RESUMO: Este artigo aborda aspectos biográficos de Rodrigo Melo Franco de Andrade relativos ao período anterior a sua atuação à frente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), iniciado em 1936. Justifica-se a abordagem proposta em função da existência de numerosas lacunas relativas à trajetória de Rodrigo no período em questão, consideradas relevantes para entender as razões de sua indicação ao cargo de primeiro diretor do órgão. Os resultados da pesquisa apontam a importância do lastro cultural e político da família Melo Franco e seu forte engajamento na Revolução de 1930, como decisivos nesta indicação, bem como sua associação com o jornalista Assis Chateaubriand, que colocou suas empresas jornalísticas a serviço de Vargas. A par de suas qualidades pessoais e intelectuais, tais aspectos foram decisivos para que Rodrigo assumisse a posição de diretor do Sphan, que hoje se afigura predestinada, a despeito de seu alheamento em relação à problemática da preservação do patrimônio até então.
PALAVRAS-CHAVE: Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sphan, Biografia, Preservação do patrimônio.
ABSTRACT: The article discusses biographical aspects of Rodrigo Melo Franco de Andrade related to the period prior to his position as head of Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), which began in 1936. The proposed approach is justified in view of the existence of numerous gaps related to Rodrigo’s trajectory in the period in question, which are relevant to understand the reasons for his appointment to the position of first director of the institution. The results of the research point to the importance of the cultural and political weight of the Melo Franco family, and its strong engagement in the Revolution of 1930, as decisive in this indication, as well as its association with the journalist Assis Chateaubriand, who put his journalistic enterprises at Vargas’ service. These aspects were decisive for Rodrigo’s indication to assume the position of director of Sphan, which seems predestined today, despite his alienation in relation to heritage preservation issues until then.
KEYWORDS: Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sphan, Biography, Heritage preservation.
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL
Antes do Sphan: notas biográficas sobre a trajetória de Rodrigo Melo Franco de Andrade nas décadas de 1920 e 1930
Before Sphan: Biographical notes on the trajectory of Rodrigo Melo Franco de Andrade in the 1920s and 1930s
Recepção: 24 Fevereiro 2023
Aprovação: 30 Junho 2023
Este trabalho analisa alguns aspectos biográficos relativos a uma das personagens mais importantes da década de 1930 na área cultural: Rodrigo Melo Franco de Andrade (RMFA),2 o primeiro diretor do primeiro órgão brasileiro de preservação do patrimônio: o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), cargo que ocupou de 1936 até 1967.
De fato, na década de 1930, o tema da preservação do patrimônio brasileiro - inserido num projeto estratégico de mobilização social que, apoiado na temática da identidade nacional, emergente desde a década de 1920, visava o fortalecimento da noção de nacionalidade - passou a atrair a atenção do governo revolucionário, consubstanciando-se num conjunto de medidas que culminou na criação do Sphan, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),3 dirigido por RMFA.
É certo que os trabalhos, atividades e a produção diversificada de Rodrigo foram objeto de coletâneas muito conhecidas e úteis, como Rodrigo e seus tempos (1986) e Rodrigo e o Sphan (1987), publicadas pelo próprio Iphan, bem como A lição de Rodrigo, homenagem prestada ao “servidor público exemplar” pelos colegas e amigos do 1º Distrito da então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN),4 por ocasião de sua aposentadoria da instituição que chefiara desde 1936. Todos esses trabalhos destacam, compreensivelmente, a figura do escritor, do intelectual, do homem público e, sobretudo, a enorme contribuição de Rodrigo à frente do órgão.
No entanto, pesquisas mais recentes têm evidenciado a importância de outros aspectos biográficos relativos ao diretor do Iphan que ganham relevância para olhares mais distanciados, no tempo e no espaço, do ilustre mineiro e da instituição que dirigiu.
Nosso esforço será, portanto, o de apresentar as “colocações e deslocamentos no espaço social” de Rodrigo Melo Franco de Andrade, e sua trajetória pelos “diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital” no campo político-cultural, no período em questão.5
Para tanto, faz-se necessário, inicialmente, apresentar aspectos genealógicos de nosso protagonista que não costumam ser realçados, mas que são essenciais para a compreensão de sua multifacetada biografia. Pelo mesmo motivo, foi necessário utilizar intensamente periódicos de época como fontes de dados objetivos. Não se trata, portanto, de um balanço crítico do tema, nem de síntese historiográfica sistemática, mas de um esforço inicial de reunião e contextualização de informações de natureza factual capazes de lançar luz sobre uma figura incontornável da década de 1930.
“Mineiro de quatro costados”, como afirmou seu amigo Alceu de Amoroso Lima,6 Rodrigo Melo Franco de Andrade era “a afortunada resultante de duas estirpes, ambas altas, vigorosas e puras”, como Abgar Renault7 descreveu sua árvore genealógica, constituída por duas das mais destacadas famílias mineiras do período - os Andrade e os Melo Franco. Ambas teriam marcado profundamente a personalidade de Rodrigo, que, diante das adversidades da vida, sabia “sorrir como um andrade e rir como um Melo Franco”.8
Tais palavras justificam a relevância de iniciar este artigo por algumas informações biográficas indispensáveis para a compreensão da trajetória de Rodrigo Melo Franco de Andrade, a começar pelo lado paterno, que tem como figura emblemática seu bisavô, Rodrigo José Ferreira Bretas.
São relativamente escassos os dados sobre a família Andrade, à qual pertencia Rodrigo Bretas de Andrade, o pai de Rodrigo Melo Franco de Andrade. As poucas informações disponíveis evidenciam que seus membros sempre participaram do ambiente político mineiro. Porém, do ponto de vista cultural, uma figura se destaca por sua afinidade com a futura carreira de RMFA no Sphan: seu bisavô, Rodrigo José Ferreira Bretas, conhecido como o primeiro biógrafo do Aleijadinho. Ferreira Bretas era pai de Iselinda Bretas de Andrade, de cujo casamento com Carlos Calixto de Andrade nasceria Rodrigo Bretas de Andrade, pai de RMFA.
