RESUMO: A Noticia Primeira Practica Que da ao Reverendo Padre Diogo Soarez o Cappitam Ioaõ Antonio Cabral Camello sobre a Viage, que fez as Minaz do Cuyaba no anno de 1727 consiste numa narrativa acerca da viagem fluvial empreendida por João Antonio Cabral Camello de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) no ano de 1727, possivelmente escrita em 1734. Os dois testemunhos manuscritos conhecidos desse texto encontram-se no códice CXVI 1-15 da Coleção Diogo Soares, da Biblioteca Pública de Évora (Portugal). Ao longo dos séculos subsequentes, a Noticia foi publicada em diferentes meios, como na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1842, e no livro Relatos monçoeiros, de 1953, organizado por Afonso d’Escragnolle Taunay. Este artigo tem por objetivo traçar a trajetória histórica da Noticia Primeira Practica por meio do estudo de sua produção, transmissão e apropriação ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX. A natureza do objeto, bem como as questões investigativas propostas, nos impelem a lançar mão das contribuições teóricas de diversos campos do conhecimento, tais como a história da cultura escrita, a paleografia, a filologia e a bibliografia material. Embora distintas, essas áreas possuem um objeto de pesquisa em comum: o texto escrito, estudado enquanto representação histórica, social, linguística e material. O reconhecimento da dimensão material do texto nos possibilita analisá-lo sob a perspectiva dos estudos de cultura material. Sendo antes de mais nada um artefato, a Noticia Primeira Practica será considerada enquanto vetor e produto de relações sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Notícias práticasNotícias práticas,ManuscritoManuscrito,ImpressoImpresso,Cultura materialCultura material,MonçõesMonções.
ABSTRACT: The “Noticia Primeira Practica Que da ao Reverendo Padre Diogo Soarez o Cappitam Ioaõ Antonio Cabral Camello sobre a Viage, que fez as Minaz do Cuyaba no anno de 1727” consists of a narrative about the river trip undertaken by João Antonio Cabral Camello from Sorocaba (São Paulo) to Cuiabá (Mato Grosso) in 1727, possibly written in 1734. The two existing handwritten testimonies concerning this text can be found in codex CXVI 1-15 of the Diogo Soares Collection of the Évora Public Library, Portugal. Over the following centuries it was published in different media, such as the Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro by Francisco Adolfo de Varnhagen, in 1842, and the book Relatos monçoeiros in 1953, organized by Afonso d’Escragnolle Taunay. This article traces the historical trajectory of Noticia Primeira Practica by studying its production, transmission and appropriation throughout the 18th, 19th and 20th centuries. Due to the nature of the object, as well as the proposed investigative questions, its study requires an interdisciplinary theoretical framework including History of Written Culture, Palaeography, Philology and Material Bibliography. Although distinct, these fields have a common research object: written text studied as a historical, social, linguistic and material representation. Acknowledging the material dimension of the text allowed us to analyze it from the perspective of Material Culture studies. Primarily an artifact, the Noticia Primeira Practica is here to considered a vector and product of social relations.
KEYWORDS: Notícias práticas, Manuscript, Printed, Material culture, Monsoons.
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL/DOSSIÊ Dimensões materiais da cultura escrita
Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX)1
An eighteenth century text in three centuries: the contents, forms and meanings of the Noticia Primeira Practica written by João Antonio Cabral Camello (18 th -20 th centuries)
Recepção: 05 Abril 2020
Aprovação: 11 Junho 2020
A Noticia Primeira Practica Que da ao Reverendo Padre Diogo Soarez o Cappitam Ioaõ Antonio Cabral Camello sobre a Viage, que fez as Minaz do Cuyaba no anno de 1727 (doravante Noticia Primeira Practica) consiste numa narrativa acerca da viagem fluvial empreendida por João Antonio Cabral Camello de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) no ano de 1727, possivelmente escrita em 1734. Essa viagem está inserida na fase da história da expansão paulista conhecida como “monções”, caracterizada pelas expedições fluviais periódicas que comumente partiam do porto de Araritaguaba (atual Porto Feliz, SP) com destino a Cuiabá, no Mato Grosso, tendo por finalidade o abastecimento comercial e o povoamento das minas auríferas lá descobertas em 1719.3
Os dois testemunhos4 manuscritos conhecidos da Noticia Primeira Practica fazem parte do conjunto das Notícias Práticas de varias minas, e do descobrimento de novos caminhos, e outros sucessos do Brazil, constituído por dezenove textos recolhidos e reunidos pelo padre matemático Diogo Soares na América portuguesa entre 1730 e 1748, hoje salvaguardado na Biblioteca Pública de Évora (BPE), Portugal, no códice CXVI 1-15 da coleção que leva o seu nome. As narrativas coligidas pelo padre Soares foram congregadas em quatro grupos documentais distintos, organizados de acordo com as regiões da colônia por elas abordadas. São eles: (1) Notícias Práticas das Minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo (contendo nove notícias);5 (2) Notícias Práticas das Minas Gerais do Ouro e Diamantes (contendo cinco notícias); (3) Notícias Práticas do Novo caminho que se descobriu das campanhas do Rio Grande e Nova Colônia do Sacramento para a vila de Curitiba (contendo três notícias); e (4) Notícias Práticas da Costa, e Povoação do mar do Sul (contendo duas notícias).
Todos os nove relatos que compõem a coletânea das Notícias Práticas das Minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo encontram-se em duplicata no códice eborense. João Antonio Cabral Camello é o autor de dois deles, a Noticia Primeira Practica e a Noticia Segunda Practica, nas quais discorre sobre o que sucedeu nas viagens de ida a Cuiabá e de retorno a São Paulo, respectivamente.6 Das notícias práticas concernentes a Cuiabá, a Noticia Primeira Practica é aquela que possui o maior número de edições impressas - oito, no total.7 Para a análise que será desenvolvida neste artigo, nos valeremos de duas delas: a de 1842, no tomo IV da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB),8 fruto do oferecimento de uma cópia do manuscrito ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) por Francisco Adolfo de Varnhagen, futuro Visconde de Porto Seguro; e a primeira edição de Relatos monçoeiros, de 1953, obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay9 para a Biblioteca Histórica Paulista da Livraria Martins Editora.
A escolha da edição da RIHGB se justifica pelo fato de ela ser o primeiro testemunho impresso da Noticia Primeira Practica. Já a escolha pela publicada em Relatos monçoeiros, em 1953, se deu pelo seu consolidado reconhecimento como referência para todas as demais que vieram a ser realizadas no século XX,10 assim como por ser a única que contou com a supervisão direta de Afonso Taunay, falecido em 1958.11 Em nenhuma das duas edições da Noticia Primeira Practica estudadas há menção ao fato de existir mais de um testemunho manuscrito desse texto no códice eborense; logo, não se sabe qual deles foi utilizado como base para a composição dos textos que essas edições oferecem ao leitor. Além disso, em Relatos monçoeiros, encontra-se logo abaixo do título da Noticia Primeira Practica a seguinte informação: “(M. S. oferecido ao Instituto Histórico Brasileiro por Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro)”,12 a qual também se faz presente no tomo IV da RIHGB,13 indicativo do testemunho que Taunay elegeu como fonte para a edição sob sua responsabilidade. Diante do quadro aqui esboçado, algumas questões devem ser postas. Quem produziu os diferentes testemunhos manuscritos da Noticia Primeira Practica? Há diferenças formais e substanciais entre os textos veiculados por eles? Varnhagen se valeu de qual dos dois testemunhos ao realizar a transcrição que submeteu ao IHGB e que foi publicada em 1842? A edição oferecida por Afonso Taunay em 1953 realmente teve por base o texto editado por Varnhagen? Em que medida os testemunhos impressos se mantiveram fidedignos aos manuscritos? Qual foi o grau de intervenção que Varnhagen e Taunay exerceram sobre a Noticia Primeira Practica? As modificações por eles propostas interferem na compreensão do texto? Por qual razão esse relato setecentista ganhou a atenção desses dois historiadores? Ele foi visto da mesma forma e apropriado com o mesmo sentido ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX? Ao responder a essas indagações, este artigo objetiva reconstituir a trajetória histórica da Noticia Primeira Practica a partir do estudo da sua produção, transmissão e de como foi apropriada em diferentes contextos, por agentes distintos, para fins diversos.
Como nos ensinou Jacques Le Goff, todo documento é um monumento, posto que resulta do empenho das sociedades históricas em fixar uma imagem de si. É, pois, uma elaboração (consciente ou inconsciente) da sociedade que o produziu e das épocas subsequentes, nas quais continuou a ser manipulado, mesmo que pelo silêncio. Nesse sentido, cabe ao historiador desmontar essa imagem, demolir essa construção. Porém, como o autor ressalta, a crítica histórica, sozinha, não é capaz de realizar com êxito esse procedimento.14 Faz-se necessário recorrer a outras disciplinas.
