Resume: O aumento da longevidade é um fenômeno mundial e de muita visibilidade na contemporaneidade. Contudo, observa-se a predominância de um discurso homogeneizador sobre a velhice, que a associa a declínio ou ainda que enfatiza determinado tipo de envelhecimento, em que os sinais do tempo são amenizados. Buscamos compreender a vivência de envelhecimento de 11 sujeitos ainda não considerados idosos pelos critérios cronológicos, com faixa etária entre 33 e 56 anos, à luz da fenomenologia existencial de Sartre e de Beauvoir, a partir de uma pergunta disparadora e tomando por base os princípios do método progressivo-regressivo sartreano. A percepção dos sujeitos colaboradores sobre seu envelhecimento foi singular, mas remeteu ao contexto mais amplo, ou seja, familiar, social, cultural e histórico em que vivem. Esperamos consolidar um espaço de discussão e de transformação sobre a questão do envelhecimento e da velhice, certos de que a fenomenologia existencial de Sartre e de Beauvoir pode contribuir neste sentido. Nesta perspectiva, a ação humana deve ser compreendida de modo a remeter à totalidade mais abrangente, articulando homem e mundo, e de modo a compreendê-la também à luz do futuro.
Palavras-chave: envelhecimentoenvelhecimento,velhicevelhice,fenomenologia existencialfenomenologia existencial,BeauvoirBeauvoir.
Abstract: The increase of longevity is a global phenomenon and it has a lot of visibility in contemporary times. However, there is a homogeneous speech about old age, which associates aging to decline, and a speech that emphasizes a kind of aging, where signs of time are minimized. We seek to understand the ageing experience of 11 people not yet considered elderly by chronological criteria, aged between 33 and 56 years old, from a triggering question, and considering Sartre’s and Beauvoir’s phenomenological-existential perspective, based on Sartre’s progressive-regressive method. The collaborators' perception about their aging was singular and it referred to the larger context, that is, the familiar, social, cultural and historical situation in which they live. We hope to consolidate a space of discussion and transformation about ageing and old age, believing that the existential phenomenology of Sartre and Beauvoir can contribute on this issue. In this perspective, human action must be understood in order to refer to a more comprehensive totality that involves man and world, and it is also in the light of the future.
Keywords: ageing, old age, existential phenomenology, Sartre, Beauvoir.
Sección temática: avances en psicología clínica y adultez
Envelhecimento na perspectiva fenomenológico-existencial de Sartre e de Beauvoir
Ageing on Sartre’s and Beauvoir’s Phenomenological-Existencial Perspective
Recepção: 02 Outubro 2018
Aprovação: 12 Setembro 2019
O envelhecimento populacional, uma conquista social e individual, é tratado, muitas vezes, como um problema, sendo os idosos considerados um peso para a família, para o Estado e para a sociedade (Jardim, Medeiros, & Brito, 2006; Minayo & Coimbra Jr., 2002; Neri, 2006a ). A velhice tem sido associada a sofrimento, solidão, doença e morte, haja vista que são valorizados culturalmente o vigor físico, a beleza associada à juventude, a rapidez e a produtividade da mão de obra. Na contemporaneidade, prevalece o culto à juventude e impera o efêmero, a imediatez, a supervalorização do novo e o enaltecimento do corpo, sendo a velhice pensada em oposição à juventude ( Mercadante, 2005 , 2007; Neri, 2006a ). Neste contexto, os termos “velhice” e “envelhecimento”, costumeiramente, remetem à deterioração e à decadência, devendo, assim, ser combatidos. Concebida de modo negativo, a velhice se configura como uma ameaça ao indivíduo, indo contra os valores socioculturais da contemporaneidade. Por outro lado, coexistindo com esta concepção negativa, propaga-se a ideia de uma nova velhice, ativa e bem-sucedida, em que os sinais do envelhecimento são amenizados, reforçando a importância do autocuidado com a saúde e com a aparência, tornando os sujeitos responsáveis por seu envelhecimento e concebendo como velho aquele que foi negligente consigo, já que há uma ampla oferta de recursos para combater a velhice (Debert, 1999). Deste modo, é veiculada, nas revistas, nos programas de TV, nos estudos científicos, nos discursos dos peritos e nos livros, uma série de receitas e dicas para o bom envelhecimento, o que interfere em nossas vidas e afeta nossas subjetividades.
Beauvoir (1990a) denuncia que a sociedade contemporânea tenta homogeneizar a velhice, descrevendo-a como um objeto, analisado a partir do exterior. Alertava que a velhice ocorre no seio de uma sociedade e depende do lugar que o sujeito ocupa nela. Para Beauvoir, portanto, a rejeição aos idosos vai além de uma autodefesa, no sentido de evitar o confronto com a finitude: também indica o modo como a sociedade lida com os velhos.
Partimos da premissa de que o envelhecimento é vivido de modo singular e, portanto, não é um processo homogêneo. Apoiados em Jean-Paul Sartre (1966; 2011; 2012a; 2012b; 2013) e em Simone de Beauvoir (1990a, 1990b), privilegiamos o enfoque fenomenológico-existencial deste processo. Nesta perspectiva, o envelhecimento é compreendido como um fenômeno que deve considerar a totalidade existencial do sujeito, abrangendo seus aspectos biológicos, históricos e socioculturais. Segundo Sartre (2011), o homem é um ser-no-mundo e um vir-a-ser, ou seja, é um ser em relação, movido por um projeto, um desejo de ser: “ser que faz com que haja um mundo ao se projetar para além do mundo, rumo às próprias possibilidades” (p. 104). Deste modo, “a existência precede a essência” (Sartre, 2012b, p. 19), pois, primeiro existimos no mundo, em um dado contexto histórico, social, cultural e familiar e, neste contexto, tornamo-nos sujeitos em busca de algo que transcenda os dados objetivos. Assim, considerando que nos fazemos sujeitos em certo contexto e, levando em conta os discursos e valores socioculturais contemporâneos, questio-namos: como as pessoas vivenciam seu enve-lhecimento em uma sociedade que produz e reproduz tantos discursos que tratam da velhice como uma doença, um problema a ser solucionado ou como um aspecto a ser disfarçado?
