo Bolseiro, um hobbit, leva a sua vida de forma pacífica na sua confortável toca no Bolsão, localizado no Condado. O sucesso desses seres e suas terras míticas fez com que J. R. R. Tolkien retornasse a esse universo quando de sua escrita de LoR, inclusive dedicando 21 páginas do prólogo para realizar um relato histórico e etnográfico desses seres ficcionais (a este respeito, conferir Tolkien, 2019 [1954], p. 37-57). Remetendo a uma cultura campesina e tradicional, esses hobbits vivem em terras rurais, conhecidas como Condado, residindo em tocas incrustadas nas colinas: “todos os hobbits haviam originalmente vivido em tocas no solo, ou assim acreditavam, e em tais habitações ainda se sentiam mais em casa; mas no decorrer do tempo tinham sido obrigados a adotar outras formas de abrigo” (Tolkien, 2019 [1954], p. 44).
Bilbo, como um sujeito abastado, vivia na residência considerada a mais luxuosa da região, “[...] era uma toca de hobbit, e isso significa conforto” (Tolkien, 2019 [1937], p. 27). Sua toca possuía jardins frontais e janelas circulares, e ainda “tinha uma porta perfeitamente redonda feito uma escotilha, pintada de verde, com uma maçaneta amarela e brilhante de latão, exatamente no meio. A porta se abria para um corredor em forma de tubo, feito um túnel” (Tolkien, 2019 [1937], p. 27). A respeito da distribuição dos cômodos: “nada de segundo andar para o hobbit: quartos, banheiros, adegas, despensas (muitas dessas), armários (ele tinha cômodos inteiros dedicados a roupas), cozinhas, salas de jantar, todos ficavam no mesmo andar e, de fato, na mesma passagem” (Tolkien, 2019 [1937], p. 27).
Essas descrições tornaram-se fonte de referência e inspiração para a transposição intersemiótica, ou seja, a passagem de um sistema de signos a outro, permitindo que um texto-base seja manipulado em sua estrutura de linguagem para se adaptar a outras formas de mídias bi ou tridimensionais, sejam essas escritas ou não-verbais (e.g. uma narrativa romanesca que é adaptada como filme e, posteriormente, ainda é apropriada em sua cenarização e enredo por parques temáticos, como vemos no caso da franquia Harry Potter) (Clüver, 2006). No caso do Condado e da Toca Hobbit de Bilbo, transita-se por linguagens pluricódigos, como os desenhos bidimensionais produzidos pelo próprio J. R. R. Tolkien, ainda nos anos de 1930, e a cenarização tridimensional para o set de filmagem, ocorrida no final dos anos de 1990, na Nova Zelândia.
Integrado a esse processo de transposição sígnica das paisagens e ambientes, que passam de um mundo possível ficcional (i.e. uma mídia da linguagem bidimensional e visual dos filmes e livros) para se erguer no nosso, concreto e real (i.e. tornando-se uma mídia tridimensional, com materialidade sensível que permite a interação do interpretante/visitante), determinados meios de hospedagem investiram e investem na constituição de unidades habitacionais que remetem à atmosfera das Tocas Hobbit. Como forma de constituição de um diferencial de mercado e objetivando captar um público interessado nessas obras, muitos proprietários desses equipamentos turísticos buscam reconstituir espaços que estão em diálogo com as narrativas literárias, mas, principalmente, com a cenarização presente nos filmes, cuja popularidade foi notória e cuja reconstituição audiovisual do Condado circulou de maneira a ser o referencial imagético do universo tolkieniano. Todavia, essa tematização não é uma tarefa simples quando se pretende a verossimilhança, haja vista que questões de custo, contexto cultural e geográfico, relevo, disponibilidade de área construída, etc. impõem limitações a esta transposição que deseja fidedigna e não meramente um pastiche.
Considerando esse contexto, o objetivo central do artigo consiste em compreender como a paisagem da Terra Média, criada pelo escritor de fantasia J. R. R. Tolkien, mais especificamente a região do Condado onde se encontram as Tocas Hobbit, é transposta semioticamente das linguagens narrativas da literatura e do cinema para a cenarizada, tematizada e habitável do turismo, sobretudo como meio de hospedagem que se torna uma experiência de imersão do hóspede em um mundo possível ficcional. Importante ressaltar duas premissas desta pesquisa: i. no que tange ao objeto, a obra literária de J. R. R. Tolkien e a cinematográfica, dirigida por Peter Jackson, são compreendidas como fontes primárias de referência inspiracional para os meios de hospedagem tematizados, tendo sido estes repertoriados em sites de reserva na internet (e.g. Airbnb); ii. no que diz respeito à conceituação teórica, a paisagem é aqui entendida semioticamente, isto é, enquanto uma linguagem capaz de ser modelada em diversos suportes, cada um deles escrevendo um texto paisagístico propício à interpretação e vivência do leitor, telespectador, turista, hóspede, etc. (Corrêa, 2011; Duncan, 2004; Cosgrove & Jackson, 2000). Logo, faz-se importante compreender que a paisagem do mundo possível ficcional transita, por meio da tradução intersemiótica, entre diversos suportes (e.g. a página de um livro, o cenário/set de filmagem, a projeção audiovisual, a tematização arquitetônica hoteleira, etc.), sendo que cada um desses inscreve, ainda que condicionados pelos limites e potencialidades materiais de seus códigos, a paisagem idealizada e imaginada por um agente (e.g. o autor, o narrador, o diretor, o cenógrafo, o arquiteto, o turismólogo, etc.).