Silvia Hunold Lara, ao refletir sobre o processo de transformação de um documento em fonte pelo historiador, aponta que a leitura dele feita não deve buscar apenas o que foi escrito, mas também como foi escrito, por que foi escrito, como ele circulou e como foi guardado, na medida em que esses elementos também são capazes de oferecer informações aos pesquisadores. Estes, por sua vez, comumente exploram as suas fontes apenas no nível da substância textual, recorrendo mormente às fontes impressas, sem procederam ao cotejo com os originais. Ao agir desse modo, ignoram que, “para além de seu ‘conteúdo’, um texto também possui elementos materiais que, juntamente com o gesto que lhe deu origem, precisam ser levados em conta na análise”.15
A atenção às condições de produção, circulação e guarda das escrituras mostra-se fundamental para o campo da história da cultura escrita. Segundo um dos seus maiores expoentes, Antonio Castillo Gómez, essa disciplina pode ser definida como aquela que se dedica à compreensão do escrito em cada uma das etapas que marcam a sua trajetória, a saber: tempo de aquisição (focado nas condições sociais de acesso à competência gráfica), tempo de produção (ligado as circunstâncias que interviram no momento de fabricar um produto da cultura escrita), tempo de recepção (no qual o protagonismo passa do autor para o leitor) e tempo de conservação (cujo foco são as políticas de memória).16
A esses quatro tempos do escrito propostos pelo historiador espanhol parece-nos necessário acrescentar um quinto, ao considerarmos as questões postas para o estudo da Noticia Primeira Practica: o tempo de transmissão, filológico17 por excelência. Este dedica-se a analisar a tradição textual,18 os modos através dos quais o escrito foi transmitido, as transformações formais e substanciais pelas quais ele passou ao longo de sua história e como estas mudam o seu sentido, vinculando-as aos seus respectivos contextos.19 Nessa perspectiva, transmissão e circulação são entendidas enquanto dois processos distintos: o primeiro é concernente às vias, ou seja, aos meios pelos quais uma mensagem é disseminada; já o segundo, aos itinerários da escritura, associado ao uso que dela é feito.20
Para Antonio Castillo Gómez, a escritura deve ser compreendida enquanto intersecção entre o individual e o coletivo. Como parte da história cultural, a história da cultura escrita deve mirar a materialidade do texto, as práticas de escrita e leitura vigentes em determinado período, os diferentes lugares, espaços e maneiras de sua recepção, tendo em vista que a apropriação e o consumo cultural dos escritos também são atos de produção.21
Castillo Gómez e Carlos Sáez Sánchez, apoiados em Armando Petrucci, afirmam que, por mais que seja possível o exercício da paleografia sem a história da cultura escrita, esta, por sua vez, não se pode construir à margem da primeira.22 O atual conceito de paleografia pode ser compreendido a partir de três elementos: a paleografia de leitura, de caráter prático, cujo objetivo se assenta na leitura correta dos textos; a paleografia de análise, que se propõe a precisar as características de escritas distintas a fim de estabelecer sua identificação, autenticação, classificação, datação e localização; e a paleografia como história da escrita, à qual, para além das indagações de como e onde, presentes nos outros níveis de investigação do método paleográfico, se soma o interesse em compreender os porquês.23
Da bibliografia material nos valemos da ideia segundo a qual o texto escrito está vinculado a um processo de construção material cujo resultado imediato é um objeto. Este, como reitera Donald Francis McKenzie, “não é peculiar a uma única substância ou uma única forma”.24 Livros e documentos não são os únicos artefatos textuais existentes. Na concepção desse autor, a paisagem, os mapas e as fotografias, por exemplo, podem ser estudados como textos. Isso porque esses objetos exercem “função textual”, ou seja, encerram em si narrativas codificadas.25 O reconhecimento das diversas formas que um texto pode assumir, assim como de que o meio influencia uma mensagem em qualquer sentido, faz com que McKenzie defenda que o pesquisador deve estar a atento à relação entre forma, função e significado simbólico.26 A compreensão do texto enquanto objeto, a constatação de que a sua materialidade pode fornecer informações distintas daquelas oriundas da substância textual, a admissão de que a forma através da qual um escrito é difundido interfere na sua apreensão pelo leitor e a preocupação com as diversas etapas que marcam a sua trajetória nos autorizam a mobilizar o aparato teórico-metodológico dos estudos de cultura material para a análise da Noticia Primeira Practica. Como já foi destacado por Márcia Almada, a relação entre artefato, corpo e lugar figura entre os interesses do referido campo.27
Segundo a definição clássica dada por Ulpiano T. Bezerra de Meneses, “por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem”.28 Para sua análise, é necessário “situá-la como suporte material, físico, imediatamente concreto, da produção e reprodução da vida social”.29 De acordo com essa perspectiva, os artefatos devem ser considerados sob duplo aspecto: como produtos e vetores de relações sociais.30 Marcelo Rede ressalta que a cultura material não é concebível sem a sua relação de interação com a sociedade, tampouco sem a sua dimensão temporal, devendo o historiador, portanto, dar conta das transformações pelas quais ela passa ao longo de sua existência.31 A partir da constatação de que um objeto pode ser uma coisa em uma ocasião mas em outra não, ou seja, de que um artefato pode mudar de status ao longo de sua existência, Igor Kopytoff propõe a ideia de traçar uma biografia cultural das coisas.32 Tal como sugere Samuel Alberti, fundamentando-se no trabalho de Kopytoff, deve-se estudar a trajetória de um objeto musealizado levando em consideração a rede de relações que o circunda, sendo esta formada não apenas por produtores, colecionadores, curadores e cientistas, mas também pelo público visitante.33
Em 1730, os jesuítas matemáticos Diogo Soares e Domingos Capacci aportaram na América portuguesa encarregados de produzir cartas geográficas da porção centro-sul do território para o que viria a ser o Novo atlas da América portuguesa. A missão dos chamados “padres matemáticos” está inserida no contexto das querelas territoriais entre Portugal e Espanha no século XVIII. Desde o final da década de 1710 e início da década de 1720 havia ficado explícito para ambos os lados que a linha imaginária que dividia o continente americano entre as Coroas ibéricas, fixada pelo Tratado de Tordesilhas (1494), já não era mais respeitada.34 Segundo a provisão passada por D. João V aos padres Soares e Capacci em 1729, além da feitura dos mapas contendo detalhes por escrito das regiões representadas, eles deveriam registrar “em livro à parte por extenço tudo q houver mais digno de notar em cada hua das capitanias”, como a capacidade de navegação dos rios, qual tipo de embarcação era utilizado para navegá-los, em quais trechos os viajantes deveriam ir por terra ou embarcados, os habitantes das margens, se havia arvoredos que pudessem ser derrubados e levados facilmente para um povoado, se havia pastos e gado, se as localidades eram habitadas por indígenas “ferozes ou domésticos”, de que modo eles viviam, que armas usavam, a distância entre os povoados e as divisas administrativas existentes entre eles, entre outros dados. Para isso, completa el-rei, careciam tomar “noticia da gente pratica da terra”.35
Uma das definições dadas por Raphael Bluteau para “homem prático” refere-se àquele que é experimentado, versado, perito em algo.36 Ao caracterizar os “práticos das Coroas Ibéricas”, Serge Gruzinski ressalta o contato direto que esses homens puderam ter com a matéria sobre a qual informavam através da pena.37 Não é à toa que, nos primeiros parágrafos da Noticia Primeira Practica, João Antonio Cabral Camello diz que, embora usualmente o embarque para Cuiabá seja feito no porto de “Aritaguába” (Araritaguaba), dele não dará notícia alguma, pois lá não esteve; todavia, informará sobre o que viu e experimentou no porto de Sorocaba, porque foi onde ele embarcou.38
Segundo François Hartog, a narrativa de viagem expressa-se enquanto uma tradução do outro.39 À retórica da alteridade cabe o papel de agente dessa tradução, fazendo com que o destinatário acredite na fidelidade da operação. Para tanto, olho e ouvido compõem “os dois polos entre os quais se inscreve e se desenvolve a retórica da alteridade”.40 O olho apresenta-se como marca de enunciação, de modo que o “eu vi” atua como intervenção do narrador em sua própria narrativa a fim de provar alguma coisa. Dos filósofos da Jônia a Aristóteles, passando por médicos e historiadores, Hartog observa o que ele chamou de uma constante epistemológica: a “vista como instrumento de conhecimento”.41 João Antonio Cabral Camello viu tudo aquilo que descreve ao padre Diogo Soares na sua notícia prática. Sendo assim, as matérias narradas adquirem o status de verdade.
