RESUMO: Este artigo visa a analisar algumas das características do livro Teoria da restauração, de Cesare Brandi, cuja primeira edição é de 1963. Não se pretende aqui esgotar a abordagem do livro nem tratar exaustivamente a bibliografia sobre o autor e a obra, mas oferecer contribuições para uma leitura circunstanciada. Assim, reuniu-se uma extensa bibliografia, que inclui tanto textos antigos quanto recentes, que remetem a referências ainda mais amplas. Antes de iniciar a análise do livro, examina-se a biografia de Brandi, buscando esclarecer mal-entendidos que interferem, no Brasil, na apreciação de sua obra e de sua atuação. Feito isso, a natureza do livro e o modo como se estrutura é tratado para, depois, enfrentar o conceito de restauração e algumas de suas implicações. A seguir são examinados os desdobramentos do texto e suas perspectivas atuais, pontuando certos temas, sem a pretensão de esgotá-los: a relação restauro-técnica; restauro da arte contemporânea; a restauração preventiva e a escala urbana; a restauração arquitetônica. Por fim, são feitas considerações sobre a importância de enfrentar temas de restauro de modo fundamentado e com base em princípios.
PALAVRAS-CHAVE: Cesare Brandi, Teoria da restauração, Conservação, Restauração.
ABSTRACT: This article aims to analyse some of the characteristics of Theory of Restoration, by Cesare Brandi, whose first edition is from 1963. The intention is not to exhaustively treat the book, nor the bibliography about the author and his work, but to offer contributions for an informed reading. Thus, an extensive bibliography was collected, which includes both old and recent texts, which refer to even broader references. Before starting the analysis of the book, aspects of Brandi’s biography are examined, seeking to clarify misunderstandings that interfere, in Brazil, with the appreciation of his work and his actuation. Then, the nature of the Theory and the way it is structured is treated, to, later, face the concept of restoration and some of its implications. Next, the unfolding of the text and its current perspectives are examined, punctuating certain themes, without intending to exhaust them: the restoration-technique relation; contemporary art restoration; preventive restoration and the urban scale; architectural restoration. Finally, considerations are made on the importance of tackling restoration issues in a reasoned manner and based on principles.
KEYWORDS: Cesare Brandi, Theory of restoration, Conservation, Restoration.
CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO
Teoria da restauração, de Cesare Brandi: seis décadas de sua publicação
Theory of Restoration, by Cesare Brandi: six decades of its publication
Recepção: 09 Março 2023
Aprovação: 03 Maio 2023
À memória de Giuseppe Basile e Giovanni Carbonara.
O livro Teoria da restauração,2 de Cesare Brandi, completa sessenta anos de sua primeira edição em italiano, de 1963, e vinte anos da publicação em português no Brasil, de 2004. É um texto seminal, de enorme repercussão mundial e que animou diversos âmbitos culturais. O escrito foi e é mobilizado em sua língua original ou em diversas traduções, que se multiplicaram na primeira década do século XXI em razão dos quarenta anos da primeira edição e do centenário de nascimento do autor, celebrado em 2006.3 O livro foi publicado no mesmo ano do verbete “Restauro”4 na Enciclopedia universale dell’arte, pouco conhecido no Brasil apesar de sua relevância e de ter sido analisado por Roberto Pane na abertura da Conferência de 1964 que deu origem à Carta de Veneza.5
A produção de Brandi ao longo de sua carreira é ampla, multifacetada e significativa nos âmbitos de história e crítica de arte, estética e restauro, com êxitos numerosos. Suas propostas para a restauração foram divulgadas ao longo de décadas e são referências incontornáveis. Desde sua publicação, a Teoria passou a ser - e continua a ser - base importante de reflexão, seja para expandir e alargar questões ali colocadas, seja para a elas se contrapor.6 O livro é presença frequente nas discussões do campo disciplinar do restauro e os debates são em geral muito acalorados, mas isso não significa que o tratamento do texto seja, na mesma medida, circunstanciado. São costumeiras as deformações das ideias ali contidas, assim como a falta de compreensão a respeito da própria natureza do escrito ou dos conceitos que o fundamentam.7 Por vezes há uma desqualificação sumária e nada informada que considera o texto superado sem ao menos reconhecer que os preceitos ali contidos continuam a ser usados criticamente para orientar restaurações e novas reflexões no século XXI, não apenas em ambiente italiano, mas também em diversos países, como no Brasil. Isso pode ser visto, por exemplo, nas colocações de Giovanni Carbonara, Betânia Brendle, Silvio Oksman, Simona Salvo e Natália Vieira-de-Araújo sobre o restauro arquitetônico e de Massimo Carboni e Pedro Vieira Santos sobre manifestações artísticas contemporâneas.8
A Teoria é difícil de ser entendida no ambiente brasileiro atual, pela distância temporal e, sobretudo, pelo afastamento do âmbito de produção intelectual ao qual está associada. Some-se a isso o pouco conhecimento no país de outros escritos de Brandi, em especial os do campo da estética. Essa dificuldade não é apenas brasileira e aparece em outros contextos, até mesmo na Itália. Esse “estranhamento” em relação ao texto, ao modo de construir as ideias e ao próprio vocabulário do autor, em vez de despertar uma saudável curiosidade intelectual para entender as razões das dificuldades tem, ao contrário, gerado uma depreciação, baseada numa visão redutora e equivocada dos conceitos ali presentes.9 Isso não se refere a uma saudável discordância que sempre acompanhou o texto - e acompanha qualquer texto, pois é impensável que uma proposição seja universalmente aceita -, mas de total incompreensão, em geral baseada na desinformação e preconceitos. Preconceitos que ignoram ou desconsideram a produção científica do confronto com a Teoria, tanto na época de sua publicação quanto nos primeiros anos de nosso milênio, a qual esclarece, problematiza e aprofunda os mais diversos aspectos do texto, de sua fortuna crítica e da produção multifacetada de seu autor.10
Como evidencia Muriel Verbeek, a Teoria tem sido vítima de abordagens dogmáticas e fossilizadoras, algo totalmente alheio à proposta de Brandi e à sua abertura de espírito. Além do mais, continua ela, a Teoria padece de uma sobre-exploração que a coloca em perigo. O problema é devido, por um lado, a seu estatuto único e, por outro, à inflação bibliográfica da primeira década do século XXI.11 Num mundo em que até mesmo parte da produção científica se caracteriza por um produtivismo raso e por uma polarização ignorante, ter tempo de ler e refletir, estudar, deixar as ideias e o conhecimento decantarem, tem se provado um desafio enorme. Além do mais, a visão redutora faz com que muitos se comportem diante de proposições teóricas como se fossem mutuamente excludentes: ou a pessoa deve ser seguidora de Brandi, ou de Muñoz Viñas, por exemplo. Essa é uma deformação atroz do papel da teoria, cujo intuito não é gerar seitas fundamentalistas, mas oferecer instrumentos consistentes de aproximação crítica aos problemas. As propostas dos dois autores não são assimiláveis e têm diversos conflitos entre si, mas devem ser usadas sempre de modo crítico, problematizando-as, e como base para refletir sobre os desafios atuais no campo. Isso não se traduz em somar as propostas e dividi-las por dois: significa refletir criticamente e explorar as tensões, como fazem, por exemplo, Carbonara, Santos, Verbeek e Vieira-de-Araújo e Flaviana Lira.12 Isso se dá em especial a partir de leitura fundamentada e do respeito pela alteridade.13 Ter um ponto de vista não significa desrespeitar outras posturas e o respeito por outras posturas não significa abdicar das próprias convicções. Pelo contrário, elas ajudam na problematização num processo intelectualmente salutar de constante e necessário exercício de crítica e autocrítica.
Uma produção complexa como a de Brandi, com suas numerosas implicações, não pode ser enfrentada de modo desinformado. No entanto, muitos dos que se pronunciam sobre o autor o fazem sem conhecimento suficiente e sem se dar ao trabalho de olhar qualquer um dos escritos que compõem a “inflação” bibliográfica apontada por Verbeeck, com parte significativa disponível on-line e diversos textos publicados em português.14 A aproximação a Brandi tem de ser preparada e municiada de instrumentos críticos, algo que deve se amplificar num futuro próximo com as publicações em torno dos sessenta anos da Teoria.
Outro aspecto importante do caráter multifacetado da produção do autor são seus textos poéticos e seus livros de viagem,15 nos quais transparecem a amplitude dos interesses e a capacidade de Brandi, que articula as pessoas, o lugar, a paisagem e a cultura de modo abrangente. Ele também se empenhou em discutir e divulgar ideias, não se limitando a textos voltados a especialistas, com produção de centenas de artigos a respeito da tutela do patrimônio arquitetônico, urbano e paisagístico publicados em veículos de grande circulação, em especial no Resto del Carlino e no Corriere della Sera,16 além de ter feito programas para rádio e televisão. Ele enfrentou as questões de preservação de maneira ampla e que de modo algum se limitam às obras de arte em senso estrito ou aos especialistas em restauração. Ademais, a variedade de sua produção é permeada por uma aguda qualidade da escrita, que se revela de diferentes modos dependendo do gênero de texto.
Este artigo não pretende esgotar a abordagem da Teoria, nem tratar exaustivamente a bibliografia sobre o autor e o livro, mas tem por intuito oferecer contribuições a uma leitura circunstanciada dela, mobilizando extensa bibliografia de interesse, incluindo textos que têm várias décadas, como os de Carbonara e de Petraroia,17 e outros mais recentes que remetem a referências ainda mais amplas. Antes de iniciar esta análise, destacam-se aspectos da biografia de Brandi, buscando esclarecer mal-entendidos que interferem na apreciação de sua obra e atuação. Feito isso, passa-se à natureza da Teoria e o modo como se estrutura para, depois, enfrentar o conceito de restauração e algumas de suas implicações. A seguir, serão examinados desdobramentos do texto e as perspectivas atuais, pontuando certos temas para abrir as discussões, sem pretensão de esgotá-las: a relação restauro-técnica; restauro da arte contemporânea; a restauração preventiva e a escala urbana; a restauração arquitetônica. Por fim, serão feitas considerações sobre a importância de enfrentar temas de restauro de modo fundamentado e com base em princípios.
