RESUMO: Este artigo visa discutir a relação de artefatos zoológicos com a popularização do discurso científico a partir das ventarolas decoradas com beija-flores taxidermizados produzidas pela empresa M.&E. Natté, no Rio de Janeiro da segunda metade de século XIX. Seus leques frequentemente apresentam o beija-flor em cena narrativa, interagindo com um fragmento de natureza. Argumento que esses artefatos, mais do que outros produtos zoológicos, transmitem concepções científicas em voga à época, bem como a preocupação da M.&E. Natté em projetar uma imagem vinculada à história natural.
PALAVRAS-CHAVE: História NaturalHistória Natural,M.&EM.&E,NattéNatté,Arte plumáriaArte plumária,Ilustração científicaIlustração científica.
ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the relationship between zoological artifacts and the popularization of scientific discourse based on fixed fans decorated with stuffed hummingbirds, produced by the company M.&E. Natté, in Rio de Janeiro during the second half of the 19th century. Their fans often present the hummingbird in a narrative scene, interacting with a fragment of nature. I argue that these artifacts, more than other zoological products, convey current scientific concepts at the time, as well as the concern of M.&E. Natté in projecting an image linked to natural history.
KEYWORDS: Natural History, M.&E, Natté, Feather Art, Scientific Illustration.
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL
“Um gosto bem pronunciado pela história natural”: as ventarolas de beija-flor de M.&E. Natté entre ciência e arte
“A Very Pronounced Taste for Natural History”: M.&E. Natté’s Hummingbird Fans between Art and Science
Recepção: 09 Julho 2020
Aprovação: 09 Outubro 2020
“Museus públicos, em nove a cada dez casos, não são, infelizmente, boas escolas para delinear as atitudes ou as características dos animais”, proclamava Montagu Browne, em 1884, no seu manual de taxidermia.2 Para ele, os museus, na sua maioria, não tinham, como diríamos hoje, boa comunicação visual, pois expunham as coleções zoológicas sem dinamismo, nada mostrando dos comportamentos dos espécimes no mundo natural. Como taxidermista, ele tinha plena consciência da importância do aspecto visual na educação científica, assim como da necessidade de criar meios de transmissão alternativos:
a sociedade demanda que os objetos de história natural não fiquem relegados nas prateleiras esquecidas de museus empoeirados, mas vivam como ‘coisas de beleza e alegria para sempre’. Eis o motivo da nova aliança entre o ourives e o taxidermista, resultando em milhares de combinações engenhosas entre natureza e arte.3
Com efeito, o século XIX viu uma grande explosão no interesse em história natural, em diversos âmbitos: científico, comercial, estético, simbólico. Os debates acadêmicos sobre o mundo natural transbordaram os espaços institucionais e ganharam espaço na sociedade em geral, gerando o diálogo entre natureza e arte celebrado por Montagu Browne no trecho acima. Neste sentido, podemos falar em uma cultura científica oitocentista, entendida como a intersecção de práticas científicas institucionalizadas e da relação homem-natureza na sociedade como um todo, ou seja, esferas onde estão em contato a ciência e sua percepção e apropriação por não cientistas.4
Este cenário levou o país a uma posição bastante peculiar no cenário internacional. Palco de diversas expedições científicas ao longo do século, o Brasil se tornou um dos maiores fornecedores de peles de pássaros, plumas e artefatos zoológicos. No Rio de Janeiro, em particular, vários artífices se especializaram na produção de artigos de história natural e de peças de arte plumária de tipo ocidental (não indígena).
Uma das empresas mais bem-sucedidas internacionalmente foi a M.&E. Natté. Ativa no Rio de Janeiro na segunda metade de século XIX, a firma fez fama, no Brasil e no exterior, justamente com essas “combinações engenhosas entre ciência e arte”: fabricava e comercializava vários produtos relacionados à moda e à história natural, principalmente flores e leques de penas, joias e acessórios com insetos, peles de beija-flor e borboletas para coleção.
O objetivo deste artigo é discutir a relação de artefatos zoológicos com a popularização do discurso científico, a partir do caso da M.&E. Natté. Dentro da gama de mercadorias por ela produzidas, as ventarolas (um tipo de leque fixo) de penas decoradas com beija-flores taxidermizados, que estiveram no auge do seu sucesso internacional entre as décadas de 1870 e 1880, apresentam um interesse particular. É nestas que o discurso científico se faz mais nítido e as relações com a história natural são mais claramente rastreáveis. Ao contrário do que ocorre com os chapéus, que também foram ornados com aves inteiras empalhadas durante o século XIX, a ampla superfície plana dos leques fixos é particularmente propícia para expressão artística e visual. O presente texto defende que há uma afinidade estética e conceitual entre os leques decorados com beija-flores empalhados e flores de penas, produzidos pela M.&E. Natté, e a cultura científica do período.
