RESUMO: Alguns dos primeiros manuscritos renascentistas do livro de cozinha atribuído a Apício, produzidos na segunda metade do século XV, foram quase certamente confeccionados para integrar coleções de bibliotecas privadas de poderosos senhores de cidades da Itália do Norte e Central. Entretanto, a história de um deles, o manuscrito laurenziano Plut. 73.20 - transladado da coleção privada dos Médici para a primeira biblioteca pública moderna, a Biblioteca Medicea Laurenziana - permite uma reflexão mais ampliada. A partir da observação de aspectos materiais do manuscrito, bem como daqueles referentes à história de seu armazenamento espacial, desenvolve-se uma reflexão acerca de como os conteúdos de Apício foram interpretados e classificados pelos humanistas da época. A hipótese perseguida é que os humanistas, particularmente aqueles interessados em medicina, exerceram um papel importante na transformação do livro de cozinha apiciano, que passa a ser, ao menos durante um certo período de tempo, classificado como médico e não culinário.
PALAVRAS-CHAVE: ApícioApício,Renascimento italianoRenascimento italiano,Livros de cozinhaLivros de cozinha,MedicinaMedicina,BibliotecasBibliotecas,Circulação de conhecimentoCirculação de conhecimento.
ABSTRACT: Some of the first Renaissance manuscripts of the cookbook attributed to Apicius, produced in the second half of the 15th century, were almost certainly made to integrate private libraries of powerful signori of Northern and Central Italy. Nonetheless, the long history of the Apician manuscript Plut. 73.20 - an item that was moved from the Medici’s private collection to the first modern public library in Florence, the Biblioteca Medicea Laurenziana - allows further considerations about it. The investigation of its material aspects, as well as of its physical and spatial location in the library, will be used in this article as a starting point to discuss how the contents of Apicius’ cookbook were interpreted and classified by the humanists of its time. The working hypothesis is that humanists, particularly those interested in medicine, were fundamental in changing its classification, at least temporarily, from culinary to medical one.
KEYWORDS: Apicius, Italian Renaissance, Cookbooks, Medicine, Libraries, Circulation of knowledge.
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL
O lugar de um livro de cozinha em uma biblioteca pública renascentista: estudo sobre o De re coquinaria, atribuído a Apício, a partir do manuscrito laurenziano Plut. 73.201
The place of a cookbook in a Renaissance public library: study on Apicius’ De re coquinaria from the Laurentian manuscript Plut. 73.20
Recepção: 01 Fevereiro 2018
Aprovação: 27 Julho 2018
O livro de cozinha atribuído a Apício, usualmente conhecido por De re coquinaria, é uma compilação de receitas médico-culinárias advindas de diferentes períodos do contexto romano imperial.3 Não são poucas as referências à obra e ao seu suposto autor - um gastrônomo que teria vivido na Roma do primeiro século da era cristã - encontradas ao longo de fontes antigas e altomedievais.4 Nelas Apício e seu texto se fundem e se confundem, transformando-se na autoridade mais célebre que nos deixou o mundo antigo quando o assunto é cozinha. No entanto, a história do texto apiciano, nos suportes manuscrito e impresso, permanece ainda pouco conhecida e estudada. À parte um pequeno fragmento em papiro,5 três manuscritos carolíngios, produzidos entre os séculos VIII e IX em diferentes localidades do ocidente europeu (França, Alemanha e possivelmente Itália), constituem os registros escritos completos mais antigos de que se tem notícia.6 A existência altomedieval do texto apiciano parece ter sido pontual e circunscrita a um dado grupo social marcado pelas aspirações do Renascimento Carolíngio.7 Ao que tudo indica, após esse momento, um grande silêncio envolveu o texto, que voltou a receber atenção apenas muito posteriormente. Na segunda metade do século XV, impulsionados pelo interesse de alguns humanistas italianos, os manuscritos medievais de Apício foram postos novamente em circulação, e indícios de uma releitura de seus conteúdos podem ser evidenciados, por exemplo, pelas dezesseis cópias manuscritas produzidas naquele período8 e cinco edições subsequentes, impressas nos últimos anos do século XV e na primeira metade do XVI.9
O manuscrito Plut. 73.20 encontra-se atualmente na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença.10 Foi confeccionado em pergaminho e mede aproximadamente 150mm x 220mm. O códice que o contém possui encadernação em couro marroquino vermelho com impressão a frio das armas dos Médici em um brasão central, bem como nas ponteiras de ferro. Ali está também a indicação de sua cota. Trata-se de uma encadernação do século XVI, posterior à sua confecção, que é da segunda metade do século XV, como veremos logo adiante.