Antes de passar à análise da Teoria, é de interesse retomar alguns dados biográficos de Brandi, que nasceu em Siena, em 8 de abril de 1906, e faleceu em Vignano, em 19 de janeiro de 1988. Brandi formou-se em Direito, em 1927, na Universidade de Siena e em Letras, em 1928, na Universidade de Florença, com trabalho em História da Arte. Sua carreira pública começou em 1930, inicialmente como colaborador na Amministrazione delle Antichità e Belle Arti, para a qual elaborou o reordenamento e o catálogo da Pinacoteca de Siena.18 Fez concurso para inspetor em 1933 naquele mesmo órgão. Seu posto inicial foi em Bolonha, onde permaneceu de 1933 a 1936. Nesse período, aproximou-se profissionalmente das questões de restauro, que, no desenrolar do tempo, passaram a ter proeminência em sua atuação e em suas reflexões.19 Em 1934, começou a lecionar em cursos superiores. Em sua carreira de Estado, assumiu cargos em diversas localidades, como Udine e Rodes, até ser chamado a Roma por iniciativa de Giulio Carlo Argan, o qual, em 1938, propôs a criação de um instituto, que se consolidaria como o ICR,20 durante um congresso de superintendentes. Brandi participou da concepção do ICR do outono de 193821 em diante e o dirigiu a partir de sua fundação, em 1939.
Um aspecto que no Brasil levanta polêmicas sobre Brandi é considerá-lo fascista,22 mas sem respaldo na documentação amplamente tratada pela bibliografia.23 Mesmo não sendo o objetivo deste texto, é importante retomar alguns dados. Argan e Brandi estabeleceram sólida amizade em 1932 até a morte de Brandi, em 1988. Ambos prestaram concurso, em 1933, para uma carreira de Estado, não de governo. Argan, mesmo tendo sido investigado naqueles anos por antifascismo, teve participação ativa no governo central, em especial a partir de 1936, por sua proximidade com o ministro da Educação Nacional, Cesare Maria De Vecchi.24 Enquanto Argan se acercava da administração central, buscando atuar a partir de dentro, Brandi parecia se afastar, inclusive geograficamente, naquilo que o próprio Brandi chama de exílio em Udine - e que Catalano estende também para o período em Rodes -, antes de voltar a Roma, em 1938.25 Brandi passou a ter maior proeminência quando Giuseppe Bottai assumiu o cargo de ministro da Educação e o protagonismo em temas de cultura e tutela do patrimônio, instituindo programas e estruturas, como o próprio ICR. Embora seja figura controversa, Bottai teve papel de grande importância em questões do patrimônio cultural e da paisagem, cercando-se de profissionais gabaritados, para além dos credos políticos.26 São formas distintas de atuar: tentar fazer mudanças a partir de dentro da administração central, como fez Argan; ou uma forma de ação quase à margem, como fez Brandi, primeiro marcada pelo silêncio sobre questões políticas e pelo afastamento e, depois, por um firme empenho institucional em questões de tutela. Certamente não é a postura de quem confrontou o regime abertamente, mas tampouco significa adesão aos ideais do fascismo.27 Quando a guerra se exacerbou na Itália, Brandi interrompeu deliberadamente as atividades do ICR e se refugiou em Siena, em setembro de 1943, para não colaborar com os alemães. Voltou a Roma em janeiro de 1944, sem reassumir a função e agiu na clandestinidade até junho daquele ano, quando a cidade foi liberada pelos Aliados. Nesse ínterim, transferiu o material científico do Instituto - como aparelhos dos laboratórios de química, física, fotografia e restauro - junto com obras de arte para os depósitos do Vaticano, para protegê-los dos alemães e dos bombardeios. Algo que os documentos que emergiram até agora mostram é seu empenho ético de funcionário de Estado.28 Tanto é que Brandi, após a Guerra, não foi afastado da direção do ICR e dirigiu o órgão continuamente até 1959, fazendo a transição, na virada da década, para outra carreira de Estado, a docência. Assumiu, em 1961, a cátedra de História da Arte Medieval e Moderna na Universidade de Palermo, ali permanecendo até 1967, quando passou a ensinar História da Arte Moderna na Sapienza Universidade de Roma, onde permaneceu.29 Sua produção bibliográfica é profícua e segue praticamente sem interrupções do final dos anos 1920 aos anos 1980.
Um dos problemas que afetam a recepção adequada da Teoria é assimilá-la a um manual ou a seu oposto, um texto de divagações. A resposta não está nesses extremos. Pela própria denominação, uma teoria não pode e nem deve ser equiparada a um passo a passo de manual nem a regras operacionais. Por outro lado, o texto está longe de ser uma divagação desconexa da realidade, pois sua maturação é associada a longo processo de reflexão sobre temas de restauro, articulada a numerosas atividades de confrontação com a prática, que permearam a carreira de Brandi desde os anos 1930 e se tornaram mais sistemáticas a partir dos anos 1940 no ICR. Como enfatiza Carboni, o restauro é entendido por Brandi como hermenêutica prática.30 A Teoria não diz como fazer as coisas, mas oferece a fundamentação teórica e princípios operacionalmente válidos - princípios “que, por serem práticos, não poderão, por isso, dizer-se empíricos” Brandi (2004, p. 47).31 - para auxiliar a tomada de decisões, sempre lidos a partir do quadro teórico. A Teoria tampouco oferece respostas simplistas para problemas complexos. Pelo contrário, oferece instrumentos para aprofundar a problematização das questões envolvidas e, retomando Verbeek, mostra sua pertinência plena se for usada como chave conceitual para o enfrentamento das questões e não como receituário engessado.
A Teoria, é necessário insistir - como faz Petraroia -, não é um “florilégio de preceitos de como o restauro deva ser feito, segundo Brandi”,32 pois essa seria abordagem que denota frouxidão teórica. O livro é teoria em sentido “forte”, podendo ser colocado, na produção de Brandi, numa dupla vertente: como obra sobre temas de restauração; e como parte integrante e plena de sua produção no campo da estética, como mostram autores como Petraroia, Russo, Carboni e D’Angelo.33 Isso estava indicado na apresentação da primeira edição da Teoria em que Licia Vlad Borrelli, Joselita Raspi Serra e Giovanni Urbani afirmam: “Quisemos aqui recolher os escritos dedicados por Cesare Brandi à conservação das obras de arte: aos problemas que ela coloca concretamente e como momento crucial da reflexão estética”.34
Afirmar que a conservação é momento crucial da reflexão estética não é algo marginal. Nesse domínio, a obra de Brandi Carmine o della pittura tem a precedência cronológica. É texto basilar na produção do autor e no qual ele externa em profundidade seu pensamento sobre a arte. Foi seguida pelos outros diálogos da série de Elicona.35 Como nota Petraroia, esses textos praticamente monopolizaram a atenção sobre a produção de Brandi no campo da estética, eclipsando, sob esse aspecto, uma das obras que, no entanto, é a mais conhecida do autor: a Teoria. Petraroia mostra a construção articulada do pensamento de Brandi em temas de estética e restauro, retomando dados e datas de sua construção teórica. Sem se propor a esmiuçar questões de cronologia biográfica, mostra como o capítulo 1 da Teoria, “O conceito de restauração”, tem precedentes num ensaio publicado em 1950 (“Il fondamento teorico del restauro”), o qual, por sua vez, tinha por base a aula inaugural de Brandi na Universidade de Roma, em 1948, no curso Teoria e Storia del Restauro; tem ainda como provável antecedente mais remoto sua apresentação no congresso de Superintendentes feita em 1942.36 Assim, é possível mostrar que a construção do pensamento de Brandi sobre restauração remonta ao início da década de 1940, coincidindo com a elaboração do Carmine, concluído em 194337 e publicado em 1945. A leitura comparada dos textos, continua Petraroia, permite constatar não apenas a ausência de contradições entre os escritos, mas paralelismos entre sua teoria do restauro e sua reflexão estética, enfrentando o problema da obra de arte em ambas as vertentes de sua relação com a consciência: enquanto criação em ato e no modo como é recebida pela consciência, no presente, como obra de arte. Com isso a Teoria se coloca de direito no âmbito da estética.38 Catalano mostra que o próprio Brandi, na reedição do Carmine para a Einaudi, de 1962, enfatizou a interdependência entre o momento da criação e o da fruição.39 Petraroia adverte, porém, que não se deve recair no engano de considerar que na Teoria se esteja diante de uma problemática de estética “aplicada”, pois a referência à restauração é a individuação de um caso específico a partir da problemática geral, e diz respeito à recepção pela consciência da obra de arte como tal, o “reconhecimento”.40 A análise de Petraroia ressalta, como fizeram posteriormente outros autores,41 que os diversos aspectos da multifacetada produção de Brandi - estética, história, crítica de arte e o restauro -, assim como na sua incidência na prática, estão inter-relacionados e remontam a um núcleo comum e consistente de pensamento a partir do qual os diversos temas se rearticulam e se aprofundam reciprocamente.42 Não são atividades disjuntas ou dispersivas, mas a declinação e o adensamento a partir de problemas específicos.