A produção de artefatos zoológicos por culturas ocidentais têm chamado a atenção dos pesquisadores nos últimos anos, especialmente no campo da história da moda.5 Os artigos de Maria Cristina Volpi, em particular, são muito importantes nesse âmbito, e analisam o circuito de arte plumária no Rio de Janeiro, com foco na circulação de artigos de luxo exóticos. O foco deste estudo é diverso, ainda que complementar a esta produção recente, pois explora a divulgação de noções científicas através de objetos menos tradicionais da cultura visual, e que não têm como função primária a comunicação da história natural. Ao contrário de livros, exposições, estampas e fotografias científicas, os leques decorados com beija-flores vendidos pela M.&E. Natté tinham uma função de ornamentação e eram valorizados principalmente pela sua estética.
Este estudo tenta, assim, suprir uma lacuna historiográfica, uma vez que não existem publicações específicas sobre as ventarolas com beija-flores empalhados, e são raros os estudos que buscam mapear as dinâmicas dessa indústria no Brasil e sua relação com vários campos do conhecimento. Trata-se de um tema intricado e, com exceção dos jornais e revistas da época, conserva-se pouquíssima documentação relativa a essas manufaturas. As empresas mais conhecidas são às vezes citadas na literatura de viagem, romances e folhetins da época. Mas muito pouco se sabe sobre a formação desses produtores ou seu papel na sociedade oitocentista. Pretende-se, assim, contribuir para criar uma visão mais ampla das relações que perpassavam a produção da indústria de artefatos de penas e zoológicos à época.
A indústria de artefatos zoológicos e de penas, no Brasil, tem sua origem vinculada à história da arte plumária não indígena e ao desenvolvimento da técnica de fabricação de flores de penas, história essa ainda pouco conhecida entre os estudiosos.6 Convém, assim, traçarmos as linhas gerais desse percurso, ressaltando a internacionalização dos artefatos, assunto fundamental para o argumento aqui tratado.
Segundo vários textos e relatos do século XIX, a difusão da arte plumária ocidental no Brasil está vinculada à produção religiosa de flores de penas em conventos femininos, para ornamentação de altares.7 A narrativa mais completa encontra-se no livro Arte Plumaria, de Ferdinand Denis, o qual nos informa que teriam sido as irmãs ursulinas do convento de Nossa Senhora da Soledade, em Salvador, a desenvolverem a produção de flores de penas no Brasil. Para tanto, elas criavam aves, bem como utilizavam peles de pássaros selvagens adquiridas de caçadores. Seu trabalho era tão elaborado, que teria recebido reconhecimento até na Europa.8 O autor assinala, porém, que na década de 1870, momento em que publica seu livro, o convento já quase não tinha irmãs que se dedicassem ao ofício dos artefatos de penas, e nota que vinte anos antes a arte havia se secularizado, transferindo-se para o Rio de Janeiro e Santa Catarina.9 A informação referente à decadência da produção religiosa em Salvador é muito rica em detalhes. O autor lista inclusive o nome das irmãs artesãs, informações obtidas, segundo ele, através de ninguém menos do que o pintor brasileiro Victor Meirelles.10 É significativo que a fonte das informações fosse um artista: qualifica justamente o interesse que a arte plumária suscitava como ponto de encontro entre arte e história natural.
Cabe mencionar aqui uma origem diversa, difundida no próprio século XIX: a indígena. Esta alternativa foi proposta, por exemplo, por Mary e Elizabeth Kerby, em seu livro Humming-Birds, de 1874.11 As autoras afirmam que “as flores de penas feitas pelos índios são consideradas o mais adorável dos ornamentos pelos povos de países civilizados”, e entendem a moda de adornar-se com flores de penas como uma imitação das práticas indígenas.12 Não se sabe de onde veio tal informação; talvez seja só o resultado de uma percepção de que os costumes dos povos indígenas, que já muito antes da chegada dos europeus produziam artefatos de penas, poderiam ter motivado a produção não indígena. A princesa Teresa da Baviera, que visitou o Brasil em 1888, tinha esta linha de raciocínio. Ela diz, no seu relato de viagem: “A produção de flores realmente artísticas em penas de beija-flor, que é feita por não-índios, provavelmente se deve a uma indústria de penas que é autóctone dos índios do Brasil há séculos”.13 É certamente possível pensar que teria sido através dos contatos entre colonizadores, missionários e indígenas que se desenvolveu a técnica de produção de flores de penas, apesar da falta de comprovação documental. Em todo caso, é importante notar que a suposta origem indígena reforça o valor exótico desse tipo de artefato para o público europeu, vinculando-o a uma prática de povos “não civilizados”.