Esta pesquisa almejou discutir o envelhecimento a partir da vivência deste fenômeno por parte de adultos, pertencentes a classes econômicas diversas e com faixa etária entre 33 e 56 anos, ainda não considerados idosos pelos critérios cronológicos usual e legalmente adotados (Organização das Nações Unidas, 1982; Ministério da Saúde, 2003). Pretendeu dar maior visibilidade ao envelhecimento, indo além da ênfase no aumento demográfico de idosos e da perspectiva de maior longevidade da população, considerando que a velhice atinge não somente uma parcela crescente da população com a qual todos têm algum contato, mas, além disto, alcança cada membro da coletividade como um destino – evitável apenas pela morte prematura. Uma vez no mundo, encontramo-nos em contínuo envelhecimento e nos aproximamos, cada vez mais, da velhice.
Ariès (1981) demonstrou a construção social da infância a partir do século XIII. Na sociedade tradicional, a criança era logo imersa no mundo adulto, geralmente a partir dos sete anos de idade, sem passar pela juventude. Crianças e adolescentes eram tratados como adultos em miniatura e adultos entravam na velhice sem um rito de passagem institucionalizado. Enfatizamos que a velhice, assim como a infância, é uma construção. Ariès destaca que, antes do século XVIII, o velho não era respeitado e a velhice era concebida como a fase do recolhimento, da decrepitude e da caduquice. Nos séculos XVIII e XIX, o velho foi associado à sabedoria advinda de sua experiência; não era ágil, mas, tampouco era decrépito. Para Ariès (1981), não existia mais o velho, mas o “homem de certa idade”, sujeitos “muito bem conservados”: assim, “a ideia tecnológica de conservação substitui a ideia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice” (p. 48), associada à decadência física e à sabedoria.
Segundo Hareven (1999 ), o envelhecimento e as funções sociais dos grupos de idade mudam com o tempo e diferem entre as culturas. A historiadora acrescenta:
a ‘descoberta’ de um novo estágio é em si mesma um processo complexo. Primeiro, os indivíduos se tornam conscientes das características específicas de um dado período como uma condição distinta entre certas classes ou grupos sociais. Essa descoberta é então tornada pública e popularizada num nível societal. Profissionais e reformadores definem e formulam as condições singulares de tal estágio da vida que passa a ser publicitado na cultura popular. Finalmente, se as condições peculiares a esse estágio forem associadas a algum problema social importante, ele atrai a atenção das agências públicas e se torna institucionalizado: suas necessidades e problemas passam a integrar a legislação e o estabelecimento de instituições direcionadas a resolvê-los. Essas atividades públicas, por sua vez, afetam a experiência dos indivíduos que estão passando por essa fase. Elas claramente influenciam o momento das transições de e para tal estágio ao dar apoio público e, às vezes, ao colocar limites que afetam o momento das transições (p. 17).
Para ela, a velhice, como uma etapa do curso da vida, é parte de um processo histórico que abarca outros estágios da vida e decorre “... de uma tendência contínua à segregação por idade na família e na sociedade mais ampla” ( Hareven, 1999 , p. 13).
A institucionalização do curso da vida é um aspecto fundamental na organização da sociedade, como afirma Debert (1999). A velhice passou por uma série de mudanças ao longo do século XX. Um elemento determinante para mudar a forma de lidar com a velhice foi a implantação e a generalização dos sistemas de reforma, que dispensaram o indivíduo da atividade laboral a partir de uma determinada idade. Como consequência, o trabalho passou a ocupar um papel central na estruturação do ciclo de vida —a juventude como preparação para o mercado de trabalho, a idade adulta como período para o trabalho, e a velhice como retirada do mercado de trabalho— e se enfatizaram critérios cronológicos para marcar as transições de uma fase de vida para outra. Para Silva (2008 ), a invenção da velhice decorre de um processo amplo, que é subjetivado, transformando-se em uma categoria identitária que abrange manifestações políticas, sociais, econômicas e matérias especializadas. Desta forma, os marcos que tornaram a velhice uma categoria etária são o saber científico debruçado sobre o corpo velho, a implementação dos sistemas de aposentadoria, a maior especialização na gestão do envelhecimento e a abertura de um mercado de consumo específico. A velhice é, portanto, resultado de uma construção social complexa que engloba vários fatores.
A estabilização das categorias de idade propiciou a formação de identidades etárias, que são expressas em comportamentos próprios para cada estágio da vida e constituem parte da identidade dos sujeitos modernos. Passou-se, portanto, de uma época em que as idades cronológicas não designavam funções relevantes para a forma de organização da sociedade, para outra, em que a idade se tornou uma categoria que estabelece funções específicas para cada grupo etário, distinguindo socialmente os sujeitos e servindo como um modelo identitário ( Silva, 2008 ). Referências para a organização dos indivíduos na sociedade, direitos e deveres são estabelecidos de acordo com a idade ( Barros, 2011 ; Batistoni & Namba, 2010).
A concepção pretensamente homogeneizadora da velhice está intimamente relacionada a três características: é um produto cultural, que parte de pressupostos pretensamente universais, marcada-mente biológicos; constitui um problema social; e é objeto de um discurso científico especializado ( Debert, 1994 ). A criação da gerontologia transformou o envelhecimento em questão política e propiciou o desenvolvimento de práticas com o intuito de promover um envelhecimento bem-sucedido (Debert, 1999). Segundo a antropóloga, há quatro elementos presentes nos discursos dos gerontólogos brasileiros que tratam da velhice como questão política, justificando estudos sobre a velhice e favorecendo o surgimento de práticas para promover um envelhecimento positivo:
1) O cuidado que o aumento da população idosa inspira, apresentando-se como desafio, tanto para o Estado quanto para a sociedade civil— o que justifica a preocupação científica com o envelhecimento, alertando para a necessidade de aumento dos investimentos públicos.
2) A crítica ao “capitalismo selvagem”, que torna o idoso mais propenso à miséria e à marginalização na sociedade, já que é considerado improdutivo.
3) A crítica à forma como a cultura brasileira valoriza o jovem e menospreza o antigo e as tradições.