Ao explorar as origens da Teoria, Catalano43 mostra que o título inicialmente pensado para o volume era Lezioni di teoria del restauro (1941-1961), cuja ênfase estava na natureza didática do texto. Na primeira edição do livro há uma nota biográfica sobre as aulas que Brandi havia oferecido na Universidade em Roma, na Scuola di Perfezionamento di Storia dell’Arte e também no Istituto di Archeologia e Storia dell’Arte. A partir dessas informações, Catalano fez extensas pesquisas em arquivos e analisou nomes e o programa de cada uma das disciplinas. Aquelas com restauro no título aparecem a partir do ano acadêmico de 1952-1953. A alternância de títulos mostrava cursos mais centrados na teoria e outros de endereçamento mais operacional, mas sempre havia argumentação teórica confrontada com casos de estudo, que aprofundavam questões específicas, como a da pátina, do tratamento de lacunas, das belezas naturais, do restauro de jardins ou do restauro preventivo. Em 1953-1954, Brandi enfrentou explicitamente a bipolaridade das instâncias estética e histórica, ao mesmo tempo em que alguns colaboradores apresentavam questões de método segundo materiais e técnicas artísticas. Segundo Catalano, essa foi a primeira vez em que as questões estritamente técnicas entraram num curso de história da arte.44 A autora mostra o quanto esse percurso intelectual, didático e prático se articulou ao longo de décadas e, a partir de uma leitura crítica comparada entre os textos de Brandi de 1950 e de 1963, com as partes eliminadas e acrescentadas, evidencia:
[…] um procedimento nutrido por enxertos progressivos, redefinições contínuas, a cada passagem mais amplas e específicas. O fruidor deve aproximar-se do texto preparado. Uma análise infratextual mais articulada, pontual para cada capítulo, poderá confirmar a natureza de uma elaboração teórica que não encontra equivalentes: também nesse contexto funciona a metáfora proposta por Maria Andaloro que, parafraseando Brandi, convida a lê-lo como um inteiro. Depois de proceder a uma operação de “desmontagem” textual, reconsiderado o conjunto de sua estrutura, é possível afirmar que a Teoria carrega todas as marcas de um percurso realizado.45
Brandi, na introdução, menciona que a base do livro são as aulas e escritos elaborados durante duas décadas, mas isso não significa que a obra seja um compêndio de textos disjuntos. Pelo contrário, ela é um conjunto orgânico.46 Apenas uma leitura descuidada da obra permite uma interpretação da Teoria como um total na acepção brandiana, ou seja, considerá-la como mero somatório de partes isoladas, e não como um inteiro.47 Mesmo sem entender de modo aprofundado o vocabulário denso do autor, em que o significado das palavras utilizadas - e algumas delas são neologismos - têm longa ascendência, remontam no tempo na construção articulada com seu pensamento no âmbito da estética, ganham corpo e têm uma profundidade que vai além do sentido comum dos termos empregados - mesmo uma leitura descuidada da Teoria permite ver a equivalência entre as palavras.
Se no primeiro capítulo da Teoria é apresentada a fundamentação teórica do restauro, cada um dos temas que aparece na definição e nos axiomas é analisado de modo minucioso na sequência, sempre com referência ao conceito de restauração do primeiro capítulo. Após as impostações iniciais, a partir das quais é apresentada a definição de restauro como “momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro”,48 seguem-se os dois axiomas: o primeiro trata do papel da matéria no restauro e o segundo da reintegração da imagem em relação às instâncias estética e histórica. Esses temas são explorados nos capítulos seguintes, que se debruçam de forma entrelaçada e em sequência sobre: a matéria da obra de arte; a unidade potencial da obra de arte; o tempo em relação à obra de arte e à restauração; a restauração segundo a instância da historicidade; a restauração segundo a instância estética. Os dois capítulos finais, “O espaço da obra de arte” e “A restauração preventiva”, aprofundam questões tratadas antes e exploram consequências da definição para âmbitos alargados, como o espaço da obra, a restauração preventiva, a escala urbana; retomam da capo e remetem à conceituação inicial, com novos aprofundamentos, abrindo outros horizontes de reflexão.
Catalano lembra que o espaço da obra de arte não havia sido tratado antes como tema autônomo por Brandi em artigos ou cursos - na documentação consultada, não há aula específica com esse título -, mas aponta ligação com Eliante o dell’architettura, texto que repercute na Teoria no tratamento do restauro preventivo, no apêndice sobre a restauração dos monumentos e no apêndice sobre as molduras como questão de restauro, evidenciando a interdependência da obra com o espaço.49 Esse tema vinha desde o Carmine,50 em que a noção de reconhecimento aparecia com seus traços essenciais e a museografia pôde passar a ser entendida de modo pleno como restauro preventivo. Nas palavras de Brandi:
A museografia como restauração preventiva: eis, pois, o nosso axioma. Como restauração preventiva entenda-se predispor as condições mais adequadas para a conservação, a visibilidade, a transmissão da obra para o futuro; mas também como salvaguarda das exigências figurativas que a espacialidade da obra produz no que concerne à sua ambientação.51
Assim, ele se aproxima da museologia, da museografia e da expografia de modo abrangente e como parte integrante do restauro - que, segundo sua proposta, não se limita à ação prática direta sobre a obra - e de uma estratégia ampliada da tutela.52
Ler a Teoria como um compêndio de partes e lições desconexas significa uma incapacidade basilar de fazer correlação entre palavras. Uma incapacidade que se amplifica ao não considerar os apêndices como partes integrantes da obra desde a primeira edição que complementam, aprofundam e ilustram os oito primeiros capítulos de fundamentação teórica.
Esse processo de elaboração contínua e de adensamento do texto fez com que o livro perdesse o título de “lições de” e passasse a ser simplesmente (e complexamente) Teoria da restauração por oferecer um estatuto epistemológico consistente ao campo.53 Uma formulação, parafraseando o próprio Brandi e Paul Philippot a respeito da restauração, que se coloca como hipótese crítica.54 Crítica que, na construção articulada do pensamento de Brandi, tem uma dimensão teórica e operacional, como evidencia Carboni.55 Uma teoria, portanto, que não perde de vista algumas de suas repercussões operacionais, explicitadas de modo mais evidente no aparato de imagens da primeira edição de 1963. A matriz didática permaneceu na nota de abertura e nas fotos e pranchas de ilustrações que remetiam a uma parte operacional significativa. Na segunda edição, de 1977,56 foi acrescentada a “Carta de restauração italiana de 1972”, mas foram eliminadas as imagens. Foi uma perda significativa, pois o aparato visual era uma complementação daquele textual, relacionado diretamente a citações específicas do texto, ou indiretamente, por associação temática, como analisado por Daniela Diletti,57 que buscou ainda as fontes e coleções a que pertenciam as ilustrações. É relevante, como evidenciam Catalano e Diletti, ver como Brandi organiza as pranchas anexas: ele abre com o verso do Ecce Homo de Antonello da Messina e termina com uma prancha com duas salas de exposição projetadas por Carlo Scarpa na Academia de Veneza. Não é escolha banal iniciar um aparato de pranchas pelo verso de um quadro, nem tampouco terminar um livro sobre restauro com fotos de salas de exposição. Esses dados dizem muito sobre o modo como Brandi constrói seu raciocínio iniciando pela materialidade de uma obra e concluindo pelas experimentações museográficas, algo tido como parte de estratégia ampliada da tutela que se desdobra também para questões como a intervenção na preexistência, o restauro preventivo, a preservação de áreas urbanas e da paisagem.
No texto de introdução à mais recente edição da Teoria em italiano, Carboni afirma estar diante de um clássico - clássico no sentido de modelo, exemplo fundamental, paradigmático e seminal para o campo em âmbito mundial. Carboni mostra que o objetivo de Brandi ao pautar as propostas em princípios foi equilibrar a “férrea coerência das premissas, que são conditio sine qua non de qualquer correta ação de restauro, com a necessária flexibilidade, com aquela indispensável ductilidade empírica que responde de maneira congruente e apropriada ao próprio caráter da obra de arte […]”.58 Carboni enfatiza o papel da crítica na construção brandiana, desde o Carmine, como uma “dimensão teórica e operacional, intelectual e pragmática, conhecimento científico e promulgação que salvaguarda a obra”.59 Ao salientar o caráter do restauro como hermenêutica prática, Carboni mostra a amplitude e o quilate filosófico de toda a produção brandiana, articulando-a com propostas de Gadamer, para afirmar que “poderemos compreender que é exatamente essa integração determinante, essa resolutiva contribuição de natureza filosófica que faz da Teoria da restauração um insubstituível clássico da disciplina que é e que permanecerá”.60 Um texto fundante, de caráter filosófico, que merece e deve ser lido de modo informado.
Como visto, a definição de restauro de Brandi traz consigo enorme densidade de construção do pensamento. Algo importante de ser apontado, logo de saída, é que o autor define explicitamente o restauro e não apenas discorre sobre o tema. Antecedentes diretos desse tipo de impostação teórica, com repercussão de vulto, podem ser encontrados, como evidenciou Torsello, no século XIX, em Ruskin e Viollet-le-Duc.61 Depois, os numerosos autores que trataram de temas do restauro enfrentaram vários problemas, mas não ofereceram uma definição explícita. Aproximadamente um século separa a proposta de Brandi da dos dois intelectuais oitocentistas. Um século em que a visão sobre o assunto mudou de modo significativo, assim como continua a se transformar continuamente. O que distinguia a proposta de Brandi de outras formulações do período, como nota Torsello, é que muitas correntes da restauração partiam de uma lógica indutiva, de questões pragmáticas colocadas pela própria obra, enquanto a teoria de Brandi parte de uma lógica dedutiva fundamentada em axiomas éticos e científicos,62 para então se voltar à análise pormenorizada de cada obra. Suas propostas, desse modo, não vêm unicamente da observação das coisas, mas de uma dedução ética: é isso que diferencia o “cada caso é um caso” do restauro de mero casuísmo.63
O campo do restauro, assim como qualquer campo disciplinar, nunca é estanque nem homogêneo e, apesar de essa afirmação parecer óbvia, deve ser reiterada nestes tempos em que a abordagem das questões se tornam cada vez mais redutoras. É preciso insistir ainda no caráter multifacetado e articulado da produção e dos interesses de Brandi, que incluem a história e a crítica de arte, a estética, a restauração,64 além da produção poética, dos livros de viagem e do desdobramento dessa produção para públicos mais amplos, com sua participação, como mencionado, em programas de televisão e em artigos de jornais de grande circulação.