Nascido em Cachoeira do Campo em 1814, Rodrigo José Ferreira Bretas casou-se em 1845 com Maria Cândida de Souza Maciel, com quem teve quatro filhos - dentre os quais Iselinda, avó de RMFA pelo lado materno.9 A carreira de Bretas dividiu-se entre o ensino, o direito e a carreira política - e seus principais interesses parecem estar relacionados à atividade docente:
Rodrigo José Ferreira Bretas surge da vasta documentação recolhida como um servidor excepcional da causa da instrução em MG. Conquanto possuísse aptidões invulgares para exercer atividades e distinguir-se em outros domínios, ele devotou àquela causa a maior parte de sua vida. Trabalhador severo e infatigável, a competência e a circunspecção o elevaram aos postos mais eminentes no setor educativo da administração da Província, grangeando-lhe também um mandato de deputado à Assembleia Legislativa, que exerceu sobretudo em proveito da mesma causa.10
Dedicou-se também a atividades mais práticas, como o desenvolvimento de um tear automático, para cuja construção chegou a contar com auxílio financeiro por parte do imperador d. Pedro II, que também o agraciou com a Ordem da Rosa.
Mas, a despeito de sua atuante carreira em tão diversificadas atividades, Ferreira Bretas adquiriu notoriedade por ser o autor de uma biografia de Antônio Francisco Lisboa publicada anonimamente no Correio Oficial de Minas, em 1858.
Bretas parece ter se aproximado do Aleijadinho de maneira quase fortuita, por ter sido designado pelo governo de Minas Gerais para compor uma comissão encarregada de “coligir todas as tradições, e documentos relativos à história do Brasil, e que se encontram ou nos arquivos públicos, ou nos conventos, ou em poder de particulares”, proposta pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), então a principal instituição científica oitocentista brasileira, em 11 de julho de 1856.11
É possível que, para desincumbir-se da tarefa que lhe fora designada, Bretas tenha compulsado amplamente os documentos existentes nos arquivos municipais e provinciais de Minas Gerais, chegando assim a localizar
na Câmara de Mariana o códice que continha a preciosa “memória” do vereador Joaquim José da Silva sobre a evolução das artes plásticas em Minas Gerais,12 “memória” essa em que a superioridade da obra de Antônio Francisco Lisboa era assinalada com destaque singular, elucidando fatos da formação do artista e de sua própria enfermidade.
Tal documento teria inspirado o tema para o trabalho de Bretas.13
Além das informações contidas neste precioso documento, Bretas contou com colaborações de pessoas que tinham chegado a conhecer o Aleijadinho em vida, como a nora do artista, Joana de Araújo Corrêa.14 Resultou daí o já mencionado artigo do Correio de Minas, intitulado “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa - distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho”, publicado sem indicação de autoria. A qualidade do trabalho atraiu a atenção do IHGB, e possibilitou que seu autor se tornasse sócio correspondente do próprio Instituto, uma importante honraria científica então. Consta que o IHGB também se dispôs a publicar o artigo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com a devida autoria assinalada; entretanto, isso não chegou a acontecer. Apenas em 1896 - isto é, quarenta anos depois de sua elaboração -, o trabalho veio a ser publicado, com a devida autoria, pela Revista do Arquivo Público Mineiro, alcançando a partir de então enorme fortuna crítica.15
A despeito de sua importante contribuição, pouco se sabia sobre a biografia do próprio Bretas até a publicação, pelo Centro de Estudos Mineiros da UFMG e por iniciativa de RMFA, da informação biográfica Rodrigo José Ferreira Bretas, biógrafo do Aleijadinho, em 1968. O trabalho foi elaborado por Cássio Lanari, “pesquisador arguto dos arquivos mineiros […] que já tinha feito a abordagem do assunto para fins de genealogia”, e que aceitou a incumbência “com interesse especial, derivado de ser o escopo do trabalho a documentação sobre seu próprio bisavô materno”, como escreveu Rodrigo no prefácio da obra - omitindo o fato de que também ele, Rodrigo, era bisneto de Bretas, e que a própria encomenda do trabalho fora iniciativa sua.16
Tal encomenda foi justificada visando “tirar da obscuridade” o responsável pela divulgação da obra do escultor mineiro, por ocasião do centenário da sua morte, “em face do interesse cada vez maior suscitado no país e no estrangeiro pela figura e obra de Antônio Francisco Lisboa”.17
Na verdade, boa parte do mencionado interesse pela figura do Aleijadinho fora suscitada pela atenção a ele dedicada pelo próprio Iphan - que, sob a direção de RMFA, estava empenhado na realização de estudos sistemáticos não apenas sobre as qualidades plásticas de sua obra, como também sobre a comprovação de autoria dela - autoria essa que vinha sendo objeto de forte questionamento.
Num tal contexto, a diligente pesquisa realizada por Lanari forneceu o devido lastro documental necessário para dirimir as polêmicas em curso - algo que a publicação do estudo de Bretas pelo Iphan, em 1951, não fora capaz de fazer, a despeito dos estudos subsidiários ali incluídos.18
Rodrigo Bretas de Andrade era filho de Carlos Calixto de Andrade, e Iselinda Bretas de Andrade, filha de Rodrigo José Ferreira Bretas. Pouco se sabe sobre seus pais - os avós de Rodrigo Melo Franco de Andrade -, apenas que Carlos faleceu muito moço e que sua viúva Iselinda se casou em segundas núpcias com Ovidio João Paulo de Andrade.
Rodrigo Bretas de Andrade, nascido em Ouro Preto em 1871, formou-se em Direito na Faculdade de Direito de São Paulo em 1891, com 20 anos. Recém-formado, foi nomeado Secretário de Polícia de Minas Gerais, exonerando-se do cargo para concorrer, com sucesso, à eleição de deputado ao Congresso Mineiro em 1894. Em 1896, passou a lecionar na Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, estabelecimento de ensino fundado em 1892 com forte participação da família Melo Franco,19 onde se tornou catedrático de Direito Criminal. No mesmo ano de 1896, foi nomeado Procurador da República em Minas Gerais, cargo que exerceu até o seu falecimento. Em 1897, casou-se com Dália de Melo Franco, filha de Ana Leopoldina e do senador Virgílio de Melo Franco.
