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Recepção/circulação dos testes de inteligência no Brasil: um recorte histórico (1920-1930)
Reception/Circulation of Intelligence Tests in Brazil: A Historical Briefing (1920-1930)
Recepção/circulação dos testes de inteligência no Brasil: um recorte histórico (1920-1930)
Revista de Psicología (Santiago), vol. 27, núm. 1, pp. 1-15, 2018
Universidad de Chile. Facultad de Ciencias Sociales. Departamento de Psicología
Recepção: 28 Agosto 2017
Aprovação: 28 Junho 2018
Resumen: A educação escolar se estabeleceu como uma importante porta de entrada da psicologia científica no Brasil. Marcada pelo intuito de atribuir caráter científico ao processo ensino-aprendizagem, os testes de inteligência ocuparam um lugar central neste processo. Nosso objetivo foi analisar o processo de recepção/circulação dos testes de inteligência no Brasil, a partir da experiência da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais. Desta forma, analisamos as alterações/adaptações a que foram submetidos os testes estrangeiros quando do início de sua utilização nas escolas mineiras, tomando como referência dois testes: o Teste de Dearborn e o Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon. Produzidos, respectivamente, nos Estados Unidos e na França, foram adaptados às necessidades locais de utilização dos instrumentos. Buscamos mostrar como o contexto político-social local influenciou nas alterações de formato e modos de aplicação dos testes. Pudemos concluir que não se tratou, portanto, de um processo de mera tradução e adaptação às crianças da cidade e do estado. Foi possível demonstrar que o trabalho de apropriação dos dois testes analisados influenciou a elaboração de novos instrumentos que atendessem as necessidades locais.
Palavras-chave: testes de inteligência, história da psicologia, psicologia educacional, educação escolar.
Abstract: School education has established itself as an important gateway to scientific psychology in Brazil. Marked by the intention to attribute scientific character to the teaching-learning process, the intelligence tests occupied a central place in this process. Our objective was to analyze the process of reception/circulation of intelligence tests in Brazil, based on the experience of the School of Improvement of Teachers of Belo Horizonte, state of Minas Gerais. In this way, we analyze the changes/adaptations undergone by the foreign tests when they were started being used in Minas Gerais schools, taking as reference two tests: the Dearborn Test and the Test of Vocabulary and Intelligence of Dr. Simon. Produced, respectively, in the United States and France, they were adapted to the local needs of the instruments. We sought to show how the local political-social context influenced the changes in format and modes of application of the tests. We could conclude that it was not a process of mere translation and adaptation to the children of the city and the state. It was possible to demonstrate that the work of appropriation of the two tests influenced the elaboration of new instruments that met the local needs.
Keywords: intelligence tests, history of psychology, educational psychology, schooling.
Introdução
Desde o desenvolvimento do primeiro teste de inteligência, a Échelle Métrique d'Intelligence, publicada em sua primeira versão no ano de 1905, por Alfred Binet e Théodore Simon (Binet & Simon, 1905) na França, o desenvolvimento do campo da avaliação psicológica foi transformado: a antropometria do século XIX ficava para trás e constituíam-se novas formas de avaliação do desenvolvimento intelectual de uma criança, por meio de provas e testes de desempenho (Gould, 2014; Huteau, 2006 , 2007; Martin, 1997a, 1997b; Nicolas, Andrieu, Croizet, Sanitioso, & Burman, 2013;).
Durante o século XX, muitos outros testes, todos em maior ou menor grau devedores do teste Binet-Simon, surgiram e foram aplicados nos mais diferentes contextos. Em especial, o contexto escolar gozou de destaque nas primeiras décadas, quando serviu de campo de aplicação dos instrumentos ora criados, a partir de uma lógica comum: dotar a educação escolar de bases científicas. Especificamente no Brasil, a educação escolar foi um espaço de destaque à utilização dos testes, sobretudo os de inteligência (Antunes, 2001, 2003).
O sentido de modernidade guiou inúmeras reformas do sistema educacional brasileiro nas primeiras décadas do século XX. A nascente república, em fins do século XIX –marcadamente nacionalista e organizada por republicanos que vislumbravam no horizonte uma sociedade moderna, à luz do positivismo comteano–, buscou na renovação da formação das novas gerações como passo fundamental (Gil, Zica, & Faria Filho, 2012; Herschmann & Pereira, 1994).
Os testes, por sua vez, tomados como instrumentos que viabilizavam a aplicação prática dos conhecimentos produzidos pela ciência psicológica, passam a ser utilizados para que melhor fossem conhecidas as crianças e, a partir disso, pudesse-se criar salas de aula homogêneas, com crianças com características semelhantes, sobretudo seu nível de desenvolvimento intelectual (Campos, 1992, 2001, 2003, 2010a).
Assim, desenvolvemos uma pesquisa historiográfica que buscou lançar luz aos primórdios da utilização dos testes de inteligência na escola brasileira, a partir do estudo de sua utilização na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte 1, que funcionou entre os anos de 1929 e 1946. O estado de Minas Gerais foi um dos pioneiros no tocante às reformas educacionais que acabaram por abrir espaço à entrada da psicologia científica no campo da educação. Assim, miramos o contexto histórico que condicionou a emergência da psicologia como aparato científico da escola e dos instrumentos produzidos em seu bojo, especificamente nos testes de inteligência.