No que respeita à estética, diversos autores exploram as originais concepções de Brandi, que têm alto grau de autonomia em relação às principais correntes do período na Itália. Eles mostram que Brandi parte de uma base que remonta ao idealismo transcendental de Kant, retoma criticamente propostas de Croce, reelabora aspectos da pura visibilidade, em especial as formulações de Fiedler, articula propostas de Heidegger e Sartre e traz questões colocadas por Hegel, o todo trespassado pela fenomenologia de Husserl, articulando-as de maneira original e com resultados não previsíveis.65 É necessário reiterar que Brandi não está simplesmente somando pedaços de diversas correntes filosóficas do momento, nem as acolhendo de modo acrítico, tampouco se contrapondo a elas de forma sumária, negando as contribuições trazidas pelos vários pensadores. Brandi reconhece essas contribuições que serviram de base, alargaram seu olhar para diferentes problemas e, ao mesmo tempo, reelabora de maneira criativa e surpreendente os resultados, trazendo questões e contribuições que lhe são próprias.66 É por isso que autores como Russo e D’Angelo consideram que Brandi estabelece parâmetros para uma estética verdadeiramente pós-crociana67 na Itália.
Diversos temas que aparecem na obra de Brandi, assim como a construção de um vocabulário especializado, remontam muito no tempo em sua carreira. Catalano, ao analisar o material de arquivo na Universidade de Siena, mostra que o “reconhecimento” acompanha Brandi desde o seu trabalho de conclusão de curso em direito naquela universidade, com a tese Contributo alla teoria del contratto di diritto pubblico, em que o “momento do reconhecimento” é percorrido a partir da filosofia do direito de Hegel, que “Brandi examinava enfrentando os problemas dos direitos individuais em relação ao contrato social em que se manifesta o espírito objetivo e a consciência da alteridade”.68 Como mostra Catalano, a trama tecida por Brandi será profícua no campo do restauro, em que permanece uma componente normativa na dialética entre o enunciar princípios gerais e os casos particulares e também na matriz lexical que perdura no autor em termos como “instância” e “contemporização”. A autora explora ainda questões de cunho metodológico colocadas por Longhi, que retoma Croce, que, por sua vez, individua na filosofia o “momento metodológico da historiografia”,69 tema que Brandi explorará também em Teoria generale della critica.70 Continua Catalano:
A feliz combinação que Brandi concebe do pensamento hegeliano e crociano não é apenas de natureza lexical. Com efeito, a definição de restauro coloca como central a alteridade da obra, na correlação entre o restauro, a crítica e a estética. Entende-se que na perspectiva brandiana, o reconhecimento da alteridade advém na consciência num processo que será entendido fenomenologicamente.71
Diversas das expressões e dos termos que aparecem nas primeiras obras de Brandi permanecem como conceitos, tomam paulatinamente renovados contornos, tornando-se mais precisos e densos.72 “Reconhecimento”, para Brandi, é palavra carregada de sentido e com longa ascendência, com a qual trabalha, como visto, a partir da fenomenologia na dupla vertente da criação da obra de arte - vendo-a como processo e não apenas como resultado -, e da recepção.73
No que respeita à criação da obra de arte, de modo muito sucinto, Brandi estrutura o processo artístico em duas fases essenciais: “constituição do objeto” e “formulação da imagem”, que permitem indagar a obra também “internamente”, lançando luzes sobre os modos de perceber o processo criativo que lhe deu origem. Paolo Antinucci, ao analisar o reconhecimento, já colocado por Brandi em Carmine, depois retomado e reformulado para a poesia e para a arquitetura,74 mostra que quem cria a obra, na fase de “constituição do objeto” - como parte do processo cognitivo -, trabalha com a neutralização, ou redução, do objeto real (ou da ideia) que se torna fenômeno. A partir disso, seleciona no fenômeno os aspectos ópticos que possibilitam elaborar um esquema pré-conceitual em sua consciência, quando se aninha o processo de “constituição do objeto” - que é diverso do objeto da realidade das coisas - para o qual busca uma forma adequada, para torná-lo palpável e transmitir uma dada imagem. O passo seguinte é a “formulação da imagem”, quando a obra se materializa e passa a fazer parte da realidade das coisas. Essa é uma hipótese de estruturação do processo de criação artística que lança luzes sobre diversos aspectos. É uma proposta que não pressupõe que a criação da obra torne esse processo imediatamente legível, mas a consciência de quem frui é capaz de perceber a lógica profunda da obra. Por isso, nota Antinucci, para Brandi uma obra de arte não se compreende, mas se reconhece, pois o que se reconhece é o inteiro processo criativo que lhe deu origem.75
Esse particular modo de se manifestar da obra de arte é o que Brandi denomina astanza, o “ser no mundo” da obra de arte, com sua capacidade de suscitar experiências que nenhum outro objeto da realidade existencial seria capaz de produzir. Esse fenômeno se repete toda vez que a obra é reconhecida, havendo possibilidade contínua de reconhecimento ao longo do tempo, processo que não é imediato, nem simples, sendo, ao contrário, complexo e lento,76 reconhecendo-se o objeto na plenitude de sua herança formal, de sua estrutura ontológica. À astanza, Brandi contrapõe a flagranza, o existir da obra de arte como objeto que faz parte da realidade existencial e que translada no tempo.77 Isso não quer dizer que a obra é astanza ou flagranza; ela é as duas coisas, e essas categorias interpretativas permitem que se aprofundem aspectos distintos do ser no mundo da obra. Não é possível investigar a obra, em sua astanza, sem seu suporte material ou conformação, sua flagranza.
Como bem nota Paolo Fancelli,78 Brandi utiliza em sua produção teórica um aparato conceitual discursivo que se vale de dúplices polaridades, como astanza-flagranza, externo-interno, estrutura-aspecto, instância estética-instância histórica; signo-imagem. Usa esses pares como forma de lançar luzes vindas de fontes distintas sobre um mesmo assunto. Mas, para Brandi, esses pares não são mutuamente excludentes. A obra é astanza e é flagranza. Seu trabalho com duas categorias interpretativas permite evidenciar aspectos diversos que possibilitam aprofundar temas específicos, o que torna mais complexas as questões envolvidas. Desse modo, nunca se trata de uma eliminação recíproca desses aspectos, tampouco de uma soma seguida por divisão numa média homogênea e apaziguada. A tensão sempre existe e persiste, e é o que move o trabalho de análise.
Retomando a definição de restauro de Brandi - “a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro”79 - é possível ver que nenhuma dessas palavras ou expressões pode ser tomada de modo ligeiro.
Pelo olhar de Petraroia, um dos aspectos importantes da definição é o fato de Brandi partir do âmbito da estética, não “com referência no conceito ambíguo de ‘beleza’ ou àquele abstrato de ‘arte’, mas na identidade própria da ‘obra de arte’ […]”,80 algo que tem implicações para a ampliação da aplicabilidade da Teoria. Petraroia mostra que o restauro parte de ato da consciência que reconhece “que o valor específico e essencial desse produto da atividade humana é no seu ser ‘obra de arte’ e no seu se revestir, como tal, de um valor universal que exige ser transmitido ao futuro”.81 E, ainda, que a “própria possibilidade do ‘reconhecimento’ cada vez que se verifica, fundamenta-se numa atitude que é precisada por Brandi como própria da consciência em geral”,82 mesmo que esse reconhecimento seja feito pelo indivíduo singular. Assim, quando Brandi afirma que o reconhecimento da obra de arte é “duplamente singular, seja pelo fato de dever ser efetuado toda vez por um indivíduo singular, seja por não poder ser motivado de outra forma a não ser pelo reconhecimento que o indivíduo singular faz dele”,83 não está afirmando que o restauro seja, por isso, um ato personalista. Por ter ascendência também em Hegel e no campo jurídico, o ato de reconhecimento jamais pode ser interpretado como arbitrário. Petraroia, ademais, ao mostrar que a postura de Brandi se desdobra a partir de indicações da crítica kantiana e, com isso, da exigência de encontrar princípios reguladores na relação entre consciência e mundo externo, afirma que essa crítica não pode ser confundida com o idealismo84 e enfatiza o caráter intersubjetivo do ato de reconhecimento:
Brandi, exatamente na análise da recepção da obra de arte pela consciência, se afasta de modo decisivo tanto do idealismo crociano quanto de qualquer interpretação em chave psicológica ou positivista e se volta para a única aproximação, a da fenomenologia, que parece garantir, de um lado, o caráter intersubjetivo do próprio ato do reconhecimento e, de outro, uma referência precisa da realidade da experiência sensível, da matéria como dado externo da consciência.85
Brandi, em sua produção teórica e atuação frente ao ICR, buscou afastar a restauração do empirismo e da arbitrariedade, vinculando-a ao método e ao processo histórico-crítico de forma rigorosa.86 Note-se que restauro é momento metodológico do reconhecimento com vistas à transmissão para o futuro, ou seja, algo que, lido na totalidade da definição, evidencia o caráter intersubjetivo, multidisciplinar e jamais individual e arbitrário da restauração. Restauro, portanto, como aproximação metodologicamente fundamentada e como construção intersubjetiva. Pela definição, não procedem afirmações de que, para Brandi, prevalece apenas um valor inerente à obra de arte (em vez de atribuído), e tanto menos que sua abordagem possa ser reduzida a um tecnicismo e cientificismo que busca uma objetividade dogmática. São colocações que não fazem sentido para uma definição pautada no reconhecimento por via fenomenológica, que é contra o dogmatismo e coloca o sujeito em papel central.
Na definição de “restauro”, o primeiro aspecto enunciado por Brandi após o reconhecimento é a “consistência física” - a matéria como dado externo da consciência, como mostra Petraroia - seguida pela dúplice polaridade, estética e histórica. Os axiomas decorrem dessa ordem de enunciação. O primeiro deles, “restaura-se somente a matéria da obra de arte”, dá origem a interpretações problemáticas no Brasil, por se achar que Brandi desconsidera os efeitos que o tratamento da matéria teria sobre a imagem. Essa é uma forma equivocada de ler o axioma, ainda mais porque, na sequência, o autor afirma que “os meios físicos aos quais é confiada a transmissão da imagem não são apenas flanqueados a ela, são, antes, a ela coextensivos: não existe a matéria de um lado e a imagem do outro”.87 Petraroia afirma:
A identidade formal da obra de arte - esse parece ser o nó da questão - é definida na consciência a partir de um dado imprescindível: a conformação da matéria (o seu “aspecto”) que permite a formação da imagem através da percepção.
