Relato de caso
Correção ambulatorial de cicatriz de queimadura
Surgical correction of facial burn scar in ambulatory
Correção ambulatorial de cicatriz de queimadura
Surgical & Cosmetic Dermatology, vol. 12, núm. 1, Supl., pp. 22-25, 2020
Sociedade Brasileira de Dermatologia
Recepção: 30 Maio 2019
Aprovação: 03 Agosto 2020
RESUMO: Os lábios são compostos por estruturas musculares, mucosas e pele. As lesões em lábios podem ser de etiologia neoplásica, malformações congênitas ou traumáticas. A reconstrução cirúrgica dos defeitos nos lábios pode necessitar de técnicas de retalhos, enxertos e microcirurgia. Descreve-se no presente relato a correção cirúrgica ambulatorial do lábio inferior utilizando-se retalho cutâneo local, com evolução estético-funcional satisfatória.
Palavras-chave: Cicatriz, Cirurgia Plástica, Retalhos Cirúrgicos, Procedimentos Cirúrgicos Ambulatoriais.
ABSTRACT: Muscle, mucosae, and skin anatomically compose the lips. Neoplasms, congenital malformations, or local trauma can cause lesions on the lips. The surgical reconstruction of lip defects may need flaps, grafts, or microsurgery. The following case report describes the ambulatory surgical correction of a lower lip complex scar, using local skin flaps, with satisfactory aesthetic and functional outcomes.
Keywords: Ambulatory Surgical Procedures, Surgery, Plastic, Face, Surgical Flaps.
INTRODUÇÃO
Os lábios são unidades estéticas da face, compostas por músculo, pele e mucosa, que exercem uma importante função de competência oral. Essa função é realizada por meio do controle do músculo orbicular da boca, onde algumas fibras desse músculo estão dispostas horizontalmente, iniciando-se em uma comissura e indo em direção à outra, atravessando o lábio, fazendo inserções, colunas e junções musculocutâneas. Essas fibras musculares comprimem os lábios. Em linhas gerais, além do músculo orbicular da boca, deve-se mencionar os músculos elevadores do lábio superior, os zigomáticos maior e menor e os elevadores do ângulo da boca. Além desses, os músculos depressores do lábio inferior, o músculo mentoniano e os elevadores da porção central do lábio inferior compõem as funções e características estéticas dos lábios.1 As lesões nos lábios superiores ou inferiores podem ser de várias etiologias, incluindo os traumas e as neoplasias provocadas pela incidência solar, principalmente no lábio inferior. Dependendo do tipo de lesão, das estruturas envolvidas, da localização e da extensão desta, haverá a necessidade de um tipo de reconstrução, com as mais variadas opções, desde retalhos locais, à distância e microcirúrgicos.1,2 Consideradas as variáveis da lesão e dos retalhos envolvidos, teremos um resultado estético-funcional proporcional.4 No presente relato, descrevemos um caso de reconstrução de lábio inferior com retalho cutâneo local, realizada em ambiente ambulatorial, sob anestesia local, evoluindo com bom resultado estético-funcional.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 56 anos, afrodescendente, hipertensa e epilética, com queixa de perda constante de saliva e cicatrizes no lábio inferior e no pescoço, ocorridas após ataque epilético e consequente queimadura de terceiro grau, quatro anos atrás. Ao exame físico, apresentava cicatriz no terço inferior da hemiface direita, a qual se estendia desde o vermelhão do lábio inferior até a região cervical anterior ipsilateral. Nas regiões de transição entre vermelhão e lábio inferior e terço inferior da face e pescoço, a cicatriz provocou a formação de bridas, além de áreas vitiligoides secundárias à lesão primária (Figura 1). À inspeção estática do lábio inferior, observava-se pequena falha de fechamento do vermelhão superior e inferior. Foi então realizada avaliação pré-operatória e liberação para cirurgia sob anestesia local.
Procedimento cirúrgico
A paciente foi posicionada em decúbito dorsal horizontal e, após a assepsia e antissepsia da face com clorexidine alcoólico, foi feito o bloqueio mentoniano bilateral e anestesia local, com solução de soro fisiológico, lidocaína e adrenalina (1/250000) na quantidade de 10cc, no plano subdérmico e subcutâneo do lábio inferior. Foi então realizada uma incisão na linha cutâneo-mucosa do lábio inferior, contornando o defeito em forma de V, próximo à comissura direita, e se prolongando em direção medial, com extensão de 3cm, seguida da rotação do retalho de mucosa (vermelhão) sobre seu próprio eixo, até a comissura direita e sutura com mononylon 5-0. Por fim, foi realizada a rotação de retalho cutâneo em avanço, em direção látero-medial e sutura com mononylon 5-0.
Período pós-operatório
Foi realizada a orientação pós-operatória quanto à troca de curativo, acompanhamento e retorno para retirada de pontos (Figura 2 e 3).