Cabral Camello recorre a terceiros quando discorre sobre algo que não viu, valendo-se da expressão “disem”. Não sabemos quais são as suas fontes na maioria dos casos, salvo nas menções aos “certanistaz antigoz”. Nessas ocasiões eles se tornam, então, os primeiros que viram. Para François Hartog, enquanto marca de enunciação, o eu ouvi reveza com o eu vi, “quando este último não é possível ou não é mais possível”.42 Todavia, afirma o autor, no que diz respeito ao “fazer-crer”, o ouvido vale menos que o olho, logo uma narrativa que se fundamenta no sentido da audição é menos crível ou persuasiva que aquela construída a partir da visão.43
Entre os sertanistas, monçoeiros, comerciantes e agentes régios das Coroas portuguesa e espanhola com os quais Diogo Soares recolheu as notícias práticas está o capitão João Antonio Cabral Camello. Pouco sabemos a respeito dessa personagem. Num verbete do Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil, Francisco de Assis Carvalho Franco o descreve como um militar que, saindo de Sorocaba, fez uma viagem para o Mato Grosso, citando como referência a edição de 1842 da Noticia Primeira Practica.44
A partir da leitura das duas notícias práticas redigidas por Cabral Camello é possível depreender algumas informações a seu respeito. Ele escreve que esteve nas minas do Cuiabá por cerca de dois anos e meio, envolvido com a exploração aurífera, entre novembro de 1727 e maio de 1730. Era um homem com algumas posses, já que, dos quatorze escravizados embarcados consigo no porto de Sorocaba, seis eram seus e oito do seu tio (cujo nome não é mencionado). Foi o autor intelectual45 de dois longos e detalhados textos remetidos ao padre Diogo Soares, os quais apresentam uma linguagem clara e fluída.46 Nas duas narrativas, diante da citação de uma palavra não usual ou de origem indígena, constatamos o empenho de explicá-las ao leitor, ainda que não seja possível atribuir o domínio do vocabulário empregado diretamente a Cabral Camello, visto que os originais, caso existam, não foram localizados. Além disso, é evidente o planejamento de ambos os textos. Isso porque em dois trechos da Noticia Primeira Practica, quando Cabral Camello faz menção a assuntos que serão tratados detidamente mais adiante - como o porto do Rio Piracicaba e o ataque dos Paiaguás à monção de 1730 -, preocupa-se em sinalizar que sobre eles “dirá a seu tempo”, o que é feito nos trechos que correspondem à Noticia Segunda Practica.47
Na Noticia Primeira Practica, escrita a partir do pedido do padre Diogo Soares e a ele destinada, como as linhas iniciais do texto indicam, Cabral Camello descreve minuciosamente os rios percorridos de Sorocaba a Cuiabá, seus respectivos percursos, os saltos, sangradouros, baías e portos neles existentes, a distância entre eles, as vilas e roças ao longo do trajeto, os gêneros alimentícios cultivados e os animais criados, a oferta de caça e de pesca e o tipo de vegetação encontrada nas margens fluviais.48 Informa também sobre os diversos perigos que a natureza impõe aos navegantes e quais as técnicas empregadas para contorná-los, de acordo com a perícia e experiência de pilotos, proeiros e remadores. Todavia, para além da navegação dificultosa dos rios que levavam a Cuiabá, havia também o risco constante dos ataques promovidos pela população originária que habitava a região. Sendo assim, o autor se preocupa em informar as nações indígenas existentes ao longo do percurso, bem como em caracterizar seu comportamento para com os brancos, seus hábitos, atividades de subsistência e armas utilizadas. Em suma, anota todas as notícias que D. João V desejava obter, como registrado na provisão citada.
Embora não esteja datado, estimamos que esse relato tenha sido escrito na vila de São João em 16 de abril de 1734.49 Isso porque, em sua origem, os dois textos de autoria de João Antonio Cabral Camello pertencentes ao conjunto das Notícias Práticas eram possivelmente um único texto, divididos quando da cópia no códice eborense. A parte na qual o autor narra a ida para Cuiabá foi nomeada como Noticia Primeira Practica, enquanto o retorno para São Paulo foi intitulado de Noticia Segunda Practica. São dois os aspectos formais dos textos que corroboram a hipótese de sua unicidade. O primeiro diz respeito à continuidade da numeração dos parágrafos entre uma notícia e outra em ambos os testemunhos manuscritos, pois enquanto a Noticia Primeira Practica termina no 36º parágrafo, a Noticia Segunda Practica tem seu início no 37º. O segundo consiste no fato de a assinatura, a datação tópica e a cronológica terem sido reproduzidas apenas ao final da Noticia Segunda Practica, o que nos permitiu atribuir uma data de produção para a Noticia Primeira Practica.
Do ponto de vista da substância textual, não há nenhuma ruptura entre o término de um relato e o início de outro, muito pelo contrário: se o encerramento da primeira notícia é feito com Cabral Camello contando sobre sua chegada ao Cuiabá, a abertura da segunda é marcada pelo início do retorno a São Paulo. Conjecturamos que Diogo Soares tenha tomado conhecimento de João Antonio Cabral Camello em virtude da participação deste no episódio do ataque dos Paiaguás à monção de maio de 1730, evento que culminou na morte do ouvidor Antônio Alvares Lanhas Peixoto e no roubo de cerca de dez ou onze arrobas de ouro, o que foi presenciado por Camello e narrado na Noticia Segunda Practica. O impacto desse assalto não foi pequeno, já que foi merecedor da tinta das penas de Domingos Lourenço de Araujo, autor da Noticia Terceira Practica, e de D. Carlos de los Reyes Valmaseda, responsável pela Noticia Quarta Practica.
A repercussão desse incidente pode ser também averiguada através da constatação de que, treze meses após o ocorrido, ele já estava sendo noticiado em uma das gazetas manuscritas portuguesas pertencentes à coleção da Biblioteca Pública de Évora, em Portugal.50 Trata-se, pois, de um curto período de tempo, haja vista que no século XVIII o trajeto entre Cuiabá e Lisboa era percorrido, em média, em oito meses e nove dias.51 Isto posto, é plausível que os padres matemáticos, chegados no porto do Rio de Janeiro em fevereiro de 1730, não tenham ficado alheios ao que veio a suceder quatro meses depois.
A espécie documental notícia é constatável na língua portuguesa desde os seus primeiros registros escritos que chegaram à contemporaneidade, sendo o caso mais antigo a chamada Notícia de Torto, documento notarial particular da segunda década do século XIII que narra as perseguições, os roubos e as depredações patrimoniais sofridas por Lourenço Fernandes da Cunha. Ao estudarem o gênero diplomático notícia, António Emiliano e Susana Tavares Pedro o caracterizam dentro da produção primitiva portuguesa como um registro pessoal e privado de determinados acontecimentos e circunstâncias, um “testemunho do acto nele consignado” sem qualquer valor jurídico.52
Nos séculos XVI e XVII, os documentos noticiosos versavam sobre diversos assuntos. Segundo Ana Paula Megiani, “qualquer pessoa que tivesse presenciado um acontecimento, ou escutado um relato sobre ele, estava apta a redigir uma notícia, o que determina uma grande diversidade de formatos sobre um mesmo acontecimento”.53 Além disso, a autora ressalta o fato de que parte significativa das notícias que corriam tanto em formato impresso quanto em manuscrito tinha os seus autores desconhecidos. Para as relações de sucesso espanholas, por exemplo, o processo consistia na recolha, por parte de um editor, de relatos sobre determinado acontecimento entre várias pessoas pertencentes a sua rede de informantes, a fim de publicá-los. Megiani também salienta a prática corrente no mundo ibérico do período moderno de seleção e organização de notícias impressas e manuscritas em miscelâneas, de acordo com os interesses de quem as colecionava.54
Na primeira metade do século XVIII, Raphael Bluteau definiu notícia como “conhecimento ou cousa que vem ao conhecimento”, sublinhando a existência de diversas “castas” de notícias, umas “certas e evidentes”, como a ciência, ou “duvidosas e escuras”, como é a opinião, havendo também as “naturais”, como a inteligência, e as “adquiridas”, como a metafísica.55 Nesse período, as notícias de mão56 coexistem com os periódicos impressos; todavia, conforme observa André Belo, sua existência só faz sentido se considerarmos o regime legal no qual havia um monopólio sobre a informação impressa, sendo necessários espaços nos quais as informações pudessem circular num nível menos público, através do manuscrito.57
As notícias manuscritas no século XVIII apresentavam a vantagem de não sofrer com as restrições impostas aos dados que eram veiculados de forma impressa, sobretudo aquelas que diziam respeito à Corte portuguesa. Em virtude de não serem avaliadas pelos censores régios nem passarem pela composição tipográfica, essas notícias apresentavam maior rapidez em sua circulação quando comparadas às impressas, assim como possibilitavam a adaptação do seu conteúdo de acordo com cada destinatário. Por último, outra diferença importante vincula-se ao fato de as notícias de mão registrarem informações que vinham da oralidade e que muitas vezes ainda seriam confirmadas, o que não acontecia nas gazetas impressas.58
Destarte, o conjunto das Notícias Práticas pode ser compreendido como uma série de relatos informativos que foram reunidos por dois punhos distintos em uma coleção, cujo critério de seleção nos parece ser o fato de elas fornecerem informações oriundas da prática, da experiência, do contato direto dos seus autores com a realidade narrada: o interior da porção centro-sul da América portuguesa.
Como aponta Tiago Miranda,59 as notícias manuscritas no século XVIII podiam circular em formatos distintos, como cartas e diários, por exemplo. As Notícias Práticas das minas de Cuiabá narram as viagens empreendidas entre Araritaguaba (ou Sorocaba, no caso da Noticia Primeira Practica) e Cuiabá na primeira metade do século XVIII. Apresentam parágrafos numerados e subdivididos em seções temáticas - por exemplo, os principais rios percorridos pelo narrador ou o dia da viagem ao qual aquele trecho corresponde. Essa forma de composição do texto, tal como nos mostram Márcia Almada e Rodrigo Bentes Monteiro, visava facilitar a busca e a consulta de informações.60
O conjunto das Notícias Práticas das minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo corresponde a aproximadamente 130 fólios (frente e verso) do códice CXVI 1-15 da BPE. Todas as notícias dessa coletânea encontram-se em duplicata, em testemunhos que nós nomeamos de A e B - o primeiro com 47 fólios e o segundo com 83. O testemunho A da Noticia Primeira Practica ocupa os fólios que vão do 1 recto ao 6 verso. Foi escrito em letra de tipo humanístico, com maiúsculas e minúsculas de módulo pequeno no corpo do texto e de módulo grande nos títulos e subtítulos. Apresenta peso leve, ductus cursivo e ângulo inclinado à direita. Ainda que a escrita seja cursiva, a velocidade desenvolvida pelo amanuense no ato de escrita não foi alta, pois o testemunho apresenta poucas ligaduras entre as palavras, sendo as fronteiras entre elas muito bem delimitadas (ver Figura 1).61
O escriba desse testemunho possui alguns traços que nos ajudam a caracterizar o seu punho, como hastes curvadas para a esquerda na finalização dos grafemas <m> e <z> em contexto final, como em
<hum> e
<Minaz>, respectivamente, e uma haste cujo traçado ondulante é iniciado com uma leve curva à esquerda e posteriormente à direita na finalização do grafema <a> em contexto final, como em
<Sorocaba>.