4) A incapacidade do Estado de lidar com problemas básicos da maioria da população, deixando os idosos numa situação crítica.
Estas premissas atuam na construção do idoso brasileiro como uma vítima, discriminado, em situação precária. A representação da velhice, marcada por perdas e dependência, foi construída a partir da segunda metade do século XIX. Além de associar velhice a declínio, esta representação foi determinante para o desenho de uma identidade etária da velhice, predominantemente negativa, mas, também, fundamental para a legitimação de direitos sociais e para tornar a velhice uma categoria política (Debert, 1999; Silva, 2008 ).
Observa-se, portanto, uma representação da velhice ligada a perdas e limitações de várias ordens. Contudo, percebe-se também uma ressignificação das imagens do envelhecimento, resultado do que Debert (1999) denomina de reprivatização, em que o envelhecimento se torna responsabilidade individual, o que leva o sujeito a adotar formas de consumo e estilos de vida que primam pelo autocuidado com a saúde e a aparência. Propaga-se um discurso que caracteriza a velhice como uma questão de negligência corporal, como um problema de responsabilidade individual, ofertando um mercado de bens e serviços para atenuar os sinais do envelhecimento (Debert, 1999, 2011).
No cenário atual, a velhice é condenada e depois resgatada, na condição de mercadoria e de mercado de consumo, em que a juventude é o mais cobiçado produto. Exibir as marcas do tempo no corpo, por exemplo, é indicar o fracasso na conquista da eterna juventude; ou seja, é dar visibilidade à velhice que deveria ser negada ou, ao menos, ocultada. Como afirma Sibilia (2011 ), “novos tabus e pudores converteram a velhice num estado corporal vergonhoso” (p. 83).
Mas velhice não é sinônimo de doença nem de mal a ser combatido, como tem sido sugerido. É importante enfatizar que, também, não é meramente uma questão de responsabilidade individual. O envelhecimento exige políticas inclusivas que repercutam na sociedade para gerar mudanças no modo de encarar o que é inevitável para todos os seres humanos que vivem mais longamente.
Sartre (2011) ressalta a importância da relação fenomênica entre homem e mundo e a relevância da ação situada no mundo. Afirma (2012b):
o homem é, não apenas como é concebido, mas como ele se quer, e como se concebe a partir da existência, como se quer a partir desse elã de existir, o homem nada é além do que ele se faz. Esse é o primeiro princípio do existencialismo. É isso também o que se denomina subjetividade (p. 19).
Para Sartre (2011), a realidade humana organiza-se em duas regiões ontológicas que são relativas uma a outra: o em-si e o para-si, ou ainda, o ser e o nada, a objetividade e a subjetividade. O ser, as coisas e a objetividade são da ordem do em-si, do dado, do acabado, da plena positividade. O em-si é atemporal, idêntico a si mesmo, e não conhece a alteridade, já que não estabelece relação com o outro e prescinde de qualquer coisa. Entretanto, ele se dá a conhecer para alguém, que com ele se relaciona e constata sua existência. A consciência e a subjetividade são da ordem do para-si, cujo fundamento é o nada. O para-si não coincide consigo mesmo, pois é relação com o mundo, contínuo devir. Estabelece relações com o mundo: portanto, é sempre relação a uma exterioridade. Para Sartre, a consciência não tem conteúdo, ou seja, não é causada por nada e é sempre relação a um fora, a um mundo. A consciência, ou seja, o para-si, o homem, não é sustentado por nada: é puro movimento em direção ao fora. Ele é sempre presença a... Homem e mundo são, portanto, relativos um ao outro. A ênfase de Sartre se volta, deste modo, à relação entre homem e mundo, entre subjetividade e objetividade.
Sartre (2011) afirma que a realidade humana é incompletude. O homem é um ser que padece de falta de ser e é por isso que se movimenta. Este movimento revela-se, justamente, pela ação no mundo, pelo projeto de ser:
existir é sempre assumir seu ser, isto é, ser responsável por ele em vez de recebê-lo de fora como faz uma pedra. E, como ‘a realidade humana é por essência sua própria possibilidade, esse existente pode ‘escolher-se’ ele próprio em seu ser, pode ganhar-se, perder-se’ (Sartre, 2012a, p. 22).
Em suma, o projeto é o movimento de transcender o dado, rumo ao futuro, ao campo dos possíveis, que se manifesta ao fazer-se: é processo. Trata-se do projeto de vida que define o homem e o põe em movimento. Segundo o existencialista, “todo para-si é livre escolha; cada um de seus atos, do mais insignificante ao mais considerável, traduz essa escolha e dela emana; é o que temos chamado de nossa liberdade” (p. 731).
A liberdade é condição ontológica do para-si. É ela quem nos chama à ação, que nos provoca. Considerando que não há nada definido de antemão, a liberdade e a eleição do ser do sujeito só podem ser compreendidas a partir da facticidade e do modo como lida com ela. A liberdade é limitada pelas contingências; entretanto, sempre há possibilidades de escolha. Sou eu quem decido, por exemplo, o peso que minhas ações passadas têm para mim ou, ainda, a extensão que o passado ocupa em minha vida, ou o seu sentido, pois sou eu quem decido o que fazer com o ser que eu sou, que é anunciado por meio da minha ação no mundo, do que faço do meu ser: “quem pode decidir sobre o valor educativo de uma viagem, a sinceridade de um juramento de amor, a pureza de uma intenção passada etc.? Eu mesmo, sempre eu, conforme os fins pelos quais ilumino esses eventos passados” (Sartre, 2011, p. 613). As contingências apenas se apresentam, portanto, como obstáculos ou como condições favoráveis graças ao fim para o qual me projeto.
A constatação da liberdade gera responsabilidade e, portanto, é acompanhada de uma sensação de desamparo, pois não há determinismos: estamos condenados à liberdade (Sartre, 2012b). Uma vez no mundo, temos que realizar escolhas e assumir a responsabilidade por nossa existência. A consciência da liberdade é consciência da angústia, pois não posso dividir com outros a responsabilidade por minhas escolhas ou pelo modo como construo minha existência e organizo minha vida.