Os enfoques teóricos sobre a paisagem são polissêmicos e complexos (Antrop, 2018; Gonçalves, 2017; Besse, 2014; Souza, 2013), possuindo múltiplas perspectivas oriundas de diferentes autores e escolas de pensamento. Para este estudo, buscou-se uma abordagem holística e integrativa, destacando-se os realizados pelo geógrafo francês Bertrand (1972) e pelo brasileiro Milton Santos (1997). Para esses autores, não é somente a adição de elementos geográficos que caracteriza a paisagem, mas, sim, o resultado de uma combinação instável que ocorre em uma determinada porção de espaço reagindo com os elementos físicos, biológicos e antropológicos ali situados, fazendo com que tal paisagem seja esse conjunto único e indissociável, em constante transformação. Portanto, e segundo Santos (1997, p. 37), é fundamental atentar-se para a dinamicidade inerente ao seu processo de transformação, ou seja, todas as mudanças que ocorrem na sociedade (econômicas, políticas, sociais, ambientais, etc.) também são observáveis em relação à paisagem, que “se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade”. Conforme abordado por Yázigi (2002, p. 32), não há paisagem sem um observador, considera-se, então, que a percepção visual seja essencial à existência cultural da paisagem. Em virtude disso, a paisagem deveria ser considerada, de acordo com o autor, como “objeto de apropriação estética e sensorial”. Logo, a paisagem aponta para uma presença do ser humano, portanto, sua noção como herança traz importante contribuição para a presente proposta ao compreendê-la como um documento histórico a ser interpretado. De forma complementar, é chamada atenção para o conceito de paisagem como configurações de símbolos e signos, que desenvolve a metáfora da paisagem como “texto”, isto é, uma linguagem organizada para ser lida e interpretada como documento social (Cosgrove & Jackson, 2000, p. 15-32).
É possível considerar que o turismo está conectado à referida abordagem, pois é a partir do ato de ‘olhar’ o diferente, da contemplação e da criação de imagens do lugar, que a paisagem se estabelece como o primeiro contato do visitante com o lugar, portanto, ela está no centro da atratividade turística (Cruz, 2002apud Noémi Marujo & Norberto Santos). Para Urry (1996, p. 16-18), o olhar do turista não é único, pois ele varia com base na sociedade, grupo social e período histórico que o indivíduo está inserido. Com isso, o autor entende que existem dois tipos de olhares do turista, são eles: o direcionado para aspectos da paisagem do campo e da cidade, que os separam da experiência de todos os dias, e o construído através de expectativas coletivas. O primeiro implica no fato de que as paisagens vistas durante as viagens são romantizadas, em contraponto com aquelas habituais do cotidiano. Já o segundo olhar, entende-se que esta visão é formada por símbolos, quer dizer, através de um circuito de construção coletiva do imagético, como são as próprias ideias estereotipadas de um destino: “(...) os turistas, se inflamam, à procura dos sinais das demonstrações de francesismo, do comportamento italiano típico, de cenas orientais exemplares, (...)” (Urry, 1996, p. 18). Terkenli (2004) aborda sobre como os processos históricos têm influenciado na forma como a paisagem é vista e registrada por meio das fotografias - as quais levaram ao desenvolvimento de cartões postais, momentos, anúncios, panfletos, entre outros. Materializada em diversos suportes que a registra, a paisagem torna-se um ângulo e um plano, uma iluminação e coloração, ou seja, é um discurso e uma interpretação. Xavier (2007) esclarece que interpretá-la significa agregar valores ao que é percebido, afinal, como ressalta Souza (2013, p. 59, inserção nossa), “a componente visual não deve esgotar a dimensão conceitual [nem discursiva] da paisagem”.
A paisagem, em uma compreensão mais ampla e profunda, é, portanto, uma interpretação mais geral sobre a sociedade, estando sujeita às técnicas e diferentes suportes de percepção (fotografia, cinema, vídeo, etc.). O surgimento de “novos objetos paisagísticos” e, por consequência, de novas sensibilidades, valores e normas, é um processo permanente e, conforme aponta Besse (2014, p. 43-45), tem por objetivo a construção de uma abordagem experimental da realidade paisagística com a proposição de novos objetos, em um sentido semelhante ao que aqui se compreende como “transposição paisagística”.
Para os estudos semióticos, que se interessam pela análise das diversas possibilidades de composições dos signos em diferentes suportes de linguagem, qualquer entidade percebida fenomenologicamente por um sujeito e, posteriormente, racionalizada por ele, torna-se um texto, isto é, tece uma rede de significantes para elaborar um (vários) significado(s). Em outros termos: para a semiótica, principalmente pela ótica peirceana, o mundo sensível passa a fazer sentido somente quando é interpretado enquanto uma estrutura textual “redigida” em um certo sistema de linguagem (Santaella, 2012). Por conseguinte, a paisagem - tanto aquela apresentada in locus quanto a representada em uma linguagem artística - deve ser considerada um texto semiótico, pois a sua existência depende, exatamente, de um sujeito que a interpreta a partir de suas perspectivas sociais (coletivas) e subjetivas (Cosgrove, 2000; Duncan, 2004; c.f. Chaumier, 2012; Lupton, 2017).