Apesar de os originais ainda não terem sido acessados, o que inviabiliza a constatação da existência ou não de vestígios materiais que indiquem o método de pautação utilizado, mesmo através da cópia digitalizada com a qual trabalhamos é possível inferir que algo foi utilizado pelo escriba para que tanto a disposição do texto sobre o suporte quanto a distância entre as linhas se apresentem de modo regular. Na maior parte dos casos em que houve a necessidade de separação das sílabas em razão do término da linha, o escriba a indicou com um traço <->.
Quanto aos alógrafos, ou seja, as diferentes formas pelas quais um grafema é representado,63 o escriba varia o modo pelo qual representa o <p> minúsculo em posição inicial, o <s> minúsculo em posição medial e o <t> minúsculo também em posição medial, como pode ser visto no Quadro 1.
Constam no testemunho A da Noticia Primeira Practica sete tipos de abreviaturas (ver Quadro 2), sendo elas: por sigla (em que a representação da palavra é feita por sua letra inicial maiúscula seguida de ponto), letra sobrescrita (formada pela sobreposição da última ou das últimas letras da palavra), nota tironiana (na qual sinais são utilizados em posições diversas, variando os seus significados em cada uma delas), contração ou síncope (formada através da supressão das letras no meio da palavra), mista (quando há na mesma palavra o encontro de abreviaturas por suspensão, contração e/ou letras sobrescritas, ou quando numa sequência de palavras nenhuma delas se encontra abreviada isoladamente), numérica (formada pela sobreposição das desinências o/os ou a/as minúsculas aos numerais) e sinal geral (composta por um signo abreviativo que indica a supressão de uma ou mais letras da palavra afetada, sem especificar quais são), conforme a classificação realizada por Phablo Fachin e Renata Ferreira Costa para as abreviaturas mais recorrentes nos manuscritos do século XVIII.65
Não há, ao longo do testemunho em questão, indicação por escrito que permita definir o seu autor material. A hipótese de que João Antonio Cabral Camello poderia ter sido igualmente autor intelectual e material desse testemunho é facilmente descartada ao compararmos o punho acima detalhado com uma carta escrita por ele a Martinho de Mendonça de Pina e Proença em março de 1735.67 Todavia, os resultados são outros quando aplicamos o mesmo método de análise paleográfica às cartas de Diogo Soares remetidas também a Martinho de Mendonça em dezembro de 1734 e fevereiro de 1735, o que torna possível atribuir ao padre Soares a autoria material do testemunho A da Noticia Primeira Practica, como também de todas as demais concernentes a Cuiabá registradas com o mesmo punho.
Diogo Soares nasceu em 1684 na cidade de Lisboa. No ano de 1701 entrou para a Companhia de Jesus. Foi professor de humanidades e filosofia durante dez anos na Universidade de Évora, lente de teologia moral em Coimbra, assim como ministrou aulas de matemática nos colégios de Jesus e de Santo Antão em Lisboa. Atuou como pregador nas igrejas de São Roque e Santo Antão, e foi autor de Pobreza vencedora, e applaudida, ou triumfo com que os Terceiros pobres da nobre, e sempre illustre Villa do Redondo na Provincia do Alentejo celebraraõ a nova tresladação do seu grande Patriarcha, e Pay dos Pobres São Francisco, volume in-quarto publicado em 1723 em Évora, na Officina da Universidade.68 Faleceu nas minas de Goiás no ano de 1748.
Tal qual no testemunho A da Noticia Primeira Practica, consta nas duas cartas do padre Soares a Martinho de Mendonça de Pina e Proença uma letra de tipo humanístico, de módulo pequeno no corpo do texto, ductus cursivo, ângulo inclinado à direita, peso leve e com poucas ligaduras (ver Figuras 2 e 3). Os mesmos traços particulares da escrita do autor material do testemunho A são observados em ambas as cartas, isto é, as hastes curvadas à esquerda na finalização dos grafemas <m> e <z> em posição final, como em
<tambem> e
<antez>, e a haste ondulante cujo traçado é iniciado com uma leve curva à esquerda e posteriormente à direita na finalização do grafema <a> em contexto final, como em
<outra>.
Tanto numa quanto noutra é possível destacar o traçado particular de alguns grafemas a fim de vincular Diogo Soares à produção do testemunho A. São eles: o grafema <O>, que apresenta semelhança com o numeral <6>; o grafema <D>, cuja base assentada sobre a pauta é sempre aberta; e, por fim, o grafema <P>, feito através de dois traços, de modo que o segundo, à esquerda, forma um semicírculo que une seu corpo e sua cauda, como pode ser visto no Quadro 3.
Se ao testemunho A da Noticia Primeira Practica foi possível atribuir um autor material, o mesmo não ocorre para o testemunho B, pelo menos até o presente momento. A possibilidade da autoria de João Antonio Cabral Camello também foi descartada ao compararmos o seu punho com aquele que consta nesse testemunho, assim como se mostrou infrutífera a comparação com cartas assinadas por Domingos Capacci,72 companheiro de trabalho de Diogo Soares.
O testemunho B da Noticia Primeira Practica corresponde aos fólios que vão do 61 recto ao 71 recto do códice CXVI 1-15 da BPE. A discrepância no número de fólios em relação ao testemunho A se justifica pelos diferentes módulos de letra adotados em cada um deles. A letra empregada no testemunho B foi de tipo humanístico, com maiúsculas e minúsculas de módulo médio no corpo do texto e módulo grande nos títulos e subtítulos. Ela tem peso leve e ângulo inclinado à direita. Podemos classificar o seu ductus como cursivo, embora a velocidade utilizada pelo autor material desse testemunho no ato de escrita tenha sido maior do que aquela utilizada por Diogo Soares no testemunho A. Esse aspecto é evidenciado pelo alto número de ligaduras entre as palavras e pelos vários casos nos quais é difícil estabelecer a fronteira entre elas, justamente devido à velocidade empregada pelo amanuense e pelo fato de ele não levantar o instrumento de escrita do suporte entre uma palavra e outra (ver Figura 4).
Uma das particularidades do punho desse escriba consiste na presença de hastes e caudas prolongadas e sinuosas, principalmente nos grafemas <d>, <q>, <s> e <y> (ver Quadro 4). Embora esses elementos invadam as linhas superiores e posteriores, tanto a disposição do texto sobre o suporte quanto o espaçamento entre as linhas são regulares, indícios da utilização de algum recurso para a pautação.
Diferentemente do testemunho A, que apresenta poucas variações na representação dos grafemas, o testemunho B exibe inúmeros casos de oscilação. São dignos de nota os seguintes: <A>, <C>, <D>, <h> em contexto medial, <p> em contexto inicial, <S>, <V>, e <v> em posição inicial, exemplificados no Quadro 4.
Como visto no testemunho A, encontramos os mesmos sete tipos de abreviatura no testemunho B da Noticia Primeira Practica, ou seja, por sigla, letra sobrescrita, nota tironiana, contração ou síncope, mista, numérica e por sinal geral (Quadro 5).
A análise paleográfica de ambos os testemunhos manuscritos e a composição dos seus respectivos alfabetos nos permitiram realizar a transcrição semidiplomática e conservadora de cada um deles, a fim de que pudéssemos cotejá-los e identificar os seus lugares-críticos, ou seja, os pontos nos quais eles divergem. Uma transcrição semidiplomática é aquela cujo grau de intervenção exercido pelo editor sobre o texto é considerado médio, pois ele atua na retificação de falhas evidentes originadas no processo de cópia do texto, no desenvolvimento das abreviaturas, na inserção ou supressão de elementos através de conjecturas, entre outras operações, desde que elas estejam devidamente assinaladas na edição.76
Foram encontradas diferenças numerosas concernentes a grafia, pontuação e acentuação. Essas variações podem estar vinculadas ao repertório de cada um dos copistas, que tomavam decisões no ato de escrita de acordo com os seus conhecimentos e opções usuais na língua do período. Por exemplo, palavras como “Practica”, “Soarez” e “Viage”, assim grafadas no testemunho A, constam como “Pratica”, “Soares” e “Viagẽ” no testemunho B.
Todavia, afora as divergências citadas acima, há também os acréscimos, as supressões e as substituições de palavras e até mesmo frases de um testemunho em relação ao outro. O reconhecimento dos lugares-críticos do texto, tendo como parâmetro discordâncias desse tipo, é essencial para identificar qual testemunho serviu de base para cada uma das edições impressas. Isso porque tal constatação seria inviável pela análise baseada nas diferenças de grafia, acentuação e pontuação dos testemunhos impressos da Noticia Primeira Practica, pois essas variações foram apagadas, em sua maior parte, na medida em que todos eles oferecem ao leitor textos modernizados.
A partir do levantamento realizado, selecionamos oito ocorrências a fim de exemplificar as discordâncias entre os testemunhos A e B da Noticia Primeira Practica que julgamos mais significativas, visto que algumas delas se enquadram nas tipologias de erros mais comuns quando da transmissão de um texto, tais como por adição, omissão e substituição.77 A primeira delas é que se observa, no testemunho B, o acréscimo da palavra “Padre” no conjunto dos pronomes de tratamento utilizados pelo autor intelectual do texto para se referir a Diogo Soares, a qual estava ausente no testemunho A. No segundo exemplo, vemos no testemunho B a supressão de uma série de palavras que no testemunho A conferem maior nível de detalhamento à informação dada. No terceiro, a referência existente no testemunho A de que, além de um porto, Sorocaba também é uma vila não consta no testemunho B, no qual Sorocaba é mencionada apenas na condição de porto. No quarto, quinto e sexto exemplo, os acréscimos feitos nas entrelinhas do testemunho A não estão presentes no testemunho B. No sétimo, há uma palavra que possivelmente foi lida de modo distinto pelos copistas de cada um dos testemunhos, pois o escriba do testemunho A escreveu “escapando se dous”, enquanto que o do testemunho B grafou “escapando so dous”. Por fim, no oitavo exemplo, temos a troca de “muitoz e melhores bananaez”, presente no testemunho A, por “muitas e melhores bananas” no testemunho B (ver Quadro 6).