O receituário de Apício não está sozinho no códice. Nos 82 fólios encontram-se as seguintes obras, nesta ordem: Apício (ff. 1r-46r); a Gêrmania de Tácito (C. Cornelii Taciti equitis, De origine et situ Germaniae liber (ff. 46r-61r); e quarenta e sete cartas de Diógenes, o filósofo cínico de Sínope, traduzidas para o latim pelo humanista Francesco Aretino Griffolini e dedicadas ao papa Pio II (ff. 61v-82). Tal dedicatória tem sido comumente usada como referência para datar o códice que teria, com isso, sido produzido em algum momento entre 1458 e 1464, período do papado de Pio II.11
O primeiro fólio existente do texto de Apício foi escrito em littera antiqua.12 A decoração é refinada: uma borda com vinhas que se entrelaçam e onde se acham putti, pássaros, um retrato humano não identificado13 e o brasão dos Médici. Nos demais fólios há menos suntuosidade, mas aparecem capitais decoradas em vermelho, azul, verde e ouro no início de cada capítulo. Voltando ao primeiro fólio, encontramos o brasão dos Médici na borda inferior. A presença de anotações marginais é rara em todo o manuscrito e limita-se a algumas correções do latim.
A ligação com os Médici evidencia-se não apenas pelo brasão, mas também pelos profissionais envolvidos com a confecção do manuscrito de Apício. Tanto o copista, identificado como Messer Piero di Benedeto Strozzi (c. 1416-1492?),14 quanto o decorador, cujo nome é desconhecido, foram pessoas do círculo de Vespasiano da Bisticci (1421-1498), bibliófilo e negociante de livros muito célebre e ativo no XV, e bastante próximo dos Médici. Se é certo que o manuscrito foi produzido para a coleção privada da família Médici, não se pode afirmar o mesmo sobre quem teria sido seu destinatário: Cósimo de Médici (1389-1464) ou um de seus filhos, Piero (1416-1469) e Giovanni (1421-1463). Há, porém, indícios apontando para o último, pois na época da sua confecção, Vespasiano andara trabalhando como intermediário na produção de uma série de manuscritos de luxo, muitos deles cópias de textos clássicos, para Giovanni de Médici (curiosamente, o pavão utilizado na decoração do primeiro fólio do texto apiciano costumava ser uma marca de Giovanni).15 Além disso, como se verá a seguir, dos três Médici mencionados, Giovanni é o único que aparece na documentação como alguém bastante empenhado em adquirir um conjunto de manuscritos medievais recém encontrados, dentre os quais estavam os de Apício. Contudo, neste artigo não avançaremos nessa direção por falta de evidências mais concretas.
