Relato de caso

Retalho plantar medial inervado para reconstrução de defeito complexo de calcâneo pós-tratamento de melanoma acral

Reconstructive surgery of complex calcaneal defects using the medial plantar flap post-treatment of acral melanoma

Felipe Amado Cerqueira Gomes
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
Roney Gonçalves Fechine Feitosa
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
Flávia Modelli Vianna Waisberg
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
An Wan Ching
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
Lydia Masako Ferreira
Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Retalho plantar medial inervado para reconstrução de defeito complexo de calcâneo pós-tratamento de melanoma acral

Surgical & Cosmetic Dermatology, vol. 12, núm. 2, Supl., pp. 236-240, 2020

Sociedade Brasileira de Dermatologia

Recepção: 12 Maio 2020

Aprovação: 04 Março 2021

Financiamento

Fonte: Nenhum

Descrição completa: Suporte Financeiro:Nenhum

RESUMO: A reconstrução de defeitos da região distal dos membros inferiores é complexa e gera um desafio ao cirurgião restaurador. O uso de retalhos fasciocutâneos locais deve ser considerado para este fim. Nesse relato de casos, apresentamos duas pacientes submetidas à reconstrução de calcâneo com retalho plantar medial inervado após ressecção de melanoma acral. Este retalho proporciona um tecido com elevada resistência e durabilidade, mantendo a sensibilidade da região ao preservar o tronco nervoso. Em nossa prática, o retalho plantar medial tem se mostrado uma excelente opção para reconstrução de defeitos do pé, especialmente do calcâneo, promovendo boa adaptação e resultados duradouros.

Palavras-chave: Cirurgia plástica, Extremidade inferior, Melanoma, Retalhos cirúrgicos.

ABSTRACT: The lower limbs defects reconstructions are complex and impose a challenge for the reconstructive surgeon. The use of local fasciocutaneous flaps can be helpful when dealing with these defects. We report the case of two patients who underwent calcaneal reconstruction surgery using a medial plantar artery flap after the resection of acral melanoma. This flap provides a resistant and long-lasting tissue with a neurovascular sparing technique. The preserved sensitivity contributes to good long-term outcomes. The neurovascular flaps, such as medial plantar artery flap, promote good adaptation and healing regarding foot and heel defects.

Keywords: Plastic surgery, Lower extremity, Melanoma, Surgical flaps.

INTRODUÇÃO

A reconstrução de defeitos do terço distal dos membros inferiores utilizando retalhos locais é um verdadeiro desafio ao cirurgião plástico. A pele delgada da região vizinha, associada à pobreza de tecidos moles e à relativa imobilidade das estruturas, restringe as opções terapêuticas e dificulta bons resultados finais.

O uso do retalho plantar medial para o tratamento dessas lesões foi inicialmente proposto por Harrison e Morgan em 19811 e seu uso tornou-se muito popular com o avanço do conhecimento anatômico-vascular da região. Baseia-se em um retalho fasciocutâneo em ilha do arco plantar e proporciona um tecido bastante versátil para a cobertura de defeitos do pé, calcâneo e tornozelo.

Este retalho pediculado poupa o tronco neurovascular e preserva os ramos sensitivos cutâneos, transferindo um segmento de pele inervado para a área receptora.2 Com isso, proporciona preservação duradoura do retalho e contribui para a reabilitação do paciente. Ademais, por ser um retalho local, mantém as características da pele plantar com elevada resistência e durabilidade, capaz de suportar altas pressões e forças de cisalhamento.3

OBJETIVO

O objetivo do presente estudo é relatar dois casos de reconstrução de calcâneo, após a ressecção de melanoma acral utilizando o retalho fasciocutâneo plantar medial inervado, e sua revisão da literatura.

MÉTODO

Trata-se de um estudo clínico, primário, retrospectivo, em centro único. Utilizou-se o Clinical Case Reporting Guideline Development (CARE)4 para a elaboração de uma série de dois casos conduzidos pelo Setor de Microcirurgia da Disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respeitando-se todos os preceitos éticos e direitos, dentre outros assegurados.