É evidente, já no texto de 1948, que a distinção entre “imagem” e “matéria” está colocada em termos completamente diversos do idealismo, mas, antes, explicitamente reconduzíveis a uma posição tipicamente fenomenológica.88
Com a compreensão do que é de fato o reconhecimento, algo que está explicitado em diversas partes da Teoria, Brandi enuncia - e deixará evidente no capítulo 2 (“A matéria da obra de arte) e também no capítulo 4 (“O tempo em relação à obra de arte e à restauração”) - que a intervenção se dá na materialidade da obra de arte como transformada ao longo do tempo, e não no processo criativo de quem a fez. Claro está que ao intervir na matéria haverá impactos na imagem, no sentido comum da palavra “imagem” (aparência), mas não na “formulação da imagem” como parte do processo criativo-artístico, que não deve passar por intervenção. Brandi retoma o tema no capítulo 4, no qual o tempo legítimo da intervenção é o do próprio presente da consciência observadora, jamais o tempo da formulação da obra e tampouco o intervalo entre a formulação e o reconhecimento.89 O restauro não é retroativo: é ato do presente que assume de modo pleno a obra em seu percurso ao longo da história e, desse modo, a “restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história”,90 devendo assegurar a sobrevivência material da obra, algo que tem implicações deontológicas importantes.
A matéria, segundo Brandi, representa “o tempo e o lugar da intervenção de restauro”. Por isso, só nos podemos servir de um ponto de vista fenomenológico e, sob esse aspecto, a matéria se mostra como ‘aquilo que serve à epifania da imagem’”.91 O autor continua enunciando o desdobramento da matéria como estrutura e aspecto o que gera, além do equívoco supracitado, toda uma outra série de problemas de interpretação, como se houvesse, da parte de Brandi, um desconforto em relação à materialidade da obra, algo que nem suas formulações teóricas nem sua atuação à frente do ICR permitem inferir.92
Como dito, Brandi trabalha com par de termos como categoria interpretativa. Isso não significa que um deles possa ser desconsiderado, pois é ele mesmo quem afirma que a “distinção dessas duas acepções fundamentais [estrutura e aspecto] insere, ademais, o conceito da matéria da obra de arte, não de modo diverso, porém ainda mais inseparável daquele que é o verso e o recto para a medalha”.93 Vlad Borrelli mostra que, “na teoria de Brandi, o estatuto da matéria é altamente qualificante, pois à matéria é confiada a transmissão da imaterial imagem criativa e, mediante o restauro, a sua conservação”.94
A definição de restauro de Brandi continua com a “dúplice polaridade estética e histórica”: levando em conta a densidade do vocabulário do autor, não deve ser transcurada a expressão “dúplice polaridade”, que é, porém, muito diversa da polarização redutora do mundo atual. A dúplice polaridade deve ser assimilada, metaforicamente é bom lembrar, a dos polos magnéticos, como manifestações incindíveis num mesmo ímã. Ou seja, as duas polaridades existem no mesmo objeto, mas podem ser analisadas, para aprofundar a discussão, sucessivamente, iluminando aspectos diversos da questão, para depois serem rearticuladas.
Ao desenvolver o tema, tanto no primeiro capítulo da Teoria quanto nos demais, Brandi refere-se à “instância histórica” e à “instância estética” - a palavra “instância” traz consigo a consistência vinda do mundo jurídico, não sendo palavra qualquer. Ademais, são instâncias que devem ser sempre consideradas em conjunto, mesmo quando o autor afirma que a “intervenção deverá concluir-se segundo aquilo que exige a instância estética”,95 porque a singularidade da obra de arte em relação aos demais produtos depende da sua artisticidade. Depois, afirma que “tampouco poderá ser subestimada a instância histórica”.96 Daí o segundo axioma, que “a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo”.97
Como prova de que as instâncias são de fato articuladas, pode ser relembrado o caso do Vulto Santo98 no capítulo 6, “Restauração segundo a instância estética”, em que a ênfase de Brandi está no respeito pelo aspecto da obra transladada no tempo, com seus acréscimos. Já no capítulo anterior, ao falar sobre a restauração a partir da instância histórica, Brandi afirma que, “como a obra de arte se apresenta com a bipolaridade da historicidade e da esteticidade, a conservação e a remoção não poderão ser feitas nem a despeito de uma, nem no desconhecimento da outra”.99
Não importa o “par” de termos que Brandi utiliza como categoria analítica, é sempre uma coisa e outra, jamais uma coisa ou outra. Por formular seu pensamento sempre de modo especulativo-crítico, problematizando temas e tensionando propostas, quem busca respostas simplistas e não considera o texto como um inteiro pode pensar que existam contradições, algo que não se sustenta à luz de uma análise acurada do escrito em sua inteireza. As especulações de Brandi trazem argumentos variados a partir de olhares diversos sobre um problema. Isso pode ser visto no modo como constrói os capítulos 5 e 6, partindo da mesma sequência lógica: inicia com o caso extremo da “ruína” para depois falar da pátina e, a seguir, da adição e do refazimento, tanto do ponto de vista da instância histórica quanto, depois, da instância estética, lançando luzes diversas sobre a mesma sequência de temas, mas que são reconduzidos depois à unidade de princípios.
A definição de “restauro” de Brandi não se reduz à ação prática de restaurar. Ela deve ser tomada como a base de um campo disciplinar que constrói instrumentos epistemológicos e que tem fundamentação teórico-metodológica e técnico-operacional próprias, articulando diversas áreas do saber.100 Ao definir um campo, Brandi não está limitando o restauro a seus possíveis resultados operacionais diretos na obra, pois uma das consequências de sua definição é que, por vezes, restaurar significa não intervir,101 e isso não invalida a definição de restauro:
Acontece que, se a restauração é restauração pelo fato de reconstituir o texto crítico da obra e não pela intervenção prática em si e por si, deveremos, nesse ponto, começar a considerar a restauração semelhante à norma jurídica, cuja validade não pode depender da pena prevista, mas da atualização do querer com que se determina como imperativo da consciência. Ou seja, a operação prática de restauro estará, em relação ao restauro, assim como a pena em relação à norma, necessária para a eficiência, mas não indispensável para a validade universal da própria norma.
É por isso que a primeira intervenção que deveremos considerar não será aquela direta sobre a própria matéria da obra, mas aquela voltada a assegurar as condições necessárias para que a espacialidade da obra não seja obstaculizada no seu afirmar-se dentro do espaço físico da existência.102
Assim, se o processo de reconhecimento indicar que uma obra, mesmo incompleta, tem uma unidade potencial, a obra não deve ser completada.103 É sempre a aproximação crítica ao objeto, o momento metodológico do reconhecimento, que vai guiar a ação. Segundo Brandi, uma lacuna em uma obra de arte “é uma interrupção no tecido figurativo. Mas contrariamente àquilo que se acredita, o mais grave, em relação à obra de arte, não é tanto aquilo que falta, quanto o que se insere de modo indevido”.104
Um tema importante a ser pontuado é o da definição ser voltada para obras de arte. Não se deve ter uma visão restritiva da aplicabilidade da Teoria porque Brandi, em diversos escritos - como Struttura e architettura, de 1967, bem como na Teoria - equipara as obras de arte, do ponto de vista do método, àquilo que obra de arte não é, a exemplo das belezas naturais ou, ainda, inteiros ambientes urbanos.105 O intuito dessa equiparação não é forçar uma interpretação não fundamentada do texto para proveitos próprios, nem afirmar que um garfo é igual a um quadro. Não são a mesma coisa, mas, do ponto de vista da aproximação metodológica, são assemelhados, não sendo feita a distinção entre “belas artes” e outras manifestações de interesse cultural. Como mostra Giovanni Urbani, isso não é feito por comodismo ou para fazer com que duas coisas diversas se agreguem. Trata-se de um princípio de equidade que visa a valorizar o caráter documental e a configuração tanto nas obras de arte quanto dos “demais” produtos. Assim, o procedimento como um todo se volta ao aprofundamento cognitivo e evidencia que tudo aquilo que é testemunho do fazer humano ou de interesse cultural pode tornar-se objeto de análise científica e de preservação.106
Havia, sempre houve e há diferentes posturas no tratamento dos temas relacionados à restauração, à participação do público e às instâncias políticas de decisão. Um exemplo disso é a famosa “controvérsia da limpeza”, que perdurou do final dos anos 1940 até o início dos anos 1960, envolvendo inicialmente Brandi e profissionais da National Gallery de Londres, e depois se difundindo entre historiadores, críticos e restauradores.108
Desde as primeiras propostas de criação do ICR por parte de Argan, depois associadas às contribuições de Brandi, o intuito era buscar equilíbrio entre as diversas disciplinas concernidas pelo restauro, com base na coerência de critérios e métodos, no estabelecimento de princípios, na superação do empirismo e na consciência humanística e histórica do restauro.109 Visão que exigia também uma atualização sobre as experimentações de ponta,110 daí as visitas técnicas de Brandi aos laboratórios de restauração nos Estados Unidos.111 Buscava-se, por um lado, o afastamento do empirismo pedestre e, por outro, a vinculação das ciências “duras” à visão de restauro como leitura crítica da obra, articulada e multidisciplinar. Nos estudos científicos aplicados a diversos âmbitos, entre os anos 1930 e 1940, inclusive aos bens culturais, havia por parte de certos profissionais uma crença cega no poder das ciências experimentais. Essas ciências, se ofereciam apoio imprescindível ao restauro,112 por vezes incorriam em riscos, pois nem sempre os complexos fenômenos de degradação eram previsíveis e esquematizáveis e novos materiais eram empregados sem o devido cuidado com sua eficácia e sem que seu comportamento ao longo do tempo tivesse sido testado.113
A controvérsia iniciou com a exposição de pinturas restauradas da National Gallery de Londres. Brandi manifestou-se contra as limpezas excessivas e remoções sistemáticas dos vernizes oxidados. Apresentava como contrapartida exemplos de quadros restaurados no ICR em que a articulação verniz-veladura tinha papel de abaixar a saturação excessiva das cores e também era parte da estratégia dos pintores de buscar, por exemplo, transparências e sombreamentos.114 Brandi insiste na necessidade da leitura crítica da obra, não podendo o restauro se basear apenas numa leitura tecnicista. Daí, como mostra Marabelli, “a necessidade de manter a ciência da conservação firmemente ancorada nos princípios teóricos, nas diretrizes e referências deontológicas enunciadas por Brandi na Teoria”.115
Em sintonia com Brandi, Ernst Gombrich afirmou:
