RESUMO: Este artigo aborda um produto das relações e demandas em escala dos atores sociais, isto é, os indivíduos e as instituições nas esferas do público, eclesiástico e laico, envolvidas no processo da implantação da Praça e Catedral da Sé na antiga área central de São Paulo, entre os anos de 1903 e 1913. Colocando em tela o fenômeno da demolição no fazer urbano, buscamos compreender como para se realizar essa intervenção na paisagem urbana, com a feitura de novas estruturas urbanas como a praça e a catedral, demandou-se um circuito de propostas, definições e um aparelhamento que pensou, primeiramente, a feitura de uma cidade em demolição. Ou seja, um processo para o desmonte de estruturas antigas e preexistentes, que teve como resultado o desalojamento de inúmeros ocupantes da área-alvo. Desse modo, enfocamos uma arquitetura coletiva dos arranjos político, simbólico e de cifras em torno da obra, analisando o seu impacto em nível de uma rede reveladora da face social do processo, através dos nomes, dos acordos e negociações, tensões e contestações ao discurso acerca da realização da obra, que não se encontram assimiladas pela historiografia. Nesse sentido, agregamos uma documentação primária inédita, base da nossa reflexão, oriunda do Departamento de Desapropriações de São Paulo.
PALAVRAS-CHAVE: PraçaPraça,CatedralCatedral,DemoliçõesDemolições,São PauloSão Paulo,SéSé,Desapropriação (fonte)Desapropriação (fonte).
ABSTRACT: This article addresses a product of the relationships and demands in scale of the social actors, that is, the individuals and institutions in the public, ecclesiastical and secular spheres, involved in the process of the implantation of the Sé Square and Cathedral in the old central area of São Paulo, between the years 1903 and 1913. Placing on canvas the phenomenon of demolition in the urban making, we sought to understand how to carry out this intervention in the urban landscape, with the making of new urban structures such as the square and the cathedral, demanded a circuit of proposals, definitions and an apparatus that thought, first, the making of a city in demolition. That is, a process for the dismantling of old and pre-existing structures, which resulted in the displacement of numerous occupants of the target area. In this way, we focus on a collective architecture of political, symbolic and cipher arrangements around the work, analyzing its impact at the level of a network revealing the social face of the process, through the names, agreements and negotiations, tensions and contestations to the discourse about the realization of the work, which are not assimilated by historiography. In this sense, we have added an unprecedented primary documentation, the basis of our reflection, from the Department of Expropriations of São Paulo.
KEYWORDS: Square, Cathedral, Demolitions, São Paulo, Sé, Expropriation (source).
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL
A antessala da demolição: revisitando o processo da montagem da Praça e Catedral da Sé de São Paulo, em primórdios do século XX1
The antechamber of the demolition: Revisiting the process of installation the Sé Square and Cathedral of São Paulo, in the early 20th century
Recepção: 27 Maio 2020
Aprovação: 09 Outubro 2020
A conformação da Praça da Sé passou a constar nos mapas da antiga área central de São Paulo já na década de 1910. Esta Praça adveio de uma intenção religiosa, e também pública, que seria a de servir tanto como adro da nova catedral da cidade quanto na reorganização dos territórios simbólicos do poder urbano. Representando a instituição religiosa efetivamente no debate urbano, atentando para o movimento que durante as duas primeiras décadas do século XX voltou o foco sobre a área do Antigo Centro, a idealização da Praça foi marcada por demandas que passaram por um ator social determinante no processo: Dom Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938). Nascido em Taubaté, cidade do Vale do Paraíba Paulista, Dom Duarte foi o primeiro arcebispo de São Paulo. A bula papal Diœcesium Nimiam Amplitudinem criou em 7 de junho de 1908 a Província Eclesiástica de São Paulo. Com a criação da arquidiocese, nasceu o arcebispo.3 Esse nascimento veio a coroar um processo de aproximação entre as elites econômicas e a Igreja Católica, como pontuou Cristina de Toledo Romano (2008). Dom Duarte era ligado ao processo de romanização da igreja, o que lhe garantia uma posição amparada por Roma e sedutora à elite paulista, que via nas ações do religioso a possibilidade de elitizar e ordenar a fé e, consequentemente, a cidade.
Assim, a pedra fundamental da catedral foi oficialmente lançada por seu articulador maior perante a sociedade paulistana no ano de 1913. Este passou a buscar o lugar-gênese do Largo da Sé colonial para remontá-lo, como notou Rebeca Grillo de Sousa (2016), à tradição de seu grupo originário naquele espaço urbano.4 Na definição de Maurício de Aquino (2012), houve uma refundação simbólica da área do largo colonial, com o advento da praça revestida do mito moderno pelas mãos do arcebispo.5 Dom Duarte passou a dirigir os católicos na capital paulista, e ampliou o processo de articulação da burguesia junto à Igreja, de forma a garantir não apenas a recuperação da ideia de nova sede religiosa para São Paulo, mas também da construção de uma catedral metropolitana, efetivamente. Contudo, foi o logradouro revestido de um caráter ambíguo, pois respaldou a municipalidade que o via como Praça Municipal, cogitada como abrigo para as sedes da Câmara Municipal e da Prefeitura (nunca instaladas). Houve então uma ideia de centro cívico para São Paulo. Curiosamente, incorporando também a catedral que representava a igreja, um poder apartado do Estado desde a instauração da República, mas que se alinhava tanto às forças políticas quanto aos edifícios administrativos na configuração espacial daquela área. Ao mesmo tempo, a montagem da Praça da Sé nos anos de 1910 esteve implicada na abertura de uma espécie de esplanada, que levou não só ao desaparecimento da antiga conformação do Largo da Sé como à própria erradicação da Antiga Matriz da Sé e da igreja de S. Pedro. Mas, para além dos dois templos, existiam muitas outras edificações e pessoas, em geral, veladas nas histórias da cidade.