Caso 1

Mulher de 60 anos com queixa de lesão irregular e dolorosa em região de calcâneo direito com crescimento progressivo há três anos. Referia dificuldade de acesso ao sistema de saúde especializado, levando ao atraso no diagnóstico. Ao exame físico, apresentava tumoração melanocítica irregular e ulcerada em região calcânea direita com componente de crescimento nodular. A lesão apresentava aproximadamente 8cm de extensão, mostrava-se dolorosa e aderida a planos profundos. Pulsos pedioso e tibial posterior presentes à palpação. Ausência de linfonodomegalias em região poplítea e inguinal (Figura 1).

Melanoma acral extenso em região de calcâneo
Figura 1
Melanoma acral extenso em região de calcâneo

Seguindo a investigação, foi realizada biópsia incisional da tumoração evidenciando melanoma acral com Breslow de 3,4mm, ulceração e oito mitoses/campo. A doença foi classificada como localmente avançada com plano de clivagem óssea do calcâneo, optando-se por ressecção com 2cm de margens e pesquisa de linfonodo sentinela. O resultado do anatomopatológico foi compatível com melanoma acral com margens livres e linfonodo sentinela negativo (T3bN0M0 Clark V). A reconstrução imediata foi realizada pela equipe de tumores cutâneos por meio de sutura elástica e curativos biológicos (Figura 2).

Resultado pós-operatório em 6 meses
Figura 2
Resultado pós-operatório em 6 meses

Após dois anos de acompanhamento, paciente não apresentou evolução da doença e foi encaminhada ao Setor de Microcirurgia da Cirurgia Plástica da Unifesp para reconstrução tardia. O defeito estendia-se por 9,3 x 8,6cm, optando-se pela reconstrução com uso de retalho plantar medial inervado, conforme apresentado nas imagens. Paciente encontra-se atualmente no 6º mês de pós-operatório com boa evolução, deambulação sem dificuldade e sem recidiva tumoral (Figura 3).

Resultado pós-operatório em 6 meses
Figura 3
Resultado pós-operatório em 6 meses

Caso 2

Mulher de 32 anos veio encaminhada de serviço externo com diagnóstico de melanoma acral em calcâneo esquerdo. Já havia sido submetida à biópsia excisional, com resultado anatomopatológico evidenciando Breslow de 0,7mm, sem mitose ou ulceração (T1aN0M0 Clark II). Ao exame físico, cicatriz em região calcânea em bom aspecto, pulsos pedioso e tibial posterior presentes e ausência de linfonodomegalias em região poplítea e inguinal.

Decidido pela equipe por ampliação de margens cirúrgicas com 1cm, resultando em área cruenta com 3,5cm de diâmetro. Optou-se por reconstrução com retalho fasciocutâneo plantar medial, conforme ilustrado nas figuras 4 e 5.

Marcação pré-operatória: segmento a ser ressecado com margens de segurança e retalho fasciocutâneo plantar medial medindo 9 x 2 cm
Figura 4
Marcação pré-operatória: segmento a ser ressecado com margens de segurança e retalho fasciocutâneo plantar medial medindo 9 x 2 cm

Exérese de lesão respeitando margens de 1,0 cm
Figura 5
Exérese de lesão respeitando margens de 1,0 cm

DISCUSSÃO

Ao lidar com lesões complexas ou defeitos extensos na região distal dos membros inferiores, o uso de retalhos fasciocutâneos deve ser considerado. Dentre as opções possíveis, o retalho plantar medial tem lugar de destaque em área cuja função seja suportar peso, fricção e altas forças de cisalhamento.5 Este retalho proporciona uma cobertura altamente resistente com epiderme espessa, tecido subcutâneo especializado e fáscia com boa adesão a tecidos profundos.

Ramo da artéria tibial posterior, a artéria plantar medial é responsável por manter a irrigação deste retalho.6 Ao emitir ramos superficiais e profundos, irriga a musculatura do hálux e da pele da região plantar. O bom fluxo sanguíneo desta artéria é evidenciado pela possibilidade de transferência deste retalho para diversos locais circunvizinhos e pela viabilidade ao ser transferido para áreas previamente infectadas. Um adequado suprimento sanguíneo favorece bons resultados precoces e tardios (Figura 6).

