RESUMO: As técnicas de remoção do tecido adiposo são sempre de muito interesse, e entre muitas descritas, as aplicações de desoxicolato de sódio (DS) ou ácido deoxicólico, conhecida como intralipoterapia, têm se destacado nos últimos anos, após a aprovação pelo FDA para o tratamento da gordura submentoniana, devido a facilidade de aplicação e o curto tempo de inatividade. O objetivo deste estudo foi elucidar, através da literatura disponível, as questões mais frequentes a esse respeito e demonstrar que se trata de uma alternativa eficaz e segura para o tratamento da gordura localizada.
Palavras-chave: Gordura Subcutânea, Tecido Adiposo, Gorduras.
ABSTRACT: Techniques for removing adipose tissue are always of great interest, and among many described, the applications of sodium deoxycholate (DS) or deoxycholic acid, known as intralipotherapy, have stood out in recent years, following approval by the FDA for the treatment. of submental fat, due to the ease of application and short downtime. The objective of this study was to elucidate, through the available literature, the most frequently asked questions in this regard, and demonstrate that it is an effective and safe alternative for the treatment of localized fat.
Keywords: Atrophy, Adipose Tissue, Fat Body.
Artigo de revisão
Desoxicolato de sódio - mecanismo de ação, técnica de aplicação, indicações e efeitos adversos
Sodium deoxycholate - mechanism of action, application technique, indications, and adverse effects
Received: 16 October 2023
Accepted: 03 October 2024
O tecido adiposo tem sido objeto de interesse crescente, uma vez que novas técnicas cirúrgicas e não cirúrgicas têm sido propostas para sua remoção e, para isto, o conhecimento anatômico e histológico permite que procedimentos mais racionais e efetivos sejam possíveis. Além disto, tem se tornado um dos focos no conhecimento da anatomia do envelhecimento e da dermatologia.1 Anatomicamente, o tecido adiposo é dividido em hipoderme ou tecido adiposo superficial ou areolar (TAS) e o tecido adiposo profundo ou lamelar (TAP). Em algumas áreas corporais há a presença de ambas as camadas e em outras somente a hipoderme, que reveste todo o tegumento.1 O tecido adiposo subcutâneo ou TAP tem sua origem embriológica no mesoderma e tem como funções armazenar energia, proteger contra choques mecânicos e permitir a mobilidade sobre estruturas mais profundas. Tem ainda importante efeito cosmético moldando o contorno corporal e apresentando significante variação de conteúdo adiposo e de espessura entre os indivíduos. A localização do TAP é determinada principalmente pela genética e pelos hormônios, sendo responsável pelo dimorfismo sexual.2 Está presente somente em determinadas áreas do corpo, principalmente no abdome, flancos, região trocantérica, parte interna do terço superior das coxas, joelhos e parte posterior dos braços. Proporcionalmente, durante a perda de peso, reduz menos em espessura do que o TAS, uma vez que em seus adipócitos há predominância dos receptores adrenérgicos efeito α2 (antilipolítico).3 As áreas de lipodistrofia apresentam a seguinte organização a partir da superfície: pele (epiderme e derme), hipoderme ou TAS, uma camada horizontal fibrosa de tecido conectivo (camada membranosa ou fascia superficialis), TAP, que recobre a fáscia profunda e os músculos.3,4
