RESUMO: O carcinoma basoescamoso tem alto potencial de recorrência local e metástase, especialmente quando recidivado e na localização periocular. Um paciente masculino de 49 anos foi submetido a cirurgia micrográfica de Mohs e reconstrução subtotal da pálpebra inferior com enxerto de cartilagem da hélice da orelha associado ao retalho de Tripier, evoluindo com ótimo resultado funcional e estético.
Palavras-chave: Carcinoma BasoescamosoCarcinoma Basoescamoso,Cirurgia de MohsCirurgia de Mohs,Neoplasias CutâneasNeoplasias Cutâneas,Neoplasias PalpebraisNeoplasias Palpebrais.
ABSTRACT: Basosquamous carcinoma has a high potential for local recurrence and metastasis, especially when it recurs and at the periocular area. A 49-year-old man underwent Mohs micrographic surgery and subtotal reconstruction of the lower eyelid with cartilage graft from the helix of the ear associated with the Tripier flap, evolving with excellent functional and aesthetic results.
Keywords: Basosquamous carcinoma, Eyelid Neoplasms, Mohs surgery, Skin Neoplasms.
Relato de caso
Carcinoma basoescamoso na pálpebra inferior: reconstrução com enxerto de cartilagem auricular associado ao retalho de Tripier após cirurgia de Mohs
Basosquamous carcinoma in lower eyelid: reconstruction with auricular cartilage graft associated with the Tripier flap after Mohs surgery
Recepção: 22 Junho 2020
Aprovação: 04 Março 2021
As pálpebras contêm numerosos elementos histológicos que podem ser a origem de tumores benignos e malignos. São compostas por quatro camadas: pele e músculo orbicular (lamela anterior), tarso e conjuntiva palpebral (lamela posterior). A pele é composta por epiderme, derme e seus anexos. Entre os anexos encontramos as glândulas écrinas (sudoríparas e acessórias lacrimais de Krause e Wolfring), apócrinas de Moll e sebáceas (Meibômio e Zeiss). A maioria dos tumores nesta localização tem origem epidérmica. Em caucasianos, o carcinoma basocelular (CBC) é responsável por cerca de 90% dos cânceres palpebrais, seguido pelos carcinomas espinocelular (CEC) e sebáceo, responsáveis por 5% dos casos cada um.1
O carcinoma basoescamoso (CBE) ou metatípico, clinicamente indistinguível do CBC, representa cerca de 2% dos cânceres de pele não melanoma e pode ser mais agressivo que o próprio CEC (recorrência local de até 45% e metástases à distância de 5-10%). Geralmente, ocorre em cabeça e pescoço de homens brancos com idade mais avançada. Histologicamente, observam-se áreas típicas de CBC e CEC, além de uma zona de transição entre elas.2,3
A cirurgia micrográfica de Mohs (CMM) permite a completa extirpação de tumores malignos da pele enquanto maximiza a preservação de tecido normal. Essa técnica fornece a menor taxa de recorrência e de complicações pós-operatórias no tratamento do câncer de pele. O sucesso da CMM deriva da capacidade de se obterem cortes por congelação intraoperatórios circunferenciais com avaliação completa das margens cirúrgicas laterais e profundas. Tumores palpebrais têm alto risco para recidiva e metástase, mas a CMM pode minimizar isso. A ressecção completa de tumores perioculares é de extrema importância porque a recorrência pode levar a consequências devastadoras, incluindo perda da função ocular, invasão da base do crânio e até morte. Uma avaliação oftalmológica completa é indicada no pré-operatório, quando alguns sinais, como aderência a planos profundos, diminuição da motilidade ocular, diplopia, deslocamento do globo ocular, ptose palpebral e proptose, indicam melhor investigação com exames de imagem para averiguar compressão ou invasão periorbital. Um estudo retrospectivo de dois centros demonstrou que as taxas gerais de complicações após reparo de defeito periorbital pelos cirurgiões de Mohs foram equivalentes, se não inferiores, às taxas de complicações em procedimentos realizados por cirurgiões oculoplásticos.4,5 A CMM é o padrão-ouro no tratamento do CBE.3 Cerca de 1/3 dos casos necessita de mais de uma fase, com cerca de 5% de recidiva local.6
Paciente do sexo masculino, 49 anos, fototipo II e sem comorbidades, apresentava lesão acometendo a borda ciliar inferior direita (desde a extremidade lateral até próximo ao ponto lacrimal inferior) com clínica e dermatoscopia sugestiva de carcinoma basocelular (Figura 1). Relatava tratamento (não especificado) de lesão menor nesta localização há sete anos com oftalmologista.

O exame histopatológico de biópsia incisional prévio concluiu tratar-se de carcinoma basocelular sólido. Proposto tratamento cirúrgico pela técnica de Mohs, o paciente foi submetido à anestesia local e sedação consciente intraoperatória em centro cirúrgico hospitalar.
Realizada exérese da lesão clinicamente visível mais margem de 2mm na primeira fase (Figura 2). O exame microscópico evidenciou áreas de carcinoma basocelular nodular e áreas de carcinoma espinocelular pouco diferenciadas, comprometendo amplamente a margem profunda da ressecção. Na próxima fase, obtiveram-se margens livres, embora com intenso infiltrado inflamatório. Apesar de indicada, nova fase não foi realizada pela coincidência da margem profunda com o fórnix e a conjuntiva bulbar, sendo impossível ampliação cirúrgica sem que o globo ocular fosse lesado (Figura 3).