Referencial teórico-metodológico
Mas quais eram os testes de inteligência que serviam a tal propósito no Brasil? Ou melhor, como aqui chegaram os testes, e por onde passaram antes disso? Quais características adquiriram e/ou perderam nesse processo? A fim de esclarecer estes pontos, tomamos o conceito de recepção/circulação como referência teórico-metodológica (Dagfal, 2004; Danziger, 1985, 2003, 2006; Grynspan, 2012).
Uma das principais características do processo de recepção/circulação dos testes psicológicos no mundo foram os inúmeros procedimentos de tradução e adaptação à realidade de cada país e localidade pelos quais foram estes sendo utilizados. Cabe esclarecer, entretanto, que tomamos a noção de recepção/circulação como aquela que se refere à migração de uma Psicologia de um local para outro em um determinado período. Ao ser recepcionada essa Psicologia é, necessariamente, reconfigurada face às condições locais de produção e às demandas locais de utilização e aplicação daquele conjunto de conhecimentos e/ou práticas. Assim, o conhecimento produzido sobre uma Psicologia pode circular de maneira hibridizada, por meio das habilidades e compreensões daqueles que o recepcionaram (Castelo Branco, Rota Júnior, Miranda, & Cirino, 2016).
Propôs-se, então, uma pesquisa historiográfica que lançasse luz à recepção/circulação dos testes de inteligência no campo educacional do início do século XX, sobretudo nas décadas de 1920 e 1930, buscando descrever e analisar as relações entre o lugar social e as práticas científicas postas naquele período. Partindo deste ponto, nosso trabalho privilegiou fontes primárias, como textos, livros, documentos e material de aplicação de testes de inteligência publicados e utilizados nas primeiras décadas do século XX. Tomamos as fontes como pistas do processo de recepção/circulação dos testes, buscando informações que esclarecessem os locais ontem passaram entre sua publicação original e a(s) versão(ões) utilizadas no Brasil, especificamente na/pela Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte (Rota Júnior, 2016).
A recepção de saberes e instrumentos psicológicos nos permite estudar a história de um campo científico específico ao permitir a compreensão das formas como, no caso, os testes de inteligência se legitimaram nos países em que foram sendo utilizados, apontando as condições que possibilitaram sua recepção/circulação em cada país, bem como as características locais que lhe foram agregadas (Cirino, Miranda, & Cruz, 2012).
Digressão seja feita, buscou-se ir além da concepção tradicional das psicologias estadunidense e europeia como produtoras de conhecimentos originais e as outras localidades como consumidoras e reprodutoras. Trata-se, pois, de reconhecer e investigar uma relação do conhecimento psicológico global com o local, ressaltando que global não significa universal ou hegemônico, mas múltiplo e heterogêneo. Cada local constitui um eixo de conhecimento de uma dada psicologia que, após a sua produção, desencadeia um processo de recepção/circulação, compreendido por nós como uma via de mão dupla: tanto a Psicologia sofre mudanças em função do contexto local quanto provoca mudanças nesse contexto. Logo, a reflexão sobre a recepção/circulação aponta para uma história das psicologias em suas diversas localidades. Tais diversidades ampliam o foco para o que acontece fora dos centros de fundação de uma psicologia, dado que a produção do conhecimento no campo da psicologia não é mera continuação daquilo feito nestes polos (Castelo Branco et al., 2016).
Em uma história da psicologia feita a partir da periferia, onde aparentemente não há mais que cópia ou, em todo caso, uma colagem eclética de ideias já concebidas, o interesse reside justamente em mostrar como, por trás dessas supostas cópias ou por trás destas justaposições carentes de valor se esconde todo um horizonte de expectativas radicalmente distintas da obra de origem, ligadas a um problema sócio-histórico complexo e singular. E é precisamente este horizonte de expectativas que é importante reconstruir, essas problemáticas a que respondem os objetos teóricos que é necessário detalhar para restaurar ao processo de recepção seu caráter ativo (Dagfal, 2004, p. 16, tradução nossa).
O autor, ao referir-se à história feita a partir da periferia, longe de uma visão etnocêntrica de ciência, em que se oporiam centros produtores de conhecimento científico a centros ou países consumidores deste conhecimento, o argumento de Dagfal (2004) é justamente o da necessidade de relativizar essa suposta polaridade, por entender que não se trata de um processo de mão única, mas de idas e vindas. Assim, tratamos a recepção/circulação de conhecimentos científicos, bem como do instrumental produzido, como um processo ativo que, ao mesmo tempo em que dada produção científica é reconfigurada face às necessidades locais, exerce influência, por sua vez, em outros lugares por onde venha a circular. Nesta mesma trilha, Gavroglu et al.(2008, p. 154) também relativizam a relação centro-periferia, afirmando que “as conotações determinísticas e estáticas da ideia de ‘centro e periferia’ tem que ser questionadas, assim como outras ideias associadas ao trânsito do conhecimento científico de uma região para outra”.
Segundo Grynspan (2012), o processo de recepção/circulação, envolvido, por exemplo, na tradução de uma obra literária, pode “produzir efeitos sobre as obras e as leituras no próprio país de origem, acrescendo a sua importância, gerando debates, tomadas de posição, impondo redefinições em edições futuras” (p. 12). Assim, afirma que a circulação internacional não pode ser tomada como via de mão única que simplesmente parte de um ponto original e segue adiante em linha reta.