O TAP difere da hipoderme pela aparência: apresenta lóbulos de tecido adiposo maiores, achatados e menos definidos, com septos fibrosos menos evidentes, em geral orientados obliquamente e conectados à camada membranosa da fáscia profunda dos músculos (Figuras 1A e 1B). Sbarbati et al. descrevem essa camada a partir da rede colagênica periadipocitária como incompleta, extremamente frágil e finamente aderente, com poucos componentes vasculares, o que aparentemente a caracteriza como área de alta deposição lipídica (Figuras 2A e 2B).4 A baixa estabilidade estrutural, as limitadas propriedades de elasticidade ao estiramento e sua baixa resistência à compressão explicam o deslizamento desse tecido subcutâneo sobre a fáscia profunda.3

São poucas as opções terapêuticas não cirúrgicas para o tratamento do tecido adiposo profundo e entre elas a aplicação de desoxicolato de sódio (DS) ou ácido deoxicólico tem se destacado nos últimos anos, após a aprovação pelo FDA para o tratamento do tecido adiposo submentoniano, devido a facilidade de aplicação e o curto tempo de inatividade. Sua aplicação está indicada para pequenas áreas de lipodistrofia, muitas vezes não passíveis para outras formas de tratamento,5 através da técnica denominada intralipoterapia. O DS é um sal biliar sintético com estrutura química idêntica ao endógeno, porém não contém substâncias de origem humana ou animal. Causa lise de adipócitos maduros de maneira dose-dependente com necrose, ruptura e dissolução da arquitetura adiposa e resposta inflamatória, preservando as estruturas adjacentes.5-8 A destruição da células gordurosas provoca uma resposta inflamatória tecidual local que envolve infiltração de fibroblastos, neocolagênese localizada e recrutamento de macrófagos para eliminar os lipídeos e os detritos celulares.9 Este artigo tem como objetivo elucidar o mecanismo de ação do DS, suas melhores indicações para o tratamento do tecido adiposo facial e corporal, técnica de aplicação e seus efeitos adversos.
A associação do desoxicolato de sódio e fosfatidilcolina tem o nome comercial de Lipostabil®. É produzido e distribuído na Europa pela Aventis Pharma, e sua aplicação intravenosa está indicada para o tratamento de embolia gordurosa e dislipidemias.5 A partir de 2001 passou a ser usada no Brasil para tratamento de lipodistrofia, porém nunca teve seu registro solicitado pelo fabricante na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Em abril de 2011, o medicamento Lipostabil® e seu princípio ativo a fosfatidilcolina tiveram sua venda e distribuição proibidas no Brasil.10 No entanto, o princípio ativo desoxicolato de sódio continuou tendo sua manipulação permitida pela agência regulatória. Em 2004 e 2005 foram publicados os primeiros artigos demonstrando que a atividade lipolítica da associação era exercida pelo desoxicolato de sódio e não pela fosfatidilcolina, que atuaria apenas como seu difusor.12 Em 2015 o ATX-101 (Kythera Biopharmaceuticals, subsidiária de Allergan, West Lake Village, Califórnia) foi aprovado pelo FDA, na concentração de 10 mg/ml, para a aplicação subcutânea no tratamento do tecido adiposo submentoniano e passou a ser comercializado com o nome de Kybella nos EUA e Belkyra no Canadá. No Brasil, a partir de 2018 houve a permissão para utilização de DS na redução de tecido adiposo - o parecer concluiu que os estudos mostraram a eficácia e efetividade da droga na eliminação do tecido adiposo submentoniano e que, diante do registro legal, trata-se de um produto liberado para as finalidades propostas (ANVISA/MS - 1.1047.0185), porém o uso injetável da fosfatidilcolina está proibido em todo o território nacional (Resolução ANVISA número 30 de 8 de janeiro de 2003). Atualmente está aprovado nos Estados Unidos e Canadá e, de acordo com a bula do produto, somente para o tratamento do tecido adiposo submentoniano. No Brasil não há especificações sobre as áreas indicadas para o seu uso, portanto o uso corporal não é considerado off-label.