O mapeamento dessas discrepâncias permite constatar que cada um dos autores materiais desses testemunhos tomou decisões distintas durante o ato de cópia do manuscrito remetido por João Antonio Cabral Camello a Diogo Soares. Soma-se a isso o fato de que a compreensão das particularidades dos testemunhos manuscritos de cada uma das Notícias Práticas figura enquanto tarefa da maior importância não só para a eleição do testemunho a partir do qual realizaremos a edição crítica desse conjunto documental, mas também para que nela possamos apresentar ao leitor, no aparato crítico, as lições divergentes que constam no testemunho preterido.
Em 1842, a Noticia Primeira Practica veio a público no formato impresso pela primeira vez.79 O manuscrito oferecido ao IHGB pelo sócio-correspondente Francisco Adolfo de Varnhagen foi impresso no tomo IV de sua revista. Nessa publicação de treze páginas, o texto encontra-se modernizado segundo as normas gramaticais vigentes no período. Ele não é precedido por nenhuma introdução, assim como não há a indicação da existência de mais de um testemunho manuscrito, muito menos informação sobre qual deles foi utilizado como base para essa edição. A única nota de rodapé consiste numa explicação de Varnhagen esclarecendo que, na passagem à qual ela se refere, quando Cabral Camello diz que falará a seu tempo sobre o episódio dos ataques dos Paiaguás, ocorrido em 1730, o autor está mencionando outra notícia de sua autoria - a segunda -, a qual logo será publicada na RIHGB, assim que se obtiver sua cópia - cuja existência é sabida e que já fora lida.80
Soma-se a essas observações o título com o qual o texto foi publicado: Noticias Praticas Das minas do Cuiabá e Goyazes, na Capitania de S. Paulo e Cuiabá, que da ao Rev. Padre Diogo Soares, o Capitão João Antonio Cabral Camello, sobre a viagem que fez ás Minas do Cuiabá no anno de 1727. Acontece que, nos testemunhos manuscritos, “Noticias Praticas Das minas do Cuiabá e Goyazes, na Capitania de S. Paulo” é o nome de todo o conjunto de nove relatos concernentes a Mato Grosso e Goiás. A expressão “Cuiabá”, em vez de “e Cuiabá”, indica que as narrativas que virão a seguir dizem respeito a essa região. Por último, o editor suprimiu o começo daquele que de fato é o título do escrito, “Noticia Primeira Practica”, mantendo apenas o seu autor, o destinatário e a matéria tratada. Com isso Varnhagen oculta que a obra em questão é apenas uma entre outras sete que versam sobre Cuiabá, fazendo da parte o todo.
Nas correspondências trocadas no primeiro semestre de 1842 por Francisco Adolfo de Varnhagen e Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da BPE de 1838 a 1855, é possível se deparar com menções ao “livro manuscripto das minas de Cuiabá”. Este se encontrava com Varnhagen na casa onde ele morava com os pais, em Lisboa. A Rivara ele escreve que as relações ou notícias que no livro constam em parte “existem copiadas em duplicado [sic]”, dos fólios 61 a 144,81 informação que o jovem historiador enfatizou que deveria constar no catálogo em composição por seu interlocutor, o que de fato foi feito, como pode ser observado no Catalogo dos Manuscriptos da Bibliotheca Publica Eborense, elaborado pelo seu diretor e publicado no ano de 1850.82 A menção ao conteúdo replicado e a descrição dos fólios nos quais ele se repete não deixam dúvidas de que tal livro corresponde ao códice das Notícias Práticas.
Varnhagen não só esteve com o códice, mas também transcreveu a Noticia Primeira Practica e tomou notas das demais no período em que o teve ao alcance das mãos em sua casa. Em 16 de março de 1842, ele escreve: “estou lendo com toda a atenção e tirando minhas notas, e em alguns lugares tenho vontade de tirar mais do que notas, mas não me atrevo, porque não pedi nem tenho para isso concessão de V. Sª de cujo favor não devo abusar”.83 Rivara parece ter entendido a insinuação e autorizou a cópia dos manuscritos, pois em 11 de abril Varnhagen agradece “o deixar-me V. Sª copiar algumas coisas do seu livrinho das minas”.84
A última menção ao “livro das Minas” é feita em 25 de maio, quando Varnhagen responde a uma possível manifestação de preocupação do diretor da BPE quanto à segurança do códice. O jovem historiador relata-lhe que está a aproveitar dele coisas para as quais nem sempre possui tempo. Em seguida, tranquiliza-o dizendo que o objeto “não é coisa que se possa perder na Babylonia do meu quarto, que agora está muito arranjado”.85 Sendo assim, é possível atestar que Varnhagen esteve com o códice das Notícias Práticas consigo pelo menos entre os meses de março e maio de 1842. Afora a publicação da Noticia Primeira Practica nesse mesmo ano, sabemos que as anotações feitas por ele foram mobilizadas posteriormente para a escrita do capítulo “Outros factos e providencias até 1750. Ouro e Diamantes”, do tomo II de História Geral do Brazil (1857), no qual são citadas todas as notícias práticas, com exceção da oitava, seja no corpo do texto, seja em nota de rodapé.86
Em carta destinada ao primeiro-secretário perpétuo do IHGB, o cônego Januário da Cunha Barbosa, publicada no tomo V da RIHGB (1843), Varnhagen diz que, apesar de seus interesses naquele momento serem relativos “às épocas mais remotas”, não se descuidava de obter cópia do que é “mais moderno”; destarte, se dedicava a reunir e a colecionar informações que por ordem da Corte os “nossos sertanejos” que descobriram Cuiabá e Mato Grosso davam por escrito. Informa que já remeteu um desses roteiros ao Instituto para ser publicado - a Noticia Primeira Practica - e qualifica a coletânea mencionada como “um monumento à minha Província pela distincta parte que n’essas excursões tiveram os nossos ousados Paulistas”.87
Afora a dimensão de cunho pessoal no oferecimento da Noticia Primeira Practica à instituição na qual fora admitido como sócio-correspondente em 1840, posto que Varnhagen era natural de São João de Ipanema (atual Iperó), região de Sorocaba e das monções, há que ser levada em consideração a importância que a recolha de documentos concernentes à história do Brasil em arquivos do país e da Europa desempenhou no projeto levado a cabo pelo IHGB.
A fundação do IHGB em 1838 está diretamente vinculada à construção do Estado nacional brasileiro, na medida em que, através da criação de um passado comum, as elites do Império objetivavam a unificação da nação. Segundo Lilia Schwarcz, enquanto “guardiões da história oficial”, a instituição mirava “recriar um passado, solidificar mitos de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos até então dispersos”.88 Nesse sentido, coligir documentos que subsidiassem essa tarefa revelou-se como condição sine qua non para a sua concretização.89 Exemplo disso é a Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto Historico Brasileiro, para remeterem á sociedade central do Rio de Janeiro, plano prático de pesquisa de fontes no Brasil apresentado pelo cônego Januário da Cunha Barbosa em sessão realizada no ano de criação do IHGB.90
Em junho de 1839, o diplomata José Silvestre Rebello sugeriu que fosse requerida ao corpo legislativo do Império uma autorização para que o ministro dos Negócios Estrangeiros enviasse um adido a países da Europa com a intenção de que este copiasse e remetesse documentos concernentes ao Brasil localizados em arquivos, por exemplo, de Portugal e Espanha. Em setembro desse mesmo ano, José Maria do Amaral fora escolhido para ocupar o cargo. A missão de coleta documental realizada pelo IHGB com o Ministério dos Negócios Estrangeiros teve sua vigência suspensa em 1864. Entre aqueles que sucederam a José Maria do Amaral como adidos de primeira classe constam, respectivamente, Francisco Adolfo de Varnhagen, Antônio Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa e Joaquim Caetano de Souza.91
Para além do objetivo de subsidiar a escrita da história nacional, tal empreendimento possuía também um caráter político, como salienta Lucia M. Paschoal Guimarães.92 Isso porque os documentos coletados auxiliavam o governo imperial na tarefa de demarcar os limites da soberania do país, o que não estava descolado do projeto de constituição da nação. Para Manoel Salgado Guimarães, esse processo também diz respeito à definição da identidade físico-geográfica da nação em construção. Uma das demonstrações dessa preocupação pode ser percebida nas publicações de viagens exploratórias nas páginas da RIHGB, um dos temas centrais desse periódico, na medida em que elas informavam tanto sobre as regiões pouco conhecidas do país quanto acerca da possibilidade de elas se integrarem economicamente ao centro do Império.93
Ao levantar os assuntos mais recorrentes nos tomos da RIHGB, afora as viagens científicas, dedicadas principalmente a locais como a Colônia de Sacramento e o Mato Grosso, Salgado Guimarães se deparou com “o problema indígena” e o “debate da história regional”, que perfazem 73% das matérias veiculadas.94 Em um estudo anterior tivemos a oportunidade de comunicar que, nos trinta primeiros anos desse periódico, ou seja, de 1839 a 1869, foi possível constatar a existência de mais de cinquenta publicações concernentes ao Mato Grosso.95 É digno de nota que essa província era uma das que ainda não tinham as suas fronteiras bem delimitadas à época, fator constituinte das querelas com a República do Paraguai e que veio a culminar na guerra travada contra o Brasil, cujos primeiros episódios se desenrolaram em solo mato-grossense.96
Em suma, o lugar que o Mato Grosso veio a ocupar na RIHGB nesse período vincula-se diretamente à demanda das elites imperiais por conhecer essa região a fim de melhor ocupá-la, defendê-la e integrá-la efetivamente ao país. Se o oferecimento de uma cópia da Noticia Primeira Practica por Varnhagen está associado a uma dimensão de cunho pessoal, como já citamos, soma-se a ela a participação desse historiador no projeto de construção da história pátria desenvolvido pelo IHGB, do qual ele era sócio, assim como está relacionado diretamente à centralidade que as temáticas exploradas nesse documento ocupavam nos debates levados a cabo pela elite intelectual e política da época.