Considerando que cada conduta humana expressa o seu projeto, compreendemos o envelhecimento como uma das expressões de um ser que está em movimento, sendo afetado pelo seu entorno e interferindo nele, sendo singular, mas trazendo à tona uma série de aspectos de âmbitos gerais, tais como tempo histórico, cultura e sociedade. Segundo Beauvoir (1990a), a velhice, como qualquer situação humana, tem uma dimensão existencial, pois transforma a relação do indivíduo com o tempo e afeta sua relação com o mundo. Acrescenta ainda que “é o sentido que os homens conferem à sua existência, é seu sistema global de valores que define o sentido e o valor da velhice” (p. 108).
Nesta pesquisa, nosso intuito foi investigar o envelhecimento em processo, ressaltando que estamos em contínuo envelhecimento. Neste sentido Beauvoir (1990a) ressalta a impossibilidade de restringir a pluralidade de experiências relacionadas à velhice em um único conceito ou noção. Da mesma forma, Motta (2006 ) considera mais apropriado tratar de velhices e de velhos no plural, tamanha é a heterogeneidade do envelhecimento.
Por se tratar de uma pesquisa fenomenológica, o significado da experiência de envelhecimento emergiu dos próprios sujeitos colaboradores, voltando-se ao seu mundo vivido. O método fenomenológico tem como propósito voltar às coisas mesmas, privilegiar a experiência concreta, buscando alcançar o significado das experiências vividas dos sujeitos sobre um fenômeno (Creswell, 1998). Portanto, nosso interesse foi apreender dos sujeitos colaboradores o sentido que atribuíam ao seu envelhecimento.
A amostra desta pesquisa foi composta por onze adultos, homens e mulheres, de diversas classes sociais, com idade entre 33 e 56 anos. Os sujeitos colaboradores desta investigação foram escolhidos por meio de amostragem não-probabilística por conveniência. O número de entrevistados foi determinado pelo critério de saturação dos dados (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008). Na tabela 1 , é possível visualizar alguns dados sobre eles. Os nomes utilizados são fictícios, visando ao sigilo quanto à identidade dos colaboradores.
A escolha de sujeitos nessa faixa etária ocorreu por conta do desejo de compreender como pessoas, ainda não consideradas idosas, vivenciam seu envelhecimento, ou seja, investigar se eles experimentavam ou não anseios e temores quanto à aproximação da velhice, considerando que estamos envelhecendo continuamente. O caminho teórico pautou-se na noção de ser universal e singular como é constituído o homem (Sartre, 2013).
A pesquisa foi realizada observando a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovada por Comitê de Ética. Foram realizadas entrevistas abertas, individuais, gravadas para posterior transcrição e análise, com o devido consentimento dos participantes. Buscando favorecer a expressão do vivido dos sujeitos sobre seu envelhecimento, foi feita a seguinte pergunta disparadora: como é, para você, envelhecer? Esta pergunta suscitou outras questões, sempre considerando o que o sujeito manifestava, evidenciando que o entrevistado é quem pode revelar o fenômeno investigado e possibilitar o acesso à sua experiência vivida. Deste modo, os dados foram interpretados e compreendidos a partir das narrativas desses sujeitos, sem categorias estabelecidas a priori.
A análise de dados desta pesquisa foi embasada na perspectiva fenomenológico-existencial, utili-zando o método progressivo-regressivo, proposto por Sartre (1966). Sartre esboçou seu método, em especial, quando se empenhou na análise de biografias de algumas personalidades, mas não deixou sistematizados os passos para a investigação fenomenológica.
Este método apoia-se no movimento contínuo entre o singular e o universal, em busca da compreensão dos fenômenos. Para Sartre, importava acessar o significado das experiências por meio da relação concreta do homem situado em um contexto familiar, social, cultural e histórico e constituído a partir dessa relação. O método sartreano abrange, na investigação da realidade, “as situações singulares inseridas no contexto universal e, ao mesmo tempo, considera as situações universais em seu impacto nas individualidades e grupos” (Schneider, 2011, p. 277). Ele é compreensivo, dando importância a diversos aspectos da vida do sujeito para chegar ao seu projeto de ser, e progressivo e regressivo, caracterizando-se pelo constante movimento de vaivém entre os seus aspectos objetivos e subjetivos, produzindo a mútua constituição de sujeito e mundo. Em outras palavras, permite acessar as experiências humanas por contemplar a subjetividade e a objetividade na relação homem-mundo. Por meio dos relatos tivemos acesso à dimensão existencial, à expressão do vivido dos sujeitos colaboradores, refletindo a apropriação de dados objetivos, tais como o contexto sociocultural e o ambiente familiar, realizando também uma interlocução com a literatura científica.

Atestando a singularidade das vivências, foram observadas algumas divergências no modo como cada um dos sujeitos começou a perceber seu envelhecimento. A percepção de envelhecer adveio da constatação de que o corpo mudou, o que está de acordo com a literatura consultada a respeito do envelhecimento ( Barros, 2011 ; Beauvoir, 1990a; Debert, 1999, 2011; Mercadante, 2005 , 2007; Sibilia, 2011 ). O fato de o condicionamento físico não ser mais como antes ou a mudança na aparência sinalizaram o envelhecimento para diversos sujeitos colaboradores entrevistados. Os depoimentos de Dulce, Guilherme, Marcelo, Ludmila, Alice e Victor ilustram esta percepção.
Neste sentido, Dulce afirmou que não se sentia mais tão disposta quanto antes. Para ela, isso foi um indicativo da passagem do tempo e do seu envelhecimento:
foi dos 36 pra cá. O meu movimento de trabalho diminuiu foi muito. Uma coisa que eu levo um dia todo pra fazer, antigamente, eu fazia em meio dia, ‘tirava de letra’. E eu, eu tenho muito esquecimento, mas muda, né? Muda o ritmo.
Victor também percebeu uma diminuição de seu ânimo: “eu percebo porque eu também noto que eu já não tenho a mesma disposição de antes, embora eu tenha muita disposição”.