De uma forma ou de outra, a história desse manuscrito de Apício é reconhecidamente parte da coleção de livros particular dos Médici, também chamada Medicea Privata, iniciada por Cósimo, o velho, por volta de 1410.16 No entanto, não se sabe exatamente quando o manuscrito entrou para aquela coleção.17 O primeiro registro concreto é da época de Lorenzo, o magnífico (1449-1492), herdeiro de um patrimônio de cerca de oitocentos livros acumulados desde os tempos de seu avô Cósimo.18 No registro de empréstimo de seus bens há uma referência do ano de 1480 a um empréstimo do códice inteiro para Bernardo Rucellai (1448-1514), uma figura importante envolvida com a Academia Platônica de Florença e também cunhado de Lorenzo. Rucellai permaneceu com o manuscrito por dois anos (até 5 de novembro de 1482).19
Antes de 1480, o que se sabe é que a família, ou pelo menos Giovanni de Médici, já havia demonstrado interesse e empenho em obter Apício. Através da correspondência de Giovanni, conseguimos acompanhar um pouco dessa história. Em 1455 o humanista Enoch d’Ascoli havia chegado em Roma carregado de alguns manuscritos medievais adquiridos em mosteiros da França e da Alemanha, inclusive o de Apício. Giovanni, que estava em Florença, pediu então que seu irmão ilegítimo, o sacerdote Carlo de Médici, (1428/30-1492) intermediasse o acesso a eles. Em 1456 Carlo escreve a Giovanni dando notícias dos manuscritos, mas explicando que Enoch estava cobrando muito caro pela permissão para copiar aquilo que, na sua opinião, valia mais pela novidade do que pela utilidade.20 Giovanni não desistiu e tentou adquirir os manuscritos de Enoch por outras vias. Um ano depois, seu primo, o banqueiro Pierfrancesco di Lorenzo de Médici (1430-1476), lhe escreveu dizendo que do conjunto trazido por Enoch talvez ele conseguisse apenas Apício, pois os demais já haviam sido incorporados à coleção papal.21 No início de 1458 Giovanni seguia em sua busca, mas, ao que tudo indica, o acesso a Apício ou a qualquer outro manuscrito trazido por Enoch inviabilizou-se com seu desparecimento e sua posterior morte. Nem mesmo o envio por Carlo de Médici de um pedido de ajuda para recuperar os manuscritos, ou cópias deles, ao governador do Marche, onde havia morrido Enoch, foi capaz de pôr fim à questão.22 Diante disso, Giovanni talvez tenha desistido da busca ou talvez tenha simplesmente mudado de ideia. Concretamente, o que se pode afirmar é que os Médici acabaram por adquirir sua cópia do texto apiciano, o manuscrito Plut. 73.20, a partir de um apócrifo descendente de outro manuscrito medieval que não aquele trazido por Enoch.
Mas voltemos à Lorenzo e ao período do primeiro registro do manuscrito na Medicea Privata. Com sua morte, os livros de Lorenzo foram herdados pelo filho, Piero, o Desafortunado (1471-1503). Dois anos após o início de seu governo, em 1494, Piero se rendeu incondicionalmente diante da invasão do rei da França, Carlos VIII (1470-1498), que atravessou Florença com seu exército, descendo em direção a Nápoles.23 Na ocasião, todos os bens dos Médici foram confiscados pela Signoria de Florença, e os livros da coleção privada, por questões de segurança, depositados no Convento de San Marco, onde já funcionava, como dissemos, a biblioteca pública da cidade. O inventário de 1495 foi compilado pelo bibliotecário de Lorenzo Giano Lascaris e pelo chanceler Bartolomeo Ciai justamente nesse momento crítico. A coleção inventariada continha 1017 códices, 688 dos quais foram distribuídos em dezessete caixas. Apício estava na segunda caixa e levava o número 618.24
A partir daí, tem início a itinerância de Apício. O livro que sempre havia estado em salas privadas localizadas na suntuosa residência dos Médici no centro de Florença, passou a perambular entre alguns estabelecimentos ao sabor dos revezes políticos pelos quais atravessava a cidade naquele final de século. Do Convento de San Marco seguiu para a Badia Beneditina de Florença e de lá, em 1500, de volta a San Marco.25 Oito anos depois, o cardeal Giovanni de Médici, filho de Piero (e o papa Leão X, a partir de 1513), demonstrou interesse nos livros da família e levou-os para Roma, após pagar a substancial quantia de 2600 ducados, onde permaneceram no atual Palazzo Madama até sua morte, em 1521.26 Em 1523, com receio de confisco da coleção para a Biblioteca Vaticana, os livros foram enviados novamente para Florença por seu primo Giuliano (futuro papa Clemente VII) e mantidos em caixas na residência dos Médici até 1527. Com uma nova expulsão dos Médici de Florença,27 os livros foram removidos para o refeitório do Convento de San Lorenzo onde permaneceram até sua transferência definitiva para o edifício da atual Biblioteca Medicea Laurenziana aberta ao público em 1571,28 no governo de Cósimo I (1519-1574), grão-duque da Toscana, onde permanecem até hoje. Esse momento põe término à itinerância do manuscrito de Apício, que acabou acorrentado a um dos 88 bancos da biblioteca (os chamados plutei).