Derivado dessa perspectiva, pode-se sugerir que a paisagem descrita em uma obra literária é um signo que interpreta, expressa e aponta para um referente diegético, ou seja, para uma realidade intrínseca àquela obra; todavia, a paisagem estabelecida pelo signo linear e verbal do romance pode ser interpretada e transposta para um outro suporte que exigirá um outro sistema de linguagem, como a fílmica e a expositiva, adquirindo novas configurações que a transfere da sua forma simbólica (da escrita) para a icônica, pois mais do que descrever e representar deseja expor e apresentar o referente paisagístico. Por isso, a transposição intersemiótica é uma operação da linguagem, posta em prática para que um mesmo objeto (referente) possa ser representado ou apresentado como texto em diferentes suportes midiáticos que exigem linguagens específicas, em que cada um possui suas limitações e potenciais expressivos e interativos (Clüver, 2009; Volli, 2008).
Consequentemente, e já que é um texto e uma linguagem culturalmente interpretada, é possível dizer que, em certos casos, a paisagem está a serviço do mercado turístico, podendo ser também propositalmente manipulada, projetada, tematizada e (re)construída com o intuito de estabelecer um diferencial imagético potencializador do olhar e da experiência do turista. Entendida como atrativo, ela pode ser cenarizada (Meining, 1979), constituindo uma imersão sensorial do visitante em um ambiente mais ou menos controlado. A estratégia de ambientação e tematização de equipamentos turísticos participa deste processo reorganizador da paisagem do mundo concreto: ao materializar tridimensionalmente um “mundo possível ficcional”, os agentes oferecem uma paisagem controlada e organizada discursivamente, ou seja, implementam uma hospitalidade inspirada em um universo ficcional que submerge o visitante em uma experiência corpórea e sensível. Logo, através dessa estratégia, aquele interpretante (leitor/telespectador) que viveu um determinado ambiente narrativo somente “em sua mente”, constituindo para si um estado imagético dos possíveis, torna-se um personagem/visitante desse mundo, quando se vê na possibilidade de adentrá-lo e habitá-lo via transposição da paisagem, que traz volume e tangibilidade a este universo diegético, até então plano e abstrato.
Nesse sentido, como tal transposição exige um certo grau de riscos, é plausível afirmar que a hospitalidade oferecida aos visitantes dos cenários paisagísticos tende a ser a comercial, pois a perspectiva é de geração de receitas e lucros de modo a amortizar o capital investido. Tal forma comercial da hospitalidade, diferentemente das domésticas e sociais, são movidas pela demanda: “é o cliente quem decide a respeito de onde e por quanto tempo ele vai ficar, ou o que ele vai comer e beber” (Lockwood & Jones, 2004, p. 228). Os equipamentos turísticos cuja relação entre hóspede (cliente) e anfitrião (agentes prestadores de serviço) esteja mediado por uma troca pragmática (financeira, por exemplo), caracterizam tal modelo de hospitalidade comercial. Neste, o visitante paga para vivenciar um serviço que realize suas expectativas, cabendo ao outro lado envolvido na transação o dever de lhe ofertar satisfatoriamente aquilo que foi acordado e combinado anteriormente.
Dentre tais equipamentos turísticos, tem-se os meios de hospedagem que, segundo Ribeiro (2011, p. 27), “refere-se ao conjunto de empresas destinadas a prover acomodação em condições de segurança, higiene e satisfação às pessoas que buscam por esses serviços, seja por períodos curtos ou até em longas temporadas”. Entretanto, a autora ressalta que o termo “meios de hospedagem” também pode ser considerado sinônimo de “hotelaria”, visto que ambos indicam um conjunto de edificações que desenvolvem o comércio da recepção e da hospedagem/acomodação, alimentação, entre outros rituais relacionados à hospitalidade com a finalidade de proporcionar um bom atendimento aos seus hóspedes, prezando sempre pelo bem-estar daqueles que chegam ao estabelecimento. Contudo, tais meios de hospedagem, que inicialmente eram simples locais para descanso e manutenção do corpo do viajante, que se encontrava fora de casa, tornaram-se paulatinamente um espaço completo de lazer e entretenimento, firmando-se enquanto atrativos per se, como se verifica nas diferenciações de mercado dos hotéis-resorts instalados em diferentes paisagens e climas, os hotéis boutiques e os temáticos. Se a qualidade de serviço se tornou uma premissa e uma obrigação, que não mais constitui um diferencial de mercado, serão as experiências (e dentre estas a tematização) que pautarão as estratégias de posicionamento dos atuais meios de hospedagem (Manosso, 2020; Ribeiro, 2011).