Tais informações constam do “Necrológio” escrito em sua homenagem, publicado na Revista da Faculdade Livre de Direito do Estado de Minas Gerais, que menciona seus pendores literários, tão apreciados “pelos cultores das nossas letras”, e lamenta “o falecimento do jovem e talentoso lente” em 1901, aos trinta anos de idade.20 Curiosamente, entretanto, o texto não traz qualquer informação sobre seus pais, Iselinda e Carlos Calixto, nem sobre seu avô materno Rodrigo José Ferreira Bretas, autor da mencionada biografia do Aleijadinho publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro cinco anos antes, em 1896.
A omissão, no necrológio de Rodrigo Bretas de Andrade, da pesquisa realizada por seu avô parece indicar que o assunto despertava pouco interesse naquele meio, no alvorecer do século XX.21 Décadas mais tarde, porém, tal trabalho pareceu conferir uma aura de predestinação ao jovem RMFA, que tanto iria se ocupar do artista mineiro em sua futura carreira no patrimônio.
Se são relativamente escassas as informações sobre o lado paterno de RMFA, o mesmo não se pode dizer da família Melo Franco, cujas raízes remontam ao comerciante português João de Melo Franco, que fez fortuna através da mineração e da criação de gado na região de Paracatu, MG, onde se estabeleceu. Entre seus filhos, destaca-se o nome de Francisco de Melo Franco (1757-1822), “autor do primeiro tratado de higiene em língua portuguesa”.22 Francisco estudou medicina em Coimbra e, além de autor do tratado mencionado, foi escolhido para acompanhar a vinda da princesa D. Leopoldina ao Brasil, em 1817, como seu médico particular.23 Assim, Francisco de Melo Franco gozava de grande prestígio junto à corte portuguesa.
Como se vê, a família de Dália situava-se nas mais altas elites políticas e intelectuais mineiras, aspecto pouco realçado nos trabalhos a respeito de RMFA. Seu pai, Virgílio Martins de Melo Franco (1839-1922), era filho de Antônia Maria de Melo Franco (1813-1879), neta de João de Melo Franco e casada com José Martins Ferreira (nascido em 1808), ambos oriundos de Paracatu.24 Virgílio, que era membro do IHGB desde 1888, seguiu destacada carreira política: foi deputado provincial no Império e senador estadual em Minas Gerais entre 1892 e 1923.
Sua mãe, Ana de Melo Franco, era
um dos espíritos mais interessantes que produziu a velha cultura mineira. Afrânio Peixoto [...] costumava relembrar nas rodas dos seus íntimos, os “raids” artísticos desse curioso espírito, que partia de Ouro Preto ou de Belo Horizonte, num noturno, e vinha até o Rio de Janeiro só para ouvir Réjane, Sarah Bernhardt, Coquelin ou Anatole France, e partir de madrugada de novo para o seu sertão.25
No entanto, há grande carência de informações sobre a própria Dália, que, tendo enviuvado cedo, foi apoiada por sua numerosa família. Sabe-se que, além de Rodrigo, teve uma filha, Vera, raramente citada.26 De seus sete irmãos,27 serão abordados aqui apenas os dois mais velhos, pelo papel central que assumiram na formação e na trajetória profissional de RMFA: o escritor regionalista Afonso Arinos de Melo Franco e o diplomata Afrânio de Melo Franco.
Tal como seu pai, Virgílio, o irmão mais velho de Dália formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, importante espaço de sociabilidade para as elites regionais.28 Durante seus estudos de graduação, entre 1884 e 1889, foi contemporâneo de Paulo Prado, futuro mecenas da Semana de 1922, e irmão de Antonieta da Silva Prado, com quem Afonso veio a se casar. Paulo e Antonieta eram filhos do Conselheiro Antônio Prado,29 oriundo de uma das mais ricas famílias paulistas e prefeito de São Paulo entre 1899 e 1911.
Afonso Arinos tinha tendências monarquistas, o que o aproximou do também monarquista Eduardo Prado, tio de Antonieta, a quem sucedeu na cadeira número 40 da Academia Brasileira de Letras, a partir de 1901. Assim, tanto por laços matrimoniais como por afinidades políticas, consolidava-se a ligação do poderoso clã Melo Franco com a não menos poderosa família Prado, de São Paulo.
Desiludido com o regime republicano, Arinos fixou residência em Ouro Preto - reduto de monarquistas à época -,30onde lecionou no Liceu Mineiro e na Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, da qual fora um dos fundadores. Mais tarde, veio a estabelecer residência em Paris.