Após os questionamentos a respeito da associação de fosfatidilcolina e DS, os estudos iniciados por Rotunda em 2004 revelaram que este era o ingrediente realmente ativo, atuando de maneira dose-dependente como um detergente biológico solubilizando as bicamadas fosfolipídicas celulares e levando à lise dos adipócitos.10 O DS rompe a integridade das membranas introduzindo seus grupos hidroxila polares no núcleo hidrofóbico da bicamada, com a solubilização da membrana. A célula colapsa em micelas de fosfolipídios e moléculas de detergente.11 Os experimentos utilizando cultura de células, ensaios metabólicos e avaliações histológicas têm independentemente verificado, testando o DS isolado, que este foi capaz de induzir a lise celular e resultante necrose, com a maioria das células destruídas em 15 minutos de incubação com a solução in vitro. Estes experimentos também revelaram que adipócitos maduros foram mais resistentes à lise celular induzida pelo detergente in vitro, levantando a questão de segurança no caso de injeções acidentais fora dos compartimentos de tecido adiposo.12 Estudos posteriores com exames histológicos revelaram que o DS não afeta a camada muscular, derme e epiderme, a despeito da intensa necrose e fibrose do tecido celular subcutâneo.13 O DS é insolúvel em soluções aquosas e estudos histológicos seriados têm demonstrado diferenças marcantes em pacientes tratados com misturas, quando comparados ao DS isolado. Os espécimes, após a injeção, têm mostrado pequenas áreas de tecido adiposo com efeitos necróticos e fibróticos dispersos, com mínimas alterações após a injeção da mistura, em oposição às áreas focais de necrose de tecido adiposo no uso isolado do DS.12 Áreas injetadas uma semana antes do exame microscópico revelaram pequenas áreas de necrose de tecido adiposo no tecido exposto à solução, enquanto intensa inflamação e fibrose foram observadas nas áreas tratadas com o uso isolado de DS. Após duas semanas, os exames histológicos mostraram grande áreas de necrose em saca-bocado, com inflamação, neovascularização, lise adiposa e infiltração de macrófagos com o DS isolado e necrose adiposa mais organizada com a solução. Após um mês, uma aparência fibrótica foi vista no tecido subcutâneo tratado com DS isolado, enquanto as áreas tratadas com a solução combinada demonstravam resposta fracionada, com pequenas áreas de necrose adiposa separada por ilhas de tecido adiposo de aparência normal. As áreas de tratamento exibiram uma celulite estéril com infiltrado rico em neutrófilos na derme reticular profunda em todos os pacientes.12,13 Em resumo, quando injetado no tecido adiposo subcutâneo, o DS causa adipocitólise e estimula a resposta tecidual local com infiltração de macrófagos que removem os detritos celulares e os lipídios liberados, recrutamento de fibroblastos e neocolagênese. O processo inicia 15-20 minutos após a aplicação.5,15 Estudos têm demonstrado que o DS isolado entra na circulação em poucos dias após a injeção, se liga à albumina presente no plasma e sofre eliminação fecal de maneira similar aos ácidos biliares endógenos.5,13,14
A aplicação de DS, de preferência isolado, está indicada para áreas de lipodistrofia de pequenas e médias proporções, em pacientes de baixo IMC (20-25). Na face, as áreas mais indicadas são o tecido adiposo submentoniano e a mandíbula. No corpo, as áreas mais indicadas estão localizadas no abdome, cintura, flancos, superolateral das coxas, posterior superior das coxas, abaixo do sulco infraglúteo, parte interna dos joelhos e dos braços, dorso e dobras anterior e posterior das axilas.15 Esses locais são de pouca resposta terapêutica a outras formas de tratamento, incluindo a lipoaspiração, que pode deixar flacidez residual.15 Além do tratamento da lipodistrofia em si, outras indicações na literatura são para retoques de lipoaspiração e para o tratamento do tecido adiposo paradoxal após criolipólise.16
Infecção no local da aplicação, gravidez e lactação. Não há estudos em pacientes menores de 18 anos ou acima de 65 anos que atestem sua segurança.
No Brasil, o DS deve ser manipulado mediante receita individualizada com o nome do paciente. As concentrações mais utilizadas são de 1% para a face e de 2,44% para o corpo. Os estudos não têm demonstrado vantagens na concentração de 6%.16,17,20 As associações com outros ativos não aumentam a performance do DS e, além disso, não há padronização para essas preparações. Deve-se destacar que os inúmeros produtos distribuídos no Brasil, com a presença de fosfatidilcolina ou outros ativos, estão registrados somente para uso cosmético e não são indicados para uso injetável.