Neste artigo analisamos então a conformação da Praça da Sé, para além de uma questão formal, como uma questão de fundo político. Valendo-nos das metáforas que Leonardo Novo (2017)6 e Josianne Cerasoli (1998)7 cunharam, as demolições efetuadas nesta área central de São Paulo podem ser vistas como elementos de engenharias de poder e de arquiteturas políticas. Este artigo então pretende contribuir para a compreensão das mudanças profundas que a cidade passou ao longo do século XX, sobretudo porque aquilo que se chama na história da cidade de Triângulo Histórico teve o seu centro geométrico alterado profundamente ao longo dos anos. Assim, permite esse artigo também uma contribuição a uma história daquilo que São Paulo destruiu, ajudando a desmontar e a desnaturalizar um processo de fruição da cidade, que subjaz num imaginário de metropolização e espaços amplos em pleno centro da cidade. O que se propõe aqui, ao invés disso, é mostrar o processo de transformação da cidade, ou seja, uma história de um processo de mudança. Quando analisamos transformações espaciais, devemos notar quais personagens estavam inseridos nessas áreas-alvo de modificação. Tentar identificá-los permite a construção de uma história social que revela os conflitos, desmistifica o papel transformador do Estado, humaniza os técnicos e dá voz àqueles que foram tratados, quando muito, como dados estatísticos. Como tem mostrado Fernando Atique (2016),
sendo a cidade também um universo de pedras, o desaparecimento de edificações mostra que a memória é apenas uma das dimensões do campo do patrimônio, e como tal, fenece e não substitui a experiência urbana como deflagradora e constituinte da mesma.8
Esse alerta mostra que a história das práticas de planejamento urbano, se for além da ideia e dos intelectuais daquele campo, trazendo as repercussões sociais e permitindo a leitura dos conflitos, garantirá uma aproximação Thompsoniana à história da cidade.9 A história da (não) preservação, dessa maneira, serve de janela para a compreensão de tantos personagens (edificados e humanos) que ficaram alijados de registro.
A proposta da remoção da Antiga Matriz da Sé para a sua substituição passou pela mobilização do circuito da imprensa, através de seu articulador maior no processo, Dom Duarte. Inaugurando essa defesa em artigo intitulado “As Nossas Igrejas”, publicado no Jornal do Commercio de S. Paulo em 11 de março de 1906, apelava à sociedade paulistana, uma unanimidade católica no seu discurso, listando em específico dois setores deste corpo social, que deveriam auxiliar a Igreja na criação do progresso: a administração pública e os particulares, vistos como aqueles grupos de promotores do projeto de transformação pelo qual passava a cidade. Dom Duarte explicitava no seu discurso a “picareta demolidora nas mais vetustas construcções da antiga Paulicéia”, como uma solução em chave positiva e cabível para a Antiga Matriz da Sé:
A egreja da Sé não é susceptivel a conserto, ou de reforma que a torne um templo condigno do seu destino, isto é, uma bella e grande cathedral, como deve ser a sede apostolica deste bispado.
[…]
O seu aspecto exterior nada tem de notavel a não ser que - é est vieux. O frontespicio não se reveste de nenhuma nobreza ou magestade; ao contrario, é commum, mauco, por ter somente uma torre lateral, e acaçapado. Adianta desgraciosamente até ao meio da praça o seu corpo desgracioso e pesado.11
Na linguagem de Dom Duarte, a Antiga Matriz da Sé era uma catástrofe urbana, em termos compositivos e tectônicos. Essa ideia era antiga no ambiente da Igreja, e mesmo na imprensa. Em um artigo no jornal do Correio Paulistano em 19 de agosto de 1904, já evocava no processo uma reconstrução total da cidade, e atacava a igreja de S. Pedro, que junto com a Antiga Matriz da Sé, conformava o Largo no Centro da cidade. Defendia ser o Largo da Sé onde “precisamente mais se tem feito sentir o obsoleto […] dos passados tempos”. Ainda, no artigo, explicitamente dizia ser importante desapropriar propriedades da área e, em especial, demolir a Igreja de S. Pedro, pois assim,
completar-se-ia a excellente idea, ampliando-se tambem o largo da Sé, pequeno, apertado, insufficiente para as necessidades de espaço e curso […]. E para isso bastará estender a desapropriação, ainda que gradual e parcelladamente, áquella egreja e aos sobrados vizinhos.
[…]
A egreja, […] está de ha muito sem culto religioso contínuo, que alli justifique a sua indispensavel permanencia; tanto mais que qualquer falta a esse respeito, quando se dêsse, seria satisfactoriamente supprida, como já acontece, com os offícios da Cathedral, preferida sempre para taes misteres.12
Inaugurando no debate público a ideia da demolição da igreja de S. Pedro, a sua campanha pela demolição, porém, veio revestida de ambiguidade. Não bastava demolir a Antiga Matriz da Sé. Era necessário também derrubar a igreja de S. Pedro, vista por diversos atores sociais, inclusive memorialistas como Alfredo Moreira Pinto (1900), carioca que retornou a São Paulo após 30 anos afastado, como obsoleta:
Está situada no largo da Sé e ao lado da Cathedral.
Suas paredes ennegrecidas dão-lhe um aspecto lúgubre.
Tem duas torres, cinco janellas e três portas.
O interior é paupérrimo.13
Perscrutando a imprensa sobre os movimentos da Igreja na busca de sua nova sede, foi notada a emergência de uma nova pauta, que era a da possibilidade de desapropriações. Essas informações de caráter desapropriatório colaboram para a ressignificação de uma cronologia associada a essa área central da cidade e para uma historicização da mudança, como propôs Frahya Frehse (2001), entendendo a mudança da configuração urbana como um processo.14 Nestes termos, ainda o artigo do jornal apontava a demolição acontecendo na quadra adjacente à referida igreja do Largo da Sé já em 1903. Dar início às demolições cumpria efetivamente uma função, a de mostrar como a liberação de espaços naquela área colonial traria o progresso de forma irrefutável:
Para alargar a rua da Fundição, foram já desapropriados e demolidos os predios que ficavam na linha lateral da egreja de S. Pedro, e, em seguimento desse acertado plano, a Camara Municipal resolveu prolongar até áquella a rua do Quartel, cortando a travessa da Sé e os fundos da dita egreja e da casa vizinha desta, na esquina.
[…]
As casas vizinhas, velhas, estragadissimas, pouco mais excederão em estimativa ao valor do terreno.
Adquiril-as desde logo, nessas condições, uma vez que já se vae pagar, para demolir, os fundos necessarios ao prolongamento da rua do Quartel, não ha de ser por certo um tão pesado accrescimo de despesa, para as forças financeiras do municipio. Aliás, não se deve esquecer, por outro lado, as enormes vantagens que a medida traz á população, compensando mesmo quaesquer sacrificios do momento.15
Neste ponto, as duas plantas desapropriatórias oriundas do Departamento de Desapropriações, da quadra que originalmente conformava o Largo da Sé (Figura 1 e 2), grafam o contexto em que os prédios adjacentes16 à Igreja de S. Pedro foram subtraídos. Os selos deram registro às expropriações de dois proprietários particulares, corroborando a ocorrência entre 1902 e 1903 da desapropriação, em uma operação de permuta justificada para alinhamento da rua da Fundição:


Não obstante é visto que os valores pagos como desapropriação foram elevados. Ao confrontarmos as cifras desse ator, da municipalidade que dispendia do Tesouro com a expropriação-demolição, um elemento pontual de comparação de grandeza monetária, mas que nos dá uma dimensão em relação aos valores elevados em contos de réis aparecendo no caso-a-caso da operação com os particulares, são os salários de uma parcela dos múltiplos atores sociais que se achavam em segmentos da burocracia dos setores médios urbanos no transcurso do processo, em suas ocupações e saberes manuais e especializados, mediados no lugar do público, e que o Correio Paulistano publicou (Tabela 1).