Afonso Arinos não teve descendentes de seu casamento com Antonieta, o que pode explicar sua maior proximidade com o sobrinho Rodrigo, que perdera o pai aos três anos de idade, e a quem Arinos considerava como um filho. De fato, dos doze aos dezesseis anos, isto é, de 1910 a 1914, período em que frequentou o curso secundário no Licée Sailly, Rodrigo morou com os tios Arinos e Antonieta em Paris, onde teve oportunidade de conhecer “várias personalidades de realce das letras e da vida brasileira”, alguns dos quais estariam mais tarde ligados ao movimento modernista, como Flávio de Carvalho, seu colega no Liceu, e Graça Aranha,31 cuja participação na Semana de 1922 - evento patrocinado por Paulo Prado, cunhado de Afonso Arinos - seria decisiva para conferir legitimidade ao incipiente movimento. Também frequentava a casa parisiense de Afonso Arinos o jovem Alceu Amoroso Lima, que se tornou amigo próximo de RMFA e que, mais tarde, se tornaria crítico literário, acompanhando com interesse o emergente movimento modernista.32
No entanto, a atividade literária desenvolvida pelo próprio Afonso Arinos estava mais voltada para a cultura regionalista, manifestando grande interesse também por música popular e pelo samba - ritmo pouco valorizado naquele período -, e mantendo proximidade com músicos como Donga e Pixinguinha. Mesmo após sua mudança definitiva para Paris, Arinos continuou a fazer viagens regulares ao Brasil para coleta de material folclórico, que utilizava em seus livros e peças de teatro.33
A pluralidade de interesses - alguns bastante inusitados, à época - de Arinos era atribuída a D. Ana de Melo Franco, sua mãe: “era dela que o fulgurante sertanista herdou em grande parte aquela fina sensibilidade que o sagraria como uma das figuras admiráveis da nossa literatura. [...] Arinos herdara do sangue materno toda a rica poesia de que trazia inundada a alma”.34
Em 1915, Arinos apresentou um ciclo de conferências na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo intitulada “Lendas e tradições brasileiras”, nas quais tratou, entre outros assuntos, das festas tradicionais, “ilustradas por grupos genuínos trazidos do interior, que dançaram e cantaram temas do cateretê, reisados, pastoris, ranchos de reis, chegança, bumba-meu-boi, marujada”. O escritor paulista Mário de Andrade, que logo se tornaria figura central do modernismo brasileiro e, mais tarde, paladino da preservação do patrimônio brasileiro, junto ao Iphan, “acompanhou as palestras e, como fazia com todos os espetáculos que assistia, guardou os programas”.35
Cabe notar que este ciclo de palestras teve lugar um ano após a palestra “A Arte Tradicional no Brasil”, apresentada por Ricardo Severo na mesma Sociedade de Cultura Artística de São Paulo em julho de 1914, e que também impressionara fortemente Mário de Andrade, como é explícito em muitas de suas crônicas daquele período e também na correspondência trocada, anos depois, com o próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade.36
Em janeiro de 1916, durante sua viagem de retorno à França, Arinos adoeceu e teve que desembarcar às pressas em Barcelona, onde veio a falecer.37 Assim, não chegou a ver a montagem de uma de suas últimas obras - a peça de teatro O contratador de diamantes -, que seria encenada por iniciativa de sua viúva três anos mais tarde, no Teatro Municipal de São Paulo. O elenco era composto por amadores, escolhidos entre membros da elite cafeeira de São Paulo, e a cenografia ficou a cargo de José Wasth Rodrigues,38 pintor que “para isso foi especialmente a Diamantina”. Durante a peça, houve a apresentação de uma Congada, com “para mais de 100 pessoas [...], com elementos de Bragança, Atibaia e Juquery. [...]o espetáculo é uma perfeita reconstituição histórica da era colonial”.39
Após grande sucesso em São Paulo, a peça foi montada em 23 de maio de 1919 também no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cedido para tanto pelo então prefeito da capital federal, Paulo de Frontin.40 Os atores - os mesmos membros das elites paulistas - viajaram ao Rio em trens especiais, assim como os cenários elaborados por José Wasth Rodrigues.
Como se vê, a prestigiada figura de Afonso Arinos - muito próximo de Rodrigo, como já mencionado - era constantemente evocada; tanto sua abrangente cultura como suas redes de sociabilidade tiveram certamente importante papel na formação intelectual e futura atuação profissional de seu sobrinho Rodrigo.
Assim, Afonso Arinos constitui-se como figura-chave na formação de RMFA, e de seu interesse, compartilhado pelo grupo de intelectuais do qual fazia parte - com destaque para Mário de Andrade -, para com a temática da cultura brasileira. As afinidades culturais entre tio e sobrinho foram destacadas por Abgar Renault, que relacionou o “imenso serviço de guarda e conservação da fisionomia da autenticidade histórica e artística brasileira e, por meio dela, a defesa de uma longa tradição”, desempenhado por Rodrigo no Iphan, à figura de seu tio Arinos:
De resto, essa preservação de nosso melhor passado, que é um dos traços egrégios do vosso espírito, vós a trazeis no vosso sangue e filia-se às mesmas inspirações que nos deram Pelo Sertão, O Contratador de Diamantes, Lendas e Tradições e Histórias e Paisagens.41
Dentre os demais irmãos de Dália M. F. de Andrade, outro nome a mencionar, tanto por sua destacada carreira política e diplomática42 como pelo apoio que deu a RMFA, é o de Afrânio de Melo Franco, também graduado pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1891. Juntamente com seu irmão mais novo, João de Melo Franco, Afrânio estabeleceu um dos mais importantes escritórios de advocacia do Brasil, onde seu sobrinho RMFA trabalhou de forma intermitente entre 1927 e 1930. Afrânio foi deputado estadual em Minas Gerais de 1903 a 1906, e deputado federal com vários mandatos entre 1906 e 1929; foi também Ministro da Viação do governo Delfim Moreira, entre 1918 e 1919.
Chefiou a delegação do Brasil em dois eventos diplomáticos internacionais de relevo: em 1919, na primeira Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Washington; e, em 1923, na V Conferência Pan-Americana, no Chile, missão na qual Rodrigo o acompanhou na qualidade de secretário.43 Tornou-se embaixador permanente do Brasil junto à Liga das Nações de 1924 a 1926; mais tarde, entre 1930 a 1934, foi Ministro das Relações Exteriores do governo revolucionário, que apoiara decididamente.44 Assim, ao contrário de seu irmão mais velho, o monarquista Arinos, Afrânio integrou-se plenamente nos quadros republicanos, tanto antes como depois da Revolução de 1930.
Por outro lado, tal como Arinos, Afrânio também se ligou a outra importante família brasileira - desta vez, de cepa mineira -, através de seu casamento com Sílvia, filha de Cesário Alvim, presidente da província do Rio de Janeiro no Império; governador de Minas Gerais de 1889 a 1892; Ministro da Justiça da recém-instaurada República, em 1890, e prefeito do Distrito Federal de 1898 a 1900. Assim, ao capital político da família Melo Franco, veio somar-se o da família Alvim. Afrânio de M. F. Júnior, Afonso Arinos e Virgílio, frutos deste casamento, foram também personalidades de destaque na vida pública brasileira. Virgílio envolveu-se diretamente no desenrolar da Revolução de 1930; Afonso, além de partidário daquele movimento, era muito próximo do primo Rodrigo, inclusive nas lides patrimoniais, como se sabe.45
A inserção profissional e política de Afrânio teve repercussões importantes na carreira de seu sobrinho Rodrigo, cabendo destacar, aqui, suas relações de proximidade para com o advogado e jornalista paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo (1892-1968), cujo importante conglomerado de empresas de comunicação, que começou a ser constituído em meados da década de 1920, contou em seus primórdios com a participação de RMFA, como veremos adiante.