Antes de cada aplicação são recomendadas fotos de frente, ângulo de 45º e 90º para avaliar o resultado do tratamento. A cada frasco de DS a 2,44% com 6 ml para uso corporal pode ser adicionado 1,0 ml de lidocaína para reduzir a dor na aplicação. A técnica de injeção é importante para evitar eventos adversos técnico-dependentes, devendo-se destacar que se trata de intralipoterapia e não de mesoterapia (ou intradermoterapia). A principal diferença é que na mesoterapia a aplicação é realizada na derme, e na intralipoterapia, no tecido adiposo localizado, sendo uma aplicação mais profunda.16,17,19,20 A aplicação pode ser realizada com agulhas 30G 13 mm para o corpo e de 9 mm para a face. Pequenas quantidades devem ser injetadas em cada ponto da aplicação: de 0,1 ml ou até menos a cada 1 cm na face e até 0,2 ml a cada 2 cm no corpo devem ser respeitadas. Estudos demonstraram que doses maiores que 4 mg/cm2 não produziram maior eficácia e resultaram em efeitos adversos mais frequentes e severos.18,19 A quantidade máxima recomendada por Amore et al. é de 5 frascos com 10 ml de solução a 1,22%.18 A profundidade deve ser de 9 a 13 mm na maior parte das áreas corporais e em torno de 6 mm na face e pescoço, com a posição da agulha sempre vertical à pele. Obrigatoriamente deve-se aguardar alguns segundos para a retirada da agulha, evitando a superficialização do produto. A aplicação é praticamente indolor, porém o eritema e o ardor local começam poucos minutos após. Massagens no local ajuda aliviar os sintomas. Após a aplicação, o uso de cinta compressiva por alguns dias pode reduzir o edema e a dor local. O uso de analgésicos orais geralmente é desnecessário. A aplicação pode ser feita com intervalos de 4 semanas e os estudos demonstraram a necessidade de até 6 sessões para a melhora completa da adiposidade, embora a maioria dos pacientes melhoraram com 4 sessões ou menos.18
Os estudos não têm demonstrado efeitos sistêmicos com as doses indicadas de DS de uso isolado.12 Edema, eritema, endurecimento e dor local são efeitos adversos esperados e causados pela paniculite provocada pela aplicação de DS. São efeitos que surgem logo após a aplicação, são autolimitados sem necessidade de tratamento. O edema tem a duração de 9-10 dias e o endurecimento de 17-25 dias e tendem a ser proporcionais ao grau de lipólise. Nas associações com DS foram observadas náuseas, tonturas e mal-estar logo após a injeção.12 Complicações verdadeiras são disfagia, assimetria temporária do sorriso por paresia no nervo marginal da mandíbula, necrose focal e irregularidades por superficialização das injeções, nódulos por necrose focal aumentada, e alopecia transitória da área tratada provavelmente pela inflamação local. Os estudos comparativos com DS isolado e associações não demonstraram diferenças em relação aos efeitos adversos e complicações. Paniculite septal e lobular foram notadas com espessamento dos septos fibrosos, necrose adiposa e formação de granulomas persistentes quando doses maiores que 0,2 ml são utilizadas em cada ponto e quando o DS isolado foi aplicado em altas concentrações.13 O tratamento com DS não teve efeitos sobre os níveis séricos de glicose, de lipídios e de marcadores plasmáticos de inflamação, desde que utilizado dentro das doses indicadas.21
O DS tem se mostrado uma alternativa eficaz e segura para o tratamento da lipodistrofia (tecido adiposo localizado) desde que aplicado corretamente através da técnica de intralipoterapia (injeção no tecido adiposo subcutâneo), com poucos e autolimitados efeitos adversos.21,22 A associação com outros ativos não demonstrou maior performance e a associação com fosfatidilcolina está proibida para uso injetável no Brasil.
Correspondência: Marisa Gonzaga da Cunha, E-mail: dramarisagonzaga@yahoo.com.br / daphinegiglio@gmail.com