Nosso objetivo foi descrever algumas das transformações sofridas pelos instrumentos de avaliação de inteligência, como exemplos de um processo de recepção/circulação, partindo de suas características originais às formas práticas como foram utilizados em Belo Horizonte. Em outras palavras, buscamos compreender as relações entre o global e o local, em como as particularidades dos instrumentos originais foram recepcionadas e em que direção se deram as alterações/transformações em virtude das necessidades locais.
Método
Arquivos e fontes
No que se refere à coleta de dados, foram privilegiados os dados primários, tendo sido tomados como fontes livros, artigos e cartas escritos/publicados nas primeiras décadas do século XX. Cabe assinalar que não apenas os que correspondiam ao recorte temporal da pesquisa, por entendermos que para a compreensão da circulação de qualquer instrumento ou conhecimento científico é necessário investigar tanto suas origens como a continuidade de seu uso ao longo do tempo, em um continuum que permite, de fato, refletir sobre as alterações, mudanças e adaptações pelas quais passou. Os documentos coletados foram fotografados, lidos e analisados a partir do referencial teórico descrito, focando nosso olhar nos elementos que nos dessem pistas das mudanças pelas quais os testes foram passando ao longo do tempo e dos lugares onde foram sendo utilizados.
Dessa forma, utilizamos documentos das décadas de 1900 à de 1950, buscando dados que viessem a esclarecer, por vezes, detalhes do processo de recepção/circulação dos testes em questão. Tomamos aqui como exemplo deste processo dois dos testes utilizados na Escola de Aperfeiçoamento: o Teste de Dearborn e o Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon. Tal escolha foi feita por entendermos, dentre os muitos testes utilizados naquele período em Belo Horizonte, guardarem estes dois exemplos de características muito marcadas do referido processo e dispormos de material de pesquisa suficiente para esse fim.
Resultados
O teste de Dearborn: do inglês ao francês, e então ao português
No teste de Dearborn, um dos primeiros testes traduzidos no Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento, encontramos fontes que nos possibilitaram traçar não apenas o percurso do teste, desde sua publicação original até a versão utilizada em Belo Horizonte, mas também algumas minúcias do processo, como de tradução e adaptação à realidade mineira do período. Neste processo, a figura de Helena Antipoff é fundamental. Psicóloga e educadora russa, aluna de Edouard Claparède no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, chega a Belo Horizonte em 6 de agosto de 1929, a convite do governo do estado de Minas Gerais para assumir funções de professora na recém-criada Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Minas Gerais. Dentre as inúmeras atividades que assume, uma a que damos destaque é a tradução e padronização de alguns testes de inteligência que passaram, então, a ser utilizados na Escola de Aperfeiçoamento (Campos, 2003).
Os testes de inteligência eram aplicados na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, vinculados ao Laboratório de Psicologia Experimental que funcionou de 1929 a 1946. Nossos dados de pesquisa indicam que estes testes eram aplicados com vistas à homogeneização das salas de aula, tomando como parâmetro a idade mental das crianças avaliadas (Fazzi, Oliveira, & Cirino, 2011). Segundo estes autores, a partir do decreto nº 9.653, de agosto de 1930, o laboratório voltava-se à aplicação de testes nas crianças da rede escolar mineira de forma importante, em detrimento dos “instrumentos de latão 2” (p. 62), importados pelo governo mineiro.
Walter Fenno Dearborn (1878-1955), autor do teste em questão, nasceu nos Estados Unidos, estado de Massachusetts. Obteve o título de PhD em Psicologia Educacional na Universidade de Columbia no ano de 1905, tendo estudado, um ano antes, na Alemanha, na Universidade de Göttingen. E foi na Universidade de Columbia que foi aluno, durante o doutorado, de James McKeen Cattel, outro pesquisador de renome na psicologia daquela virada de século. Este último obteve, por sua vez, seu doutoramento com Wilhem Wundt, em Leipzig. Dearborn foi conselheiro da Associação Americana de Psicologia (APA) de 1918 a 1920, tendo atuado, durante mais de 30 anos, na Universidade de Harvard (Langfeld, 1955).
E foi ali, em 1920, que ele publicou seu teste, originalmente chamado The Dearborn Group Tests of Intelligence, trabalho pelo qual ficou mais conhecido. O teste era composto de duas séries: Série I, para estudantes de primeiro a terceiro anos e Série II, para estudantes do quarto ao décimo segundo ano. A Série I, por sua vez, era composta por duas partes, A e B, que deveriam ser aplicadas, nesta ordem, e possuíam um caráter complementar, sendo o resultado final a somatória dos resultados obtidos em ambos (Dearborn, 1920).
O texto de Antipoff em que pela primeira vez se menciona a utilização dos testes de inteligência na rede de ensino de Belo Horizonte data de 1931, publicado originalmente no Boletim nº 7 da Secretaria da Educação e Saúde Pública de Minas Gerais (Antipoff, 2002b). Neste texto, Antipoff afirma o teste de Dearborn como o segundo a ter sido adaptado pelo Laboratório de Psicologia à realidade das crianças da cidade. Neste primeiro momento, o mesmo “foi aplicado pelas professoras-alunas da Escola de Aperfeiçoamento. Desde o mês de novembro de 1929 até o mês de abril de 1930, em 2.464 crianças de Belo Horizonte, na idade de 6 a 16 anos” (p. 97).