Fato é que, na segunda metade do século XIX, período de nosso interesse, os principais produtores de artefatos de penas eram as fábricas cariocas, como nota Ferdinand Denis.14 Além da secularização do saber vinculado à produção de ornamentos de penas, Denis assinala outro fenômeno, que interessa particularmente o escopo deste estudo, isto é, o sucessivo processo de internacionalização da produção. O autor observa como a arte ganhou inúmeras adeptas entre a comunidade francesa no Brasil, com diversas senhoras que haviam se tornado renomadas produtoras e exportadoras dos artefatos. Boa parte dos produtores no Rio de Janeiro faz parte deste fenômeno, como Mme. Finot, celebrada por Joaquim Manoel Macedo15, ou Mme. Clémence, proprietária da loja Ao Beija-flor.16 Em razão dessa peculiaridade, os produtos zoológicos, tão vinculados à imagem do Brasil como paraíso tropical, têm, desde sua produção, uma característica transnacional e dinâmica: eram frequentemente feitos por franceses, no Rio de Janeiro, com materiais locais e importados e, posteriormente, consumidos na Europa e na América do Norte como ornamentos tipicamente brasileiros.
Uma das manufaturas de flores de penas mais conhecidas internacionalmente, na segunda metade do século XIX, era a M.&E. Natté. Ela foi fundada por duas irmãs nascidas na França, Marie e Eudoxie Natté, que se estabeleceram no Rio de Janeiro muito provavelmente entre as décadas de 1850 e 1860.17 Celine Natté, a mãe das duas irmãs, também vinha frequentemente para o Rio de Janeiro, mas, ao que tudo indica, vivia a maior parte do tempo em Paris, onde faleceu em 1886.18 Ao longo desses anos, outras personagens da família circularam entre a França e o Brasil, sugerindo que podiam também estar envolvidas no negócio.19
Não temos nenhuma confirmação de quando exatamente Marie e Eudoxie Natté iniciaram suas atividades comerciais no Rio de Janeiro. O primeiro anúncio em jornais é de 1863,20 mas, já no ano anterior, está registrada uma importação de flores artificiais, provavelmente de tecido, da França, artigo muito requisitado em sua requintada loja.21
A M.&E. Natté se diferenciou dos outros fabricantes da época pela longevidade do negócio: a manufatura funcionou até 1903, quando um grande incêndio destruiu o prédio que abrigava a loja, na antiga Rua do Ouvidor.22 Essa longevidade talvez decorra, em parte, da notoriedade que alcançaram no Rio de Janeiro. As irmãs são muitas vezes citadas pelos jornais e revistas, principalmente a partir do fim da década de 1860 e ao longo da década seguinte, o que indica que logo se tornaram figuras muito conhecidas na sociedade carioca.
Suas flores de penas eram usadas para homenagear figuras célebres do mundo do espetáculo e da política; seus leques de penas e ventarolas ornadas de beija-flores eram agitados nos saraus e bailes do Rio de Janeiro. Não raro, as peças mais elaboradas, com destinatários ilustres, eram, antes de serem oferecidas, expostas ao público, que era convidado, pelos jornais, a admirar a natureza recriada pelas irmãs Natté.
A imprensa da época indica como as ventarolas produzidas pela empresa viraram sinônimo de elegância na sociedade carioca. Um folhetim de 1868 descreve o uniforme do bom gosto feminino da seguinte maneira:
Ir a Paquetá no dia da festa está na programação do bom tom.
Para isso, para ir lá, preparão-se as damas com o maior esmero. Roção aquelle chão as custosas sedas e rendas de Notre Dame e do Louvre; pizão aquella relva macia as mais delicadas botinas do Guilherme e do Campas; os mais primorosos leques do Bernando, as mais mimosas ventarolas da Natté agitão o ar perfumado junto ao semblante das belas.23
É constante o empenho das irmãs em consolidar e expandir seu negócio. Em 1887, elas assinaram um contrato com o negociante Albert Jacobsen, e a M.&E Natté passou a se chamar Natté & C.24 Em 1891, Eudoxie Natté decide abrir o Bazar de Paris, loja de artigos de luxo, situada à rua da Guarda Velha, que funcionou até 1895.25
Não satisfeitas com a notoriedade no Rio de Janeiro, as irmãs Natté também buscaram oportunidades no exterior. Por se tratar de artigos considerados exóticos, era natural que estrangeiros em passagem pelo país se interessassem por estas “curiosidades” brasileiras, deixando entrever um mercado mais amplo. Dessa forma, é possível perceber um esforço contínuo das proprietárias de expandir seus negócios e levar seus artefatos a um público internacional. Crucial para a divulgação e comercialização desta arte zoológica são as exposições internacionais, que forneciam uma arena espetacular para a construção de imagens públicas e a criação de redes de comércio.
A empresa participou de diversas exposições de comércio e indústria,26 recebendo inclusive medalhas nas exposições universais de Viena (1873), Paris (1878) e Amsterdã (1883). No caso da Exposição de Paris de 1878, as Natté aderiram à seção da França, uma vez que o Brasil não participou desta edição, e foram premiadas com uma medalha de bronze.27
As irmãs aproveitaram o sucesso em seu país natal para abrir uma filial em Paris, pois o nome Natté aparece no Annuaire-Almanach du Commerce de Paris de 1879, sob a rubrica “flores artificiais”, com um endereço no Faubourg Saint Denis, sede de diversas manufaturas de flores.28 O investimento, porém, não parece ter sido bem-sucedido, uma vez que as irmãs Natté não constam mais no almanaque a partir do ano seguinte.