Para reconstrução da lamela posterior optou-se por enxerto condropericondral da hélice da orelha (Figura 4) e retalho músculo-cutâneo bipediculado da pálpebra superior (Tripier) para lamela anterior, promovendo suporte vascular ao enxerto (Figura 5). Após cantotomia lateral, o enxerto foi suturado no periósteo do canto lateral (com náilon 5-0), no remanescente do tarso medial e no músculo retrator da pálpebra inferior inferiormente (com polipropileno 7-0) (Figura 6). O retalho foi suturado na borda superior do enxerto (com polipropileno 7-0) e na lamela anterior remanescente (com náilon 6.0, em duas camadas). A área doadora foi suturada com náilon 6.0 (Figura 7). Após 30 dias, o retalho foi autonomizado (Figura 8).





O exame histopatológico convencional em parafina da peça cirúrgica residual confirmou o diagnóstico de carcinoma basoescamoso ou metatípico. O paciente apresenta bom resultado estético e funcional da pálpebra reconstruída. Não houve complicações ou cicatrização anormal da área doadora do enxerto. Ele segue em acompanhamento dermatológico e oftalmológico.
Apesar de os critérios histológicos e a nomenclatura do CBE ainda serem alvos de controvérsia na literatura, do ponto de vista prognóstico o importante é diferenciá-lo do carcinoma basocelular queratótico, subtipo indolente de CBC que não apresenta diferenciação escamosa, apenas formação de cistos córneos envoltos por células paraceratóticas dentro dos blocos de células basaloides atípicas.7 O caso reforça a importância do amplo conhecimento histopatológico para o cirurgião de Mohs, visto que a biópsia incisional prévia acusou apenas CBC sólido.
Cerca de 10% dos CBEs envolvem a região palpebral,8 sendo que a invasão ocular é relatada.9 O infiltrado inflamatório denso presente à microscopia da segunda fase da CMM gera dúvidas quanto à extirpação completa do tumor neste caso. Por outro lado, uma fase adicional poderia ter significado uma exenteração desnecessária do globo ocular. Uma técnica de imuno-histoquímica rápida poderia ter auxiliado na diferenciação entre infiltrado inflamatório e neoplásico, mas infelizmente não estava disponível.10 O seguimento clínico e radiológico do paciente é indispensável neste caso.
A reconstrução de defeitos de espessura total da pálpebra inferior pode ser realizada por fechamento primário quando envolve até 25% do comprimento da borda ciliar. Entre 25 e 50%, associa-se uma cantotomia lateral, cantólise inferior e até um retalho temporal. Defeitos acima de 50% precisam necessariamente de reconstrução da lamenta posterior: para defeitos envolvendo o terço lateral, um retalho periostal pode ser empregado, enquanto para defeitos centrais o retalho tarsoconjuntival de Hughes é o mais empregado.11
Uma opção para reconstrução de defeitos maiores que 2/3 do comprimento da pálpebra inferior é o emprego de enxertos para reconstituir a lamela posterior associados a um retalho para lamela anterior. O enxerto pode ser colhido do septo nasal, mucosa oral ou cartilagem auricular.12 O enxerto condropericondral de orelha foi inicialmente descrito por Matsuo em 1987, usando como área doadora a concha auricular para reconstrução da lamela posterior. Entretanto, Sanchez e Lerner, em 2013, propuseram a utilização da hélice da orelha como área doadora devido a sua menor espessura, à maior maleabilidade da cartilagem e, consequentemente, à melhor adaptação ao globo ocular em relação à cartilagem da concha.13
O retalho bipediculado da pálpebra superior de Tripier é indicado para reconstrução de defeitos localizados na pálpebra inferior, especialmente no terço médio. É uma técnica que exige um segundo tempo cirúrgico para secção dos pedículos laterais.14 Apesar de outros retalhos locais poderem ser utilizados15, o retalho de Tripier, por ser miocutâneo, permite melhor nutrição do enxerto subjacente, além de proporcionar um resultado estético superior por utilizar pele da própria região palpebral.
A CMM é o padrão-ouro no tratamento de malignidades da região palpebral, inclusive de tumores mais agressivos como o carcinoma basoescamoso. A reconstrução de defeitos de espessura total da pálpebra inferior extensos com a associação de enxerto condropericondral da hélice da orelha com o retalho miocutâneo bipediculado de Tripier apresenta-se como opção prática, segura e com bom resultado funcional e estético.
Leonardo Mello Ferreira | 0000-0002-3427-032X
Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura.
Frederico Hassin Sanchez | 0000-0001-5856-216X
Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Pamella Paola Bezerra de Oliveira | 0000-0002-3429-032X
Obtenção, análise e interpretação dos dados.
Correspondência: Leonardo Mello Ferreira, Av. Governador Lindenberg, 1262 Centro de Medicina Cutânea - MEC, Centro - CE 29900-204 Linhares (ES), Telefone: (27) 3264-3167. E-mail: leonardomellof@gmail.com