A autora descreve o teste como sendo de aplicação coletiva, com média de aplicação de 30 a 35 crianças por sala. O teste era aplicado sempre por duplas de professoras-alunas da Escola de Aperfeiçoamento, a fim de garantir que as condições de aplicação fossem precisas e que as instruções dadas às crianças fossem rigorosamente seguidas, ao custo de serem excluídas da amostra em caso de quaisquer problemas ou intercorrências. As aplicadoras dispunham de cópia impressa das instruções do teste, na tentativa de garantir a fidedignidade dos dados coletados (Antipoff, 2002b).
O teste é constituído por 17 exercícios, aos quais o autor dá o nome de jogos e problemas desenhados (Games and Picture Puzzles). Ele se faz nas condições de um teste coletivo. Cada criança recebe uma folha policopiada, na qual está impressa uma série de desenhos. Todas as instruções são dadas de viva voz pelo experimentador, que deve apresentar o trabalho às crianças sob uma forma interessante e viva, seguindo, todavia, estritamente a técnica indicada pelo autor. A duração da experiência não é limitada a um tempo fixo, mas, para passar de um teste da série ao seguinte, o experimentador deve guiar-se pelo trabalho executado por 3/4 das crianças da classe. Esse tempo varia, portanto, nas classes superiores ou inferiores, em que a rapidez do trabalho é consideravelmente maior ou menor. Para execução desse teste a criança pode ser analfabeta; ela deverá saber unicamente empunhar o lápis para desenhar formas simples (p. 95).
Na figura 1 parte da folha de aplicação do teste de Dearborn, em português, encontrada nos arquivos da Sala Helena Antipoff. A versão em português, sem data, acompanhada das instruções de aplicação e correção também em português, datilografadas. A folha de aplicação corresponde à parte B da Série I, muito similar ao original. Dessa maneira, vemos que o que era tomado como o teste completo era apenas uma parte de sua versão original.
Poucas diferenças foram percebidas entre a publicação original e esta encontrada no arquivo em Belo Horizonte. É notável que, apesar de serem os mesmos subtestes, as figuras são ligeiramente diferentes, o que também é indicativo de alterações que vieram ocorrendo durante o processo de circulação do instrumento. É possível notar, por exemplo, a diferença nos subtestes 13 e 14, onde vê-se as moedas e selos, sendo tipicamente símbolos estadunidenses na edição original e símbolos brasileiros na publicação aplicada na Escola de Aperfeiçoamento, como pode ser visto na figura 2.
Note-se que as moedas de 10 e 20 centavos apresentam data de 1945, na edição brasileira. Não nos foi possível averiguar com precisão a data da folha de aplicação encontrada nos arquivos, mas este dado nos indica, ainda que de forma aproximada, esta data. Para além disso, é possível também encontrar diferenças nas instruções originais e na edição adaptada pelo Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento. Existem trechos das instruções do teste original que não estão presentes nas instruções da edição mineira, e vice-versa. Outros são traduções literais.
Porém, outro documento, datado de 1932, intitulado “Direções para corrigir o test Dearborn”, pertencente aos documentos de Antipoff, que descreve as instruções de correção do teste de Dearborn levanta importante ponto no tocante ao processo de recepção/circulação. O documento, de duas páginas, traz uma nota, ao final da segunda página, sobre problemas de tradução do mesmo, em se tratando das instruções, transcrito abaixo:
Visto o resultado pouco satisfatório da aplicação do test de Dearborn, feito em 1929, nos grupos da Capital e de novo feita no corrente ano [1932], foi verificado que a técnica (traduzida do francês) não havia sido adaptada ao nosso meio, tornando-se, por isso, de difícil interpretação para as nossas crianças (Direções para corrigir..., 1932, s/p, grifo nosso).
No trecho a que damos destaque fica claro que a tradução do teste foi feita a partir não do original em inglês, mas de uma versão em francês. Não encontramos esta versão em francês, mas apenas alguns indícios de seu uso. Este ponto lança luz à questão da relação centro-periferia (Dagfal, 2004; Danziger, 2006; Gavroglu, et al., 2008), uma vez que nos parece ter havido uma inversão dessa relação no processo de desenvolvimento do teste e da teoria psicológica que lhes dava sustentação. Em outras palavras, se a Europa e os EUA estavam disputando a liderança da psicologia científica no início do século XX, em um cenário onde os EUA eram a periferia, neste assunto, e a Europa era o centro, poderíamos argumentar que a tradução e a circulação de testes dos EUA na Europa é uma evidência de um processo de legitimação destes?
Na psicologia, o fluxo de estudantes norte-americanos começou quase logo Wilhelm Wundt tinha estabelecido o primeiro laboratório de psicologia experimental, na Universidade de Leipzig, em 1879. Entre os alunos de Wundt, que, posteriormente, tiveram um papel fundamental no estabelecimento da psicologia experimental nos Estados Unidos foram James McKeen Cattell, Edward Tichener ..., que fizeram o doutorado lá, e outros que foram para a Alemanha só para estudar com Wundt, como Stanley Hall, James Mark Baldwin e William James. ... Após retornarem para os Estados Unidos, fundaram laboratórios modelados após Wundt ... O número de laboratórios psicológicos nos Estados Unidos expandiu-se muito rapidamente, e muitos dos alunos de Wundt rapidamente começaram a treinar a próxima geração de experimentalistas que dominou o campo no início do século XX (Danziger, 2006, p. 216-217).