Nota-se uma estratégia análoga após a exposição da Philadelphia, em 1876, quando a M.&E. Natté começa a anunciar em jornais e periódicos de língua inglesa no Rio de janeiro, como o The British and American Mail, em uma tentativa de capitalizar seu sucesso nos Estados Unidos. O primeiro anúncio é justamente de 1877.29
É interessante notar que apesar de proporem mercadorias “exóticas”, a presença da M.&E. Natté nas exposições universais sugere uma vontade de participação no discurso de modernidade construído através de tais eventos.30 Podemos pensar que seria justamente a apropriação de noções e visualidades de origem científica que, de certa forma, legitimaria os artefatos zoológicos como produtos modernos, em sintonia com o mercado global.
M.&E. Natté devia a sua fama principalmente a dois fatores: exotismo e elegância. Suas flores e ventarolas de penas, suas joias com insetos incrustados e beija-flores circulavam pelo mundo, encantando pela sua beleza e raridade. Nas embalagens de seus produtos, a descrição do negócio, em inglês e francês, deixava claro o duplo foco:
Flores em penas, insetos, beija-flores e outros para bailes, soirées, teatros e casamentos, etc. Grande sortimento de pássaros, borboletas e outro objetos de História Natural e curiosidades do Brasil.31
Dentre os vários produtos fabricados e comercializados pela empresa, porém, um se destaca pela sua transversalidade: as ventarolas de penas decoradas com beija-flores empalhados. Esses leques, ao contrário de outros produtos zoológicos, apresentam uma superfície figurativa mais ampla, na qual os vínculos com discursos científicos são alargados. Não se sabe ao certo em que circunstâncias se iniciou a ornar os leques com aves inteiras, mas tudo indica que esses artefatos já estavam em circulação desde meados do século. A prática é amplamente associada ao Brasil, ainda que produtores de outros países tenham confeccionado objetos do tipo, mas geralmente com outros tipos de pássaros.
Muitas vezes, as ventarolas adornadas com beija-flores inteiros são simples, com a ave colocada sobre um fundo de plumas brancas tipo marabu, como ocorre, por exemplo, no leque que D. Pedro II deu à princesa Alexandra de Gales, em 187032 (Figura 1). Uma variante dessa modalidade é ter o beija-flor sobre um fundo de penas adultas e uma borda de plumas marabu coloridas, usado principalmente em formatos mais alongados. Há também um segundo tipo, o qual nos interessa aqui, que apresenta o beija-flor em cena mais narrativa, interagindo com um fragmento de natureza. A maior parte dos leques de M.&E. Natté conhecidos33 são deste último tipo.

Enquanto no primeiro tipo a ave flutua em um espaço indeterminado, no estilo privilegiado pelas Natté, vemos o animal aproximando-se de uma flor, voando perto de alguns ramos, ou até mesmo pousado sobre plantas, enfatizando a realidade do beija-flor. O acessório feminino é aqui acrescido de um discurso de história natural que enfatiza o relacionamento orgânico entre a ave e a planta, e lhe dá uma nova dimensão. O animal aparece contextualizado, agindo de acordo com os hábitos da espécie estudados pelos naturalistas.
Há uma clara consonância estética entre o trabalho de taxidermistas, as manufaturas de leques de penas e as ilustrações científicas relacionadas à ornitologia, principalmente após a divulgação das teorias evolucionistas. As obras de Charles Darwin, assim como o próprio naturalista, tornaram-se extremamente populares.34 O naturalista britânico propôs uma imagem de biosfera na qual plantas e animais eram interdependentes, atuando em uma natureza em constante movimento. As espécies evoluiriam continuamente, segundo ele, a fim de garantir sua manutenção. As longas e públicas polêmicas que se sucederam com as visões mais tradicionais ou criacionistas reforçaram, na prática, a imagem de instabilidade e complexidade associados à história natural, uma vez que até interpretações acadêmicas da natureza tornaram-se múltiplas e controversas. O que era anteriormente considerado um conceito estável e harmônico tornou-se um objeto de contenda.35 O surgimento das teorias evolucionistas, dessa forma, tiveram um impacto enorme na percepção do mundo natural como algo múltiplo e dinâmico.36
A taxidermia apresenta uma nova tendência já a partir de meados do século XIX, de buscar a maior naturalidade possível na montagem do animal, a fim de sugerir animação, de mostrar como o animal se movia enquanto vivo.37 O já citado Montagu Browne decretou enfaticamente: “Os dias de pássaros em ‘cabideiros’, com as pernas rijas, pescoço esticado e encarando, com os olhos redondos, o nada […] acabaram para sempre”.38
No caso das ilustrações científicas, temos a convivência de diferentes modelos. Interessa-nos, principalmente, que grande parte das ilustrações ornitológicas da segunda metade do século XIX passou a enfatizar as relações de interdependência entre animais, plantas e o ambiente físico, forjando a estética de uma natureza móvel e mais orgânica. Não há, porém, consenso relativo ao possível impacto do evolucionismo sobre a ilustração científica.39 Ella Foshay sugere a difusão das teorias de Darwin como fator determinante para o abandono de imagens mais estáticas, que seguiriam a filosofia de Carl Linnaeus.40 O foco, de maneira geral, estaria nas características de cada espécie isolada, isto é, na descrição individualizada de partes compositivas ou até estágios de desenvolvimento, mesmo quando representados em ambientes naturais.