Guilherme contou que, apenas recentemente, começou a notar mudanças que indicam seu envelhecimento, fazendo referência a condições físicas e psicológicas, que incluem aspectos positivos e negativos e que são comuns nas representações sociais contemporâneas: a polaridade entre limitações físicas e sabedoria (Beauvoir, 1990a; Magnabosco-Martins, Camargo, & Biasus, 2009; Santos, Tura, & Arruda, 2011; Wachelke et al., 2008) e o desapego que promove liberdade:
é uma coisa que, quando eu era garoto, eu não me preocupava, mas, quando eu comecei a ficar um pouco mais velho, que eu comecei a me preocupar mais, né, com 33. Ver que eu sinto as diferenças físicas, né? Que, ah, eu podia ficar um tempo sem fazer nada que a musculatura do corpo, ela continuava mais rígida e tal, e a gente vê que a gente precisa ter que se cuidar pra que o corpo responda ao que ele respondia antes, naturalmente, né? ... Eu não me sinto velho: eu me sinto experiente. Eu vejo que velhice é muita coisa de cabeça também, né? ... mas acho que eu tento me manter sempre muito jovem. Eu sempre tento manter minha cabeça muito atual. Então, eu não tenho muito, assim, essa questão problema de envelhecer: já estou ficando velho.
Apesar de sentir o envelhecimento no corpo, Guilherme fez questão de se distanciar da velhice, enfatizando que se mantém jovem, o que se relaciona à gestão individual do envelhecimento (Debert, 1999; Neri, 2006b ). Essa representação de velhice que busca distinguir corpo e mente, contrastando o corpo envelhecido com um espírito jovem também está presente na literatura ( Barros, 2011 ; Magnabosco-Martins et al., 2009). Nota-se a concepção de que a velhice se relaciona com certa postura diante da vida: manter-se ativo, com o espírito jovem, a cabeça aberta depende do indivíduo (Debert, 1999; Magnabosco-Martins et al., 2009; Motta, 2002 ; Neri, 2006b ; Nogueira, 2005 ). Esta possibilidade de se distanciar da velhice, propagada pela mídia e pelos especialistas, e que também demonstra uma pressão social, foi referida por Luísa: “eu acho que o que faz a sua idade ser boa ou não, não é o fato de você ter mais idade ou não: é o fato do seu espírito ser feliz, ser alegre, entendeu? Aí, você não envelhece”. Este distanciamento da velhice também foi apontado por André:
acho que idade... na realidade, a idade tá mais na sua cabeça, né? Você tá ocupado, você tá sempre produzindo, você tá exercitando o seu cérebro: eu acho que isso são coisas que fazem com que você não tenha esse início e, sei lá, até não envelheça mesmo. O corpo envelhece e a cabeça não.
Desta forma, André não pensa em seu envelhecimento, pois não percebe mudanças entre o que fazia na juventude e agora. Não se sente velho porque, provavelmente, sua experiência vivida não corresponde ao estereótipo que associa velhice à doença e ao declínio. Contudo, esta postura diante do seu processo de envelhecimento lhe causa estranheza:
eu não me sinto velho. Eu me sinto com a cabeça ‘legal’, entendeu? Eu acho que eu continuo fazendo as mesmas coisas que eu fazia quando eu tinha 20, 25 anos. Pô! Eu tenho que ‘acordar’ pra isso, que eu vou fazer 50 anos. Então, não sou mais uma criança. Mas eu não consigo.
Assim, juventude e velhice deixam de ser faixas etárias específicas, tal como ressalta Debert (2011 ). Tornam-se, desse modo, estados de espírito, que podem ser acessados por qualquer pessoa.
Por sua vez, Marcelo observou, com espanto, mudanças em sua aparência e no seu modo de perceber o envelhecimento: “dos 27 aos 29, essa regiãozinha (aponta para as olheiras), o ‘terreiro’ dos olhos, né, meu Deus, se destruiu! No meu rosto, até os 27, não dava pra perceber no meu rosto e, aqui, a região dos olhos”. Acrescenta:
eu me sinto surpreendido porque a visão que eu tinha, quando tinha 20 e olhava pra... pra idade em torno dos 30, e achava uma coisa distante, era algo assim: ‘ah, vou tá velho’. E aí, quando eu chego aqui, agora, eu vejo que não tô velho, que eu tô num dos melhores momentos da minha vida: muita energia, muita disposição pra fazer tudo e com várias ideias. E mais livre. Eu já ganhei liberdade dos 20 pra cá.
Quanto à Ludmila, começou a pensar no seu envelhecimento a partir dos 25 anos de idade. Falou das mudanças corporais, mencionou expectativas sociais típicas da periodização da vida (Batistoni & Namba, 2010; Barros, 2011 ; Debert, 1999; Minayo & Coimbra Jr., 2002; Silva, 2008 ) e apontou a proximidade da morte:
até os 25, era um negócio, ‘tudo flores’, maravilhoso. Aí, quando chegou nos 30, que o negócio desandou (risos). Aí, meu Deus, eu tive uma crise quando eu fiz 30 anos: ‘tô envelhecendo’! Aí que você começa a notar mudanças no corpo. Você começa a ver que não emagrece mais tão fácil, que sua pele começa a ficar diferente, seu cabelo fica, tudo fica. E eu sempre imaginava tá... é... com 30, 34 anos, já imaginava tá casada e com, pelo menos, três filhos, né? Então, assim, eu ainda me considero uma pessoa jovem. Assim, o meu espírito ainda é jovem. Então, você quer que o corpo acompanhe isso. ... envelhecer tem muitas conotações: tem a conotação estética; tem... tem a conotação da vida mesmo, que tá se acabando; têm vários fatores ligados a esse tema.
Assim, a cronologização da vida, com a instituição de práticas e de costumes específicos para cada idade repercute nas subjetividades, ocasionando uma pressão social que, se não cumprida, gera frustrações. Na idade em que se encontra, Ludmila esperava ter conquistado sua independência financeira e ter constituído família, o que ainda não realizou. Argumenta:
o que me pesa é isso: é que eu não tenho ainda minha independência profissional, independência financeira, né? E... questão da família porque fica pesando a questão do biológico mesmo. Tenho que ter filhos: tá se aproximando cada vez mais dos 40 e ficando difícil.