Assim, nossa tese, baseada no argumento de Danziger (2006), é que nas décadas de 1920 e 1930 os Estados Unidos estavam deixando a posição de periferia e tornando-se um dos centros de produção de medidas de inteligência e uma referência na área de mensuração psicológica para outros países periféricos, como o Brasil. Nessa direção, é possível pensar em como a alteração óbvia no formato de aplicação do teste Binet-Simon que, como visto, defendia a aplicação individual da escala, para um formato de aplicação coletiva, nos Estados Unidos, a partir da revisão feita por Terman, pode ser tomado como elemento de recepção/circulação, haja vista ter havido não apenas a tradução do teste, mas uma alteração decisiva para os rumos dos usos que ganhariam os testes de inteligência naquele país, a ponto de haver uma inversão, e os vermos retraduzidos para o francês, inclusive, entre outros idiomas.
Como sustentação desse argumento, no que tange ao Brasil, encontramos outros textos publicados na década de 1930, em Belo Horizonte, produto do uso dos testes nas escolas mineiras, que indicam a utilização do mesmo teste de Dearborn aplicado na Suíça. Em um deles, de dezembro de 1929, apenas três meses após a chegada Antipoff à cidade, e intitulado “A instalação do Museu da Criança como recurso pedagógico”, a autora descreve as primeiras pesquisas realizadas pelo Laboratório de Psicologia, e nos dá esse indício:
Estalonagem 3 de um teste coletivo, de inteligência global para as idades inferiores. Trata-se de uma adaptação de um teste americano de Dearborn, que já aplicamos em Genebra e que nos tem dado resultados eficazes para o diagnóstico das crianças fracas e fortes. 1.400 meninos e meninas foram examinados. A técnica do teste e as normas para apreciação poderão ser dadas, em breve, às pessoas interessadas” (grifo nosso) (Antipoff, 1929/1992, p. 13).
A formação de Antipoff em Genebra nos parece fator importante de sua escolha pelo teste de Dearborn. Em outro texto, escrito ainda naquela cidade, fala sobre seu contato com o teste:
Trata-se de uma adaptação americana da escala métrica de Binet-Simon feita por Dearborn. O autor acrescentou ao mesmo algumas provas originais. O teste dura cerca de meia hora. Para estimular a atividade das crianças e a sua boa vontade, o autor apresenta o teste de uma forma viva, mantendo atentos os menininhos durante todo o tempo do exame. O mérito desse método, consiste precisamente no fato de o autor ter encontrado uma forma de aplicação que se assemelha a um jogo (Antipoff, 1928/1992, p. 45).
Assim, nota-se o uso do teste de Dearborn, traduzido a partir de uma versão em francês, utilizada na Suíça, quando da atuação de Antipoff no Instituto Jean-Jacques Rousseau. Para Huteau (2007), Martin (1997a) e Schneider (1992), a utilização de testes estadunidenses em território francês se deu algumas décadas depois, nas décadas de 1950 e 1960, indicando que foram estes, essencialmente coletivos, característica adquirida por sua passagem pelos Estados Unidos; logo utilizados em outros países de língua francesa, como Suíça e Bélgica, mas não na França.
Este ponto é essencial na compreensão do processo de recepção/circulação dos testes de inteligência na relação Europa-Estados Unidos que ora analisamos. Corroborando com Huteau (2006, 2007), Martin (1997a, 1997b), Schneider (1992), ao referirem-se à pouca consideração dada, na comunidade científica francesa, aos testes coletivos de inteligência, as versões, em língua francesa, de testes estadunidenses, nos parecem ter se originado em outros países de língua francesa, como Bélgica e Suíça, e seu uso, no Brasil, feito a partir destas versões.
A fim de fazermo-nos mais claros, tomamos como exemplo outra referência de língua francesa, um livro de Decroly, autor belga, publicado em 1928. Nesta obra, o autor toma como referência a experiência estadunidense de utilização dos testes de inteligência, aparentemente influenciado por uma visita de quatro meses aos Estados Unidos que realizara em 1922, quando visitou algumas universidades naquele país. Na obra, escrita com seu colaborador Buyse, o autor faz uma detalhada descrição de inúmeros testes, de diferentes países, uma espécie de estado da arte das avaliações de inteligência naquele período (Decroly & Buyse, 1928). Na obra, os autores defendem de forma clara o formato estadunidense de avaliação da inteligência, tecendo críticas à escala Binet-Simon em vários pontos do texto. Tais críticas em muito se aproximam das críticas feitas pelos autores das primeiras adaptações da escala Binet-Simon nos Estados Unidos, como a defesa da aplicação coletiva em detrimento da individual e a falta de critérios estatísticos na contabilização das respostas dadas pelas crianças aos testes (Decroly & Buyse, 1928). Cabe acrescer que o teste de Dearborn é descrito na obra como um importante instrumento de aplicação coletiva para avaliação da inteligência.
Não encontramos, durante nossa investigação, qualquer menção ao teste de Dearborn em autores franceses. Tal fato nos leva a apontar que o processo de recepção/circulação dos testes naquele momento histórico se deu da seguinte forma: originalmente desenvolvido na França, o teste Binet-Simon assume um caráter coletivo a partir de sua utilização nos Estados Unidos, dando margem à construção de inúmeros testes que, embora o tomassem como referência, alteraram-no significativamente. Estes, por sua vez, não bem aceitos de volta à França, o acabaram sendo em outros países francófonos, como Bélgica e Suíça, onde foram adaptados às necessidades de cada localidade. Quando do início de sua utilização no Brasil, especificamente em Belo Horizonte, passaram por novas transformações, cujos objetivos seriam, no fim, os mesmos: propiciar uma adequação dos instrumentos às necessidades locais, partindo de suas características globais de circulação.