Complementarmente ao conceito das hospedagens temáticas e considerando a relação com o turismo, menciona-se a busca atual por experiências memoráveis que abarcam atividades turísticas promotoras de emoções, que ficam registradas nas memórias dos turistas ou, nesse caso, dos hóspedes (Coelho & Malta, 2019; Knobloch, Robertson, & Aitken, 2014; Lee, 2015). A geração de emoções positivas, sobretudo, daquelas relacionadas à estadia em determinados meios de hospedagem, é acionada a partir da sensação de novidade vivenciada pelo hóspede e, como consequência, contribui para uma maximização dessa mesma experiência (Alves et al., 2020; Coelho & Malta, 2019; Kim, Ritchie, & Mccormick, 2012). É possível afirmar, portanto, que as experiências dos hóspedes estão intrinsecamente relacionadas às emoções que ele experimenta ao longo de sua estadia e, assim como pontua Gândara et al. (2009, p. 187): “o turista contemporâneo deseja deslocar-se para destinos onde possa mais que contemplar, viver e emocionar-se, ser o personagem da sua própria viagem. Ele anseia envolver-se nas experiências”.
A partir de tudo que foi dito, é possível compreender que a transposição da paisagem dos mundos possíveis para os meios de hospedagem estabelece-se como uma estratégia de construção de experiência e de diferencial de mercado, aproveitando-se, inclusive, do imaginário coletivo a respeito de determinados universos diegéticos já consagrados e consolidados pela cultura pop-ficcional e literária. Tanto nas fachadas (ambientes externos) quanto nos cômodos (ambientes internos), a paisagem de um mundo possível ficcional serviria como inspiração na modelagem de cenários a serem experimentados pelos hóspedes através de sua imersão. Desse modo, a paisagem não é somente o ato de olhar, pois exige um engajamento multissensorial do hóspede que visita, se instala e transita por esses equipamentos turísticos tal qual um visitante e/ou um personagem nessas terras ficcionais. Mas, ao indicar que as decisões arquitetônicas, de design de interior e de decoração são a priori dispositivos modeladores de uma paisagem indoor e outdoor, logo, percebe-se que esta transposição intersemiótica traz dificuldades, pois se a linguagem paisagística escrita (livro) não exige compromisso com o verificável, e se a do audiovisual (cinema e TV) ergue em estúdios somente uma casca do que lhe interessa enquanto plano de filmagem, já a arquitetônica (das hospedagens) opera com uma paisagem a ser explorada, isto é, apta a ser frequentada em sua plenitude, com dentro e fora, cantos e centros, tetos e pisos, etc.
A partir da compreensão de que a descrição do Condado não é somente literária, mas também cinematográfica, o intuito é compreender como os meios de hospedagem tematizados se aproximam, distanciam-se e desviam-se do imaginário consolidado por tais narrativas ficcionais. É nesse sentido que a transposição intersemiótica se enquadra, tendo em vista que os textos paisagísticos do literário e cinematográficos são interpretados em conjunto e como complementares, adquirindo o status de textos-fontes e mesmo reguladores, ou seja, são posicionados como “manuais de instrução” para a montagem cenográfica dos meios de hospedagem temáticos. Estabelecida esta problemática, a pesquisa desenvolveu-se em duas frentes que, posteriormente, se reagruparam no momento de análise dos dados ora apresentados.
Para realizar a coleta de dados necessária iniciou-se, de um lado, o levantamento de hospedagens disponíveis em sites de hospedaria, como o Airbnb, buscando como palavra-chave, sobretudo, os termos “casa/cabana/toca hobbit”, sendo encontrado neste processo de repertorização um total de 53 meios de hospedagem, assim distribuídos entre países e continentes: América do Sul (Brasil) 6; América do Norte 20; Europa 18; Ásia 6; Oceania 2 e África 1. Ao mesmo tempo, e por outro lado, foram realizadas as análises cênicas e descritivas do Condado, em especial do Bolsão, no intuito de gerar as categorias, critérios e seus respectivos valores na análise. Para tal estudo, foram examinadas as passagens relativas ao Condado dos Hobbits nas obras O Hobbit e do capítulo 1 de O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel, nos quais eram descritas tais características referentes às categorias escolhidas. Além disso, foram selecionadas cenas dos filmes dirigidos por Peter Jackson, O senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001) e O Hobbit: Uma jornada inesperada (2012), visando a selecionar trechos que retratavam aspectos internos e externos da casa.
As categorias elencadas foram elaboradas considerando, inicialmente, aspectos visuais marcantes da paisagem da Toca Hobbit. Portanto, as categorias “fachada”, “paisagismo”, “posicionamento geográfico” e “cômodos” dizem respeito à caracterização sensorial que privilegia a sua constituição externa e interna em termos arquitetônicos. Contudo, e por ser também a paisagem composta por referências simbólicas e culturais, entendidas aqui como signos de alusão intra, meta e supra diegética ao universo tolkieniano, foi incorporada à categoria “referências simbólicas temporais (imateriais)” com o objetivo de abarcar esses elementos na composição cênica das hospedagens (Figura 1).