Destacou aspectos positivos e negativos do envelhecimento, também referidos na literatura (Magnabosco-Martins et al., 2009 ; Santos et al., 2011; Wachelke et al., 2008). Os aspectos positivos que citou foram o amadurecimento e a sabedoria, que surgem com o avanço dos anos; os aspectos negativos foram a proximidade da morte, bastante enfatizada por ela ao longo da entrevista, as questões estéticas e as limitações físicas:
envelhecer... A ideia que eu tive, durante muito tempo, foi de que você está mais perto da morte, né? E assim: eu nunca encarei isso ‘legal’. Acho que o problema de envelhecer é que, muitas vezes, o corpo não acompanha as coisas que você quer realizar: questões físicas mesmo. ... Mas o bom é que você vai vendo o lado psicológico da coisa, você vai se descobrindo cada vez mais. Certas coisas que, antigamente, importavam tanto, hoje, passado o tempo, você vai ver que é besteira... Pelo lado do amadurecimento, do crescimento pessoal: é fantástico. Quanto mais velho, melhor. Mas, vendo pelo lado estético, né, não é muito ‘legal’: é uma coisa que você vai ter que se acostumar mesmo, com cada etapa da vida e, pensando no lado de que você tá morrendo, né, porque você tá morrendo.
Alice disse que, depois dos 35 anos, começou a se dar conta do envelhecimento. O marco foram as dores no corpo, o declínio físico: “foi uma coisa que começou depois dos 30. Talvez, se eu tivesse, na minha juventude, 20 e poucos anos, tido essa consciência de me preparar, de me alimentar melhor, de fazer uma atividade física, isso teria sido adiado”. Apresentou uma visão sobre envelhecimento ligada à perspectiva biológica, associada ao declínio físico, confirmada pela literatura consultada ( Bassit, 2002 ; Cruz & Ferreira, 2011; Debert, 1999; Goldenberg, 2008; Motta, 2002 ; Sibilia, 2011 ; Siqueira, Botelho, & Coelho, 2002). O envelhecimento também foi compreendido por ela como um fenômeno singular, fruto da responsabilidade individual: “eu conheço pessoas na minha idade que têm muito mais força. A vida sedentária contribuiu, né? Eu, acima do peso”. Acredita que a velhice pode ser mais bem vivida, dependendo da capacidade da pessoa de se preparar para a velhice ou, ainda, de aceitar o declínio físico.
Neste sentido, o envelhecimento é considerado um momento de perdas, pois o corpo exaltado é o da juventude. Reforça-se a ideia de que envelhecer bem é responsabilidade unicamente dos indivíduos, sem haver distinção ou sem considerar a influência de variáveis como situação econômica, sociocultural e ambiente familiar. Guilherme relatou achar imprescindível cuidar de sua saúde física para ter um envelhecimento positivo: “Eu tô começando a me cuidar justamente porque eu não quero ficar mais velho, chegar numa idade mesmo de velhice, e ter que restringir demais a minha vida porque eu não me cuidei direito”. Marcelo exercita-se há algum tempo, buscando chegar à velhice com disposição e autonomia, rompendo com uma prática familiar de pouco cuidado com a alimentação e com a forma física. Está há alguns anos se exercitando regularmente:
eu faço justamente por isso, pra eu chegar aos 60, um velho com um porte atlético, com disposição pra dançar, pra sair com os amigos, pra fazer coisas. Pretendo manter esses cuidados. Eu já comecei, né? Eu acho que desde que eu comecei a ver os meus parentes, os idosos, né, tendo problemas pra caminhar, tendo problemas de diabetes. ... então, eu já vi que tinha que me cuidar.
Rebeca também comentou sobre mudanças que pretende fazer para ter um envelhecimento positivo:
acho que me alimento bem, mas acho pode melhorar mais ainda, cortar algumas coisas, ter uma orientação profissional... Acho que eu preciso praticar atividade física e, por uma questão de chegar à minha meta futura de envelhecer legal, seria bom, também, pra envelhecer legal, bonitinho, fazer algumas coisas de cuidado, como usar os cremes antienvelhecimento, usar mais protetor solar, nada demais, mas essas coisas que são cuidado mesmo, de se gostar. Eu acho bonito, mas não consigo praticar muito não, mas vou chegar lá.
Maria, por sua vez, fez referência ao estresse que interfere no envelhecimento e que não tem, necessariamente, relação com a idade: “primeiramente, o que vai envelhecendo mais é o estresse. Quando você vai se olhar no espelho, você não toma susto da idade: você toma susto é da sua aparência. ... Eu me sinto uma pessoa nova na aparência ainda”. Maria afirma não temer o envelhecimento: “não tenho menor medo, não, porque feliz daquele que chega na idade de cento e poucos anos, que é muito difícil, hoje, você chegar”. Observou que se sente mais madura e que, com o avanço da idade, empenha-se em realizar atividades às quais, na juventude, não dava importância, percebendo aquisições advindas do envelhecimento: “hoje, eu, mais madura, eu vejo as coisas mais diferentes. Quando eu era mais nova, eu não ligava pra nada”.
Alguns entrevistados afirmaram que o olhar do outro, indicando que estavam envelhecendo, foi marcante, tal como atestam vários estudos sobre envelhecimento e velhice ( Barros, 2011 ; Beauvoir, 1990a; Debert, 1999). De acordo com Caradec (2011 ), “é no contexto das relações com os outros que se impõe a consciência do avanço na idade” (p. 24). Meu corpo, como afirma Sartre (2011), é captado pelo olhar do outro e me escapa; trata-se do caráter irrealizável da velhice e da dinâmica com o outro, com o meu próximo, que me constitui. Rebeca assim descreve seu vivido sobre tal experiência:
ao mesmo tempo que eu me sinto a mesma pessoa, eu sei que eu tô mudando, mudando diante do olhar do outro: o outro me diz que eu tô ficando velha; eu não sinto, né? O olhar do outro tá indicando que eu já sou uma senhora. Outra coisa: com relação às crianças, né? As crianças da família, ou filhos de amigos, que você vai vendo crescer: quando eu vejo os meus sobrinhos, que eu pegava no colo, e que já tão casados, têm filhos, penso, né? O tempo passou.