Já Ann Shelby Blum defende que a ilustração científica “estava associada não a um arcabouço teórico em particular, mas com a própria estrutura da produção disciplinar”.41 Blum também reconhece que a ilustração ornitológica, em particular, era foco de tensões entre a precisão acadêmica e a sensibilidade artística dos ilustradores e artistas. Com efeito, a influência de Audubon, com suas representações vivazes, ainda era sentida em fins do século XIX. Mas se as convenções formais de John James Audubon mantinham seu peso, surge uma nova preocupação em expressar relações fisiológicas entre animais e plantas.42
Argumento que esta mesma estética, mais dinâmica e expressiva, é aplicada na ornamentação das ventarolas, que frequentemente mostram os beija-flores em posições de voo, com asas estendidas, além de maior interação entre os pássaros e o ambiente. Ao compararmos diretamente os exemplares de leques da M.&E. Natté com ilustrações de espécies beija-flores dos diversos livros sobre ornitologia em geral e sobre a família biológica dos Trochilidae, publicados no século XIX, fica clara a ênfase em algumas posições convencionais dos pássaros e sua interação com plantas e flores.
Um bom exemplo é o leque de M.&.E. Natté conservado no Fan Museum (Figura 2), em Londres. Temos aqui um formato peculiar de leque, que lembra uma folha, sugerindo desde o primeiro contato a associação com o mundo natural. A cena é colocada sobre uma área central, coberta de plumas tipo marabu brancas e apresenta o beija-flor em voo, numa posição oblíqua, com o corpo arqueado, aproximando-se de um ramo florido de camélias brancas. Uma posição bastante próxima àquela em que o naturalista John Gould apresenta a espécie Rubi (Clytolema Rubinea), no volume IV da sua famosa obra The Trochilidae or Family of Hummingbirds, ainda que de um outro ponto de vista. Muito mais próximo ao posicionamento do pássaro no leque é a representação da espécie que o ornitólogo francês Étienne Mulsant chama de Phaeolaema Rubinoides (= Heliodoxa rubinoide), no seu livro sobre beija-flores, de 1877 (Figura 3).43 Vemos o mesmo bico inclinado para o alto, o mesmo ângulo das asas e inclinação do corpo. A cena inclui também a presença de alguns insetos iridescentes sobre a folhagem, outra especialidade da M.&E. Natté, escolha que reforça a ideia de uma natureza mais complexa e interligada.

Outra ventarola conservada no Fan Museum (Figura 4) também apresenta o beija-flor - possivelmente um exemplar da espécie Chrysolampis mosquitus - em voo oblíquo, neste caso com o bico sobre uma flor branca. Dessa vez, o leque tem a forma de uma flor de cinco pétalas, composta de penas externas azuis com as pontas escuras. A composição central, sempre sobre plumas brancas, é muito semelhante à prancha do livro de Gould representando a espécie Thalurania Refulgens (Figura 5), principalmente no que diz respeito à movimentação do pássaro. A paleta de cores também é próxima, com predominância de tons frios. Diferem a distribuição dos elementos do espaço e a posição do beija-flor em relação à planta.

Alguns casos chamam a atenção pelo grau de proximidade compositiva, especialmente no que se refere à movimentação do beija-flor e à distribuição dos elementos no espaço, que nos sugerem quase uma citação direta. É o caso do leque de M.&E. Natté conservado no Victoria and Albert Museum (Figura 6), que apresenta uma composição muito próxima à prancha n. 181 (Agleactis Pamela) de John Gould (Figura 7), inclusive no vazio deixado ao lado esquerdo da cena. A ave, provavelmente um macho da espécie Clytolaema rubricauda, com as asas estendidas, voa em direção às flores em movimento dinâmico. Do leque, excluiu-se somente o segundo exemplar de beija-flor, representado em perfil, e a flor ao seu lado. O esquema de cores, no entanto, é o mesmo, com a cor verde e acobreada do beija-flor contrastando com o rosa e branco dominantes.

Nos três exemplos mencionados é clara a preocupação da M.&.E. Natté em deixar a cena legível para o observador em uma situação de performance social do leque. As ventarolas eram utilizadas em eventos como bailes e teatros, nos quais as mulheres se apresentavam publicamente diante da sociedade para serem admiradas.44 Do mesmo modo, afirmo que esses artefatos são pensados, assim como a própria mulher que os utiliza, para serem vistos por outrem.