A National Gallery de Londres tornou-se agora o foco de discussão sobre o grau de ajustamento que estamos preparados a admitir quando contemplamos quadros antigos. Aventuro-me a pensar que essa questão seja com frequência apresentada como um conflito entre os métodos objetivos da ciência e as impressões subjetivas de artistas e críticos. A validade objetiva dos métodos empregados nos laboratórios das nossas principais galerias está tão pouco em discussão quanto a boa-fé daqueles que os aplicam. Pode-se muito bem objetar, no entanto, que os restauradores, na sua função responsável e difícil, deveriam levar em conta não só a composição química dos pigmentos, mas também a psicologia da percepção - a nossa e a das galinhas. O que queremos deles não é que restaurem pigmentos individuais à sua cor antiga, mas algo infinitamente mais delicado e ardiloso - preservar as relações. É, sobretudo, a impressão da luz, como sabemos, que depende exclusivamente de gradientes e não, como se poderia esperar, da vividez objetiva das cores.116
Para Brandi, as ciências tinham papel fundamental - algo que repercutiu também na forma como o ICR foi estruturado com seus diversos laboratórios e no curso de formação dos restauradores117 -, mas deveriam ser guiadas pela visão histórico-crítica,118 numa formação que era um contraponto à do restaurador-artesão. O ICR foi concebido como articulação de escola de formação, lugar de pesquisa e prática profissional em que as atividades se enriqueciam reciprocamente, tornando-se uma verdadeira incubadora de talentos associada à inovação experimental. A escolha das respostas e a aceitação dos resultados dependia da qualidade da proposta e não da hierarquia;119 os resultados depois deveriam ser difundidos e submetidos à apreciação pública. Daí também o interesse de Brandi pelas exposições como lugar de experimentações museográficas e seu importante papel no restauro.120
A controvérsia das limpezas ressoou até o início dos anos 1960 e repercutiu no 20º Congresso Internacional de História da Arte, realizado em Princeton, em 1961, em que transpareceram diferentes visões. Uma mesa foi dedicada ao tema: “Aspectos estéticos e históricos da apresentação de pinturas danificadas”, e foi coordenada por Craig Hugh Smyth, diretor do recém-criado Centro de Conservação do Institute of Fine Arts da Universidade de Nova York (IFA-NYU). Os conferencistas foram escolhidos por sua proeminência e por terem visões divergentes: Brandi, que abordou o tema a partir da gestalt, advogando a articulação entre questões formais e documentais; Richard Offner, professor da NYU, que preconizou deixar as obras sem restaurar e remover qualquer adição por ele consideradas falsificações da verdade; e Philip Hendy, diretor da National Gallery de Londres, que mesmo deixando transparecer seu interesse por restauros não imitativos ou por ações estritamente conservativas, reconhece o papel do público e da política nas propostas de restauração, oferecendo uma justificativa pragmática para integrações imitativas.121
A discussão de aproximações metodológicas e suas consequências operacionais estavam na ordem do dia, mas Hendy não deixa claro a partir de que meios filtrar e encaminhar possíveis conflitos entre as questões políticas, a opinião do público e o interesse da conservação na longa duração.122 A discussão que se seguiu, reportada nas atas, é de grande interesse, mostrando certa convergência de historiadores e conservadores estadunidenses com as propostas de Brandi, a exemplo de Millard Meiss, historiador que se doutorou com Offner, Sheldon Keck, conservador do Museu do Brooklyn, e de George Stout, do Museu Fogg, de Harvard. Consideravam o tratteggio superior a outros métodos de tratamento de lacunas, mas o achavam insatisfatório do ponto de vista da aparência. Desse modo, entendiam a validade do método, mas questionavam uma de suas possíveis consequências operacionais.123
Importante relembrar que, no enfrentamento das destruições do Pós-Guerra, foi desenvolvido o método de integração de lacunas por meio de linhas verticais feitas com aquarela, inicialmente descrita por Brandi como “filamentos”, em seguida assumindo a denominação tratteggio, que é a comumente usada. A integração de lacunas de modo não imitativo fora feita anteriormente, por exemplo, numa Pietà do Museu Fogg, por Roger Arcadius Lyon, que usou hachuras cruzadas na diagonal. Essa obra esteve numa exposição sobre Giotto nos Uffizi de Florença, em 1937, e é provável que Brandi a tenha visto. Mas, segundo Paolo e Laura Mora, a ideia de elaborar os traços verticais teriam vindo de duas fontes: o retoque em negativos de vidro e as linhas verticais usadas em gravuras.124 O próprio Brandi, em artigo sobre Morandi, havia usado a palavra tratteggio ao mostrar o treinamento inicial do artista como gravurista e o papel da síntese plástica da linha, semelhante à vibração cromática da pintura: “Treinado na água-forte a variar infinitamente os tons apenas com o aproximar ou afastar da trama de um capilar tratteggio, Morandi foi levado a transferir também para a pintura a óleo a mesma redução do meio cromático a duas tonalidades fundamentais […]”.125 Além das possíveis origens do tratteggio, é necessário relembrar que Brandi não descreve o método na Teoria por não se tratar de um manual, mas analisa os princípios que levaram a propor soluções não imitativas para lacunas, cujas consequências operacionais, inclusive para Brandi, são plurais.
A acalorada discussão daquelas décadas mostra um mundo do restauro variado e polêmico, com distintos modos de aproximação aos problemas. As propostas de Brandi destacam-se pela consistência, daí também sua permanência como referências seminais para o campo.
Um tema de grande interesse que emerge na Teoria e vinha de formulações anteriores de Brandi é o da restauração preventiva, que acentua a interdependência da obra com o espaço.126 Esse tema ganhou novos contornos na década de 1970 e se voltou também para a relação restauro-qualidade do ambiente numa escala mais alargada, com as proposições de Urbani, que dirigiu o ICR de 1973 a 1983. Suas propostas, construídas desde o início da década de 1970, estão explicitadas no Plano piloto de conservação programada dos bens culturais da Úmbria, de 1975,127 no qual afirma que a melhoria das condições gerais de um ambiente é relevante para a preservação dos bens culturais que ali estão. Urbani extrapola a restauração preventiva de Brandi para a escala territorial e coloca a ênfase na relação dos bens com o ambiente e no controle das causas de deterioração. Ao questionar a prevalência de restaurações de obras isoladas excepcionais com custos elevados, mostra ser mais adequado melhorar, ainda que de modo mínimo, o estado de conservação do contexto como um todo, incluindo o da obra que se quer restaurar.128 Essa abordagem garantiria uma conservação mais abrangente do ponto de vista físico - algo que, como mostram reflexões mais recentes, está também relacionado à qualidade de vida129 -, e duradoura de toda a área. A proposta foi consolidada no mesmo ano da Carta e da Declaração de Amsterdã, do Conselho da Europa, que também apontam para a necessidade de pensar as questões de preservação de forma integrada na escala urbana e territorial, levando em conta o tecido social.130
Outra extrapolação do tema pode ser vista no projeto Esquilino chiama Roma,131 que ganhou corpo a partir de 2018 e é voltado a enfrentar as questões de um bairro complexo, com tecido social diversificado e um patrimônio cultural expressivo. Trata-se de pesquisa articulada a operações que abarcam ações participativas a partir de três eixos: projeto urbano para requalificação do bairro; plano de coesão sociocultural sustentável; programa de valorização do patrimônio cultural. Envolve várias instituições, como a prefeitura e a Universidade de Roma, além de diversos profissionais, entre eles, Petraroia e Salvo. O projeto está fundamentado no conhecimento - e também no reconhecimento - construído de modo integrado e partilhado do patrimônio cultural do bairro, com base em processo participativo. A reflexão de Brandi, por meio de temas como restauro preventivo e espaço, oferece instrumentos para ajudar a pensar o patrimônio urbano na atualidade em suas múltiplas complexidades, a partir de aproximação crítica que amplifica a problematização das questões envolvidas. Apesar de Brandi não enunciar processos participativos, eles não são incompatíveis com suas propostas, desde que isso seja feito de modo fundamentado.
Outro tópico de interesse diz respeito aos limites atribuídos à teoria brandiana em sua aplicabilidade para a arte contemporânea. Carlota Santabárbara fez uma análise comparativa das proposições para essas manifestações, explorando as contradições entre teoria e prática, com levantamento exaustivo de fontes: atas de eventos científicos especializados e textos sobre o tema publicados entre 1960 e 2014. A autora mostra a inadequação de tratar os critérios de Brandi como regras, algo que ocorre em muitas escolas de restauração.132 Pelo fato de a Teoria não ser nem um manual de procedimentos, nem divagações, mas um conjunto de proposições teóricas que devem dar suporte à prática, não refletir sobre aquilo que fundamenta os critérios resulta em confusão sobre variados temas, entre eles a diferença entre pátina e patologia, além de problemas relacionados à distinguibilidade da ação contemporânea.
Em exemplos citados por Santabárbara, a polêmica é que Brandi, ao exigir o respeito pela pátina e rechaçar a substituição de material histórico, é inadequado para a arte contemporânea, pois seria necessário manter, por exemplo, superfícies monocromáticas sujas ou com sinais de ataque biológico.133 A pátina, para Brandi, é conceito crítico, que documenta a passagem da obra no tempo, devendo ser conservada. Ela não é sujeira nem patologia, que devem ser tratadas e assim o foram nas intervenções do ICR. Basile, ao desenvolver um incansável trabalho de reflexão sobre o restauro de obras contemporâneas, coordenou projeto relacionado à coleção Burri em Città di Castello, que envolveu diversas instituições. Nas palavras de Paola Iazurlo, essa ação mostra o empenho de Basile em apresentar ao mundo da conservação o papel do ICR no tratamento da arte contemporânea e evidenciar a atualidade da Teoria como instrumento metodológico.134 Maria Grazia Castellano, responsável pela criação de um laboratório dedicado especificamente à arte contemporânea no ICR, redigiu o verbete sobre o tema na Enciclopedia Treccani. Nele, depois de expor a variedade dos problemas envolvidos, termina o texto reafirmando: “Fundamental é a referência a uma abordagem metodológica básica, que pode coincidir com os princípios teóricos da restauração aplicados ao antigo, validamente expressos na Teoria, de C. Brandi”.135
Decretar a Teoria como inaplicável à arte contemporânea seria negar a evidência de que foi e é aplicada no setor a partir de uma leitura ampliada dos preceitos brandianos.136 Isso não significa que essa seja a única abordagem, e tampouco que possa ser aplicada indistintamente e sem mediação crítica a qualquer tipo de manifestação.