Os bancos - executados pelos entalhadores Giovan Battista del Cinque e Ciapino, seguindo desenho de Michelangelo - tinham dupla função: leitura e custódia. Na sua parte interna, os livros, todos tendo recebido novas encadernações em couro marroquino vermelho e correntes de ferro (que podemos apreciar ainda hoje), foram guardados em posição horizontal, ordenados segundo a classificação de saberes vigentes na época.29 A lateral de cada pluteo contém uma inscrição indicativa da seção temática à qual aquele banco pertence e uma tabuleta com o elenco de obras que armazena, conforme se observa na Figura 1.30

O número de chamada de Apício provém exatamente da sua localização física e espacial dentro da biblioteca. Plut. 73.20 indica que Apício pertencia ao banco 73 e era o item de número 20 da lista de obras ali contidas. A Figura 2 mostra a lateral superior do banco, onde se encontra a inscrição “MEDICI LATINI/CONTIENS MSS CODD. LATINOS XLI/ITALICOS IX EDITUM I”, que faz referência à seção de textos médicos latinos disposta ao longo dos bancos 73 e 75. A inscrição, réplica da original do século XVI, alude acertadamente ao conjunto de obras médicas recebidas da coleção particular dos Médici. Já a tabuleta enumera daquele conjunto vinte textos latinos (em manuscritos datados do século XIII ao XV) de autoria atribuída a autores antigos gregos, latinos e árabes, como Hipócrates, Galeno, Dioscórides, Celio Aureliano, Apuleio, Cornélio Celso, Isaac Israeli e Avicena. A Figura 3 destaca a referência a Apício inscrita na parte final da tabuleta.


O célebre livro de cozinha romano, assim, encontrou lugar na coleção de obras médicas. O que pode parecer apenas um detalhe - já que passou desapercebido pelos estudiosos da Apiciana - é, ao contrário, um indício importante para a reflexão acerca da trajetória, sentido e recepção de Apício no Renascimento.
Na trajetória do manuscrito Plut. 73.20 é possível identificar três momentos em que se particularizam elementos relativos à natureza da coleção à qual esteve atrelado (e, nesta, sua localização e armazenamento), bem como à função e ao significado que ali desempenhou. Embora entendamos não se tratar de momentos estanques e tão nitidamente distinguíveis - há certamente zonas de superposição entre eles -, elaboramos o Quadro 1 para ressaltar a predominância de certos traços característicos da existência do manuscrito naquela trajetória. As categorias “função” e “significado” escolhidas para análise procuram dar conta, em menor escala, da expressão de necessidades de certos grupos sociais e, de maneira mais contundente, das formas de expressão de práticas e representações culturais daqueles mesmos grupos. Isso significa que, do ponto de vista teórico, nossa análise se alinha a uma história cultural da circulação e reprodução dos manuscritos e dos livros.31

O primeiro momento, como vimos, é o tempo em que o manuscrito pertenceu à coleção pessoal da família Médici; estender-se-ia da época de sua encomenda e confecção, entre 1458 e 1464, até o final de governo de Piero de Médici, em 1469. Durante esse curto período, a obra permaneceu abrigada em estantes, caixas ou armários encerrados em um studiolo, espaço destinado ao estudo, mas também à exibição de objetos pessoais da residência dos Médici.32