E assim chegamos ao nosso personagem principal: Rodrigo Melo Franco de Andrade, que, tendo ficado órfão de pai aos três anos de idade, cresceu muito próximo da família materna, especialmente de seus tios Afonso Arinos - em cuja casa parisiense chegou a residir, quando frequentou o curso secundário no Liceu Sailly, como já mencionado - e Afrânio, que muito o auxiliou no início de sua vida profissional. Como a maioria de seus tios, Rodrigo optou pelo curso de Direito, no qual, porém, seguiu um percurso acadêmico acidentado, devido a “constantes transferências de moradia”:46 cursou o primeiro e o quinto anos no Rio, onde se formou; o segundo e o quarto em Belo Horizonte, na Faculdade Livre de Direito fundada pela família, onde seu pai e vários de seus tios lecionaram; e cursou o terceiro ano em São Paulo.47 Com isso, acabou travando relações com membros de vários grupos intelectuais do período, que mais tarde se tornariam amigos e colaboradores. Assim, em Belo Horizonte, foi colega de Milton Campos, que viria a fazer parte do grupo modernista mineiro, o chamado Grupo Estrela.48 Em São Paulo, Rodrigo fez amizade com Oswald de Andrade e Ribeiro Couto, por meio de quem conheceu Manuel Bandeira, que se tornaria seu grande amigo.49 No Rio de Janeiro, aproximou-se de Álvaro Moreira,50 editor da revista Ilustração Brasileira, onde um de seus futuros colaboradores - Mário de Andrade - manteria a coluna De São Paulo, entre 1919 e 1921.51
Uma vez formado, Rodrigo ingressou no serviço público em 1919, como auxiliar do diretor da Inspetoria de Obras Contra as Secas, onde permaneceu por oito anos, até 1927.52
A partir de 1921, começou também a exercer atividades jornalísticas no jornal carioca O Dia, dirigido por Azevedo Amaral, Tristão da Cunha53 e por seu primo Virgílio de Melo Franco, onde se dedicou à crítica literária.54 Não compareceu à Semana de 1922 e, embora manifestasse certo interesse pela obra de Mário de Andrade, manteve inicialmente distância das novas ideias literárias vindas de São Paulo. Tudo indica que Rodrigo acompanhava a atitude cautelosa de seu amigo - e, de certa forma, mentor intelectual - Manuel Bandeira, em relação ao movimento modernista paulista:
Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados. Pouco me deve o movimento [modernista]; o que eu devo a ele é enorme. Não só por intermédio dele vim a tomar conhecimento da arte de vanguarda na Europa (da literatura e também das artes plásticas e da música), como me vi sempre estimulado pela aura de simpatia que me vinha do grupo paulista.55
Em 1924, Rodrigo publicou poemas no número inaugural da revista Estética, dirigida por Prudente de Morais Neto e Sérgio Buarque de Holanda,56 também interessados no movimento paulista. Sua aproximação com os modernistas de São Paulo, porém, só veio a intensificar-se a partir de 1926, quando assumiu a função de redator-chefe da Revista do Brasil,57 como veremos adiante.
Em dezembro de 1924, Rodrigo, então com 26 anos, recebeu o convite do famoso - e polêmico - jornalista Assis Chateaubriand58 para trabalhar como redator em O Jornal.59 A par das qualidades pessoais e profissionais de RMFA, é lícito supor que tal convite estivesse ligado às relações que Afrânio de Melo Franco, tio de Rodrigo pelo lado materno, mantinha com Chateaubriand desde o início da carreira do jornalista paraibano. Tais relações remontam a 1915, quando este, muito jovem ainda, concorrera a um concurso público para o cargo de professor na Faculdade de Direito de Recife. O concurso resultou no seu empate com outro candidato, Joaquim Pimenta, partidário do então governador de Pernambuco, Dantas Barreto. Ora, à época das eleições, o jornal Diário de Pernambuco, onde Chateaubriand trabalhava, tinha feito forte campanha contra Dantas Barreto, inimigo político do proprietário do jornal, Francisco Rosa.60 Embora o empate tenha sido decidido em favor de Chateaubriand, o resultado foi impugnado, gerando protestos das duas partes.
Devido às ligações de apadrinhamento político de ambos os candidatos, a disputa, de caráter eminentemente local, acabou repercutindo em âmbito nacional, sendo veiculada, com riqueza de detalhes, pela imprensa nacional61 - o que levou Chateaubriand a procurar apoio na capital federal, onde solicitou pareceres jurídicos em sua defesa a alguns dos mais eminentes advogados e juristas do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre os quais Afrânio de Melo Franco.62 A medida surtiu o efeito desejado, pois o presidente Venceslau Brás acabou decidindo em seu favor.63
O episódio não apenas resultou na confirmação de Chateaubriand no cargo, como também foi o início de sua notoriedade a nível nacional, além de possibilitar sua aproximação com Afrânio de Melo Franco, como se pode acompanhar através de notícias veiculadas pela imprensa. Uma delas informa que Chateaubriand, já na qualidade de “lente da Faculdade de Direito do Recife”, mandou rezar missas na Matriz de Santo Antônio daquela cidade quando do falecimento de Afonso Arinos, irmão mais velho de Afrânio.64
Além disso, Chateaubriand era presença constante em cerimônias de homenagem a Afrânio.65 Este, por sua vez, também retribuía essas gentilezas - como, por exemplo, convidando Chatô para assistir à já mencionada peça de Arinos, O contratador de diamantes, no Teatro Municipal de São Paulo.66
Tudo indica que Rodrigo, muito próximo de seu tio Afrânio, estava inserido neste quadro de afinidades pessoais entre Chateaubriand e os Melo Franco, pois tivera importante participação na coleta de fundos entre intelectuais e políticos mineiros para viabilizar a compra, justamente, de O Jornal, primeiro periódico do jornalista no Rio de Janeiro.67 Assim, quando passou a trabalhar com Chatô, Rodrigo já colaborava com o ativo (e muitas vezes controverso) paraibano.