Para se chegar à apresentação e análise dos resultados, todos os critérios foram devidamente construídos considerando os valores atribuídos a eles, de modo a mensurar o quanto cada hospedagem se atentou mais aos elementos paisagísticos (materiais e simbólicos) coerentes e presentes na obra. Dessa forma, considerou-se que, quando o aspecto analisado estivesse de acordo com a paisagem da Toca Hobbit, descrita por J. R. R. Tolkien, o valor atribuído seria de 1, e caso fosse aproximado, o valor atribuído seria de 0,5, contudo, se fosse outro - totalmente diferente da obra, o valor atribuído seria de 0. Como exemplo, menciona-se a avaliação da subcategoria “porta” que compõe a categoria “fachada”. No critério “estilo”, composto pela característica “redonda”, elemento marcante na composição da porta da Toca Hobbit, as hospedagens que reproduziram tal característica de forma fiel, receberam 1 ponto, aquelas que se aproximaram com portas semicirculares, identificadas como simulado, receberam 0,5 ponto, e as hospedagens que trouxeram portas com outras formas (quadradas, retangulares, etc.) não receberam nenhuma pontuação. Portanto, a partir da elaboração de um modelo teórico ideal (gabarito) foi possível analisar, em cada continente e mais especificamente para o contexto brasileiro, quais hospedagens mais se aproximaram da concepção original proposta.
A partir da definição de valores para cada categoria (1; 0,5 e 0), foi possível definir o valor total final que uma hospedagem temática poderia adquirir, caso atingisse o valor máximo em todos os critérios - neste caso, se um meio de hospedagem adquirisse o total de 52 pontos, ele estaria paisagisticamente sobreposto ao mundo ficcional, referenciando-o satisfatoriamente em sua tematização. Todavia, como será apontado posteriormente, nenhuma das hospedagens alcançou o valor total estipulado, sendo demonstrado, para tanto, a variação dos valores atribuídos a cada hospedagem no que tange às categorias e subcategorias, identificando o quão distante o conjunto dos valores encontrava-se dos valores estimados no modelo ideal.
Conforme a figura 1, é possível compreender a extensão das categorias elaboradas, bem como a relação entre as mesmas e suas respectivas subcategorias e valores atribuídos. Devido a uma questão pragmática de recorte analítico, o presente artigo analisa esta transposição da paisagem, no caso dos seis equipamentos brasileiros identificados no momento de elaboração da proposta (vide Quadro 1).
Assim, para fins de resultados e discussões, foram elaborados e analisados dois gráficos que possibilitam a compreensão da variação total dos valores dos seis meios de hospedagem brasileiros. Cabe lembrar que tais equipamentos tinham por intenção reproduzir a paisagem da Toca Hobbit e, conforme as categorias e subcategorias elaboradas (ver figura 1), buscou-se propiciar uma análise ampla do processo de transposição paisagística da Toca Hobbit para o mundo concreto.
A análise dos dados acerca da transposição da paisagem forneceu subsídios para compreender de que forma os gestores dos equipamentos se inspiraram para criar e cenarizar tais estabelecimentos, isto é, quais foram as referências utilizadas, sobremaneira, os livros, os filmes, ou mesmo nenhum deles, baseando-se apenas pelo conhecimento indireto sobre a saga criada por Tolkien.
Após a avaliação dos critérios de transposição paisagística para o conjunto das seis hospedagens temáticas selecionadas, chegou-se aos valores dispostos no quadro da Quadro 2, que indicam a soma atingida por todos os equipamentos em relação a cada uma das cinco categorias elencadas. A partir disso, foi possível identificar o quanto o score totalatingido em cada categoria variou em relação ao valor máximo possível (total absoluto), que ocorreria caso houvesse uma sobreposição absoluta entre a linguagem paisagística do mundo possível ficcional e o concreto.
Com auxílio do gráfico a seguir (Figura 2), é possível visualizar o comportamento dos dados e inferir sobre os resultados no que tange à oscilação entre o valor máximo permitido e o score atingido.
Iniciando pela análise da categoria fachada (Figura 3), na qual o máximo possível alcançado seria de 72 pontos, verifica-se que os seis equipamentos brasileiros atingiram, em conjunto, 26 pontos, indicando, uma variação total de 46. Portanto, valor considerado baixo, em virtude da importância visual da categoria para representação objetiva da paisagem analisada.
Quando se examina com maior precisão os critérios que compõem a fachada (parede, janela, porta e telhado) e conforme a figura 1, percebe-se que as principais variações ocorrem nas subcategorias porta (oscilação de 23 pontos) e janela (8 pontos de oscilação), seguido de telhado (6 pontos) e parede (4 pontos). Apesar da categoria fachada representar um componente visual fundamental na caracterização da paisagem da Toca Hobbit, somente o critério “cor amarela” da parede obteve maior aproximação com o mundo possível ficcional. Outro elemento de grande representatividade, mas que não obteve o mesmo nível de aproximação da construção paisagística original proposta por Tolkien e representada nos filmes dirigidos por Peter Jackson, foi a porta redonda, considerada um dos elementos visuais característicos da Toca Hobbit (ver figura 1). Do ponto de vista do conceito de paisagem, apesar de reconhecer sua complexidade e constituição de elementos simbólicos e imateriais, é inegável a relevância desempenhada pelos elementos de ordem material e visual. Nessa categoria “fachada”, respectivamente, os MH5, MH1 e MH6 obtiveram as maiores notas, indicando maior coesão e engajamento com o aspecto visual da toca, conforme referências originais dessa paisagem.