Fazendo referência ao que estamos aqui nomeando de necessidades locais, faz-se necessário pontuar os objetivos para os quais o Laboratório de Psicologia e a própria Escola de Aperfeiçoamento haviam sido constituídos: “preparar e aperfeiçoar do ponto de vista technico e scientífico, os candidatos ao magistério normal, a assistência téchnica do ensino ás diretorias dos grupos escolares do Estado” (Minas Gerais, 1929, s/p). No ano seguinte, por meio do decreto 9.653, em trecho que versa sobre a orientação pedagógica da Escola de Aperfeiçoamento, no artigo 5º, lê-se que “os programas devem ser formulados no sentido de excluir theses de ordem puramente scientífica e remotamente uteis á téchnica de ensino”, isso “porque a Escola tem por fim transmitir e não elaborar sciencia”. (Minas Gerais, 1930, s/p).
Tal restrição, realizada de um ano a outro pelo Estado deixa clara a proposta. E esta parece ter se dado por influência da divulgação de resultados de algumas pesquisas realizadas já em 1929. Segundo Campos (2010b), devido a uma pesquisa levada a cabo por Antipoff pouco tempo após sua chegada à Belo Horizonte, em que buscou investigar as ideias e interesses das crianças da cidade (Antipoff, 2002a), com vistas a melhor conhecer a “psicologia dos pequenos brasileiros, e apanhar a sua fisionomia psíquica geral” (p. 133) e os atritos que este causou com a igreja católica, o novo regulamento da Escola de Aperfeiçoamento estabeleceu limitações às pesquisas ali realizadas, passando o Laboratório de Psicologia a colaborar de maneira mais intensa com os grupos escolares, de forma aplicada. Em outras palavras, os testes parecem ter sido mais instrumentos pedagógicos do que de produção de conhecimento científico.
Para além da utilização prevista para a Escola de Aperfeiçoamento, há também relatos de utilização do teste Dearborn, em Belo Horizonte, em formato de aplicação individual. Borges (2014) indica a utilização do teste no Consultório Médico- Pedagógico, individualmente, para avaliação de crianças encaminhadas para o ensino especial. Assim, a circulação do instrumento acabou, também ocasionando sua utilização de maneira diferente da versão original, havendo uma passagem da aplicação coletiva à individual. Com o Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon, cujo processo de recepção/circulação descrevemos a seguir, foi possível notar as sucessivas mudanças que lhe foram sendo inferidas ao longo do tempo, até o desenvolvimento do Teste do Limiar 4.


Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon: medida da inteligência dos alunos novatos
Outro teste que tomamos como exemplo das particularidades do processo de recepção/circulação dos instrumentos de medida de inteligência, nas primeiras décadas do século XX e a partir da experiência da Escola de Aperfeiçoamento, é o Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon. O autor do teste, Théodore Simon, o levou à Belo Horizonte, quando de sua ida àquela cidade no ano de 1929. Originalmente publicado em 1926, mais de 20 anos depois da primeira publicação da Échelle Métrique d'Intelligence (Escala Métrica de Inteligência), historicamente conhecido como teste Binet-Simon, manteve parte das características iniciais da avaliação de inteligência proposta pelo autor.
Théodore Simon (1872-1961), nascido em Dijon, França, médico psiquiatra, trabalhou com Alfred Binet na construção da Échelle Métrique d'Intelligence, publicada pela primeira vez em 1905, com outras duas versões, em 1908 e 1911. O instrumento, historicamente conhecido como teste Binet-Simon, é marco de importantes transformações no campo educacional e da ciência psicológica em todo o mundo.
Simon permaneceu em Belo Horizonte por dois meses, a convite do governo do estado de Minas Gerais, a fim de que contribuísse com a iniciação das professoras-alunas da nascente Escola de Aperfeiçoamento aos métodos científicos ou, nas palavras do próprio autor, “foi-me expressado o desejo de que os professores deste país fossem iniciados aos métodos que, desde a morte de Binet, me esforço para continuar, e que são franceses, embora seja bastante comum pensar-se que são americanos” (Simon, 1929, p. 10, tradução nossa).
Quando da chegada de Simon à cidade, o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento ainda não estava em funcionamento. Simon chega com o objetivo de proferir palestras e trabalhar, em conjunto com as professoras, na tradução e adaptação de testes de inteligência e testes pedagógicos. Entre estes, o teste que ficou em Belo Horizonte conhecido como Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon (Paladini, 1931).
O teste em sua versão original, em francês, foi publicado no Bulletin de la Societé Alfred Binet, número 202-203, em 1926, com o nome de Petite Échelle de Vocabulaire et d'Intelligence 5 (Pequena Escala de Vocabulário e Inteligência). Simon (1949) afirma ter-se baseado em trabalho de Descoeudres e aponta que as questões do teste estavam de maneira muito próxima, no livro Le développment de l'enfant de deux à sept ans, da autora suíça. Também era a opinião de Paladini (1931), professora da Escola de Aperfeiçoamento.
A fórma empregada entre nós compunha-se de 25 questões e foi introduzida pelo próprio Dr. Simon, quando esteve no Brasil, durante 3 mêses, como professor de psicologia da Escola de Aperfeiçoamento. Adaptou e aplicou o seu test às nossas crianças, auxiliado por D. Maria Luiza de Almeida Cunha e D. Zelia Corrêa Rabêlo e, com os resultados obtidos, construiu o padrão brasileiro (Paladini, 1931, p. 54).