Comparando as áreas dos imóveis com os valores concedidos pela municipalidade aos particulares, é visto que a proprietária Anna J. L. Ferraz recebeu o montante de 70:000$000 por um imóvel de 334,88m2, enquanto o proprietário José de Arruda Sampaio levou uma soma de 56:855$000 pela construção de apenas 76,00m2. Já a planta também descreve uma operação onde a Irmandade de S. Pedro, por volta de 1905, cedeu como doação uma parte de seu terreno à municipalidade para um alinhamento. No entanto, o selo da planta mostra que a Irmandade, para fins da “reconstrucção dessas dependencias no novo alinhamento”, uma vez que o “terreno doado era ocupado por dependencias da egreja”, recebeu da municipalidade uma cifra de 4:000$000. A imprensa, curiosamente, não mostrou esses descompassos no processo de demolição no perímetro. Mas uma nota publicada pelo jornal do Correio Paulistano em 13 de setembro de 1904 nos permite entender que tanto a campanha de demolição quanto a negociação que desmontou e pretendeu reconstruir a igreja de S. Pedro, sofreram reveses. Durante as demolições contíguas ao templo religioso para a implantação do novo alinhamento, a Igreja
foi modificada em seus alicerces, em virtude das obras de alargamento da rua da Fundição, sendo completamente reconstruida uma parede lateral e executadas outras obras de segurança.
Hontem, […] a parede dos fundos daquelle templo, que mede nove metros, mais ou menos, de altura, por quinze de comprimento, veiu por terra, para dentro da egreja, destruindo completamente um altar e damnificando outros […].17
Rebeca Grilo de Sousa (2016)18 foi perspicaz na síntese de que o caso do desmonte efetuado na Sé a partir de 1910, não se denota a priori por uma demolição de ruínas, mas por uma demolição por rearranjos ou acordos.19 Alguns aspectos pouco conhecidos do processo paulistano de demolição do Largo da Sé foram trazidos pelo Monsenhor Sylvio de Moraes Mattos (1992). Este amealhou, com o seu acesso tido a partir de dentro da instituição, pelos arquivos e memórias do circuito eclesiástico, que na proposta inicial “[f]icaria, pois, a nova catedral no local da velha Sé, sendo apenas a construção recuada em seu alinhamento para coincidir com o alinhamento da Travessa da Sé.”20 No entrecruzamento das versões e dos contornos cogitados sobre a proposta de localização da catedral, soma-se também a documentação burocrática da desapropriação sob a Lei nº 1305 de 11 de abril de 1910, que incorpora à rede dos agentes um outro ator social e demandante do circuito político, revelado pela atuação de destaque no processo. Como prefeito, Antonio Prado atuou de maneira determinante na concretização do desmonte da área da Sé, numa interlocução próxima com o artífice pela Igreja, Dom Duarte. Em um primeiro documento manuscrito redigido em 25 de março de 1909, o secretário representante do arcebispo propunha diretamente ao prefeito uma permuta, a cuja tratativa era explicitada a convergência entre a municipalidade e a igreja. Noutras palavras, era o elemento especulativo aproximando uma esfera particular (a elite eclesiástica) e pública (a municipalidade) no processo. Era buscado, pois, um consenso tanto na definição da área que deveria entrar em tratativa de desapropriação quanto nas cifras de fundo indenizatório, que a igreja especulava levar com o acordo:
Exmo. Sr. Conselheiro Antonio Prado.
[…]
[…] pelo Arcebispo Metropolitano […] as bases de um accôrdo para a permuta dos terrenos municipaes e outros com immoveis pertencentes à Mitra […] as clausulas em que julgo poder realisar-se o negocio, com vantagem para ambas as partes.
Para que a nova Cathedral seja levantada no perimetro designado na planta annexa e ao mesmo tempo o patio da Sé e as ruas adjacentes sejam alargadas na medida indicada na mesma - a Prefeitura terá de concorrer com 1373 metros quadrados, representados em terrenos publicos e immoveis dependentes de desapropriação, ao passo que receberá da Mitra 1246 metros quadrados, representados em terrenos ora occupados pela velha Cathedral e predios adjacentes.
Por ahi se vê que as areas a permutarem-se são sensivelmente iguaes, havendo apenas a differença de 127 metros quadrados, a mais nova Cathedral - uma boa parte (365 metros quadrados) está representada pelo leito da rua Santa Thereza, onde não existem bemfeitorias, além do calçamento.
Nestas condições, é evidente que a base justa, equitativa, do negócio está na permuta das duas areas - recebendo a Mitra da Prefeitura uma indenisação pecuniaria correspondente á differença do valor dos immoveis em transacção.
Acredito que o Sr. Arcebispo se contentará com uma indenisação relativamente insignificante, apenas de 60:000$000 de réis, e pagável de modo muito facil - em cinco prestações annuais de 12:000$000 de réis cada uma […].
[…] é pensamento do Sr. Arcebispo começar a construcção da nova Cathedral na parte que não affecta a egreja atual.21
Colocando em termos o itinerário da demanda que a tratativa do arcebispo exigia, ficava implícita a colaboração de um engenheiro, não identificado na documentação, para estudar a área-alvo. Dessa forma, por meio da operacionalização da cartografia, isto é, de uma planta com base cadastral, todos os lotes do entorno e da adjacência foram levantados, com a Antiga Matriz no Largo da Sé sendo o parâmetro comparativo. Assim, planta em questão (Figura 3) dá uma dimensão da área-gênese do desmonte, das primeiras demolições que iriam transformar a fisionomia da antiga área central da cidade. Compreendida entre o Largo da Sé e a Praça João Mendes, no miolo da geometria do Triângulo central, essa faixa notavelmente extensa abrigava um total de 61 lotes distribuídos nas duas quadras conformadas pelas ruas Capitão Salomão (26 lotes), Travessa da Esperança (3 lotes), Marechal Deodoro (15 lotes) e Santa Teresa (17 lotes). Ao Norte, existia uma terceira quadra exatamente no Largo da Sé, onde se situava a Antiga Matriz.