As características materiais do manuscrito de Apício - pergaminho, rica decoração e quase ausência total de comentários marginais feitos por leitores/usuários -, diferentemente de outros manuscritos apicianos que não possuem decoração, foram escritos em papel e/ou possuem uma quantidade maior de comentários em suas margens, indicariam uma função muito mais ostentatória do que prática. Seja no studiolo de Giovanni ou no de Lorenzo, Apício seria uma espécie de peça de coleção, um tesouro, embelezando aquele espaço privado e transformando-o em vitrine que sinalizava a distinção social possibilitada pelas posses e pelo mecenato que os Médici exerciam em Florença. É importante lembrar que aqueles foram anos decisivos para a afirmação de poder da família Médici na direção política e econômica de Florença contra as oligarquias republicanas ou nobiliárquicas de tradição medieval.33
Ademais, a ideia de Apício como tesouro está ancorada não apenas no valor estético do manuscrito em si, mas igualmente naquilo que poderia evocar. A biblioteca renascentista ideal era aquela construída sobre os preceitos dos estudos humanísticos, segundo o Cânone Bibliográfico compilado por Tommaso Parentucelli (1397- 1455), futuro Papa Nicolau V - o papa que havia enviado Enoch d’Ascoli à caça de manuscritos medievais. O Cânone foi encomendado por Cósimo de Médici quando de seu envolvimento com a organização das bibliotecas públicas de San Marco e da Badia di Fiesole. Mais tarde foi usado por aquele mesmo papa na organização da Biblioteca Vaticana e de outras bibliotecas públicas e privadas do período.34 Pode ser definido como a lista de livros essenciais que qualquer biblioteca humanística que se quisesse completa deveria conter. Concretamente, isso significava pais da Igreja e outros autores cristãos, juntamente com obras laicas da antiguidade greco-latina. No entanto, a lista não incluía vários outros autores que se sabe constarem regularmente das coleções de bibliotecas humanísticas do Renascimento italiano no período.35 Apício não aparece elencado no Cânone (e, diga-se de passagem, nenhum outro receituário médico ou culinário),36 mas as não poucas referências a ele encontradas em Sêneca, Plínio, Marcial e Juvenal, por exemplo,37 teriam certamente servido para suscitar o interesse em sua aquisição.
É oportuno lembrar, ainda, que razões semelhantes parecem ter motivado outros senhores italianos, além dos Médici, a adquirir manuscritos de luxo de Apício para suas coleções particulares. Do conjunto de manuscritos renascimentais, é possível identificar inicialmente os Strozzi de Florença e os Rossi de Bolonha como proprietários de manuscritos apicianos (respectivamente, Florença, Biblioteca Medicea Laurenzia, Strozzi 67 e Oxford, Bodleian Library, Canonicianus Class. Lat. 168).38 A esses nomes devemos acrescentar o de Federico de Montefeltro, Duque de Urbino, que em vez de encomendar uma cópia coetânea de Apício para sua biblioteca, adquiriu o mais luxuoso dos manuscritos carolíngios existentes.39
O ideal do governante letrado, alinhado aos valores dos studia humanitatis, encontrara na biblioteca espaço privilegiado para sua sustentação. A escolha das obras, tanto em forma quanto em conteúdo, não era um exercício aleatório; ao contrário, caracterizava-se por uma ação estrategicamente orientada para o fortalecimento de seu status social. Nesse sentido, Apício integraria o mobiliário daqueles studioli não por suas receitas - que de fato não despertaram o apetite do público renascentista40 - mas por seu valor simbólico. Os poucos leitores que o procuraram nesse momento, o fizeram muito provavelmente por motivos linguísticos bastante peculiares, como era o caso de humanistas como Teodoro Gaza (c.1398-c.1475), Antonio Beccadelli, o Panormita (1394-1471) e Giovanni Aurispa (1376-c.1459) interessados no estudo de formas antigas do latim e do grego.41 Além disso (ou por causa disso), o manuscrito parece não ter circulado.