Ademais, cabe lembrar que, além de suas próprias qualidades profissionais e pessoais, Rodrigo constituía, por vínculos de parentesco, uma conexão direta não só com as elites mineiras, mas também com as paulistas, por meio da poderosa família Prado. Essa conexão possibilitava precioso acesso aos bastidores da política de dois importantes estados brasileiros.
Tais fatores convergem para explicar o convite dirigido por Chateaubriand a Rodrigo M. F. de Andrade para trabalhar na redação de O Jornal em dezembro de 1924, que foi prontamente aceito.
Em 1925, outro membro da família Melo Franco - seu primo Virgílio, filho de Afrânio - passou a colaborar no periódico, publicando ensaios históricos sobre Diamantina,68 nos quais era lembrado como “discípulo e amigo de Afonso Arinos, o autor do Contratador de Diamantes”. Virgílio chegou a ser eleito diretor do periódico em janeiro de 1926, juntamente com Chateaubriand, mas, menos de um mês depois, renunciou ao cargo, sem mencionar qualquer justificativa para tanto.69
Contando com dois colaboradores da família Melo Franco em sua equipe, não é de admirar que O Jornal tenha dedicado um artigo em homenagem a D. Ana de Melo Franco, avó de RMFA e de Virgílio, falecida em dezembro de 1925.70
Tal relação de proximidade se consolida na segunda metade da década de 1920, quando os interesses políticos mais amplos, tanto de Chateaubriand como de Afrânio e de seus filhos, convergem no sentido de uma aproximação entre Getúlio Vargas e Antônio Carlos, governador de Minas Gerais. A relação perdura, e se torna ainda mais evidente na década de 1930, quando o peso político dos personagens em questão aumenta consideravelmente. Tal convergência de interesses não parece ter sido severamente atingida, ainda que sujeita a turbulências causadas pelo vai e vem político do tumultuado período.71
Em O Jornal, a despeito de seus já manifestos pendores literários, Rodrigo foi encarregado da coluna de política internacional, tarefa para a qual muito deve ter-lhe valido o envolvimento de sua família materna - e dele próprio, indiretamente - na política e na diplomacia brasileiras. Seu artigo “Euclides da Cunha visto por Gastão da Cunha (Notas de um Diário Inédito)”, que inaugurou sua colaboração no periódico, foi previamente anunciado como “uma fina e interessante página literária”, escrita por um “íntimo do diplomata mineiro”, evidenciando sua familiaridade com o meio diplomático.72
A crítica literária do periódico estava a cargo de Tristão de Ataíde - pseudônimo adotado pelo já mencionado intelectual católico Alceu Amoroso Lima, amigo de família do tio de Rodrigo, Afonso Arinos de Melo Franco, por quem nutria grande admiração e cuja casa em Paris visitara várias vezes. Amoroso Lima tornou-se também muito próximo de RMFA, apesar de ser cinco anos mais velho do que ele.73
Em sua coluna em O Jornal, muitos parentes e amigos de RMFA são citados por Amoroso Lima, como Afonso Arinos de Melo Franco (o filho de Afrânio), Prudente de Morais Neto e Sérgio Buarque de Holanda, fundadores da revista Estética, além do próprio Rodrigo, “que, nestas mesmas colunas, iniciou uma atividade crítica, parcial, como confessou, mas cheia de espírito e de facilidade”.74 E, de fato, Rodrigo assinou a coluna “Vida Literária” algumas vezes, ocupando-se de autores como Mário de Andrade, Austen Amaro e Aníbal Machado, entre outros.75 Também transparece em algumas de suas colunas a familiaridade existente entre ele e Rodrigo, e de ambos com a família do sogro do tio Afonso Arinos, o conselheiro Antônio Prado.76
Mas Rodrigo não permaneceu muito tempo junto à redação de O Jornal: em meados de 1926, assumiu a função de redator-chefe e de encarregado da correspondência da Revista do Brasil, que Chateaubriand adquirira de Monteiro Lobato em 1925.77
Em sua nova função, Rodrigo pôde finalmente dedicar-se a sua grande paixão: a literatura. Sob seu comando, o primeiro número da nova série da Revista do Brasil no Rio de Janeiro chegou às bancas em setembro de 1926,78 tornando-se um importante veículo de manifestação das novas ideias literárias e alinhando-se “entre os periódicos modernistas da época, como Terra Roxa e A Revista”.79 O próprio RMFA afirmou tê-la convertido “num órgão do Modernismo”, com o apoio de seus amigos Alcântara Machado, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais.80 No entanto, a nova diretriz editorial da Revista não logrou sucesso, e sua publicação foi interrompida, tendo durado apenas cerca de cinco meses.81
Em que pese o fracasso da tentativa, é certo que, nesse momento, RMFA já encarava com muito mais simpatia as propostas modernistas paulistas, como se pode constatar no artigo “Dois Livros de Mário de Andrade” que publicou em O Jornal em maio de 1927.82 Foi também em maio de 1927 que RMFA veio a conhecer Mário de Andrade pessoalmente, quando o escritor paulista foi ao Rio para embarcar para sua viagem à Amazônia.83
Ao mesmo tempo, Rodrigo continuava ganhando espaço nas empresas de Chateaubriand: ainda em 1927, assumiu o posto de presidente da Sociedade Anônima O JORNAL, em substituição ao senador Epitácio Pessoa;84 em 1929, passou a diretor do diário, juntamente com o próprio Chatô e Gabriel Loureiro Bernardes.85
Em 1928, ano em que se casou com Graciema Sá,86 RMFA passou a fazer parte da Empresa Gráfica O CRUZEIRO, sociedade anônima constituída por Chateaubriand com o objetivo de lançar a primeira revista semanal ilustrada de circulação nacional.87 Para tanto, o jornalista paraibano - que vinha imprimindo uma posição francamente pró-varguista a O Jornal - contou com a ajuda decisiva de Vargas, então Ministro das Finanças de Washington Luís, para amealhar os recursos necessários ao empreendimento.88
Tratava-se de um período de grandes iniciativas para Chatô, que, no mesmo ano de 1928, inaugurou, com grandes comemorações, as novas instalações do Diário da Noite, seu jornal vespertino em São Paulo.89 Importantes passos foram dados, portanto, por aquele “que, muito em breve, viria a ser o homem de imprensa mais rico e poderoso do país”.90 E RMFA era parte integrante de sua bem-sucedida trajetória.