A Igreja, ao demandar de um engenheiro o estudo da área pretendida, trouxe vários lotes discriminados para o acordo, dos quais, aqueles pertencentes à particulares. Em realidade, tratava-se de uma planta-projeto, em que o trabalho técnico que a igreja demandou já era visível, uma vez que havia a projeção com destaque em vermelho do perímetro do novo templo neogótico, acima das quadras discriminadas na planta. Entretanto, se insinuava graficamente o projeto em mesma posição e área ocupada pela Antiga Matriz no Largo da Sé. Nesse sentido, era significativa a deixa do arcebispo, através de seu emissário, para “começar a construcção da nova Cathedral na parte que não affeta a egreja atual”. Assim, forjava-se no discurso da transformação urbana, a produção da cidade a partir de um grupo, a igreja, que mobilizava a cartografia22 para manipular essa relação de valores que operaria o desmonte na área. Valores que, evidentemente, não se confirmavam, uma vez quando a área arrasada não correspondeu ao que ali se projetou, pois abarcou uma área notoriamente maior. Logo, envolveu valores maiores para que fosse erguida no ponto oposto ao Sul do Largo, de costas para a Praça João Mendes.
Entretanto, concorria para este processo de escolha do local para o desmonte uma obra em paralelo sobre uma mesma temporalidade: a construção de um Centro Cívico. A começar pelo novo Paço Municipal. Observando essa possível operação espacial, uma primeira evidência se acha na planta comercial de autoria de Thomas e Cia., produzida em 1911 (Figura 4). De acordo com o que demarcava a planta, naquela altura já se achava demolida toda a quadra do ponto da Praça João Mendes. Uma nota publicada no jornal d’O Estado de S. Paulo em 5 de julho de 1911 confirmava o processo da demolição acontecendo. Segundo o jornal, havia recomeçado as obras de demolição das “casas já desapropriadas da rua Capitão Salomão, no trecho da travessa da Esperança para baixo”, estando estas obras “levadas a effeito para o alargamento daquella via publica.”23 Ou seja, as demolições começaram por aquele ponto, contrariando o termo das tratativas de abertura de clareira na área que supostamente estaria destinada à construção da catedral (no Largo da Sé).

Aparentemente também, o local aberto tampouco foi investido de consenso para a montagem do Paço, tendo em vista os debates na esfera municipal a partir de 1909. Na sessão de 5 de junho de 1910, o vereador Sampaio Vianna indicava no seu Requerimento a existência de um jogo de tensões dentro da esfera municipal, entre os atores legisladores e o ator-executivo, o prefeito. O vereador lembrava, até onde era sabido, que a faixa de terreno defronte a Praça João Mendes estava “destinada, ha muitos annos, á construcção do Paço Municipal”. Para este fim, havia a Câmara levantado um empréstimo externo, para desapropriações que já ocorriam. Todavia, o mesmo reclamava que “sem que a Câmara tenha tido conhecimento de ser adiada a construcção”, tampouco o conhecimento sobre o prefeito tê-lo arrendado ou o cedido em concorrência pública, foi construído “um grande barracão nos terrenos do antigo theatro S. José”, não se tratando de uma construção “com caracter provisorio, porque as obras que se estão fazendo denotam o intuito de permanência.”24 Sua fala evidenciava ainda um processo de disputas na produção social daquele lugar. Elizabeth Miyazaki (1979) deu mostras de um viver urbano que resistia e formatava ali um claro atrito sobre o decurso da obra, ao chegar ao registro fotográfico de um impresso à mesma época, em 1910 (Figura 5):
O terreno murado à esquerda é hoje ocupado pela parte posterior da Catedral. Na época em que foi tirada a fotografia, nele estava instalado um circo. Os circos, então muito frequentes, representavam a herança de notável tradição e importante divertimento para a população. Além dos espetáculos de habilidade e do palhaço, havia representações teatrais, geralmente comédias.25
Roseli D’Elboux (2015) apresentou em sua tese uma outra face da ideia de um Centro Cívico na Sé, ao analisar a presença do arquiteto francês Joseph Bouvard, quem teve seu papel no plano de sua projetação. O que se chamava de centro cívico, de fato, traduzia simbolicamente uma vontade de junção dos edifícios públicos, conciliando as esferas municipal, estadual e eclesiástica.26 Uma coluna dedicada em noticiar o Paço Municipal, publicada no jornal d’O Estado de S. Paulo em 9 de julho de 1911, amarrava a síntese da retórica pactuada de centro simbólico,27 que sobreporia às mais antigas quadras da Sé pela área de 3139 metros quadrados, dominando-a em face de um “grupo de grandes edificios que vão constituir a acropole paulista: a Cathedral, o Forum, o Congresso Estadual.”28 Por intermédio do ator e braço do saber técnico municipal, Victor Freire, Bouvard exemplificava mais uma vez a rede de colaboração que mobilizou como partícipe a figura do engenheiro, em geral, velada por seu saber neutro, mas que era em muito entremeado em sua função sobre o contexto por operações imobiliárias.29 Como pontuou D’Elboux, o arranjo amplo de demolições era um expediente implícito e um mecanismo para a obtenção de lucro destes atores, incluindo Freire.30 D‘Elboux confirmou que os arranjos vinham se definindo anteriormente à chegada de Bouvard.31 Neste ponto, é significativa a planta que D’Elboux recuperou do plano oficial para o Centro Cívico (Figura 6), mostrando a posição da igreja na área menor do Largo da Sé.

O arranjo de desapropriações foi sendo montado em esfera municipal pelo prefeito Antonio Prado, quem justificou as primeiras cifras desta operação já no início de 1908. Seu Ofício, apresentado na sessão de 20 de abril de 190832 da Câmara Municipal, trazia na costura do processo uma operação financeira de empréstimo externo com o London and Brasilian Bank Limited de Londres, e mediada pelo The Ethelburga Syndicate Limited de Londres, onde era reservada a soma de 1.200:000$000 descrita como sendo destinada para o “Paço Municipal e as desapropriações”. Logo, se reforçava uma arquitetura ainda maior desta rede de relações econômicas que unia “homens poderosos através do Atlântico”,33 aglutinando a presença estrangeira numa trama que Joseph Love (1982) atentou, dos negócios imobiliários na cidade.34 Na contraparte do processo, Dom Duarte não apenas passou por cima da imagem que se pretendia para aquela cidade, no plano material e simbólico quando, inclusive, os pilares de fundação do paço municipal chegaram a ser instalados no lugar anexo à Praça João Mendes (Figura 7). Foi o arcebispo também o ator que logrou em articular uma relação conciliatória das esferas públicas urbanas no evento da ereção da Catedral e Praça da Sé na cidade de São Paulo.