A imagem, assim, é colocada de acordo com os possíveis manejos do objeto e sua visualização: a cena pode estar de cabeça para baixo, como no caso da peça branca do Fan Museum, legível nos momentos em que a ventarola é segurada com o braço em repouso ao lado do corpo ou com as duas mãos unidas diante do ventre (Figura 8). O segundo leque analisado, por outro lado, apresenta a cena girada à 90 graus em relação ao cabo, para ser observada quando o leque estiver apoiado no colo da mulher sentada ou colocado diante do rosto. Já o leque do Victoria and Albert Museum, ao propor uma cena que representa uma vista do alto, podia ser lido de vários ângulos sem perder sua coerência.
As ventarolas, de maneira geral, têm soluções com algum grau de fantasia, pois raramente as flores incluídas nos leques - como camélias e rosas - são aquelas preferidas pelos beija-flores. A seleção botânica, em realidade, é frequentemente pautada pelo significado de tais flores na cultura do século XIX, relacionadas à beleza e pureza femininas ou às relações amorosas.45 A função dos leques de sublinhar a beleza feminina em um contexto social, assim, não raro toma precedência sobre a precisão científica.
Apesar de tais liberdades iconográficas, é inegável a afinidade visual com os livros ilustrados de ornitologia. Nisto, as irmãs pareciam seguir à risca o conselho de Montagu Browne para os taxidermistas: “A natureza deve ser observada de perto e, na falta desta, a referência deve ser trabalhos ilustrados sobre história natural. Todos os trabalhos de Gould são grandes guias para as atitudes dos espécimes e seus acessórios”.46
É importante acrescentarmos aqui algumas informações sobre John Gould, um dos mais famosos ornitólogos do século XIX. Sua grande obra sobre beija-flores foi um best-seller quando publicada, a partir de 1849, e sua extraordinária coleção de beija-flores foi uma das atrações da Exposição Universal de 1851. Mais significativo ainda: o naturalista trabalhou longamente com Charles Darwin. Após a volta da segunda viagem do H.M.S. Beagle, Gould foi escolhido para analisar os pássaros trazidos de Galápagos e foi responsável pelo volume referente às aves da série Zoology of the Voyage of H.M.S. Beagle.47 Sua obra foi uma referência fundamental para os estudiosos da época.
Não é o caso de imaginarmos um partidarismo das irmãs Natté no embate que havia à época entre a tradição idealista, defendida por figuras como Louis Agassiz, e o evolucionismo darwiniano. Sublinhamos, simplesmente, a grande atenção aos debates científicos e representações visuais mais recentes que transparece nos produtos da M.&E. Natté.
A ênfase em uma representação relacionada à história natural não escapou a Ferdinand Denis, que, falando justamente dos leques de beija-flor das irmãs Natté, observou:
As ventarolas das senhoritas Natté, nas quais são tão habilmente empregados os mais belos beija-flores, são, certamente, uma útil lição de história natural para as damas das regiões do norte que a neve (ela também tem sua poesia) retém perto de seu vestíbulo”.48
Os leques davam, então, mobilidade a estas aves exóticas, levando-as aonde não chegariam naturalmente. Elas poderiam ser apreciadas por pessoas, principalmente mulheres, que talvez não tivessem experiência com o mundo natural, ou que nunca veriam o Brasil. Mais do que isso, a ação e a movimentação sugeridas dariam indícios do comportamento das aves; as cenas de interação natural representadas nas ventarolas sugeriam o papel dos beija-flores como polinizadores, por exemplo, assim como indicavam a noção amplamente difundida da dependência destas aves das flores e seu néctar.
Denis nos mostra como o potencial de transmissão de noções vinculadas à história natural desses objetos era considerado relevante à época. Nesse sentido, há uma aproximação às ilustrações científicas não só de natureza iconográfica, mas também de função. Os leques de beija-flor, assim, compartilham algumas características com o que Bruno Latour chama de inscrições (inscriptions), isto é, práticas materiais que permitem que eventos ou processos sejam mobilizados e legíveis por outrem, como a produção de textos, diagramas, tabelas, imagens e mapas. Nas palavras do próprio Latour, “o produto final de todos os mecanismos de inscrição é sempre um traço escrito que torna o julgamento perceptivo dos outros mais simples”.49 Mas esta afinidade é parcial, uma vez que o autor associa a prática de inscrições à persuasão e à busca de autoridade que caracterizariam o desenvolvimento da ciência.50
Ainda que o objetivo principal das ventarolas não fosse o discurso científico, é possível refletir sobre o modo como elas apropriaram-no e difundiram-no em ambientes não institucionais. Como as ilustrações científicas, os leques de beija-flores pretendiam mostrar uma representação detalhada da ave e de sua interação com o ambiente. O fato de lidarem com aves taxidermizadas, porém, gera implicações notáveis. Por um lado, a dimensão dos leques e a escala fixa dos beija-flores reais fazem com que a colocação de mais aves na composição seja impraticável. Se, na ilustração científica da segunda metade dos oitocentos, é comum a inclusão de, pelo menos, dois espécimes em posições diferentes, a fim de mobilizar várias caraterísticas do animal, os recursos são mais limitados nas superfícies das ventarolas. Nestas, há uma predileção por asas abertas e caudas elevadas (também muito usadas nas representações bidimensionais), que ressaltam bom número de particularidades de cada espécie em uma única posição.