A partir da comparação da edição realizada por Varnhagen com os dois testemunhos manuscritos da Noticia Primeira Practica, constatamos que ela foi concebida a partir do testemunho B, na medida em que concorda majoritariamente com as lições presentes neste testemunho (ver Quadro 7). Entretanto essa publicação apresenta algumas poucas lições que, seja pelas correções inerentes ao texto modernizado, seja pela própria vontade do editor - que dispunha diante de si ambos os manuscritos -, concordam com o testemunho A, sem que haja qualquer indicação de alternância das fontes na fixação do texto. Tal fenômeno pode ser exemplificado mediante a incorporação da palavra “Avenhandavaba” entre parênteses no corpo do texto a fim de indicar o nome correto do salto citado como “Banhandaba” no testemunho A, “Banhandabá” no testemunho B e “Panhandabá” por Varnhagen, sendo que essa inserção está registrada entre linhas apenas no testemunho A.

Para além disso, há casos nos quais Varnhagen não concorda com nenhum dos dois testemunhos manuscritos e realiza alterações no texto fundamentando-se apenas na sua erudição. A título de exemplo, num dos casos o editor transformou a frase inicial do segundo parágrafo - originalmente “Do segundo porto, que he […]”, no testemunho A, e “Do segundo Porto que he […]”, no testemunho B - em “Do primeiro porto é […]”, modificando completamente o seu sentido. Em outro exemplo, no qual o autor cita os tipos de pássaros cujas penas são valorizadas pelos indígenas, a primeira ave, grafada como “cadindez” no testemunho A e “candidos” no testemunho B - o que talvez possa corresponder às araras-canindé -, torna-se “tocanos” segundo a decisão de Varnhagen.
São essas as características do texto oferecido ao IHGB por aquele que viria a ser o Visconde de Porto Seguro, autor da História Geral do Brazil. Haja vista que Varnhagen esteve com o códice das Notícias Práticas em sua própria casa, e constatado o fato de que nele os textos se encontravam em duplicata, o que o teria levado a escolher o testemunho B da Noticia Primeira Practica em detrimento do testemunho A? Conjecturamos que tenha sido a facilidade de leitura oferecida pela letra do testemunho escolhido, já que a caligrafia de Diogo Soares no testemunho A apresenta uma série de dificuldades, o que torna a leitura árdua e vagarosa. Ademais, os conhecimentos paleográficos do jovem historiador de 26 anos, aparentemente, ainda não eram dos mais avançados naquele período, pois em uma carta endereçada a Rivara em outubro de 1842 ele o informa que está matriculado na “Paleographia da Torre do Tombo”98 - logo, ainda se encontrava em processo de formação.
Pouco mais de cem anos após a primeira publicação da narrativa de João Antonio Cabral Camello, o público viria a ter acesso a uma nova edição, dessa vez por iniciativa de outro historiador, Afonso d’Escragnolle Taunay. Entre os anos de 1952 e 1954 ele dirigiu a Biblioteca Histórica Paulista a convite de José de Barros Martins, da Livraria Martins Editora. Por esse selo foram impressos os Relatos monçoeiros (1953), livro que contou com organização, introdução e notas do próprio Taunay.99
A essa altura Afonso d’Escragnolle Taunay já gozava de enorme prestígio entre a intelligentsia brasileira. Era autor de inúmeras obras, tais como História geral das bandeiras paulistas (1924-1950), em 11 volumes, e História do café no Brasil (1929-1941), em 15 volumes, tendo a primeira lhe rendido o epíteto de “historiador das bandeiras”. Soma-se a isso a sua atuação como diretor do Museu Paulista entre 1917 e 1945, a docência na cátedra de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, de 1934 a 1937, e sua participação em agremiações como o IHGB, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a Academia Brasileira de Letras e a American Historical Association. São essas as credenciais por trás da escolha de Taunay para a coordenação da Biblioteca Histórica Paulista, pois, na visão de Martins, ninguém era mais capaz de desempenhá-la do que “o grande historiador”.100
A criação de coleções dedicadas ao Brasil entre as décadas de 1930, 1940 e 1950 é “o resultado da articulação do sistema de produção intelectual com o sistema editorial”101 vigente durante esse período. Entre elas destacam-se a Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, organizada por Fernando de Azevedo (substituído em 1958 por Américo Jacobino Lacombe), a Documentos Brasileiros, da José Olympio, tendo como diretores Gilberto Freyre, Otávio Tarquínio de Sousa e Afonso Arinos, e a Biblioteca Histórica Brasileira, da Livraria Martins Editora, coordenada por Rubens Borba de Moraes - a qual serviu de modelo para sua congênere paulista.
A Biblioteca Histórica Brasileira era formada por dezoito volumes, contendo relatos de viajantes estrangeiros cuidadosamente traduzidos para a língua portuguesa em edições prefaciadas por grandes nomes das letras de nosso país. Eles eram ricamente ilustrados com trabalhos de artistas do calibre de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e José Wasth Rodrigues. A maior parte dos livros que a compunha trazia “Brasil” no título, o que revelava a abordagem mais ampla dada ao território e reforçava a perspectiva exótica com a qual seus autores olharam para o país.
A Biblioteca Histórica Paulista, por sua vez, foi idealizada como um oferecimento da editora às efemérides do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Era formada por dez obras que versavam sobre a história da capitania e da província de São Paulo.102 Diferencia-se da coleção que lhe serviu de inspiração pelo fato de mais da metade dos títulos que a compõem serem de autoria de pessoas da terra ou naturalizadas, tais como Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Augusto Emílio Zaluar, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, frei Gaspar da Madre de Deus e aqueles que escreveram os relatos sertanistas e monçoeiros. José de Barros Martins possuía uma visão muito clara daquilo que ele pretendia para a coleção. No catálogo da Biblioteca, ele afirma que objetivava iluminar “os gloriosos e antigos fatos da História de São Paulo” e que, para isso, não hesitou diante da necessidade de investir avultado capital para oferecer ao público “velhos textos de nossa paulística” que há muito se encontravam esgotados.103 Isso porque, para ele, em concordância com o Visconde de São Leopoldo,104 o estudo da história de São Paulo era o estudo da própria história do Brasil.105
A edição de 1953 de Relatos monçoeiros é composta por 273 páginas, das quais cerca de um terço corresponde aos estudos introdutórios feitos pelo seu organizador. Reúne dezessete imagens, em sua maioria de telas pertencentes ao acervo do Museu Paulista. Estas foram encomendadas a diversos artistas por Taunay, quando diretor da instituição, a partir de desenhos feitos por Hercule Florence na primeira metade do século XIX.106 Nessa edição foram reunidos escritos dos séculos XVII e XVIII de autoria diversa, sendo eles: Carta do Capitão General e Governador do Paraguai Dom Luís de Céspedes Xeria a Felipe IV sobre sua navegação no Tietê e no Paraná (1628); Notícia 6ª Prática, de Gervásio Leite Rebelo; Notícias Práticas das Minas do Cuiabá e Guiazes na Capitania de São Paulo (a Noticia Primeira Practica) e Notícia 2ª Prática, de João Antonio Cabral Camello; Notícia 3ª Prática, de Domingos Lourenço de Araujo; Notícia 4ª Prática, de Dom Carlos de los Reyes Valmaseda; Notícia 7ª Prática, de Manuel de Barros; Notícia 8ª Prática, de Francisco Palácio; Relação da viagem que fez o conde de Azambuja, D. Antonio Rolim, da cidade de S. Paulo para a Vila de Cuiabá em 1751; Carta de um passageiro de Monção (1785); e Diário da navegação do Rio Tietê, Rio Grande, e Rio Gatemi, pelo Sargento-Mor Theotónio José Juzarte.
Pensamos que o fato de Taunay ter reunido textos tão distintos de modo a formar uma coletânea seja revelador da concepção que esse autor tinha acerca do episódio das monções. A partir do estudo textual e material de Relatos monçoeiros foi possível compreender que Afonso Taunay concebia esse episódio enquanto a história das navegações tieteanas, pois ainda que as viagens narradas nessa obra tenham sido feitas em diferentes períodos, por pessoas diversas e visando a variados fins, elas apresentam em comum a navegação do Rio Tietê, tema central dos estudos de sua própria lavra que introduzem a obra.107
Diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda108, que compreendeu as monções como uma nova fase do sertanismo paulista, na medida em que ela se distingue do movimento das Bandeiras no que concerne aos seus objetivos, vias de penetração e meios de locomoção, somando-se a isso o efeito disciplinador que essas viagens possuíam sobre os ânimos tradicionalmente aventurosos dos paulistas, Afonso d’Escragnolle Taunay as via como capítulo derradeiro das Bandeiras. Essa visão é evidenciada pela constatação de que a temática das monções ocupa a parte final do último tomo da monumental História Geral das Bandeiras Paulistas, por diversas passagens dos estudos de Taunay em Relatos monçoeiros, bem como pela própria materialidade dos livros da Biblioteca Histórica Paulista.