Um segundo momento da trajetória do manuscrito teria início com o governo de Lorenzo, o Magnífico, em 1469, e terminaria com sua colocação definitiva nos bancos do edifício construído especialmente para abrigar a Biblioteca Medicea Laurenziana em 1571. Embora Apício permanecesse parte da Medicea Privata, o papel de tesouro parece se atenuar em favor de um novo uso, rastreado direta e indiretamente por menções ao texto apiciano nos escritos de humanistas do período. Nesses 77 anos, a obra deixou o studiolo várias vezes para circular (ainda que de forma restrita) e peregrinar por diferentes espaços de armazenamento. Trata-se de um momento que precisa ser melhor estudado, mas sobre o qual algumas ideias podem ser lançadas.
Com Lorenzo de Médici a coleção abriu-se a um número cada vez maior de estudiosos.42 Obviamente, por não se tratar de uma coleção pública na essência do termo, seu acesso devia ser intermediado e chancelado pela rede de contatos da família. O conhecimento potencialmente oferecido pelo texto apiciano parecia chamar a atenção de um número de humanistas com interesses que iam além da filologia grega e latina. É desse período, por exemplo, o já mencionado registro de empréstimo a Bernardo Rucellai. O humanista que alguns anos depois promoverá encontros da Academia Platônica nos jardins de sua residência, os chamados Orti Oricellari, era um admirador incondicional da antiga Roma. Difícil saber se Rucellai pedira o códice motivado por Apício ou pela Germânia de Tácito, já que referências à história de Roma guiaram vários aspectos de sua vida pública e privada (desde a escolha arquitetônica e paisagística dos jardins ao melhor sistema político defendido para o governo de Florença).43
Se o interesse de Bernardo Rucellai por Apício é uma suposição, o mesmo não pode ser dito de seus contemporâneos. O humanista polímata Ângelo Poliziano (1454-1494), por exemplo, estudou atentamente o texto apiciano consultando não só o manuscrito laurenziano, mas também dois exemplares altomedievais com o objetivo de produzir ele próprio a sua cópia de Apício (o manuscrito São Petersburgo, no Instituta Istorii Akademii Nauk 627/2, hoje em fragmentos). Além disso, Poliziano usou também informações sobre Apício no seu Panepistemon - preâmbulo à lição sobre a Ética a Nicômaco de Aristóteles lida em 1490 no Studio Fiorentino.44 O médico humanista florentino Lorenzo Lorenzi (1459/60-1502) é outro nome a ser lembrado. Assim como Poliziano, Lorenzi produziu igualmente uma cópia de Apício (no manuscrito Vat. Lat. 6337),45 embora haja suspeitas de que essa tenha sido plágio de Poliziano e não fruto de um trabalho próprio de estudo e colação dos manuscritos altomedievais e do manuscrito laurenizano.46 Por último, há Filippo Beroaldo, o Velho (1453-1505), humanista que acessou o texto de Apício em busca de informações para seu estudo histórico-etimológico sobre termos citados no De re rustica de Columella (Enarrationes vocum priscarum in libris De re rustica).47
O que Poliziano, Lorenzi e Beroaldo foram buscar em Apício estava relacionado de alguma forma com subsídios para ampliar, debater ou rebater conhecimentos sobre a materia medica. A releitura de textos antigos - e, em alguns casos, a leitura pela primeira vez de textos nunca antes traduzidos para o latim - abrira um novo espaço de reflexão sobre diversos campos do saber, dentre eles a medicina e a história natural. Em particular, Apício parece ter circulado dentre aqueles que de algum modo estavam relacionados com o movimento que se convencionou chamar de humanismo médico, cuja agenda, dentre outras coisas, incluía a discussão de nomes e atributos de plantas, animais e minerais a partir do cotejamento de um corpus de fontes antigas e contemporâneas cada vez mais vasto.48 Um uso diverso para Apício iria se configurar, portanto, nesse novo contexto intelectual; a obra deixaria seus atributos simbólicos em segundo plano para ganhar destaque pela possibilidade de estudo proporcionada por seus conteúdos sobre natureza. Apício fornecia uma espécie de catálogo da natureza conhecida na Antiguidade, sobre o qual interessava particularmente a listagem de plantas, sua descrição, propriedades e usos terapêuticos.49