Esteve em curso um mascaramento simbólico desta articulação, entre a Mitra e a esfera pública, que de fato acontecia desde 1909, a fim de que fosse construída a catedral em área maior. O que levava à necessidade de cifras maiores a serem despendidas pela municipalidade no arranjo de expropriar para demolir. Se revelava então uma tensão onde se forjava um vínculo das propriedades dos atores particulares das quadras. A pasta do mencionado processo, sob a Lei nº 1305 de 11 de abril de 1910, anexou como parte de um levantamento detalhado do órgão municipal, três ofícios que foram remetidos à esfera eclesiástica. Neles constavam a relação de nomes dos proprietários particulares, seus respectivos imóveis e valores de locação, e uma coluna de Observações, descrevendo as construções como sobrados velhos, compreendidos entre as ruas Marechal Deodoro, Santa Teresa e Capitão Salomão (Figura 8a, Figura 8b e Figura 8c). Conjuntamente com os ofícios, estava a resposta datilografada e assinada por Antonio Prado, acerca dos termos do acordo passado pelo arcebispo na mediação do seu secretário pela Igreja. O prefeito sugeria que
[s]egundo avaliação feita pela Directoria de Obras, que baseou a importancia das desapropriações sobre o valor locativo dos predios interessados pela construcção projectada, as despesas provaveis com as desapropriações devem elevar-se a 449:000$000. Tendo encarregado o Dr. Procurador deve entender-se com os proprietarios desses predios sobre as quantias por eles exigidas, do officio incluso consta o resultado da sua missão, o qual, como vereis, não offrece base para uma avaliação siquer approximada das quantias a pagar pelos predios em questão, o que fas crer que será necessario recorrer à desapropriação judicial.
Em todo o caso, a despesa não poderá ser feita com os recursos da receita ordinaria, exigindo uma operação de credito.35



Mateus Rosada (2011) se debruçou sobre essa postura alavancada pela Igreja no arranjo fundiário urbano, mesmo nas primeiras décadas do século XX. De acordo com ele, uma vez “proprietária na maioria das localidades das terras do perímetro mais central”, a igreja “continu[ava] dona d[a]s mesm[a]s, pois seu direito de propriedade [laudêmio] não lhe [foi] tirado. Mas fic[ava] agora sujeita às possibilidades de desapropriações de seus bens pelo poder público.36 Nestes termos, o informe de Antonio Prado deixava claro uma tensão concorrendo como obstáculo à tratativa. Para além daquele montante negociado, uma espécie de lucro indenizatório já naturalizado pelas práticas da igreja (tratado, pois, como “relativamente insignificante”, e cogitado sobre imóveis que não eram da propriedade desse ator eclesiástico), concorria um outro circuito das cifras pretendido pelos demais atores, os proprietários particulares em interação com o processo da reconfiguração urbana. Como revelaram os cálculos da Prefeitura pela Diretoria de Obras na figura do técnico Victor Freire, a soma em réis a ser despendida indicava não se tratar de uma área menor.
Assim, a lógica da operação da igreja implicava na colaboração da municipalidade, isto é, do prefeito. Para tanto, se valia do instrumento de desapropriação da esfera pública, para transformar o patrimônio particular (laico) em patrimônio municipal, velando da operação a colaboração conjunta do ator-particular (especulador). Sobretudo porque os nomes daqueles que eram proprietários na área-alvo, não figuraram no Livro de Ouro da Catedral, que continha a adesão de doações à Mitra em celebração da obra. A lacuna nos dá um indício da manutenção de um circuito seleto, dominante e homogêneo à frente do arranjo do desmonte. Afinal, os imóveis já vinham ficando em posse da municipalidade, quando boa parte já vinha sendo desapropriada em função da construção, esta que não houve efetivamente naquela área, do Paço Municipal.37 Levado à sessão de 2 de abril de 1910 na Câmara Municipal sob o Parecer nº 16, avaliado pelas Comissões Reunidas de Obras, Justiça e Finanças, que era composta por Goulart Penteado e José Oswald e Azevedo Soares, o acordo em que se chegou reforçava a alegação pela Mitra de que
o terreno situado no Largo da Sé e que vem se aggregar no patrimonio municipal, occupado atualmente pela Cathedral, vale muito mais que aquelle que tem de ser desapropriado pela Camara si se quizer dar o valor real.38
Segundo esse discurso, o terreno da igreja se superpunha como valendo mais sobre aquele patrimônio laico que também entraria no circuito da desapropriação. Minimizava-se, pois, essa face na operação do desmonte. Por outro lado, estavam as relações do Governador do Estado, nesse arranjo entre as esferas públicas urbanas para o processo do desmonte na área da Sé. Uma vez que era o Estado quem despendia as desapropriações da municipalidade que, por seu turno, agenciava, foi publicizado por nota pelo Correio Paulistano em 21 de novembro daquele mesmo ano, a assinatura de um acordo celebrado entre Dom Duarte e o governo do Estado, representado diretamente pelo Governador Albuquerque Lins, e por Olavo Egydio e Luiz Arthur Varella, em que o “Sr. arcebispo metropolitano desisti[a] não só da acção que intentava contra a Fazenda do Estado, como tambem de qualquer recclamação”.39 O que nos permite entender que, de fato, aquele que costurava o acordo inicialmente era o prefeito Antonio Prado, evitando tensões entre as instituições do Estado e da Municipalidade. Afinal, os manuscritos do Diário Pessoal do ator-arcebispo corroboram para uma política conciliadora acontecendo a par e concordância dos lugares partícipes, e realçam novamente o perfil especulador do arcebispo neste processo da reconfiguração espacial da Sé. Um manuscrito de 12 de fevereiro de 1913, endereçado à Dom Duarte pelo Arcediago de Capitais, pedia o seu “consentimento para a permuta do terreno da Cathedral”, uma vez quando
[s]ubordinado a um plano geral de melhoramentos da Capital, propõe o Governo do Estado, de acordo com a Municipalidade, ceder à Mitra o local onde actualmente se começou a edificar o Paço Municipal, para ser ahi construída a Cathedral Metropolitana, cuja fachada principal dará para o Largo da Sé ampliado e embellezado. É evidente a magnificencia do projeto que, dando á nossa Cathedral singular sede, contribue estraordinariamente para o embellezamento da nossa já formosa capital. […] precisa o Arcebispo que […] conceda um consentimento para permutar o terreno da Cathedral por isso equivalente no local indicado […].40
Em resposta, Dom Duarte reafirmava para a igreja um papel no projeto urbano, pelo que endossava tratar-se de “um projecto magnífico; [e] depois de ter […] ouvido o parecer da Commissão […] prestou um consentimento para permutar […].”41Assim, na sequência das tratativas uma outra peça conciliadora foi lançada, com o aparato da imprensa. O Correio Paulistano levava às suas páginas em 16 de fevereiro de 1913 uma espécie de carta-agradecimento de Dom Duarte para o secretário da Agricultura, Paulo de Morais Barros, que mediava o desenrolar do processo na Comissão Executiva de Obras:
tendo ouvido o parecer do Revmo. Cabido e da commissão executiva das obras da Cathedral, deliberou-se acceitar o alvitre, em boa hora lembrado por V. Ex.ª em nome do exmo. Sr. Presidente do Estado e de accordo com a exma. Prefeitura, de ser a nova Cathedral construída no local actualmente ocupado pelas obras do Paço Municipal. […] nossa questão, que tanto interessa à magnificencia da Egreja paulista, como contribue para o prestigio de nosso Estado e embellezamento da nossa capital.