Quando comparamos o teste original em francês (Simon, 1949) com o apresentado por Paladini (1931), notamos que não há nenhuma alteração nas questões apresentadas às crianças. A tabela 1 apresenta as duas versões, a fim de que a comparação possa ser feita de maneira clara.
Assim, trata-se de uma tradução literal do teste original, com pequenas adaptações, como nos itens 8, 9 e 10, onde há uma alteração na ordem das palavras, no item 20, a troca da palavra boutellie por tinteiro e no último item, 25, a troca de mercière por floreiro. Estas pequenas alterações nos parecem tentativas de adaptação à realidade local, a termos mais típicos e comuns dessa realidade.
O teste passou, ao longo dos anos seguintes, por outras alterações que foram modificando vários dos aspectos originais. Um documento foi-nos essencial à compreensão destas alterações. Trata-se de um Relatório de Atividades da Escola de Aperfeiçoamento 6, datado de 31 de março de 1943, em que são descritas as atividades desenvolvidas até então, entre lista de testes e aparelhos de que dispunha o Laboratório de Psicologia, uma relação de textos publicados por professores e alunos, dentre outras informações.
Nele, o Teste de Vocabulário e Inteligência do Dr. Simon é descrito como tendo sido introduzido em Belo Horizonte pelo próprio Simon, como dito. Na sequência, afirma a introdução “de 5 novas questões e remodelado em 1931, foi este teste padronizado, sobre os resultados de 1.968 crianças novatas do 1º ano” (Relatório de Atividades..., 1943, p. 8). Esta nova versão do teste, utilizada naquele ano, é à que faz referência o Boletim nº 8 da Secretaria de Educação e Saúde Pública, publicado em 1932, de autoria de Antipoff (1932). Na sequência, encontramos no documento a seguinte descrição, deveras importante à compreensão do processo que ora descrevemos:
Em 1932, o teste sofreu modificações mais profundas e sob o nome de “Test Prime” foi aplicado a maior nº de crianças. Em colaboração com a professora D. Maria Luiza de Almeida Cunha - este teste minuciosamente estudado, foi publicado em Boletim nº 10 da Secretaria da Educação, sob forma de uma monografia: “Test Prime”. Em 1932 foi elaborado mais um teste, em substituição ao “Test Prime” afim de se evitarem os erros de diagnóstico, provenientes do conhecimento anterior do teste. Este, sob o nome de “Limiar”, foi aplicado durante 3 anos (p. 9).
Dessa forma, é possível notar como novos testes vieram sendo produzidos a partir de outros instrumentos. A figura 3 resume o processo de alterações/transformações que acabamos de descrever. Em outra publicação do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte (1937), fica também evidente que da primeira versão, introduzida por Simon ao Teste do Limiar, vieram ocorrendo alterações e adaptações com dois objetivos: evitar que o treino prévio das crianças nos testes comprometesse os resultados e, o aprimoramento do próprio instrumento e da própria avaliação. Trata-se, então, do mesmo conjunto de perguntas e atividades propostas, cujas novas versões vieram recebendo novos nomes.
O pequeno teste com que o prof. Simon iniciou, em 1929, o exame psicológico dos alunos novatos, tem se desenvolvido e aperfeiçoado e, em suas consecutivas modificações, aparece sob a forma de teste “Prime”, em 1932; do teste “Limiar”, em 1934; guardando, porém, em todas elas o caráter primitivo de uma série de perguntas e de “performances” (Laboratório de Psicologia..., 1937, p. 584).
Porém, quando comparamos o teste original de 1926, com sua última versão, o teste do Limiar, aplicado no início do ano escolar de 1933, percebemos mudanças significativas. Passemos, agora, a essa comparação, a fim de nos atermos a alguns detalhes do processo de recepção/circulação do instrumento.
Na folha de aplicação do Teste do Limiar, de 1934, como vê-se na figura 4, constam espaços para identificação da criança, como nome, data de nascimento, profissão dos pais e grupo escolar onde estudava. Além disso, há também espaços para registro de informações sobre a aplicação do teste, como nome do experimentador, pontos obtidos, horário de início e término da aplicação e para o registro do Coeficiente Mental (CM), e não do Quociente Intelectual (QI), como já era habitual dos testes de inteligência no período. A noção de CM é descrita por Antipoff e Cunha (1932), no Boletim 10 da Secretaria de Educação e Saúde Pública do estado, em que são descritos o teste prime e os resultados obtidos com este nos grupos escolares.
Acerca disso, a explicação das autoras sobre a necessidade da utilização do que nomeiam como CM se sustenta em dois pontos. Primeiro, poucas crianças matriculadas nos grupos escolares da cidade apresentavam certidão de nascimento, o que não permitia o cálculo do QI com segurança, já que este é o produto da divisão da idade mental, avaliada com os testes e, a idade real, em anos. Segundo, do ponto de vista estatístico, as amostras eram muito pequenas e não representavam o universo da população de crianças, o que dificultava a criação de uma "escala percentilada" para a comparação de cada resultado com a média da população (Antipoff & Cunha, 1932, p. 53), fatos estes que evidenciam, de forma clara, como questões sociais concretas, como a precariedade dos registros de nascimento e a insuficiência das amostras estatísticas, precisaram ser contornadas para a efetiva utilização do instrumento em questão: mais uma vez questões locais influenciando o processo de recepção/circulação ora analisado. Além disso, veem outro problema na forma então habitual de fazer o cálculo, e para explicarem dão o seguinte exemplo:
O outro inconveniente da simples escala percentilada é a seguinte, sobretudo quando os resultados de uma idade para outra progridem bastante: e de cometer injustiça de julgar crianças que não diferem das outras sinão de um ou dois mêses de idade real, pelas duas escalas diferentes. Suponhamos tratar-se de duas crianças com o mesmo número de pontos, mas uma com idade 7,10 e outra com 8 anos - O resultado de uma vai ser apreciado pela escala de 7 anos e o da outra pela mais elevada, apesar de ter só dois mêses de diferença de idade real. O percentil da segunda vai desse modo ser relativamente muito mais baixo que da primeira (Antipoff & Cunha, 1932, p. 53).