Desta forma, parece que o envelhecimento ocorre de modo tão sutil que não é percebido, a princípio, pelo próprio sujeito. A partir da sua relação com o outro, do olhar do outro, é que a pessoa se dá conta desse processo. Quando alguém se dirige a nós como um indivíduo de mais idade, quando nos chama de senhor(a), por exemplo, nos espantamos. Além disso, dependendo do contexto em que nos encontramos e da companhia com quem estejamos, o envelhecimento pode não ser percebido ( Motta, 2003 ), tal como atesta Rebeca:
isso depende muito dos locais. Na Universidade, que é um local que tem muita gente de 20 anos, 20 e poucos anos, então, é natural quando uma pessoa de 23, 22 anos veja quem tá perto dos 40, [pense]: ‘você já tá uma senhora, né? Já é uma senhora’. Mas, no meu antigo trabalho, que tinha muita gente já perto dos 60, eu era uma menina.
Luísa lembrou uma situação que lhe causou impacto e a fez perceber a passagem do tempo: ser chamada de “tia” na universidade:
eu não me sinto envelhecendo ... Eu entrei na Universidade com mais de 40 anos. Então, eu fui conviver com meninas de 20, 25, 23 ... O impactante, quando eu senti, assim, que a idade tava chegando, foi justamente quando eu entrei no Serviço Social, entendeu? Eu entrei e tava me sentindo ‘a rainha da cocada preta’, né, assim, jovem igual eles. Aí, quando a menina me chamou ‘tia’, aí, eu: ‘han’?! Eu já tô na idade de ser tia.
Estas falas relacionam-se com categorias discutidas por Sartre e que atestam a interação de aspectos objetivos e subjetivos na constituição do sujeito: o lugar em que vivemos, onde transito e me estabeleço, minha relação com o outro, com meu próximo, as referências sobre envelhecimento e velhice no contexto onde estou inserido é fundamental na nossa constituição como sujeito. Deste modo, há que se considerar que o homem é um ser em situação (Sartre, 2011). Envelhecer bem depende de vários aspectos, moderados pelas dimensões subjetivas e situacionais. Victor revelou certo temor com seu envelhecimento, que atribui ao estado de saúde de seu pai e à expectativa de acompanhar bem o desenvolvimento de seu filho caçula: “não posso saber se eu vou ou não vou adoecer, se eu vou ou não estar bem, né?”.
Acrescentou:
Sou uma pessoa que sempre tive medo de adoecer, sempre tive medo da morte, acho que porque, também, ao longo do meu caminho, muita gente desencarnou. É um desafio, é algo difícil de aceitar. É algo, também, que eu não vejo com nitidez, porque eu aparento ser bem mais novo do que eu sou. E eu sou uma pessoa muito saudável, cheia de vigor, dinâmica. Mas envelhecer não é algo confortável, não. Quando a gente chega à meia idade, a gente percebe isso.
A comparação com pessoas que estão em condição física ou psicológica menos favorável é uma estratégia bastante comum para distinguir o próprio processo de envelhecimento dos demais e se destacar positivamente ( Caradec, 2011 ; Motta, 2006 ), como pode-se observar no depoimento de Fátima: “mas até que a genética, ela foi, assim, bem generosa comigo porque têm muitas pessoas na minha idade que tá com bengalinha na mão, viu”? Outra estratégia comumente usada para se distanciar da velhice é destacar atitudes e maneiras de se comportar que são associadas à juventude, tais como manter-se motivado, de bom humor, com a curiosidade aguçada.
Por sua vez, André declarou não perceber seu próprio envelhecimento, pois não pensa a respeito e as pessoas se referem a ele como um jovem:
no fundo, no fundo, eu não me sinto com 49 anos. A idade, assim, que eu acho que eu me sinto, hoje, é, no máximo, 35 anos; de repente, até menos: 33. ... Às vezes, o pessoal me encontra aí e: “é, rapaz, o ‘bicho’ não envelhece”.
Sobre a aparência, Dulce relatou se sentir mais bonita com o passar do tempo. Fátima não quer pensar no seu envelhecimento, pois teme a velhice. Essa dificuldade se relaciona à vaidade: “antes, tipo, era uma coisa que não era bem aceito por mim, né, o meu envelhecimento. Eu achava um terror porque eu me olho muito no espelho ... Se eu tivesse dinheiro eu já tinha feito plástica”. Seu reflexo no espelho contradiz a imagem idealizada que tem de si mesma, a de uma jovem, e ao ideal de beleza adotado e imposto pela sociedade ( Arcuri, 2005 ; Beauvoir, 1990a; Goldenberg, 2008; Sibilia, 2011 ). Afirmou que sua profissão de cuidadora de idosos a fez pensar nisso, mas de modo geral. Demonstrou dificuldade de falar sobre seu próprio processo de envelhecimento, exemplificando que não gosta de comemorar seu aniversário:
quando é pra comemorar, eu nem digo. Antigamente, eu gostava, mas... eu sempre não digo a idade que tenho: eu sempre nego. Eu nego a minha idade. Eu só digo assim: ‘não, eu só tenho 50 anos, 49’. Até 49 é melhor dizer do que 50 porque 50 pesa: 49 já alivia, né?
Sibilia (2011 ) alerta para a busca frenética de evitar, com todos os meios possíveis, a velhice: “tudo para não virar, assim, um ser humano de segunda —ou de terceira, ou mais precisamente: de última— categoria” (p. 106). No caso de Fátima, prevalecem o medo e a negação do envelhecimento ( Arcuri, 2005 ), acentuados, provavelmente, pelo seu ofício, pois, como cuidadora, lida com idosos fragilizados.
Não há uma exigência interior que nos faça reconhecer e assumir a imagem que nos foi atribuída ou imposta pelos outros, ainda mais quando essa imagem nos amedronta, mas a reação à percepção do outro demonstra nossa atitude com relação à velhice. Arcuri aponta uma gerontofobia muito presente no mundo capitalista contemporâneo por conta da percepção da proximidade da morte e da diminuição de espaços de reconhecimento social, o que permite compreender o estímulo exacerbado ao consumo dos mecanismos de disfarce do envelhecimento, tais como as cirurgias plásticas, os cosméticos e as ginásticas. Parece ser menos custoso negá-lo a enfrentá-lo.