Essas afirmações são possíveis para o período anterior à expulsão dos Médici de Florença, em 1494. Embora a pesquisa sobre a itinerância de Apício de 1495 a 1571 não esteja concluída, alguns dados sobre a lógica que organizou seu armazenamento e classificação ao longo daqueles anos oferecem pistas no sentido da continuidade de uma leitura pela perspectiva médica antiga, mais especificamente pela materia medica, como já adiantamos. O alinhamento de Apício com a medicina pode ser observado de forma efetiva pela opção de ordenação dos livros dos Médici nas caixas que os levaram para a Signoria e para o Convento de San Marco. Segundo o inventário de 1495, Apício, nº 618, é seguido pela Mulomedicina de Vegécio (nº 619) e pelos Aforismos de Hipócrates (nº 620). Integrava, como sabemos pela cor da encadernação (verde nesse momento), a seção dos livros de artes, à qual pertenciam também obras sobre agricultura e artes militares.50 Alguns anos depois, quando a coleção chegou a Roma, em 1508, os códices foram organizados em estantes dentro de seis armários. Apício recebeu número 381 e estava no sétimo armário, destinado aos textos de medicina, geografia, direito, filosofia.51 Retornados à Florença, os livros permaneceram durante cinquenta anos (de 1521 a 1571) em caixas, que muito provavelmente respeitavam os mesmos critérios de ordenamento.
A suposição anterior está baseada no fato de Apício ter permanecido na coleção médica até o início do século XX, quando o acervo da Biblioteca Medicea Laurenziana foi transferido da biblioteca monumental para seu espaço atual. Nesse terceiro momento da trajetória do manuscrito, a lógica de classificação de Apício como texto médico teria se mantido. Acorrentado deliberadamente em um banco destinado a textos médicos da Antiguidade e da Idade Média latina, Apício compunha um conjunto de fontes, ou de autoridades, como queiramos, parte do patrimônio médico latino que, a partir de 1571, estava disponível de maneira mais aberta para qualquer estudioso, sem a intermediação de antigos proprietários.
Um olhar mais alargado para a classificação dada a Apício pela biblioteca pública fundada pelos Médici evidencia alinhamento com a leitura que dele era feita desde a Alta Idade Média, pelo menos. Dos três manuscritos medievais existentes, um pertenceu a um códice médico que continha, além de Apício, um texto de tradição hipocrática sobre dieta (De observantia ciborum) e um receituário médico anônimo.52 Tal alinhamento é percebido igualmente na opção de obras publicadas conjuntamente com Apício na edição de 1541, que traz, além do texto apiciano, o tratado médico-filosófico De honesta voluptate et valetudine, de Platina, e De facultatibus alimentorum, do médico bizantino Paulo de Égina. Outro indício é o perfil do editor-comentador do texto apiciano na edição de 1542, o médico alemão Gabriel Hummelberg. Poderíamos ir ainda mais distante no tempo ao lembrar as duas únicas edições conhecidas de Apício do século XVIII - ambas organizadas e comentadas por médicos.53
Ademais, outro elemento parece reforçar essa perspectiva médica para Apício. Como dito anteriormente, a comida que resultava das receitas apicianas não estava em consonância com o gosto vigente no Renascimento (nem mesmo com aquele que se conseguiu rastrear a partir dos séculos XIII e XIV54) e, por esse motivo, seria mais fácil dissociá-lo de livros de cozinha produzidos no período e deslocá-lo para espaços frequentados por homens das letras, como studioli e bibliotecas.55 Ao perder seu sentido original, o livro de cozinha romano recebe nova chancela que o autoriza a ser usado como fonte de outro tipo de saber que não o do ofício de cozinhar. Nunca é demais lembrar que, do ponto de vista da tradição intelectual ocidental, as artes culinárias não constituíam um saber valorizado a ponto de ocuparem lugar legítimo dentre as sete artes liberais. No caso de Apício, a chancela vem dos humanistas médicos que passam a enxergar o conteúdo da obra não mais como uma compilação de ingredientes e modos de fazer comida, mas como uma espécie de glossário de plantas, animais e minerais em uso no mundo antigo que poderiam auxiliá-los naquele momento no estudo da materia medica.