A resolução tomada por s. exc. revma., conjugando os interesses da egreja paulista, […] com os interesses da capital, na parte respeitante ao seu embellezamento, é mais uma prova a confirmar os sentimentos civicos do ilustre prelado […].42
A aproximação do dado desapropriatório como via de análise, implica em lidar com um paradoxo. O arranjo dos acordos desapropriatórios contém, no limite, uma unilateralidade. Permite chegar, de fato, à camada detentora de titularidade daquele lugar, os proprietários. Por outro lado, porém, Paulo Garcez Marins (2011) tem alertado sobre o olhar da historiografia que aponta o protagonismo do ator-externo, o estrangeiro, na produção do espaço urbano. Para ele, essa ideia resulta num “empalidecimento da capacidade operativa” das chamadas elites locais, numa condição de “recebedores e consumidores passivos” dos moldes modernos, simplificando o “comportamento propositivo e ativo” desses atores, tanto quanto dos “setores médios e da população pobre ou escrava”.43 Em tabulação das desapropriações na área-alvo da Sé, arrolamos o circuito dos nomes dos atores-desapropriados; o sistema de numeração dos imóveis identificados na desapropriação; o ano ou a cronologia do caso a caso para a obra de demolição; os logradouros atingidos e a toponímia evocada e grafada; e por fim, um dado mais raro nas histórias sobre a área em estudo: cada uma das cifras da demolição (Tabela 2).

A tabulação evidencia o dado da existência de um circuito de particulares, que possuíam os imóveis conformadores das quadras no entorno do Largo da Sé na sua quase totalidade, nestas duas primeiras décadas do século XX. Por outra parte, a partir do cruzamento dos nomes levantados com o dado dos jornais, temos o perfil social dos indivíduos proprietários (Tabela 3). Partindo destes termos, a posição destes atores proprietários, em grande parte originários dos quadros da elite tradicional, também se constituiu de modo semelhante aos setores médios, isto é, por uma enorme mobilidade, como notou Zélia Cardoso de Mello (1981). No contexto anterior ao século XX, conduziu-se um ingresso capitalista em demanda de uma estrutura agroexportadora complexa da economia do café, que exigia um aperfeiçoamento de redes bancárias, maquinários e ferrovias, concorrendo os papéis, fosse direta ou indiretamente por meio de redes familiares, como diretores ou acionistas em companhias. Estes mesmos atores oriundos da elite de base agrária, figurando como os grandes fazendeiros do Oeste Paulista, agenciando o processo de efervescência do café a partir de 1870, operaram sempre em múltiplas atividades urbanas, não concentrando sua riqueza somente neste aperfeiçoamento para o café. Tratava-se de uma economia de diversificação, na forma como estes atores interagiam com as transformações modernizadoras do capital. Desse modo, chegamos àquilo que evidenciou Cardoso de Mello (1981), de que estes atores concentravam a maior parte de suas riquezas - estas já aquiescidas no momento anterior ao café, como afirmou Richard Morse (1954), potencializadas por pelo menos um século de lavoura canavieira em épocas coloniais44 -, em realidade, pelos imóveis e os valores imobiliários.45

Tendo em vista a informação dos selos da planta desapropriatória sobre o cálculo da municipalidade para valores do metro quadrado na área do Centro, ela evidencia o parcelamento de solo existente para a área no começo do século XX. De modo a afirmar a tese para uma permanência de longa duração desse mercado imobiliário elitizado na área da Sé, tal como Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (2016) veio destacando.46 Assim a planta, vindo a corresponder à operação de desapropriação de todo o quarteirão do miolo da faixa demolida, sendo ela despendida pelo presidente da Província, Albuquerque Lins, no processo originado no Decreto nº 1716/1909 (Figura 9).

Tomando em tela um microexemplo a partir dos selos (Figura 10), o particular Agostinho Pinto de Mendonça, que era também subdelegado do Sul da Sé (Tabela 3), recebeu pelos imóveis de ns. 36 e 36-A da Rua Capitão Salomão uma soma vultosa em contos de réis, de 45:001$000. O selo descreve um lote de dimensões mínimas, apresentando 180m86cm2 de área de construção, por 200m7cm2 de área do lote. Além disso, era uma operação de hasta pública (Figura 11), onde o próprio proprietário fixou o valor a ser recebido pelo lote, e levou, com a compra dispendida por esse ator, a municipalidade. Logo, uma lógica inversa ou informal no arranjo, onde a esfera pública apareceria na qualidade de vendedora de terrenos de seu patrimônio municipal, sendo pouco comum ela aparecer neste tipo de relação como compradora do patrimônio particular.47 Este proprietário levou também uma outra soma em réis de 25:000$000 (logo, um valor total de 70:000:000), apenas pelos dois lotes nessa área da Sé, em uma operação desapropriatória pela Lei nº 1144/1908 sobre os imóveis de ns. 50 e 50-A. Tais construções abrigavam um cortiço. Agregando a este dado a informação resgatada na imprensa, em um requerimento trazido em 24 de março de 1885 pelo Correio Paulistano, o proprietário figurava como um agente operando uma lógica de encortiçamento duradoura no processo, situada na passagem do século XIX para o XX (Figura 12).