Alguns restauradores citados por Santabárbara tomam, por exemplo, a autenticidade material como dogma (e não como princípio) e declaram inaplicável a Teoria em casos como a arte cinética, que requer substituições de peças que se desgastam. Acreditam também que a autenticidade material não é relevante em obras não executadas inteiramente pelos autores, como as de Richard Serra,137 e não levam em conta a aplicação dos princípios brandianos para a arquitetura, em que não é geralmente o arquiteto que constrói a obra com as próprias mãos e que, em processos de manutenção - nos quais não há cisão no tempo da percepção da obra como historicizada -, a substituição de elementos pelos mesmos materiais ou por semelhantes (telhas, calhas e tudo depende da apreciação crítica do papel da materialidade daquela parte para o organismo como um todo) não apenas é admissível, como é desejável.
Um dos autores reportados por Santabárbara é Heinz Althöfer. O restaurador e historiador da arte alemão foi diretor do Centro de Restauração de Düsseldorf e trabalhou pioneiramente com o tema de restauro de obras de arte modernas e contemporâneas a partir dos anos 1960. As manifestações podem ser estruturadas, segundo a visão de Althöfer,138 em três classes: as que são assimiláveis pelo material e pela própria relação com o fruidor às obras de arte “tradicionais”, que podem continuar a ser tratadas segundo preceitos consagrados de restauro; as que têm problemas tecnicamente inéditos, por utilizar materiais novos ou industrializados, cujo comportamento é pouco conhecido, e necessitam de aprofundamento específico, mas não alteram substancialmente o quadro teórico; e as que requerem uma espécie de cautela ideológica que articule as obras ao percurso mental do artista na tentativa de não desvirtuar esse percurso, a exemplo de performances, eat art etc. Se para as duas primeiras categorias é pertinente utilizar as propostas brandianas a partir de leitura crítica de sua formulação, para a terceira, Althöfer recomenda que seja feita a análise a partir de parâmetros mais amplos.
Para pensar, a partir de Brandi, questões de restauro para obras contemporâneas que mantêm outra relação com a materialidade (as que extrapolam as duas primeiras categorias citadas acima), é necessário entender aquilo que fundamenta suas proposições. Um dos aspectos centrais da Teoria está, como dito, na relação da obra de arte com sua materialidade: a diferenciação entre formas de manifestação artística que têm a matéria como meio ou como trâmite, como colocado pelo autor.139 Nas artes ditas plásticas, a matéria é o meio e a obra perdura no tempo e no espaço. Na poesia e na música, a matéria (o texto, a partitura, os instrumentos) serve de trâmite para a manifestação, que não perdura no tempo e no espaço. Muitas das manifestações artísticas contemporâneas ultrapassam limites antes existentes nas chamadas artes plásticas e se aproximam das artes performáticas. Pensar esses temas brandianamente significa indagar o papel da materialidade nessas manifestações - e isso vale para qualquer tipo de manifestação - e os problemas que isso coloca para o restauro. A Teoria não trata diretamente dessas obras contemporâneas, mas oferece elementos para a reflexão que podem ainda ser investigados na produção de Brandi sobre estética, como em Teoria generale della critica,140 que aborda as mais diversas manifestações da arte, como os happenings e o living theater. Cordaro faz essa articulação para enfrentar as questões do restauro da arte contemporânea, do cinema e do projeto arquitetônico.141
É sinal de inadequação teórica fazer com que obras que mantêm um tipo distinto de relação com a matéria sejam analisadas pela ótica de consequências operacionais da Teoria, em vez de examiná-las a partir de seus princípios. Segundo Brandi, o conceito de restauração deve articular-se “não com base nos procedimentos práticos que caracterizam a restauração de fato, mas com base no conceito da obra de arte de que recebe a qualificação”.142 Assim, qualquer comportamento em relação à obra de arte, inclusive o restauro, depende do reconhecimento, afirmando que é a obra de arte que condiciona a restauração e não o contrário. Desse modo, uma possível forma de abordagem dessas obras, segundo a Teoria, é que elas não devam passar pela ação prática de restauro.
Um autor que, a partir de Brandi, extrapola o raciocínio para refletir sobre a tutela de obras contemporâneas dessa natureza é Carboni. Ao reiterar que conservar significa selecionar, Carboni invoca argumentos brandianos para concluir que a ação de tutela deve salvaguardar o direito ao desaparecimento da obra, equiparando o debate público gerado pela obra ao restauro preventivo.143 Ele menciona os arquivos, que não são apenas lugares que acolhem os traços documentais, mas lugares sociais que buscam o equilíbrio entre acumulação e esquecimento, e afirma que isso permite considerar a discussão pública sobre a arte contemporânea como um modo de tutela, como lugar social coletivo em que o arquivo torna-se vivo e mantém a memória através do debate relacionado a essas manifestações.144 Desse modo, parte de referenciais brandianos e os extrapola para tratar de um problema sobre o qual Brandi não se manifestou. Isso não significa que Brandi concordaria com a enunciação de Carboni, mas mostra como um referencial teórico pode ser usado de modo legítimo - conjuntamente com a reflexão sobre outras proposições elaboradas de maneira fundamentada - para enfrentar temas não tratados diretamente nos textos que deram origem à proposta.
Outro tema a ser pontuado é o do restauro arquitetônico. Muitos afirmam que as proposições de Brandi são inaplicáveis para a arquitetura, deixando de considerar que, na Teoria, há diversos exemplos de arquitetura e de ambientes urbanos,145 algo também verificável no aparato iconográfico da primeira edição. Ademais, as formulações do autor foram experimentadas em obras como as de Franco Minissi, desde os anos 1950,146 e continuam a ser utilizadas em diversos casos recentes, como naqueles examinados por Carbonara.147 A afirmação de que as propostas da Teoria não são aplicáveis à arquitetura é feita em geral sem demonstrar o porquê. Claro está que há dificuldades na transposição de um instrumento teórico para a prática, qualquer que seja o tipo de manifestação artística. Alguém que lê a Teoria não consegue fazer um restauro pictórico de imediato por ela ser texto de fundamentação teórica, não um manual. Uma das ressalvas que se faz a Brandi é em razão da frase:
Mas, quando se tratar, ao contrário, de obra de arte, mesmo se entre as obras de arte haja algumas que possuam estruturalmente um objetivo funcional, como as obras de arquitetura e, em geral, os objetos da chamada arte aplicada, claro estará que o restabelecimento da funcionalidade, se entrar na intervenção de restauro, representará, definitivamente, só um lado secundário ou concomitante, e jamais o primário e fundamental que se refere à obra de arte como obra de arte.148
A partir dessa colocação, considera-se que a Teoria não é válida, pois o uso é essencial para a manutenção e sobrevivência de qualquer edifício.149 Porém, as questões funcionais da arquitetura são reconhecidas como fundamentais por Brandi: elas estão em momento preliminar da criação artística, schema no caso da arquitetura,150 e não surgem em momento posterior; ou seja, estão a montante, na parte fulcral do processo de concepção. No restauro, o uso está condicionado à definição de restauração e, por isso, deve ser entendido como o meio, importantíssimo, para preservar, e não a finalidade em si, de modo isolado, da intervenção. Considerar uso como meio ou como finalidade resulta em aproximações muito diferentes ao projeto.151 Causa estranhamento que a produção sobre Brandi e a arquitetura seja pouco mobilizada no Brasil uma vez que há décadas existem reflexões aprofundadas sobre essa questão.152
O tema do restauro arquitetônico segundo Brandi é explorado por Carbonara,153 que mostra como os princípios foram aplicados por Francesco Scoppola no restauro do Palacio Altemps, em Roma, e por Gisella Capponi na restauração do tempietto de Bramante, em São Pedro em Montorio, também em Roma; ou ainda em obras modernas, como o arranha-céu Pirelli, de Giò Ponti, cuja restauração foi coordenada por Petraroia, Maria Antonietta Crippa e Carbonara.154 Esses casos mostram como a interpretação fundamentada dos mesmos princípios, a partir de aproximação metodológica coerente, leva a repercussões operacionais diversas, em função do reconhecimento da obra, com sua materialidade e específica translação no tempo, seu estado atual, a natureza das transformações ou dos danos, e suas repercussões na imagem figurada. Isso leva a intervenções integradas que incluem mudança de uso, interpretação de estratificações históricas e inserção de novos elementos a partir da distinguibilidade da ação contemporânea - como no caso do Palazzo Altemps -, bem como a uma conservação estrita e tratamento de patologias - como no Tempietto -, ou ainda, a uma manutenção extraordinária - caso do Pirelli.