Os aspectos que destacamos na trajetória do manuscrito de Apício Plut. 73.20 são pontuais, mas permitem desenvolver algumas reflexões finais (ainda que provisórias) sobre sentido e consumo do texto apiciano no Renascimento.
Primeiramente, teria existido dois tipos de consumo para Apício ao longo de sua existência entre os séculos XV e XVI. Até mais ou menos a década de 1470, quando o livro se achava confinado ao espaço restrito do studiolo, teria havido um consumo ostentatório de Apício como objeto de luxo e não propriamente em função do conteúdo de suas receitas. Em um momento seguinte, essa perspectiva do livro-objeto teria sido deixada de lado para dar lugar a outra, que privilegiaria o conteúdo daquelas receitas como veículo de conhecimento. Ou seja, as receitas passaram a ser vistas como fonte para estudo da materia medica - deviam ser entendidas dentro do contexto intelectual do humanismo médico, cada vez mais engajado no estudo dos antigos textos sobre qualquer aspecto da natureza que pudesse colaborar para o desenvolvimento da medicina do período. Esse viés de leitura de Apício teria sido impulsionado pela abertura da coleção pessoal dos Médici aos intelectuais nele interessados - inicialmente de modo restrito, pois o acesso só seria garantido mediante permissão de seus proprietários, mas posteriormente de modo irrestrito com a colocação definitiva do acervo em uma biblioteca pública. É muito provável que Apício como livro-objeto continuasse a despertar interesse por seus atributos materiais refinados e pelo seu potencial simbólico; no entanto, pensamos que quando a obra passa a circular entre os humanistas é a perspectiva de conhecimento que irá ganhar proeminência.
Sugerir que Apício teria sido um texto que se prestava ao estudo da materia medica não é um dado isolado, exclusivo à história do manuscrito laurenziano. Bem ao contrário, como procuramos indicar, essa noção parece ser herdada da Idade Média e compartilhada pelo grupo de intelectuais que de alguma maneira se interessaram e se apropriaram do texto no Renascimento, norteados por demandas próprias ao humanismo renascentista da Itália e posteriormente do norte da Europa, como o estudo dos demais manuscritos e edições parece anunciar. Essas afirmações manifestam a necessidade de um olhar mais profundo para a questão que de fato subjaz o suposto estranhamento de Apício pertencer a uma categoria que não a culinária: a necessidade de pensar com mais atenção sobre os sistemas de ordenação dos saberes antigos e medievais e sua relação com as classificações modernas das ciências. Apício nos faz questionar onde estaria o ponto de inflexão das categorias “médico” e “culinário”, que já foram usadas para classificá-lo - e, mais precisamente, nos faz pensar sobre o papel do processo de racionalização que organizou o pensamento científico moderno a partir do século XVIII no posicionamento do conteúdo de sua obra dentro ou fora de dado universo do saber.
Por fim, parece-nos importante retomar a proposta teórica de Ulpiano Bezerra de Meneses a fim de dissipar uma possível leitura enviesada do Plut. 73.20 apenas como produto cultural. Queremos com isso dizer que há dinamismo na forma como entendemos a existência e trajetória do manuscrito. Sem dúvida os atributos físicos que o caracterizam como objeto o revelam como resultante do ímpeto que na metade do século XV moveu intelectuais em direção à (re)descoberta e emulação do conhecimento oriundo de textos antigos. Contudo, o manuscrito em sua concretude exerceu também papel de vetor que canalizou o impulso e a demanda advindos de determinado grupo social por certo tipo de conhecimento na época: os humanistas médicos, em sua busca pela natureza e materia medica antiga.56 Em outras palavras, trata-se de compreender o manuscrito inserido no dinamismo do tecido social ao qual pertenceu e por onde circulou.