Um segundo aspecto tomado a partir da tabulação das desapropriações, está no indício de um arranjo sistemático por acordos, com poucas exceções, que obedeceu à tônica amigável, ou, conforme a semântica-padrão dos debates na esfera da Câmara Municipal, a concordância do valor justo. Flávio Eduardo Di Monaco (2007) focou na atuação, pouco explorada, dos poderes urbanos nos arranjos de desapropriação, em termos de suas interações com a feitura da mudança. Ao apropriarem-se de um lugar ativo e antecipatório na construção e reconstrução da cidade,48 guardam no seu ideário urbano uma racionalidade avalorística, assim mistificando o arcabouço da legislação urbanística, dentro da qual está o instrumento desapropriatório, tomado exclusivamente em si mesmo, como um “instrumento descompromissado de atuação da vontade estatal”.49 Como Di Monaco (2007) bem sustenta, o arranjo desapropriatório paulistano, à maneira de processos transformadores que incorreram sobre um quadro complexo e de fricções,50 conformou um indício onde o poder público, assim como seu patrimônio, acabara se confundindo com “o poder e o patrimônio privado dos chefes políticos locais ou regionais”.51
Dessa forma, a categoria da utilidade pública (Tabela 2) significava outra etiqueta, que, sob o emprego técnico da “desapropriação total de imóveis parcialmente declarados como de utilidade pública”, permitia “mais que uma prerrogativa do poder expropriante, um direito conferido ao proprietário, a fim de que não suportasse o ônus de ter seu imóvel desvalorizado em função da desapropriação parcial”.52 Assim, como defende Di Mônaco (2007), existia uma indústria das desapropriações, favorecendo os proprietários mediante a adesão das esferas municipal e do Estado, que assim legitimava na disciplina (exclusiva) do direito privado, o prejuízo das finanças municipais:
Os cofres públicos deveriam financiar o novo, demolir e construir. E foi isto que aconteceu. Os planos de melhoramentos da cidade sempre apontaram como grande vantagem os poucos recursos que eram necessários para que fossem concretizados. […] Na realização de um plano [a exemplo do de Bouvard] o custo da obra poderia ser amortizado por desapropriações e imóveis envelhecidos que, demolidos, eram reincorporados ao mercado imobiliário como imóveis novos, valorizados.53
O articulista Peixoto Junior, na coluna A Nova Cathedral para o jornal do Correio Paulistano em 6 de julho de 1913, revelava o aspecto contrário à celebração de progresso e melhoramentos até aqui visto: “desapareceu a velha Sé, […], e em cujo recinto se formaram, […], os primeiros laços da família paulista”.54 Já antes, em 12 de maio de 191255 uma nota d’O Estado de S. Paulo sinalizava essa ideia sendo socialmente produzida, passando a inventar sobre o espaço urbano um papel para os dois velhos templos.56 Todavia, como pontuaram Gabriela Assunção e George Dantas (2018), indicando o “dilema do progresso, entre o novo e o antigo”.57 O dilema do progresso, curiosamente, também era manifestado pelo próprio Dom Duarte. O Monsenhor Moraes de Mattos (1992) destacou que
[c]ontava Dom Duarte (Memórias) que depois de determinada a demolição da velha Sé, teve que seguir para Roma, a serviço da Arquidiocese. Voltando de Roma, Dom Duarte passando de carro pela Praça da Sé, não mais viu a Sé dos antepassados bandeirantes. Comprimiu-lhe a alma e arcaram-lhe os ombros, sentindo a sua responsabilidade, enorme peso de quem quer demolir, deve fazer coisa melhor.58
Assim, Dom Duarte percebia também a “[d]ifícil situação, diante dos […] que não poderiam conceber a ideia de […] desaparecer o templo de todos os seus antepassados; de verificar que todo o passado do centro da cidade iria sofrer tão radical modificação”.59 Esta passagem, que se acha na narrativa levantada por um religioso, é evocada na tradição oral de alguém que conviveu com o arcebispo e carece de cientificidade. Mas ela também demonstra o peso que as decisões de embelezamento, melhoramento, transformações e julgamento pela opinião pública, todavia, despertaram. A demolição destas estruturas urbanas coloniais não foi recebida pacificamente, tampouco em chave unânime. A própria narrativa contida no seio da igreja reforça um caráter controverso. O monsenhor Mattos grafou ainda que em “todo o seu desmoronamento, as picaretas no remover dos blocos de taipa” foram marcadas por “gritos, lágrimas, protestos por serem sepultados todos os esforços dos antepassados paulistanos”.60
De outra parte, um circuito alternativo da imprensa fomentou uma via dos protestos dentro do processo da reconfiguração da Sé. Nestes termos, se destaca o periódico A Lanterna. Fernando Peres (2005) explicou que o periódico, criado em 1901 por Benjamin Mota a partir da adesão de um grupo de maçons,61 comportou uma segunda fase mais ampla a partir de 1909, se formatando como “brecha dos embates da época”, cujas pautas anticlericais circulavam por “diferentes atores sociais”, na medida em que ideias desde “justiça, trabalho e bem-estar compartilhados” até o socialismo revolucionário “constavam nas tábuas de valores dos grupos [urbanos] presentes em São Paulo na Primeira República, como os maçons, os protestantes, os espíritas, […], os estudantes, os republicanos (radicais ou descontentes) e os socialistas”.62 Assim, o periódico era um espaço de construção de uma crítica assídua, dirigida não só aos atores institucionais públicos e eclesiásticos, como às intervenções e demolições que aconteciam no espaço urbano.