Na categoria paisagismo, representada pela subcategoria jardim e pelos demais elementos característicos subjacentes (vegetação, caixa de correio, banco, escada e cerca), também de grande importância no que se refere à caracterização visual da paisagem da Toca Hobbit, observou-se um ligeiro distanciamento da referência original. As hospedagens que atingiram maior pontuação (sendo 8 pontos o total da categoria), MH1, MH3 e MH6, cada um deles com 3 pontos, apresentaram relativa coerência nas subcategorias vegetação e banco, sugerindo maior facilidade de reprodução e representação visual do que os demais elementos (caixa de correios, escada e cerca foram os que mais desviaram).
De todas as categorias elencadas, o posicionamento geográfico, com oscilação de apenas 1 ponto, apresentou-se como aquela que mais se aproximou da representação do mundo possível ficcional do Condado e da toca dos Hobbits, sendo que apenas o MH4 não pontuou, posto que a estrutura arquitetônica é do estilo tradicional sobre a rua. É principalmente na região sudeste e sul que os meios de hospedagem melhor conseguiram serem incrustados nas colinas e, como hipótese, aventa-se a questão topográfica de tais regiões, marcadas pela predominância do domínio morfoclimático dos Mares de Morros, notável, do ponto de vista morfológico, pela presença de regiões serranas e de morros mamelonares (Ab’Saber, 2003), propiciando uma representação mais próxima à referência ficcional elaborada por Tolkien.
Na penúltima e última categorias de análise, “cômodos” e “referências simbólicas e temporais (imateriais)”, observou-se, respectivamente, uma variação total de 61 e 60 pontos para o conjunto dos seis meios de hospedagem em relação ao score total por categoria. Na categoria cômodo, composta pelas subcategorias “funcionalidade (uso)” e “equipamentos”, buscou-se avaliar a coerência dos meios de hospedagens no que se refere à presença de estruturas (cômodos e equipamentos) característicos da Toca Hobbit e fundamentais na experiência do hóspede. Na subcategoria “funcionalidade”, grande parte das hospedagens analisadas (quatro dos seis meios de hospedagem) apresenta em sua constituição os cômodos quarto, banheiro e cozinha, o que é coerente com a premissa tradicional da hoteleira, isto é, um estilo de casa compacta, uma simulação reduzida do espaço doméstico nas unidades habitacionais da hospitalidade comercial - e tal percepção da condensação é reforçada quando se verifica que estruturas arquitetônicas características da Toca Hobbit de Bilbo, tais como túnel, escritório, adegas/despensas, não estão presentes na maioria (MH1 a MH5) das hospedagens. Na subcategoria “equipamentos”, a mesma lógica é observada, predominando a existência, nos MH analisados, de objetos e equipamentos que possuam uso concreto para a estadia dos hóspedes, como cama e mesa, por exemplo. Entretanto, os utensílios que, apesar de representativos na caracterização da toca literária e cinematográfica, como lareira e cabideiros/ganchos para casacos que cumprem função narrativa, não estão presentes.
Na categoria de “referências simbólicas e temporais (imateriais)”, buscou-se verificar a presença de elementos que pudessem, por um lado, remeter a acontecimentos emblemáticos ocorridos em tal toca dentro do contexto narrativo (e.g. a inscrição da runa “feoh” realizada por Gandalf na porta de Bilbo) e, por outro lado, indicar situações de composição diegética da obra (e.g. o uso de traços gráficos da língua élfica, capuzes dos Anãos e cajado de Gandalf) ou meta e extradiegética (e.g. presença de livros como O Hobbit e O Senhor dos Anéis, cartazes do filme ou mesmo corporificação dos personagens em diferentes materiais e escalas). A subcategoria “ambientação e decoração”, em especial no critério “Referências ao Universo e Narrativa da Terra Média”, por pressupor se tratar de fonte de inspiração para construção do recorte da paisagem do condado, foi pontuada apenas pela metade das hospedagens (MH1, MH2 e MH6). Na segunda subcategoria, denominada “indicações”, somente uma das hospedagens (MH2) pontuou, ao inserir em suas dependências elementos como uma placa de indicação com os principais lugares da Terra Média (Condado, Möria, Valfenda, Rohan, Gondor e Mordor) o que demonstrou uma maior aderência e referencialização imagética ao mundo possível ficcional.
A análise, realizada e amparada por parâmetros e critérios que visam a compreender como se operacionalizou a transposição da linguagem da paisagem do mundo possível ficcional para o mundo concreto dos meios de hospedagem, chegou às conclusões tanto em âmbito transversal (por categorias) quanto comparativo (por meios de hospedagem).
No que diz respeito ao âmbito transversal, as categorias possuíram as seguintes discrepâncias, em ordem decrescente: “cômodos” e “referências simbólicas e espaciais”, ambos possuíram a maior variância (61 pontos, cada categoria), seguida de “fachada” (46 pontos), “paisagismo” (35 pontos) e “posicionamento geográfico” (1 ponto). Já se esperava que “cômodos” fosse um critério difícil e oneroso de ser reproduzido pelos MH, tal qual se apresenta nas narrativas. Por sua vez, vale destacar como os critérios que representam os elementos externos da paisagem da Toca Hobbit (“fachada”, “paisagismo” e determinadas subcategorias de “referência simbólicas e espaciais”) foram mal pontuadas, o que se apresenta como um problema na construção da experiência de imersão, haja vista que é este visual de chegada que proporciona o primeiro momento de contato com a cenarização: os elementos externos constituem uma paisagem cujo olhar do hóspede vai interpretando a cada passo que lhe aproxima desse universo, até que os demais sentidos são acionados na proporção que a distância entre o que chega e tal cenarização é reduzida. Embora importante, essa paisagem externa está precariamente tematizada.