Evolução
Em torno do 14o dia pós-operatório, o retalho cutâneo evoluiu com pequena deiscência em sua porção mais distal (Figura 4), cicatrizando-se por segunda intenção (Figura 5). A última documentação fotográfica foi realizada no 28º pós-operatório e, apesar da intenção de manter o seguimento prolongado para avaliar a ocorrência de retrações ou hipertrofias, a paciente perdeu seguimento ambulatorial.
DISCUSSÃO
A realização da reconstrução funcional e estética dos lábios é uma tarefa desafiadora para cirurgiões plásticos e dermatologistas.2,4 A correção cirúrgica desses defeitos pode levar à incompetência oral, sialorreia e dificuldade na fala4, dependendo do retalho a ser utilizado. A reconstrução bem-sucedida busca preservar a competência oral, a abertura oral máxima, a fala e a sensibilidade, além de aperfeiçoar a estética3,4, sendo que, algumas vezes, a conquista dessas variáveis é parcial.
A literatura descreve mais de 100 diferentes modalidades de reconstrução4, porém até o momento nenhuma técnica é considerada ideal para a reconstrução dos lábios5, pois envolve muitos fatores, como tipo e tamanho da lesão. Em defeitos compreendendo menos de um terço do lábio, o fechamento primário produz um bom resultado funcional e estético.3,6 Os retalhos locais representam uma boa opção para defeitos que afetam um a dois terços do lábio, como o caso relatado.4,6 Quando o defeito excede dois terços do lábio, regiões com reconstrução prévia ou tecido irradiado, recomenda-se reconstrução de retalho microcirúrgico4, entre eles, retalho antibraqueal.
Nas reconstruções em geral, especialmente nas reconstruções de lábio, deve-se levar muito em consideração a área doadora do retalho, pois algumas vezes está indicada a utilização do lábio contralateral da lesão. Além disso, nesses retalhos estão envolvidas estruturas musculares importantes para a competência oral.3,4
No relato apresentado, deve-se ressaltar que não existiu uma lesão que necessitasse de remoção tecidual comprometendo o perímetro da boca, e sim um reposicionamento dos tecidos ectópicos, visando à competência oral, à movimentação e à consequente melhora da fala. O seguimento clínico de pós-operatório prolongado, de até 12 meses, faz-se importante em casos como este, pois a formação de retrações e de espessamentos ou cicatrizes hipertróficas pode ser tardia.
Os retalhos locais utilizados, tanto mucoso quanto cutâneo, objetivaram esse reposicionamento e também objetivaram minimizar as dimensões do procedimento em si, sem o comprometimento de outras estruturas e áreas doadoras, uma vez que as condições clínicas da paciente permitiam somente anestesia local. Contudo, a complicação ocorrida, ou seja, a deiscência, pode ter sido em decorrência da qualidade da pele do retalho, gerando necrose, uma vez que essa pele também esteve envolvida no trauma primário. Mesmo com essa complicação, a evolução foi muito favorável em termos estéticos e funcionais, havendo a total resolução da brida entre o vermelhão e o lábio e o reposicionamento do vermelhão inferior, levando à total competência oral.
CONCLUSÃO
No caso relatado, foram realizados retalhos mucoso e cutâneo, sob bloqueio mentoniano e anestésico local, que resultaram em competência oral satisfatória e bom resultado estético.
Agradecimentos:
À disciplina de Dermatologia da Universidade de Santo Amaro.
REFERÊNCIAS
Zide BM. Deformities of the lips and cheeks. In: McCarthy JG, editor. Plastic Surgery, vol. 3, Philadelphia, PA: W.B. Saunders; 1990. p. 2009-2056.
Pepper JP, Baker SR. Local flaps: cheek and lip reconstruction. JAMA Facial Plast Surg. 2013;15(5):374-82.
Tetik G, Ünlü E, Aksu I. Functional reconstruction of the lower lip with Fujimori flap and longterm follow-up with clinical and electrophysiologic evaluations. J Oral Maxillofac Surg. 2014;72(9):1841-51.
Elmelegy N, EI Sakka DM. One stage aesthetic and functional reconstruction of major lower lip defects. Ann Plast Surg. 2017;78(4):417-20.
Denadai R, Raposo-Amaral CE, Buzzo CL, Raposo-Amaral CA. Functional lower lip reconstruction with the modified Bernard-Webster flap. British J Plastic Surg. 2015;68(11):1522-8.
Coombs DM, Bourne DA, Egro FM, Solari MG. Reconstructing defects of the lower lip: an emphasis on the estlander flap. Eplasty. 2016.
Notas
Autor notes
Carolina Malavassi Murari Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Julia Marcon Cardoso Elaboração e redação do manuscrito.
Douglas Haddad Filho Aprovação da versão final do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Correspondência: Carolina Malavassi Murari Av. Brasil, 504 - Vila Itapura 13073-025 Campinas (SP) E-mail: cmalavassi@gmail.com
Declaração de interesses