São diversos os desenhos de José Wasth Rodrigues109 feitos para Vida e morte do bandeirante (1943), de Alcântara Machado,110 que foram reutilizados nos volumes da Biblioteca Histórica Paulista. Tanto nas edições de capa dura quanto nas de capa mole, figura na primeira capa dos livros da coleção a imagem da igreja do Colégio dos Jesuítas de São Paulo, oriunda do capítulo “Educação e cultura”. Nas de capa dura há ainda outras duas imagens: de um machado e uma espada cruzados sob um gibão (comum na representação dos bandeirantes), na contracapa, e de uma espada envolta por um cinto, na lombada. Estas, por sua vez, provêm dos capítulos “Fato de vestir, joias e limpeza da casa” e “O sertão”, respectivamente.111 Por fim, o selo da coleção, formado por uma figura que exibe a vista da cidade de São Paulo a partir da Várzea do Carmo, encimada pela bandeira do Senado da Câmara de São Paulo do século XVIII, é proveniente do capítulo “As devoções dos bandeirantes”. Essa representação é acompanhada dos seguintes dizeres: “Contribuição da Livraria Martins Editora às comemorações do IV Centenário da Fundação de São Paulo”.
Um dos propósitos da Comissão criada para os festejos do quadricentenário, estabelecida em julho de 1951, era promover estudos históricos concernentes à urbe aniversariante que abarcassem temporalmente desde o século XVI até o século XX, considerando aspectos como a sua evolução histórica, política, econômica e cultural, bem como estimular as pesquisas em fontes primárias. Para tanto, dois núcleos se consolidaram como de maior importância para a comemoração: o de construção da história de São Paulo (por meio de reedições e novas produções bibliográficas) e o de propaganda, respaldado pelo primeiro. Como aponta Silvio Lofego, tratava-se, pois, de realizar uma festa não só para a cidade, mas para o mundo, na medida em que seus organizadores objetivavam “apresentar São Paulo não apenas como uma cidade que comemorava quatrocentos anos de existência, mas como uma das metrópoles mais modernas do planeta”.112
Para Maria Arminda do Nascimento Arruda, é nos anos 1950 que a cidade de São Paulo assume ares de metrópole, uma vez que em nenhum outro lugar do Brasil a urbanização e o crescimento industrial haviam atingido tamanha completude. As sucessivas correntes migratórias lhe conferiram aspectos cosmopolitas que, somados ao desenvolvimento econômico, transformavam a estratificação social paulista. É nesse decênio que a presença dos imigrantes se impôs, sejam eles de primeira geração ou seus descendentes aqui nascidos, que cada vez mais passavam a ocupar posições de destaque em diversas atividades econômicas, culturais e políticas.113
Segundo Arruda, o processo de complexificação da cidade de São Paulo ao longo da primeira metade do século XX resultou numa ruptura com o passado que não se realizou de forma homogênea e que exigia a “criação de novas matrizes identificadoras”. Essa socióloga afirma que “as identidades então gestadas ligavam-se aos problemas de uma sociedade que reequacionava a sua relação com o passado, buscando projetar o futuro”.114 O elã comemoracionista dos quatrocentos anos da cidade expressa significativamente a tensão entre passado, presente e futuro vigente no seio da sociedade paulista à época. Como escreveu Silvio Lofego, se naquele momento as bases econômicas pareciam sólidas, “a memória, a identidade ou os referenciais dessa população, cuja maioria tinha raízes em outras partes do mundo, ainda se dispersavam na pluralidade que compunha a cidade”.115 Nesse sentido é significativo o retorno à raiz mítica do bandeirante operado pelos festejos do IV Centenário, ao mesmo tempo que “se valorizam a integração e a democratização inerentes à cidade, em uma expressão obscurecedora dos conflitos entre aqueles provenientes das classes tradicionais e os imigrantes, destes entre si e de todos em relação aos migrantes”.116
Segundo Katia Abud, o resgate das qualidades do bandeirante por parte dos estudos históricos foi empregado ideologicamente em períodos da história de São Paulo nos quais tornou-se necessário suprimir os possíveis conflitos entre diferentes classes, ou entre setores de uma mesma classe, a fim de conservar as instituições vigentes ou possibilitar o surgimento de outras.117 Numa análise sofisticada do ufanismo paulista, Maria Isaura Pereira de Queiroz distingue o “bandeirante substantivo”, surgido em fins do século XIX como designação de quem participa de uma bandeira, do “bandeirante adjetivo”, que emergiu no século XX como sinônimo de paulista. Todavia, de acordo com os usos aos quais essa imagem foi submetida ao longo da primeira metade do século XX, ela incorporou “desígnios voltados ao porvir”: se outrora o adjetivo qualificava apenas os quatrocentões, mais tarde o bandeirante se tornaria “principalmente aquele que, construindo o futuro, mostra-se digno dos ancestrais”.118 Diferentemente de Abud, que explora o símbolo apenas enquanto elemento de coesão de determinada coletividade, Queiroz chama a atenção para o caráter dúbio dos símbolos, visto que o processo de forjar uma unidade implica a definição de seus contornos com precisão e, logo, exclui aqueles que não atendem seus critérios.
Isto posto, podemos concluir que a escolha do bandeirante enquanto símbolo nas efemérides dos quatrocentos anos de fundação da cidade de São Paulo deve-se à sua capacidade de congregar brasileiros das mais variadas regiões, imigrantes e seus descendentes que aqui nasceram, operários, profissionais liberais e empresários em um mesmo solo, na condição de paulistas.119 Eles os são não por pertencerem aos troncos antigos de famílias piratininganas, mas por serem detentores dos valores que comporta o bandeirante enquanto adjetivo, ou seja, bravura, heroísmo, empreendedorismo, intrepidez e pioneirismo. São esses atributos, arraigados na sua gente, que seriam responsáveis pela distinção de São Paulo diante do resto do Brasil, o que fez com que a cidade aniversariante pudesse se projetar para o país e para o mundo como uma metrópole moderna em meados do século XX.
Em Relatos monçoeiros, a Noticia Primeira Practica foi editada com o título “Notícias Práticas das minas do Cuiabá e Goiases, na capitania de S. Paulo e Cuiabá, que dá ao Rev. Padre Diogo Juares, o capitão João Antonio Cabral Camello, sôbre a viagem que fez às minas do Cuiabá no ano de 1727”, praticamente idêntico àquele dado por Varnhagen em 1842, com exceção da intrigante hispanização do sobrenome do jesuíta matemático.
Logo abaixo desse título encontra-se a indicação de que o manuscrito foi oferecido ao IHGB por Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Se num primeiro momento ela parecia ser apenas uma referência à primeira vez que esse escrito foi publicado, a partir do cotejo entre os testemunhos de 1842 e 1953 (ver Quadro 8) foi possível constatar que ela também indica a edição que serviu de base para a composição deste último, já que ambos convergem na maior parte das lições. No que concerne à forma textual, diferenciam-se em razão da atualização do texto de acordo com as normas gramaticais vigentes no século XX.
O fato de Afonso d’Escragnolle Taunay ter utilizado a edição de 1842 como referência não impediu que em alguns pontos ele divergisse dos demais testemunhos, tanto os manuscritos quanto o impresso, visto que, como era comum no período, propôs lições a partir de sua própria erudição. No segundo parágrafo, por exemplo, enquanto lemos a palavra “Itaypavaz” no testemunho A, “Ituypavas” no B e “Itaypavas” na RIHGB, Taunay optou por grafar “Itayparas”. No oitavo parágrafo, a palavra “com”, presente nos demais testemunhos, foi substituída por “um” na frase “como um efeito experimentaram uns de São Paulo”. O mel, que é de “pao” no testemunho A, de “paó” no testemunho B e de “páo” no testemunho de 1842, torna-se de “pão” em Relatos monçoeiros.
Porém, há que se ressaltar que para as demais notícias práticas são necessárias outras análises. Isso porque, diferentemente da Noticia Primeira Practica, cuja primeira edição foi realizada no século XIX por uma autoridade da historiografia brasileira e veio a servir de referência na composição de uma nova no século XX, as demais notícias práticas (com exceção da quinta) possuem outra trajetória. Seis delas (a segunda, terceira, quarta, sexta, sétima e oitava) permaneceram inéditas até o final da década de 1940,121 quando foram descobertas por Taunay.
Ainda que Francisco Adolfo de Varnhagen tenha citado sete das oito notícias práticas concernentes a Cuiabá no tomo II de História Geral do Brazil (1857),122 o historiador das bandeiras escreve que apenas com a leitura de uma biografia do padre “Diogo Juares” traçada por Serafim Leite é que ele tomou conhecimento das seis notícias práticas que até então não haviam sido publicadas. A obra em questão é o opúsculo Diogo Soares, matemático, astrónomo e geógrafo de sua majestade no Estado do Brasil (1684-1748), publicado em Lisboa no ano de 1947.123 A partir de então, Taunay solicitou que as notícias fossem copiadas em Portugal, o que o inspirou a escrever a segunda parte do tomo XI de História geral das bandeiras paulistas, de 1950.124 Essa constatação é significativa, pois revela que, mesmo sendo o responsável pela organização de Relatos monçoeiros, Taunay não esteve em contato direto com o códice eborense, tal como Varnhagen.