Em contrapartida, por usarem beija-flores reais, os produtores de ventarolas tinham a possibilidade de enfatizar um aspecto cuja representação causava enorme dor de cabeça aos artistas e naturalistas: a iridescência das penas. As penas com brilho metálico, presentes em várias espécies, eram uma das características mais notáveis associadas aos beija-flores, uma das razões para o enorme fascínio que eles suscitavam. Não por acaso Darwin menciona, com tanta frequência, os beija-flores e seu “senso de beleza” ao apresentar o papel da ornamentação animal na seleção sexual.51 A iridescência seria um fator de atração para a fêmea, e daria, assim, vantagem, na seleção sexual, ao macho que apresentasse esta característica.
Àquela época, todavia, a cromolitografia não tinha boa capacidade de sugerir brilho, e muito menos a qualidade furta-cor de certas espécies. Enquanto técnica de inscrição de elementos da história natural, tinha limitações, pois não só dependia da habilidade individual do litógrafo, como frequentemente era necessário retocar as gravuras à mão, uma a uma, para criar um efeito mais próximo ao observado na natureza. É o que ocorre com o pintor americano Martin Johnson Heade, o qual sonhava em publicar um livro ilustrado com o título Gems of Brazil, dedicado aos beija-flores do Brasil. Ele abandonou o projeto justamente pelo altíssimo custo de realizar litografias com a qualidade e precisão da natureza que ele queria representar. Ele lamenta que as pranchas “são muito boas quando retocadas à mão, mas quero me livrar da necessidade disso”.52
Já a pintura a óleo, nas mãos de um artista hábil, como o já citado Heade, oferecia resultados mais satisfatórios, mas seu alcance era mais limitado. Os leques com beija-flores taxidermizados transmitiam naturalmente a ornamentação iridescente dos pássaros e, ainda que fossem objetos de luxo, circulavam amplamente em eventos sociais como teatros, festas e soirées, entre pessoas que talvez não comprassem livros de ornitologia e quadros. Ainda que falte às ventarolas a autoridade institucional e científica que Latour associa às inscrições, elas desempenharam um papel popularizador de noções científicas para um público fora dos círculos acadêmicos.
Uma tal afinidade sugere que os produtores de artefatos de penas, e em particular de leques de beija-flor, como as irmãs Natté, conheciam muito bem a ilustração e literatura científica da época, sendo, à sua maneira, também especialistas em zoologia, mas uma zoologia prática, voltada para o aspecto comercial da moda e do colecionismo. Não tanto preocupados com as minúcias da biologia dos animais, estes vendedores de produtos de história natural e artefatos de penas se concentravam na raridade e no valor de mercado de algumas espécies, na moda e sua preferência oscilante por cores, texturas e certos tipos de efeito. Essa suposição é confirmada pelo testemunho de Ferdinand Denis. Sempre no seu livro sobre arte plumária, ele comenta que “o estudo da história natural é certamente obrigatório para esta charmosa indústria, é necessário ser um pouco botânico e um pouco ornitólogo para nela prosperar”.53
No caso das irmãs Natté, esse aspecto fica evidente através do relato de um cronista da revista Le Naturaliste Canadien sobre a Exposição Universal de Philadelphia, de 1876. Após apreciar as flores de penas de Mlle. Natté, que “fabrica as mais belas flores artificiais que nós jamais tínhamos visto”,54 o autor passa a apreciar uma coleção de insetos brasileiros ao lado. A florista, que também supervisionava esta vitrine para o proprietário ausente, dispôs-se a apresentar as raridades da coleção com propriedade, indicando espécies e seus preços, apesar de que “os espécimes estavam todos dispostos de acordo com seu gênero, sem nenhuma designação de espécie”.55 Acrescenta o cronista: “Madlle. Natté, do Rio de Janeiro, não é uma entomologista, mas ela tem um gosto bem pronunciado pela história natural, à qual ela se conecta por suas ocupações cotidianas”.56
Os produtos da M.&E. Natté ficavam, então, na encruzilhada entre arte, moda e ciência. Infelizmente, pouco ou nada se sabe sobre a dinâmica de coleta e preparação de espécimes zoológicos na empresa, mas, de maneira geral, os fabricantes desse tipo de objetos transitavam em um círculo que incluía naturalistas, cientistas, fotógrafos, taxidermistas e artistas. O taxidermista da expedição Thayer, Deodato Bourget, por exemplo, possuía uma empresa de artigos de história natural que produzia e vendia artefatos de plumas, incluindo peças com beija-flores empalhados. Sua valiosa coleção de beija-flores era consultada por naturalistas e artistas estrangeiros em visita ao país.57
As irmãs Natté, do mesmo modo, tiveram preocupação em projetarem-se não apenas como fabricantes de flores artificiais, mas como empalhadoras e preparadoras de objetos de História Natural. Apesar de seu aspecto cruento, a taxidermia era considerada uma arte adequada para o público feminino, como demonstra a existência de manuais técnicos sobre a preparação e montagem de animais empalhados, como o Ladies’ Manual of Art or Profit and Pastime, que dedica um inteiro capítulo ao assunto, explicando em detalhes como esfolar, empalhar e montar diversos animais (Figura 9).58