É também a partir de 1928 - talvez coincidindo com a saída de Rodrigo de seu cargo na Inspetoria de Obras contra as Secas - que seu nome passa a comparecer em editais e outras peças jurídicas.91 E a partir de janeiro de 1929 começam a ser publicados regularmente anúncios da firma de advogados composta por Afrânio de Melo Franco, João de Melo Franco, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo M. F. de Andrade,92 que se repetirão até 1930.
O início da carreira de RMFA nas empresas de Chatô coincide com a emergência de um ambiente cultural menos refratário à valorização do patrimônio histórico e artístico brasileiro em geral, e mineiro em particular. Precursora desse contexto é a chamada “Viagem de Descoberta do Brasil” - a excursão às cidades históricas de Minas Gerais realizada por um grupo de modernistas paulistas, liderado por Mário de Andrade, ciceroneando o escritor franco suíço Blaise Cendrars, então em visita ao Brasil a convite de Paulo Prado, mecenas da Semana de 22 e irmão de Antonieta Prado, viúva de Afonso Arinos de Melo Franco, tio de RMFA.93
Realizada durante a Semana Santa de 1924, a viagem a Minas Gerais - e especialmente a obra do Aleijadinho - repercutiu profundamente no grupo paulista e seu convidado. De fato, tomado de particular encantamento pelo escultor mineiro, Cendrars manifestou seu propósito de escrever um livro a respeito. O propósito foi reiterado em 1926, quando o escritor mencionou o artigo de Rodrigo Ferreira Bretas sobre o Aleijadinho, de 1858, como base para o trabalho.94 A par de sugerir certa carência de bibliografia sobre o escultor mineiro, a inusitada referência bibliográfica suscita a pergunta: quem teria indicado o artigo de Bretas a Cendrars? Mário de Andrade, um dos primeiros interessados no barroco brasileiro? Ou Paulo Prado, grande amigo de Cendrars, e homem de grande cultura? O próprio RMFA poderia tê-lo feito, sendo bisneto de Bretas, sobrinho de Paulo Prado e grande interessado no movimento literário brasileiro então, o qual acompanhava na dupla condição de crítico e de autor eventual. No entanto, não foi encontrada nenhuma menção a qualquer contato entre Rodrigo e Cendrars, a despeito da notoriedade do escritor franco-suíço junto aos meios literários brasileiros.95
A par do interesse de Cendrars pelo Aleijadinho, a excursão dos paulistas a Minas Gerais parece ter resultado também em um alerta sobre o estado de abandono em que se encontrava boa parte do patrimônio mineiro, pois, em outubro do mesmo ano de 1924, o poeta e deputado Augusto de Lima apresentou um projeto de lei com o objetivo específico de impedir a saída do país de obras de arte tradicional brasileira - projeto esse que foi arquivado.96 Em julho de 1925, segue-se nova iniciativa - dessa vez, do próprio governador de Minas Gerais, Fernando de Mello Vianna, que, mostrando-se ciente da questão, montou uma comissão para estudar juridicamente o tema, da qual fazia parte também o próprio deputado Augusto de Lima.97
A iniciativa de Mello Vianna foi elogiada pelos membros do Grupo Estrela,98 que, tendo tomado contato com a literatura modernista paulista por meio do livro Paulicéia Desvairada, encontrara-se pessoalmente com Mário de Andrade em abril de 1924, durante sua passagem por Belo Horizonte, de retorno a São Paulo. Percebe-se, assim, que, para além da convergência de interesses literários, os mineiros também compartilhavam as preocupações preservacionistas esboçadas então pelos modernistas paulistas.99
Apesar da presença de um escritor famoso na Europa junto ao grupo paulista, a excursão a Minas Gerais não alcançou repercussão na imprensa nacional - pelo menos não na imprensa carioca, e muito menos em O Jornal.100 Da mesma forma, o interesse pelo patrimônio mineiro manifestado pelos intelectuais modernistas, tanto paulistas como mineiros - cujas manifestações literárias RMFA já acompanhava então - não parece ter sensibilizado o advogado mineiro.
Nenhuma peça jurídica tampouco chegou a prosperar como resultado da iniciativa de Mello Vianna em 1925. Porém, no ano seguinte, verifica-se nova iniciativa preservacionista, agora voltada especificamente ao patrimônio de Ouro Preto: a inusitada parceria entre Antônio Carlos, sucessor de Melo Vianna no governo de Minas, e o diretor do Museu Histórico Nacional (MHN), Gustavo Barroso, para a recuperação de várias obras públicas da cidade, entre 1926-1928.101 A atenção patrimonial assim dirigida a Ouro Preto, cidade natal de RMFA, coincide com a criação dos primeiros órgãos públicos relativos à preservação do patrimônio brasileiro: a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais da Bahia, em 1927, e a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais de Pernambuco, em 1928.