A experiência corporal do envelhecimento foi muito destacada nos depoimentos. Caradec (2011 ) afirma que são três os registros que sinalizam, no corpo, o envelhecimento: o corpo orgânico, a aparência e a energia. O corpo orgânico é evocado para se referir à saúde biológica, à aptidão física e à ausência de patologias, ou ainda às suas opostas: às debilidades, às limitações funcionais e às doenças associadas à idade. No registro da aparência, as referências giram em torno da plasticidade do corpo: rugas, aumento de peso e fios de cabelo branco indicam o envelhecimento corporal. Também se instala uma preocupação estética. Por fim, com relação à energia, estão os registros de vitalidade e boa disposição corporais, que se contrapõem ao cansaço, sinal do envelhecimento.
O modo como os sujeitos colaboradores vivenciam seu envelhecimento refletiu-se na sua corporeidade, ou seja, na forma como o outro os percebe e como percebem seus próprios corpos e se relacionam com o contexto em que vivem. Neste sentido, Sartre (2011) afirma: “dizer que entrei no mundo, que ‘vim ao mundo’ ou que há um mundo, ou que tenho um corpo, é uma só e mesma coisa” (p. 402). A corporeidade diz respeito ao corpo existencial, produtor de sentido e de significado, porta de entrada para nossa relação com o mundo. Como a pesquisa demonstrou, o corpo também diz respeito ao contexto em que os sujeitos colaboradores vivem, sofrendo influência do meio familiar, social e cultural. Os entrevistados fizeram referência à sua aparência, ao seu corpo conservado e/ou à sua disposição física para se distanciar do próprio envelhecimento, apesar de perceberem mudanças físicas e psicológicas com o passar do tempo. Muitos atribuíram a seu jeito de ser a justificativa da dificuldade do outro descobrir sua verdadeira idade, considerando-o uma vantagem. A maioria tem uma visão da velhice como um processo que inclui perdas, mas também ganhos, enquanto uma minoria tem uma visão eminentemente negativa do envelhecimento, associando-o ao declínio físico e psicológico e à perda da beleza e da jovialidade.
Os depoimentos sobre a percepção do próprio envelhecimento foram diversos e marcadamente influenciados pelo contexto sociocultural e histórico em que os sujeitos colaboradores vivem. Victor e Fátima expressaram dificuldade de pensar sobre esse fenômeno devido ao temor da velhice. Por sua vez, Maria trouxe à tona aspectos positivos com seu envelhecimento. André relatou não perceber diferenças significativas em sua vida com o avanço da idade; Rebeca e Luísa foram se dando conta do próprio envelhecimento por meio da sinalização de terceiros. As transformações na aparência física e no condicionamento foram referidos por Dulce, Guilherme, Marcelo, Alice e Victor.
Vários entrevistados demonstraram a importância do cuidado consigo para atingir uma velhice saudável. A questão estética também se fez presente nos discursos, sendo colocada por vezes como um aspecto negativo associado ao envelhecimento, como se depreende dos depoimentos de Ludmila, Fátima e Marcelo. A preocupação com a aparência é outro aspecto relacionado com o envelhecimento positivo e que não é percebido como uma imposição externa ou como uma violência sobre os corpos, mas que se apresenta como um convite para praticar essa prevenção cada vez mais cedo, tal como se observa nos relatos de Guilherme, Rebeca e Marcelo.
Para Fátima, a imagem do envelhecimento contradiz não somente o corpo jovem que ela tanto aprecia, mas um modo de vida que ela precisa ressignificar. Tenta se convencer de que o envelhecimento é algo natural, que não pode ser evitado, mas assumir-se próxima da velhice exige uma modificação no seu projeto de ser, o que lhe é custoso, pois situa-se nos limites de sua visão de mundo.
Depreende-se que a vivência do envelhecimento depende tanto da singularidade da história dos sujeitos, bem como está intimamente ligada a contextos mais amplos ou universais, como a classe social, o gênero, a etnia e outros aspectos a eles associados. De modo geral, apesar das diferenças de sexo, idade e escolaridade, a pesquisa destacou como o meio sociocultural tem um peso marcante sobre as vivências de envelhecimento e a visão de velhice dos entrevistados, refletindo o período sócio-histórico em que vivemos.
Todos fizeram referência ao seu entorno, afetados por fatores de diversas ordens, que são reproduzidos e/ou transcendidos, singularizando-os por meio de seu próprio movimento no mundo. Na fenomenologia existencial sartreana e beauvoiriana, o sujeito deve ser compreendido a partir da sua relação com o mundo e como uma totalização em curso, sempre em movimento.
A maioria dos sujeitos entrevistados demonstrou perceber a velhice como um processo do desenvolvimento humano que, como tal, inclui perdas e ganhos, vantagens e desvantagens, sendo o envelhecimento vivido de modo particular. Considerando esse dado concreto, somos todos instigados a realizar escolhas, revelando um projeto de ser que se encontra em construção.
Conforme a perspectiva fenomenológico-existencial adotada nesta pesquisa, o envelhecimento não é concebido como um processo marcado somente por perdas e declínio, nem tampouco que dependa exclusivamente do indivíduo. Envelhecer bem e ter uma velhice com qualidade é um processo que depende de diversos fatores que interagem entre si. Neste sentido, o envelhecimento é uma das expressões de um ser que está em movimento, integrado com o mundo que o envolve, que o constitui e que é produzido por ele.
Fazer uso do método progressivo-regressivo sartreano é desafiador diante da lacuna sobre os passos metodológicos pensados por Sartre e da escassez de trabalhos que aplicam tal método. Entretanto, felizmente, observamos um movimento de resgate da obra sartreana, com o relançamento de obras, dele e de Beauvoir, além de trabalhos de outros autores que se destinam a popularizar suas ideias.
Esperamos que este estudo colabore com novas discussões acerca do envelhecimento e da velhice, dando maior visibilidade a tais temas e colaborando na desconstrução de discursos reducionistas que enfatizam apenas um aspecto desses fenômenos ou, ainda, determinado tipo de envelhecimento.