São duas as principais alterações do teste original ao Teste do Limiar, a que damos destaque. A primeira é a inclusão de questões que tornaram o teste mais amplo em sua avaliação da inteligência, e a segunda é a apresentação de questões que se aproximam mais da realidade do trabalho pedagógico escolar, em comparação com o teste original.
Na Petite Échelle, há uma ênfase, como seu nome sugere, no vocabulário adquirido pela criança: reconhecimento de palavras que designem ações (itens 01 a 05), identificação de cores (itens 06 e 07), de objetos pelo nome (itens 08, 09, 10), antônimos (itens 13 a 19), materiais de que são feitos alguns objetos (itens 20 a 22) e objetos que podem ser comprados em determinados locais (itens 23 a 25). Como se nota, todas as repostas, corretas ou não, seriam apenas poucas palavras ou pequenas ações, como nos primeiros itens, o que o tornava um teste de aplicação rápida. O próprio autor afirma que o intuito ao tomar-se o vocabulário como referência, é o pressuposto de que há uma progressão na aquisição do vocabulário pela criança, e sua complexidade acompanha cada período do desenvolvimento desta (Simon, 1949). A nosso ver, uma lógica parecida com a do teste Binet-Simon, que partia do pressuposto, por sua vez, da proposição à criança de questões que, em sua crescente dificuldade, acompanhariam os diferentes períodos da aquisição de novas habilidades.
Já no Teste do Limiar, há um aumento significativo na complexidade das questões propostas. Além da manutenção de questões que exigiam o mesmo tipo de raciocínio da Petite Échelle, há um incremento de questões que avaliavam habilidades matemáticas (itens 18 a 27), incluindo as operações fundamentais, julgamento moral (itens 15 e 17), e a inclusão de material de aplicação (caixas e palitos de fósforo). Assim, apesar de haver partido de um teste estrangeiro, em um espaço de poucos anos o trabalho na Escola de Aperfeiçoamento viabilizou a produção de novos instrumentos de medida psicológica.



Considerações finais
Assim, é possível afirmar que a experiência da Escola de Aperfeiçoamento permitiu o desenvolvimento de testes tanto de inteligência quanto pedagógicos. Partindo de testes estrangeiros, como os dois que tomamos como exemplos, fica clara a sua participação no estabelecimento e desenvolvimento da ciência psicológica, em Minas Gerais, contribuindo para a sua circulação no Brasil.
Não se tratou, portanto, de um processo de mera tradução e adaptação às crianças da cidade e do estado. Este trabalho inicial foi apenas um primeiro movimento de apropriação dos testes, e a própria experiência adquirida influenciou a elaboração de instrumentos que atendessem as necessidades locais. Nestes dois casos que descrevemos, o processo de recepção/circulação fica evidenciado, pois é clara a relação entre o global e o local. No que tange ao trabalho de Antipoff, por exemplo, evidencia-se uma preocupação sua em considerar as diferenças concretas de vida e de escolarização das crianças mineiras quando comparadas às crianças genebrinas. A autora, ao descrever em vários textos (Antipoff, 1928/1992, 1929/1992, 1930/2002a, 1931/2002b), a essencial consideração de que não apenas da tradução ao português era importante, dá indícios de que ao serem recepcionados em Minas Gerais, os testes foram sendo alterados para atender às necessidades locais, tanto em um sentido internalista, do desenvolvimento da própria ciência psicológica, como externalista, considerando as dimensões política e social, que pressionavam a utilização coletiva e maciça dos testes nas escolas mineiras, sob um discurso de progresso social e econômico.
Assim, apesar de a escola francesa figurar como importante referência teórica às atividades desenvolvidas na Escola de Aperfeiçoamento, as aplicações dos testes seguiram o modelo pragmático estadunidense. Porém, ao tomarmos o Teste do Limiar e o quanto ele é representante de um processo de desenvolvimento de instrumentos de avaliação da inteligência, nota-se uma tendência à iniciativa, na Escola de Aperfeiçoamento, da produção de novos testes, para além da mera tradução de testes estrangeiros.
Do mesmo modo, a utilização do Teste Dearborn de maneira individual, em um contexto diverso daquele em que foi utilizado no início das atividades da Escola de Aperfeiçoamento, denota ao mesmo tempo uma ampliação dos espaços e modos de aplicação dos testes, bem como uma adaptação dos instrumentos às necessidades destes espaços.
Apreciação
Agradecimento a CAPES.
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Notas
Autor notes
*Contacto:C. Rota Júnior. Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros (FIPMoc), Rua Eng. Nilson Crispim da Costa, 40 - Morada da Serra, Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Correio eletrônico: cesarota@yahoo.com.br