No fim, percebe-se que o termo “Toca Hobbit” remete a um universo já consagrado no imaginário da cultura lítero-cinematográfica. Mas, se o termo “toca” é um signo cujo referencial não varia drasticamente entre aquele do mundo concreto e o do ficcional, o que permite um entendimento quase imediato sem grande necessidade de imersão interpretativa na obra, por sua vez, o termo “hobbit” exige o conhecimento do universo diegético.
Ao optar por privilegiar o termo autoexplicativo de “toca” (tanto que a categoria “posicionamento geográfico” foi a que menos teve discrepância), o esforço de compreensão do que significa “hobbit” foi negligenciado, ainda que todas as indicações necessárias à transposição da paisagem estejam descritas verbalmente ou via audiovisual nos textos literários e cinematográficos. Há uma aparente falta de conhecimento sobre tais residências inspiradoras, e a remissão ao imaginário da “Toca Hobbit” ocorre, por vezes, a partir de um estilo pastiche e kitsch. Assim, há uma sobrevalorização do efeito promocional ao associar um nome conhecido a um meio de hospedagem que, no final, não entrega a experiência que sugere. Vale perceber que os seis meios de hospedagem analisados (quadro 1) utilizam em suas nomenclaturas termos como “casa”, “casinha”, “cabana”. Embora o epíteto “toca” não esteja verbalmente inscrito, é inegável que é a este termo que todos estão remetendo. A indicação latente do imaginário “toca” é comprovada quando se verifica que cinco dos seis MH optaram por incrustar suas unidades habitacionais, algo que não faria sentido se este termo não estivesse espectralmente presente quando da decisão de implementação da estratégia de construção.
Ao possível desconhecimento do universo ficcional é pertinente também sugerir, como uma outra explicação para tal desvio, a falta de investimento em tal empreendimento hoteleiro. Tal escassez de recurso financeiro pode ter sua origem em causas diversas, tanto de âmbito pessoal, quanto estrutural no que tange à falta de incentivo e linhas de créditos acessíveis com juros baixos aos micros e pequenos empreendedores brasileiros.
Já no que tange ao âmbito comparativo entre os seis meios de hospedagem, pode-se constituir a seguinte ordem crescente de aproximação da paisagem concreta com aquela ficcional: MH2 (26 pontos de discrepância), MH1 (33 pontos de discrepância), MH5 (34 pontos de discrepância), MH6 (35 pontos de discrepância), MH3 (36 pontos de discrepância) e MH4 (41 pontos de discrepância). Tais valores foram obtidos a partir da subtração do total máximo possível de ser adquirido por cada meio de hospedagem (52 pontos) e o valor, de fato, conquistado por cada meio de hospedagem foi, respectivamente: MH1 (19 pontos), MH2 (26 pontos), MH3 (16 pontos), MH4 (11 pontos), MH5 (18 pontos) e MH6 (17 pontos). Na Tabela 1 é demonstrado a comparação por categoria/subcategoria para os MH analisados.
De acordo com a Tabela 1, verifica-se que o MH2, apesar de figurar como aquele com maior aderência ao modelo paisagístico ideal, obteve pontuação baixa, sobretudo, nas categorias cômodo e referências simbólicas, indicando limitações na transposição completa da paisagem. Portanto, há ainda inúmeros pontos de melhoria, sobretudo, no que tange às referências simbólicas temporais, para que, em termos paisagísticos e de caracterização cênica, a MH2 possa se aproximar ainda mais do mundo possível da Toca Hobbit. Em outro extremo, o MH4 (Casinhas Vila Bonita Hobbit) apresentou a menor pontuação entre os meios de hospedagens analisados (11 pontos, com uma discrepância de 41 pontos do valor total possível), indicando uma significativa divergência com as referências materiais e simbólicas que caracterizam a Toca Hobbit, conforme sua representação arquetípica.
O artigo buscou perceber como a linguagem paisagística que constitui mundos possíveis ficcionais pode ser transposta de um sistema de linguagem descritivo, próprio do universo literário, para um outro tridimensional que adquira materialidade no mundo concreto, em especial enquanto constituição de experiência de hospedagem em hotelaria temática. Para tal, estudou-se o caso das Tocas Hobbit, oriundas das terras míticas ficcionais do escritor Tolkien, e que se erguem no mundo concreto a partir de seis meios de hospedagem brasileiros. A princípio, duas problemáticas foram abordadas pela equipe de pesquisa, e elas agora podem ser expostas de modo a dialogar com os dados obtidos.