A aproximação crítica aos princípios de restauro e à natureza das transformações e patologias pode ser vista também no Brasil, como na produção de Vieira-de-Araújo155 e no restauro da sede do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), em São Paulo. Conduzida por Silvio Oksman156 em 2015, a proposta enfrenta de modo fundamentado e crítico temas como a consolidação estrutural, o escoamento de água pluvial e a impermeabilização no jardim do mezanino, assim como a pintura feita sobre o mural de concreto de Ubirajara Ribeiro. O exemplo mostra que a Teoria pode e deve ser mobilizada criticamente para enfrentar os problemas e desafios colocados pelo restauro da arquitetura, inclusive para a arquitetura moderna e artes integradas, como fez Varagnoli.157
O pensamento de Brandi é incindível para os diversos tipos de manifestação artística, o que inclui a arquitetura. O reconhecimento como dever, que implica o imperativo categórico da preservação estão afirmados na Teoria:
Esse dever que o reconhecimento da obra de arte impõe a quem a reconhece como tal, coloca-se como imperativo categórico, ao par do moral e, nesse próprio colocar-se como imperativo, determina a área da restauração preventiva como tutela, remoção de perigos, asseguramento de condições favoráveis. Mas, para que essas condições sejam efetivas e não permaneçam como petições abstratas, é necessário que a obra de arte seja examinada, em primeiro lugar, em relação à eficiência da imagem que nela se concretiza e, em segundo lugar, em relação ao estado de conservação das matérias de que é feita. Eis como essa indagação se coloca como metodologia filológica e científica, e somente a partir dela poderá ser esclarecida a autenticidade com a qual a imagem terá sido transmitida até nós e o estado de consistência da matéria de que é feita. Sem essa precisa indagação filológica e científica, nem a autenticidade da obra como tal poderá ser confirmada na reflexão, nem a obra estará assegurada, na sua consistência, para o futuro.158
Quem de fato entende suas propostas e tem domínio técnico-criativo, pode mobilizar os princípios para buscar respostas de qualidade, inclusive no campo da arquitetura e do urbanismo.159 Importante enfatizar, sempre, que não é a Teoria que toma as decisões, nem é ela quem projeta, mas ajuda a aprofundar a problematização das questões envolvidas e, assim, oferece elementos mais amplos para a tomada de decisão e para o projeto.
Contrariamente ao que muitos pensam, a visão de Brandi sobre a tutela - e sobre o âmbito de aplicabilidade da restauração - era muito alargada. Voltava-se não apenas a obras de arte em senso estrito-redutor, mas a obras que assumiram conotação cultural, fossem elas objetos isolados, ambientes urbanos, paisagens ou porções do território. Ou seja, era voltada aos bens culturais entendidos em sentido amplo. É possível utilizar a aproximação metodológica e os princípios enunciados na Teoria e ampliar sua abrangência até mesmo para objetos produzidos industrialmente que passaram a ser reconhecidos como bens culturais. Esse alargamento do âmbito da Teoria não tem por intuito de forçá-la a cumprir um papel ao qual não se presta, mas, ao contrário, é amplificar aquilo que está no próprio texto e no pensamento do autor. Isso não significa que esse seja o único modo plausível de abordar o restauro, mas é uma opção consistente que tem oferecido resultados relevantes há várias décadas e que, se trabalhada com rigor, oferece instrumentos para guiar as restaurações para o que é reconhecido como arte e para aquilo que arte não é, mas é bem cultural.
É necessário, porém, enfrentar o texto - em realidade, qualquer texto - sempre de modo crítico, assim como o próprio Brandi fazia com suas referências e com seu próprio pensamento, que jamais permaneceu inerte. Suas proposições se adensam e se tornam, ao mesmo tempo, mais abrangentes e mais precisas ao longo de sua carreira. É necessário também sempre analisar de modo crítico o campo e seus desdobramentos, assumindo as formulações sobre a restauração como um patrimônio comum que não pode ser desprezado nem engessado, caso contrário, corre-se o risco de desconexão da realidade e, com isso, de perda da capacidade de proposição.160
Além da aproximação crítica, é necessário enfatizar a pertinência de princípios. Ao analisar dois autores fundamentais sobre conservação e restauro no século XX - Alois Riegl e Brandi -, é possível verificar que ambos estabeleceram critérios claros para circunscrever e nortear a ação, sempre com respeito pela materialidade da obra como transformada pelo tempo: no caso de Riegl, o respeito pelo “valor de ancianidade”,161 no caso de Brandi, a consistência física e as instâncias estética e histórica. Por partir de concepções diversas sobre a história e sobre a arte e, portanto, de bases distintas para o restauro, seus respectivos critérios têm consequências operacionais diferentes. Ainda assim, do ponto de vista do método e dos princípios de intervenção, todos os bens são assimilados perante suas respectivas propostas. Não por acaso, ambos tiveram como formação inicial o direito: a necessidade de uma base deontológica para guiar a ação prática permeia suas respectivas carreiras.162
Brandi afirmou que a ação prática de restauro está para os princípios teóricos da restauração assim como a pena está para a norma jurídica.163 Na Teoria ele não se propõe a criar regras, nem um texto de lei. O que ele oferece são princípios para guiar a ação prática, afeitos a discussões de filosofia do direito e ética, para não recair no arbítrio. Esse tipo de construção é necessariamente intersubjetivo e vinculado a um dado presente histórico a partir de seus referenciais, e sujeito a constantes reavaliações críticas. É isso que faz com que a ação num bem cultural não seja nem meramente subjetiva nem arbitrária.
Com o alargamento do que passou a ser considerado bem de interesse cultural e das motivações de sua preservação, que de modo crescente incorporam aspectos memoriais e simbólicos, as proposições de Brandi não perdem a validade e têm sido aplicadas em restaurações e exploradas por diversos autores - alguns dos quais aqui mencionados -, sem descuidar jamais dos aspectos materiais e documentais, que são tratados de modo abrangente por se entender que questões memoriais e simbólicas estão associadas e deixam marcas na materialidade das obras em sua translação no tempo - “o tempo e o lugar da intervenção de restauro”.164 Materialidade que permite perceber um tempo alargado e é importante antídoto contra o presentismo que assola o mundo contemporâneo.
O problema de viver de modo achatado num imediatismo excruciante e a consequente perda da percepção de um tempo que se estende são tratados por diversos autores nas últimas décadas. Esse problema inviabiliza uma visão abrangente do próprio presente e, por conseguinte, a formulação de um projeto de futuro. Isso foi apontado, por exemplo, por Ulpiano Bezerra de Meneses,165 que alertou sobre os perigos dos extremos: tanto do excesso de memória quanto da falta dela. Marc Augé, lembra que necessitamos do passado e do futuro para sermos contemporâneos, pois vivenciamos um presente não mais “oriundo de lenta maturação do passado, […], mas [que] impõe-se como um fato consumado, opressor, cujo surgimento repentino escamoteia o passado e satura a imaginação do futuro”.166 Alterações e destruições injustificadas de obras ou do ambiente resulta em perda de referências, de dados para a reflexão e de ancoragem numa realidade, implicando uma existência achatada no presente que pode gerar, como enfatiza Salvatore Settis,167 ansiedade, patologias sociais e dificuldades em planejar o futuro. François Hartog, por sua vez, afirma que o presentismo “canibaliza as categorias do passado e do futuro” e “que não mais acredita na história, mas se remete à memória, que é, em suma, uma extensão do presente em direção ao passado […] mas sem abertura para o futuro”.168
Pautar a preservação, sobretudo nas formas de apreensão do presente, em detrimento dos aspectos documentais e formais, reduz o tratamento dos bens culturais às vicissitudes de um dado momento. Do ponto de vista do método, não precisa ter compromisso com a longa duração que, ao ser desconsiderada, coloca em risco uma função essencial dos bens culturais: a de ancoragem no espaço e no tempo, algo com implicações éticas relevantes também em outros domínios, como nas discussões sobre sustentabilidade, ambiente e equidade intergeracional. O achatamento no presente resulta na deformação de documentos históricos, que são portadores de conhecimento e de aspectos simbólicos, suportes da memória coletiva e parte da formação de identidades - processos necessariamente longos - e isso gera problemas para os indivíduos e para a coletividade. Daí a insistência de diversos autores contemporâneos no respeito pelo documento como transladado no tempo. Essa afirmação não visa a menosprezar as formas de apreensão das obras pelo presente, mas mostrar que os princípios da restauração ajudam a entender como os distintos fatores se consubstanciam na materialidade e na configuração da obra transladada no tempo, assegurando que formas de apreensão, novos usos, questões socioeconômicas e políticas sejam levadas em conta através do respeito pelos aspectos materiais, de conformação e documentais, pois isso tem implicações para questões de identidade, memória e qualidade de vida.169
Uma ação de restauro, porém, incide necessariamente na obra e altera sua realidade e seu destino, e assume para si a tarefa de prefigurar,170 controlar e justificar essas alterações. Também decorre disso a necessidade de refletir sobre método e princípios. O tempo não é apenas transcendental, ele deixa traços na obra que têm forma e que permitem perceber a matéria que persiste no tempo e os diversos sentidos a ela associados. São as razões que levam a preservar, que repercutem nos princípios do restauro, as que devem orientar a solução de conflitos que sempre existiram e sempre existirão.
Desqualificar a discussão teórica sobre a restauração - cujo intuito é problematizar as questões envolvidas e não oferecer respostas fáceis para questões complexas - e depreciar princípios é deixar de estabelecer a base de discussão para encaminhar a solução de conflitos, pois soluções pertinentes à restauração não são nem nunca serão uma média apaziguada da soma de fatores isolados. Sempre persistirá uma tensão intrínseca ao processo.
Brandi oferece instrumentos de reflexão essenciais para o enfrentamento desses temas - e não apenas para a obra de arte em senso estrito - pois instiga a indagar criticamente o papel da materialidade nos mais diversos tipos de manifestação cultural, em suas articulações com as instâncias estética e histórica.
Aquilo que emerge de Brandi, como autor e profissional, é alguém de talento, inteligência, sensibilidade e capacidade extremas. Alguém que decidiu, ao longo de sua vida, centrar esforços naquilo que os seres humanos produzem de mais transgressor e prospectivo, a arte,171 em suas diversas expressões como forma, até mesmo de resistência, e de manter a esperança na humanidade. Brandi nos presenteou, com competência e generosidade ímpares, instrumentos teórico-críticos potentíssimos e complexos, que devem, sempre, ser usados de modo crítico, jamais redutor. É imperativo saber usufruir desses instrumentos de modo informado e competente.
A autora agradece a Pedro Augusto Vieira Santos pela paciente revisão do texto e pelas inestimáveis sugestões. Agradece também ao CNPq pelo financiamento da pesquisa (Bolsa de Produtividade em Pesquisa).