Sabe-se que Afonso d’Escragnolle Taunay tinha a intenção de publicar as Notícias Práticas nos Anais do Museu Paulista. Num papel avulso datado de janeiro de 1951 e intitulado Duas Palavras, nome da seção introdutória desse periódico à época e título genérico utilizado por esse historiador em diversos escritos, ele redigiu o que seria uma nota de apresentação das Notícias Práticas, a qual finaliza dizendo: “e tenho o prazer de entregar [as transcrições] ao meu douto sucessor na Diretoria do Museu Paulista, Sr. Dr. Sérgio Buarque de Holanda, para o volume XV dos nossos Anais do Museu Paulista, em via de impressão”.125
Fato é que a publicação das Notícias Práticas não ocorreu no volume mencionado nem em nenhum outro a ele subsequente. A busca pelas referidas transcrições, empreendida no Serviço de Documentação do Museu Paulista, resultou apenas no encontro de uma folha datilografada, semelhante àquela utilizada nas Duas Palavras, na qual é possível ler o que pudemos identificar como os parágrafos 57, 58 e 59 da Noticia Oitava Practica, atribuída a Francisco Palácio.126 Entretanto, a pesquisa no Fundo Sérgio Buarque de Holanda, no Arquivo Central da Universidade Estadual de Campinas, nos revelou a existência de um conjunto documental datilografado intitulado “Documentos ineditos sobre as monções cuiabanas Constantes das ‘Noticias Praticas’ das Minas do Cuyabá e Goyazes na Capitania de S. Paulo da Coleção Padre Diogo Soares Biblioteca de Evora, Cod. CXVI (2-15-, 1 vol, 4º)”, ou seja, uma cópia completa das referidas transcrições, precedida do mesmo texto introdutório de Taunay de janeiro de 1951.127
A sua consulta permitiu constatar que, em virtude da existência da publicação da Noticia Primeira Practica na RIHGB, em 1842, Afonso Taunay não solicitou que ela fosse transcrita, haja vista que não se enquadrava no ineditismo das demais notícias práticas. Tal achado também permitirá compreender o processo de fixação do texto das notícias práticas ainda desconhecidas pelo grande público até a década de 1950, assim como iluminará questões que cercam a concepção e construção de Relatos monçoeiros.
A partir do estudo paleográfico e filológico da Noticia Primeira Practica, percebe-se que os seus testemunhos manuscritos apresentam entre si diferenças tanto no nível da forma quanto da substância textual. Dentre eles, apenas o texto do testemunho B foi alçado ao papel de fonte para as edições impressas aqui analisadas. Estas, por sua vez, oferecem ao leitor versões modernizadas do texto veiculado por esse testemunho, segundo as normas gramaticais vigentes no período em que foram produzidas.
A edição realizada a partir da cópia manuscrita remetida por Francisco Adolfo de Varnhagen ao IHGB e publicada no tomo IV de sua revista em 1842 se consagrou como definitiva, haja vista que, diante da possibilidade de solicitar uma nova transcrição da Noticia Primeira Practica, Afonso d’Escragnolle Taunay optou por respeitar as lições propostas pelo Visconde de Porto Seguro. Isso se deve a diversas razões. Primeiramente, à posição de centralidade que Varnhagen veio a ocupar na historiografia brasileira. Em segundo lugar, à respeitabilidade do periódico através do qual o relato de Cabral Camello foi publicado: um dos principais meios de viabilização do projeto de escrita da história pátria promovido pelo IHGB. Por último, cabe salientar que as questões hoje pertinentes aos estudos da história da cultura escrita, das quais procuramos nos ocupar neste trabalho, não figuravam entre as interrogações das quais se ocupavam aqueles historiadores. Em seus respectivos contextos, interessavam-se mais pela substância textual do que pelos aspectos concernentes à forma e à materialidade, tal como discutido por Silvia Hunold Lara.128 Em consonância com sua época, na edição de 1842 Varnhagen não só operou modificações textuais sem que elas estivessem fundamentadas num dos manuscritos, mas também as fez sem sinalizá-las aos leitores, de modo que passaram a figurar, então, como se de fato fizessem parte do texto original. Essas alterações vieram a integrar o testemunho impresso pelo qual Taunay foi responsável, posto que o cotejo entre os testemunhos nos permitiu constatar que ele é uma derivação do anterior.
A Noticia Primeira Practica veiculada em Relatos monçoeiros consiste numa versão modernizada de um texto que já fora modernizado no passado. Soma-se a isso o fato de que o seu editor também propôs novas lições sem o respaldo de qualquer um dos testemunhos que o precederam, tendo por base a sua erudição. Diante disso, podemos afirmar que o processo de transmissão da narrativa de João Antonio Cabral Camello ao longo dos séculos XIX e XX implicou um maior distanciamento tanto da forma quanto da substância textual dos textos dos testemunhos impressos quando comparados àqueles registrados nos manuscritos.
Ao refletirmos sobre as etapas que marcaram a trajetória da Noticia Primeira Practica no período estudado, considerando os tempos do escrito tal como debatemos inicialmente, é possível compreender os diferentes modos pelos quais ela foi apropriada em cada uma delas. A sua produção no século XVIII por João Antonio Cabral Camello se deu em função da encomenda feita a ele por Diogo Soares, a quem interessavam as informações sobre o trajeto de São Paulo a Cuiabá oriundas do contato direto desse homem com a matéria tratada. Elas foram recolhidas a fim de que pudessem subsidiar a feitura das cartas geográficas, razão pela qual os padres matemáticos haviam sido enviados à América portuguesa pelo rei D. João V. A demanda real repousava nas disputas políticas envolvendo o Reino de Portugal e o Reino de Castela acerca dos limites territoriais de ambas as Coroas em solo sul-americano.
A análise formal, substancial e comparativa do par de testemunhos conhecidos das duas notícias práticas dadas por Cabral Camello nos possibilitou aventar a hipótese de que no manuscrito original, hoje perdido, remetido ao padre Diogo Soares, ambas figuravam como uma única narrativa. Este, então, as desmembrou de acordo com o conteúdo por elas apresentado, dando origem a dois relatos que abordam momentos distintos da viagem de seu autor, os quais foram reunidos à coleção das Notícias Práticas e agrupados segundo a afinidade temática que apresentavam com as demais peças. Com isso, suas particularidades foram suprimidas, pois passaram a ser apenas mais um escrito de um conjunto formado por oito relatos concernentes a Cuiabá, na condição de Noticia Primeira Practica e de Noticia Segunda Practica. Todavia, cabe ressaltar que com o título dado à publicação de 1842 se perde a noção do seu pertencimento a uma coletânea, já que não há qualquer menção a esse fato. Destarte, a parte passa a representar o todo, e as informações veiculadas pela Noticia Primeira Practica tornam-se as “Noticias Praticas Das minas do Cuiabá e Goyazes, na Capitania de S. Paulo e Cuiabá”.
Não sabemos como esse códice foi incorporado ao acervo da BPE. Porém, já pertencia a ele em 1842, quando Francisco Adolfo de Varnhagen transcreveu a Noticia Primeira Practica e tomou nota das demais. Na atribuição de sócio-correspondente do IHGB, Varnhagen possuía o compromisso de remeter à sede da agremiação cópias de documentos que pudessem subsidiar a escrita da história pátria. Estes, pois, seriam publicados ou arquivados, de acordo com a deliberação de seus confrades.
Se o futuro Visconde de Porto Seguro enviou a Noticia Primeira Practica por interpretá-la como um monumento da sua província de nascimento, São Paulo, o escrito foi merecedor das páginas da RIHGB por fornecer informações a respeito de temas que estavam na ordem do dia do governo imperial: a questão lindeira envolvendo a região do Mato Grosso e a existência de nações indígenas dentro da nação brasileira em construção.
No século XX, a Noticia Primeira Practica foi editada por Afonso d’Escragnolle Taunay ao lado das demais notícias práticas cuiabanas que permaneceram inéditas, bem como de diversos outros textos que apresentam como elemento comum a navegação do Rio Tietê. As monções que compõem o título da obra são entendidas por esse historiador como a última fase das bandeiras paulistas, o que resulta no esvaziamento do contexto de produção dos textos contidos no volume e dos agentes históricos neles envolvidos em prol de um discurso histórico que reforçava a figura mítica do bandeirante enquanto responsável pela construção do território brasileiro. Essa visão é ressaltada em diversos níveis: textualmente, nos estudos introdutórios feitos por Taunay; e materialmente, pela seleção dos relatos e das imagens que compõem o livro, pela capa e pelo selo da Biblioteca Histórica Paulista - coleção idealizada por um homem que publicamente expressava que o estudo da história de São Paulo era o estudo da história do Brasil.
A publicação de Relatos monçoeiros se insere no contexto do IV Centenário da Cidade de São Paulo, momento no qual, através do resgate dos atributos do bandeirante enquanto símbolo, a elite paulistana à frente das comemorações buscou não só solucionar o problema do que era “ser paulista” nos anos 1950, mas também explicitar ao resto do país que o que permitiu a São Paulo vir a ser uma metrópole moderna naquele momento foram a bravura, o empreendedorismo e a intrepidez do seu povo. Sendo assim, a Noticia Primeira Practica, vista como documento sobre o passado paulista, foi apropriada na condição de atestado dos ânimos e dos feitos de outrora da gente de Piratininga.
Valendo-nos de um aporte teórico interdisciplinar a fim de compreender a escritura em sua complexidade, buscamos perscrutar esse texto setecentista em três séculos, ao longo dos quais, enquanto produto e vetor de relações sociais, teve o seu conteúdo, a sua forma e o seu significado modificados em cada uma das etapas que marcaram a sua trajetória.