No Almanak Mercantil, o nome Natté aparece nas categorias “Fábrica de flôres de panno e penas” e “Objetos de História Natural”, mas principalmente em “Empalhadores” e “Preparadores de História Natural”, títulos que se referiam justamente ao trabalho do taxidermista e naturalista. Elas chegaram a associar-se ao naturalista Auguste Bourget, em 1866.59 É muito provável que as irmãs tenham tentado associar a sua empresa, por meio do nome de Bourget, ao já mencionado Deodato Bourget, que havia participado da expedição científica liderada por Louis Agassiz no ano anterior, fato amplamente noticiado pelos jornais.60 Ainda que Auguste não fosse o personagem correto, o sobrenome soaria familiar ao público. Com efeito, Deodato Bourget sentiu a necessidade de publicar um aviso nos jornais esclarecendo que não era ele o sócio das irmãs.61
Essas iniciativas criavam uma imagem peculiar, que transbordava a produção da M.&E. Natté para além do campo da moda e ornamentação feminina. Há uma narrativa consciente por parte das proprietárias de se inserir no campo científico e afirmar o comércio de peles de pássaros e artefatos de penas como intimamente ligados, em uma simbiose entre moda e ciência.
Com esta constatação, não se pretende afirmar que as irmãs teriam alguma intenção pedagógica clara, mas elas participam desta cultura científica, para retornarmos ao conceito inicial citado neste artigo. Os leques de M.&E. Natté, dessa forma, integram um movimento mais amplo de popularização do discurso científico. Essa tendência é marcante durante o período, alavancada, entre outros fatores, pela constante realização e divulgação de expedições científicas e do grande número de publicações ilustradas que começaram a circular. Como consequência, a história natural transformou-se em interesse de muitos leigos. A ornitologia, em particular, espalhou-se como uma febre na sociedade do século XIX. Para dar um exemplo carioca, podemos citar o inglês Thomas Reeves, mencionado por John Gould no prefácio de The Trochilidae or a Family of Hummingbirds. 62Ele era um agente de paquetes britânicos no Rio de Janeiro,63 mas tinha uma grande coleção de beija-flores e enviou alguns espécimes para Gould, com quem mantinha regular correspondência. Além disso, várias das ilustrações de plantas no livro de Gould são declaradamente baseadas em desenhos feitos por Reeves, no Brasil. Em 1854, o agente chegou a editar um livro de ornitologia, de autoria de J. T. Descourtilz, intitulado Ornithologie Bresilienne ou Histoire des Oiseaux du Brésil.64
Coleções, livros e ilustrações, porém, não eram a única via de divulgação de noções de história natural. Os leques de M.&E. Natté, ao serem comprados e usados em ocasiões sociais, também contribuíam, mesmo que inadvertidamente, para a difusão de uma ideia de natureza mais sistêmica para o público feminino. As jovens, cuja circulação era não raro limitada, seja pelo clima, como sugeriu Ferdinand Denis, no caso dos países nórdicos, ou pelas regras sociais de seu ambiente, poderiam apreender e divulgar noções de história natural. Os leques são, afinal, essencialmente objetos de sociabilidade, servindo de suporte para expressões artísticas e culturais:65 eram particularmente adequados para comunicar conceitos e imagens de maneira mais inclusiva, através de uma indústria e esfera de consumo na qual as mulheres tinham um papel privilegiado.
A M.&E. Natté, ao longo da segunda metade do século XIX, teve um papel significativo no mercado carioca e internacional, não só como símbolo de elegância, mas também como divulgadoras indiretas de noções científicas. Seguindo as tendências da ilustração científica e da taxidermia da época, suas ventarolas decoradas com beija-flores enfatizavam a representação de uma natureza mais dinâmica e sistêmica, na qual as aves interagiam com outras espécies botânicas e zoológicas. Seu desempenho como veículo didático era claramente reconhecido e louvado à época, como demonstram as opiniões de Ferdinand Denis e Montagu Browne. A performatividade dos leques, além disso, engajava diretamente as mulheres neste processo cultural.
Ao mesmo tempo, as irmãs conseguiram forjar uma imagem que unia o comércio de acessórios de moda com os debates recentes em história natural, dando-lhes um ar de atualidade. Seu reconhecimento internacional em exposições universais colocava-as como representativas de uma manufatura ligada às tendências modernas. Os artefatos de M.&E. Natté, assim, não eram feitos para “museus empoeirados”, mas circulavam na sociedade, como “coisas de beleza e alegria”, para usar a expressão de Montagu Browne, estendendo o alcance das noções de história natural das academias e museus para os salões.