Sendo assim, aventou-se que o ato de incrustar as unidades habitacionais em terrenos inclinados, com o intuito de representar tocas, seria um dos dois principais desafios. No entanto, com a pesquisa realizada, verificou-se que esta estratégia de simulação da toca escavada em colinas foi satisfatoriamente atingida, tendo sido realizada por cinco dos seis meios de hospedagem analisados (vide categoria “posicionamento geográfico”). Outra hipótese suscitada foi em respeito à dificuldade em adaptar o conceito de residência hobbit (com diversos e múltiplos cômodos, utensílios e equipamentos) para um formato compacto característico das unidades habitacionais dos meios de hospedagem. De fato, essa transposição de áreas e cômodos foi comprovada como sendo precária (vide categoria “cômodos” que atingiu o maior grau de variação entre o modelo ficcional e a sua concretização arquitetônica). A partir dos dados obtidos, a pesquisa demonstrou que a transposição da linguagem paisagística da Toca Hobbit esbarra em dois principais problemas.
Por um lado, há de fato uma questão estruturante e limitante relativa às possibilidades dos códigos de linguagem específicos para cada um dos diversos sistemas representacionais. Assim, se um texto escrito ou audiovisual pode, por exemplo, insinuar a existência de diversos cômodos e equipamentos sem, com isso, ter que se comprometer com os recursos espaciais e financeiros que envolvem esta arquitetura ficcional, por sua vez, o texto tridimensional e habitável de um meio de hospedagem, ancorado no mundo concreto, deve lidar com a escassez de recursos físicos, espaciais e econômicos, tornando-se inviável a concretização ipsislitteris e ipsisfacto das descrições encontradas nos códigos das palavras, dos traços e sons. Esse é o problema que se percebe quando se verifica a baixa pontuação da categoria “cômodo”, afinal, a paisagem ficcional é um texto encharcado de possibilidades imagéticas, enquanto o texto da paisagem real tende a ser volumetricamente mais enxuto. Se há uma possibilidade de solucionar tal questão, esta também passa pela compressão das extensões ficcionais para adaptá-las ao mundo concreto, ou seja, pelo uso de metáforas que não replica tal qual os ambientes e equipamentos ficcionais, mas que os condensam em um único cômodo a partir de sua substituição alegórica (e.g. um cômodo totalmente dedicado a uma despensa é metaforicamente presente a partir de um armário com diversos itens alimentares, uma lareira torna-se um aquecedor, um corredor/túnel um hall de entrada, etc.).
Por outro lado, as altas variações obtidas em termos, como “fachada”, “paisagismo” e “referências simbólicas e espaciais” parecem apontar para uma questão de falta de conhecimento de diversos empreendedores destes meios de hospedagem no que tange ao imaginário de Tolkien. Uma leitura mais atenta das obras possibilitaria que boas e pertinentes ideias de transposição fossem alavancadas; e elementos característicos do imaginário das tocas poderiam ser percebidos e implementados, a baixo custo e com impacto positivo no valor agregado (e.g. banco de madeira na entrada, jardim, cerca, caixa de correios, etc.).
A questão das “referências simbólicas e espaciais” merece uma consideração e um apontamento a parte. Ao mesmo tempo em que a presença de elementos que indicam uma ação temporalmente situada na narrativa pode constituir um detalhe que vincula afetivamente o hóspede ao ambiente, ao lhe fazer recordar de uma cena do livro/filme, por outro lado, essas referências temporais sobrepostas, por remeterem à ações ocorridas em momentos distintos da narrativa, causariam um estado de anacronismo referencial, posto que não respeitariam a concatenação lógica das ações e reações que impulsionam a evolução do enredo. Já a disposição de objetos meta e extradiegéticos trazem à decoração das unidades habitacionais os livros e filmes, cartazes e outros elementos que remetem à narrativa ficcional, todavia, ao mesmo tempo, soa como disruptivo, posto que, em termos de verossimilhança, Bilbo não teria em sua casa um cartaz de filme sobre sua história, por exemplo. Sendo assim, essa categoria das “referências simbólicas e espaciais” é desejável, mas também causa ruídos e interrompe a imersão do hóspede no mundo possível ficcional, haja vista que ignora a verossimilhança narrativa.
Feitas tais considerações, reforça-se que a proposta de pesquisa aqui desenvolvida buscou compreender e avaliar como se deu a transposição da paisagem do Condado de Tolkien para o turismo em seis meios de hospedagens brasileiros que se autointitulavam casa/toca/cabanas Hobbits. Ressalta-se, novamente, a atualidade do tema, além da originalidade da pesquisa. Como fundamentação teórica, a discussão priorizou a relação entre paisagem, literatura/cinema, hospedagem, turismo e o processo de transposição da linguagem paisagística do mundo possível ficcional para o mundo concreto, devidamente expresso na caracterização das hospedagens analisadas.
Como indicado, este trabalho é o recorte de uma pesquisa de âmbito internacional que já repertoriou 53 meios de hospedagens dispersos em vários continentes e que, dentro das possibilidades culturais e paisagísticas que os contextualizam, trabalham com essa tematização em suas hospitalidades. A partir daqui, diversos caminhos teóricos e metodológicos se apresentam para pesquisas futuras, por exemplo: i. analisar comparativamente as similaridades e discrepâncias nas transposições das paisagens ficcionais encontradas nesses 53 meios de hospedagem; ii. perceber como a questão cultural e geomorfológica dos diversos países interferem nas interpretações e reconstituições do mundo ficcional no concreto; iii. afinamento do método desenvolvido, com o intuito de ser replicável para o estudo de outros universos ficcionais e suas realizações enquanto atrativos e/ou equipamentos turísticos.