Retalho com fácil mobilização para fechamento do defeito
Figura 6
Retalho com fácil mobilização para fechamento do defeito

Outra importante característica para o sucesso do retalho plantar medial é a preservação nervosa. A dissecção do nervo plantar medial e seus ramos possibilita a manutenção da sensibilidade deste segmento de pele, sem prejudicar a inervação do restante do antepé. Os ramos sensitivos cutâneos irão manter a percepção de estímulos, como pressão, dor e sensibilidade térmica, contribuindo para a proteção e preservação do retalho.7 Em pacientes com algum grau de neuropatia periférica, tal propriedade é de essencial importância.

A característica ímpar da pele da região plantar nesta equação deve ser ressaltada. A pele plantar é altamente especializada para o suporte do peso do corpo, contando com uma epiderme espessa, ricamente queratinizada e com uma camada adicional de proteção chamada camada lúcida. Soma-se ainda a sustentação de um tecido subcutâneo bastante diferenciado e resistente, permeado com septos fibrosos. Por ser proveniente de região vizinha, o retalho plantar medial mantém a propriedade like with like, substituindo a pele da região plantar por outra pele com as mesmas características (Figura 7).

Pós-operatório imediato
Figura 7
Pós-operatório imediato

Para reconstruções de defeitos distais nos membros inferiores, o cirurgião pode optar por retalhos alternativos. O uso de retalhos surais reversos, retalhos do tipo propeller (axial de fluxo reverso) ou mesmo retalhos microcirúrgicos é boa alternativa e deve ser considerado no planejamento cirúrgico.8 Porém, por não possuir as características like with like, não costuma ser a primeira opção para reconstruções da região plantar (Figura 8).

Pós-operatório em 45 dias
Figura 8
Pós-operatório em 45 dias

Vale ressaltar que, apesar de não haver transferência da camada muscular, o retalho fasciocutâneo plantar medial promove um coxim com espessura e durabilidade adequadas. A fáscia transferida adere-se bem a proeminências ósseas e estruturas profundas da área receptora, promovendo uma resistente ancoragem e dificultando o cisalhamento.9 Além disso, a contração secundária promove um "efeito cogumelo", que contribui para o espessamento do retalho, tornando sua espessura mais semelhante ao tecido original.

Este tipo de retalho tem valor adicional em pacientes com neuropatia diabética e ulcerações distais.10,11 As úlceras nesses pacientes são lesões de difícil tratamento e muitas vezes são defeitos profundos, com exposição de camada muscular e óssea. Frequentemente, tais pacientes já foram submetidos a tratamentos conservadores com pouca ou nenhuma melhora. Apesar de retalhos simples de rotação ou avanço trazerem bons resultados em defeitos menores, para ulcerações complexas normalmente não são suficientes. Nesses casos, os retalhos fasciocutâneos apresentam resultados melhores.

CONCLUSÃO

O retalho plantar medial é uma ótima opção nas reconstruções de defeitos do calcâneo por sua versatilidade12, resistência e reprodutibilidade na execução, com anatomia relativamente constante. Possibilita um retalho inervado sem necessidade de enxertia nervosa e substitui um tecido altamente especializado por outro com características semelhantes. Assim, em consonância com a literatura13, a nossa experiência com tais retalhos aponta para resultados animadores a curto e longo prazo e deve ser considerada como opção para esse tipo de tratamento.

REFERÊNCIAS

Website n.d. Harrison DH, Morgan BD. The instep island flap to resurface plantar defects. Br J Plast Surg. 1981;34(3):315-8. PMID: 7272570 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/0007-1226(81)90019-9 (accessed May 3, 2020).

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Notas

Trabalho realizado na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil.
Suporte Financeiro: Nenhum.

Autor notes

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Felipe Amado Cerqueira Gomes | 0000-0003-3915-582X

Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Roney Gonçalves Fechine Feitosa | 0000-0001-6000-743X

Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Flávia Modelli Vianna Waisberg | 0000-0002-8336-5026

Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

An Wan Ching | 0000-0002-9205-9899

Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

Lydia Masako Ferreira | 0000-0001-6661-1830

Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

Correspondência: Felipe Amado Cerqueira Gomes, Praça Irmãos Karman, 111 - Ap. 182B, Bairro Sumaré, 01252-000 São Paulo (SP). E-mail: felipe.amado.gomes@gmail.com

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