Uma nota deste jornal, publicada em 25 de novembro de 1911, capturava e tencionava a figura do especulador da qual o bispo da catedral de S. Paulo se investiu ao ancorar-se na esfera pública: “trocou casas no quarteirão entre as ruas Capitão Salomão (antiga Esperança), Santa Teresa e Marechal Deodoro”, mas não por demandas de “serviço público”. Apontava a publicação que era uma operação gigantesca para apenas realizar “o grande sonho da catedral de milhares de contos de reis!”.63 Atentando para o avançar das expropriações para as obras da catedral, que mobilizou a opinião pública fortemente no contexto, o jornal se mostrava em outro artigo dedicado ao assunto, na seção própria A Nova Catedral publicada em 05 de julho de 1913, ainda mais ácido. Prometia “dar aos leitores uma vaga ideia de como se constroem grandes e suntuosas catedrais…”, quando “[d]a inutilidade, para o povo, da dispendiosa construção, não é preciso falar”, e remontava à “combinação muito lícita” da catedral que “os poderes publicos de S. Paulo vão construir de mão-beijada para o sr. D. Duarte Leopoldo”:
[…] grossa pouca-vergonha em que se envolve esse negocio da catedral […]:
o governo comprou a vetusta Sé, demoliu-a, vendeu o terreno aplainado ao Arcebispado; afinal, trocou-o por um outro onde estava sendo construído o Paço municipal, com os alicerces já prontos. Resulta que de toda a honesta negociata o sr. Duarte, que tolo não é, abiscoitou algumas centenas de contos de lucro. E depois, convencionou-se que alguns condecos e baronetes dinheirudos, disfarçados em pródigos e sinceros católicos, caíssem também com alguns contecos - grãozinhos de areia atirados no saara do dinheiro necessario para a obra projetada -, que eles em breve, interessados como são nas pingues empreitadas da construção, hão de recuperar com as devidas indulgências… e os respectivos juros…64
O cruzamento da documentação oficial com a seção de informes da Prefeitura Municipal nas páginas do Correio Paulistano dá a compreensão do processo da demolição, alimentado também em outra rede de colaboradores, que capitaneava um circuito de cifras implicado em um mercado da demolição. Logo, um aparato da destruição já naturalizado nos rearranjos da cidade a um nível da especialização e da ramificação sobre obras de demolição pelas empresas construtoras, já se espacializando nestas primeiras décadas do século XX. O Código de Posturas do Município de São Paulo de 1886 agregava nas bases do processo a lógica que tendia a monopolizar a ação de demolição por particulares, isto é, pelo grupo especulador da cidade. Determinava no Título IV - Dos Edifícios Ruinosos, Escavações e Precipícios, sobre a realização e o custeio da demolição dos imóveis:
Art. 32 - O edifício, muro ou obra de qualquer natureza, que ameaçar ruína, será demolido no todo ou em parte pelo proprietário ou por conta deste, quando e como o Fiscal indicar, precedendo o juízo de dois peritos nomeados pela Câmara e pelo proprietário, ou ambos por ela à revelia deste, correndo todas as despesas por sua conta. O infrator incorrerá na multa de 30$.6565
O ator institucional, a municipalidade, uma vez convertendo em lote municipal as construções expropriadas, operou a flexibilização desse arranjo oficial para associar-se a um corpo de atores sociais, particulares, para o serviço de demolição, que era transmutado, porém, em um circuito específico de engenheiros, em via da concorrência pública. O Correio Paulistano lançava em 1 de março de 1910 o seguinte Edital da Secretaria Geral da Prefeitura Municipal:
Faço publico que, pelo prazo de oito dias contados da presente data, se acha aberta concorrencia publica para a demolição dos predios ns. 17, 19 e 21 da praça João Mendes; 31 da rua Marechal Deodoro; 6 e 8 da travessa da Esperança; e 36, 36-A, 38, 50 a 52, e 52-A, da rua Capitão Salomão, predios esses de propriedade municipal.
Os proponentes devem offerecer preço englobado pelo material aproveitavel resultante da demolição, como telhas, armação de telhados, portas, janellas, batentes, forros, soalhos, canalizações diversas, apparelhos sanitários, etc., demolição essa e remoção dos entulhos que serão feitas por conta dos mesmos proponentes, que caucionarão antes 500$000 para garantia da execução das suas propostas, que deverão ser entregues nesta secretaria em carta fechada e lacrada até ao dia 2 de março próximo, ao meio dia, para serem abertas no dia immediato á mesma hora. - Secretaria Geral da Prefeitura do Municipio de S. Paulo, 23 de fevereiro de 1910 - O Diretor Geral. Alvaro Ramos.66
Em se tratando de uma operação de demolição de grande monta sobre diversas edificações a um só turno em área de grande extensão na Sé, ela também se constituiu de uma atuação especializada e embutida num circuito rentável para a municipalidade, ao mesmo tempo em que agregou um circuito de cifras com a figura do proponente. Pois, conforme elencado em uma cronologia de microeventos pelo dado do jornal do Correio Paulistano (Figura 13), o tesouro, mesmo perdendo a proposta, despendeu com cada um dos proponentes. Por outro lado, aparece a informação social, o circuito dos nomes dos engenheiros particulares associados à concorrência pública para angariar esta demolição:

Esse artigo intentou aproximar-se de uma História Urbana no suporte de uma História Social, partindo de um problema de macroescala do processo de remodelações urbanas na cidade de São Paulo, para pensar um problema de microescala do evento da montagem da Praça e Catedral da Sé no alvorecer do século XX. Esquadrinhando um recorte espacial na área da Sé, conformado por três quadras e logradouros margeando o Triângulo Histórico, entre o antigo Largo da Sé e a futura Praça João Mendes, mas que foram extintos no processo, tomou-se como problema as demolições urbanas na feitura das relações do público e do privado na cidade, a partir de um itinerário específico das práticas urbanas, ou seja, aquilo que chamamos de antessala, as desapropriações. O que nos aproximou dos atores sociais. Uma vez que o apagamento material, um dado conjunto de edificações e atores, por uma série de discursos oriundos dos atores nas elites dirigentes (igreja e estado), foram ocultados no projeto de cidade. Transitamos pelo emaranhado dos discursos, dos acordos, da rede de colaboração, dos pactos, mas também das resistências ou protestos a esse movimento de arruinamento e de disputas de uma memória urbana (do imaginário e do processo social da demolição tratado pelo ator-imprensa). Por fim, das hierarquias dos espaços, e em escala dos vários atores participantes desse processo.
Mobilizando a metodologia de uma História da Não-Preservação, defendida por Fernando Atique (2016) no debate recente dos estudos da cidade de São Paulo, também atentamos para uma outra metodologia que pode ser resumida no termo da sociotopografia, isto é, do olhar no lote a lote, no processo, nas cifras, em cada um dos particulares em chave da espacialização, da cartografia reunindo-os em sobreposição, conforme demonstrou Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (2016). Dessa maneira, o percurso que nós fizemos para chegar nesse mosaico de sujeitos e de imóveis, partiu de uma serialização das fontes primárias, que possibilitaram pistas para pensar a cidade de São Paulo em seu percurso da transformação, não mais compreendida em uma historiografia linear, sublimada e triunfalista do progresso, mas revisando lugares e processos, descortinando instrumentos que possibilitaram a (des)montagem que precedeu o lugar de montagem para esta área central da pauliceia. Analisamos, assim, um projeto de cidade que para se afirmar como moderna, precisou negar as persistências do outro (tempo, materialidade, pessoas), para transformá-la no famigerado laboratório da modernidade discursado pelas elites.
