Em setembro de 1929, em plena crise política desencadeada pelo rompimento da aliança entre São Paulo e Minas Gerais,102 segue-se outra inusitada iniciativa voltada à preservação de Ouro Preto: a visita dos deputados gaúchos João Batista Luzardo e Joaquim Francisco de Assis Brasil à cidade, ciceroneados pelo primo de Rodrigo, o então deputado Virgílio de Melo Franco. Dessa visita resultou a proposta, apresentada menos de duas semanas depois por Luzardo à Câmara Municipal da cidade, de que fosse nomeada
uma comissão de 5 deputados para formularem um projeto de lei autorizando o governo federal, em acordo com os de Minas e Ouro Preto, identificar e preservar quaisquer sítios, monumentos ou edifícios existentes na cidade que fossem dignos, por alguma razão histórica ou estética, de serem considerados patrimônio da educação nacional.
Também foi proposta a criação de um conselho técnico composto por membros dos três níveis da administração pública, a quem caberia a identificação e preservação dos bens protegidos pela lei. Embora ambas as iniciativas tenham sido rejeitadas então pela Câmara, elas foram aprovadas na primeira reunião do Conselho Consultivo que substituiu o colegiado municipal após a Revolução de 1930, transformando-se então no Decreto Municipal nº 13, publicado em 19 de setembro de 1931.103
A esse respeito, cabe mencionar a relação de amizade existente entre Assis Brasil e Afrânio de Melo Franco, pai de Virgílio, bem como seu papel nas articulações para a decisiva aproximação entre o governador Antônio Carlos e Getúlio Vargas, nas quais o tema da preservação do patrimônio ouropretano teve o seu papel.104
O episódio - que ainda está a merecer estudos mais aprofundados - prenuncia a importância que a questão patrimonial assumiria na década de 1930, no âmbito do governo Vargas, e especialmente na trajetória profissional de RMFA. No entanto, naquele momento, o advogado e jornalista mineiro encontrava-se, ao que tudo indica, alheio a quaisquer iniciativas preservacionistas - mesmo aquelas envolvendo diretamente sua cidade natal.
Vitoriosa a Revolução de 1930, RMFA voltou à esfera pública, agora em nível federal, como chefe de gabinete do mineiro Francisco Campos, Ministro da Educação e Saúde Pública de Vargas.105 A passagem de ambos pelo ministério foi curta: Francisco Campos permaneceu no cargo até 16 de setembro de 1932, quando foi substituído pelo médico Washington Ferreira Pires, o qual, por sua vez, foi substituído por Gustavo Capanema em 25 de julho de 1934. Já Rodrigo permaneceu apenas cinco meses como chefe de gabinete de Francisco Campos, sem que se saibam os motivos pelos quais deixou o posto.106 Neste curto período, engajou-se fortemente na primeira iniciativa de Campos: a realização de uma grande reforma do ensino universitário, amplamente noticiada pela imprensa.
A reforma se consubstanciou no Decreto nº 19.852, de 11 de abril de 1931, o Estatuto das Universidades Brasileiras - que, entre outras atribuições menos importantes, criava uma estrutura institucional baseada em órgãos colegiados: o Conselho Universitário e os Conselhos Técnicos e Administrativos. O Decreto também ampliava a Universidade do Rio de Janeiro,107 com a inclusão da Escola de Belas Artes e do Instituto Nacional de Música, e até mesmo da Escola de Minas, localizada em Ouro Preto.
Como chefe de gabinete, Rodrigo estava no centro das articulações em curso, e de sua divulgação pela imprensa. Nessa posição, protagonizou um episódio que costuma ser saudado como um verdadeiro “divisor de águas” na história da arquitetura brasileira: o convite de Francisco Campos, feito em 8 de dezembro de 1930 - cerca de um mês, portanto, após a deflagração da Revolução de 1930, em 3 de novembro -, para que Lucio Costa ocupasse a diretoria da Escola Nacional de Belas Artes (Enba), no bojo da reforma universitária que seria a principal realização do Ministro. A indicação de Lucio teria partido do próprio RMFA, por sugestão de Manuel Bandeira, segundo Paulo Santos.108
Nessa ocasião, Rodrigo também teria sugerido a Francisco Campos o nome de Mário de Andrade para reorganizar o curso do Instituto de Música, conforme suas próprias palavras, vinte anos depois:
Quando, em 1930, exerci o cargo de chefe de gabinete do ministro da Educação, trabalhei no sentido da convocação de importantes figuras do modernismo brasileiro para que trabalhassem visando o problema cultural e educacional. Assim é que Mário de Andrade foi convocado, e a ele se deve a reforma do ensino de música no Brasil, como a Lucio Costa a reforma do ensino de Belas Artes.109
RMFA acompanhava as atividades de Mário de Andrade através de Ribeiro Couto - seu ex-colega de faculdade - e de Manuel Bandeira, amigos comuns a ambos. Assim, sabia que o escritor paulista era também professor de música no Conservatório Musical de São Paulo, o que justificaria sua indicação para o Instituto Nacional de Música - posição que Mário não chegou a assumir de fato.110
Quanto a Lucio, o próprio Rodrigo afirmou, anos mais tarde, que não o conhecia pessoalmente então, e que seu convite “apoiava-se unicamente na admiração que sempre [lhe] inspirara a sua obra de arquiteto”.111
Ora, em 1930 - quando Lucio recebeu o convite para assumir a direção da Escola de Belas Artes -, um dos mais recentes exemplos de sua obra arquitetônica era o projeto com que concorrera ao concurso para a nova sede da Embaixada Argentina no Rio de Janeiro, realizado em 1928. Na verdade, tratava-se de dois projetos: um em estilo “renascença espanhola”, que obteve o primeiro lugar, e outro em estilo “renascimento italiano”, que ficou em segundo. Em entrevista a O Jornal, justificando a opção projetual pelo estilo “renascença espanhola”, com que obtivera o primeiro lugar,112 Lucio manifestou dúvidas e desconfianças sobre as novas tendências arquitetônicas europeias:
Finalmente, os estilos francamente modernos - como tive ocasião de ver ultimamente na Europa muita coisa interessante - são, mesmo quando adaptados com moderação às ideias de Le Corbusier, arriscados. Pode ser gosto do momento, questão de moda, parecer amanhã ridículo, extravagante, intolerável, como por exemplo hoje nos parece o “art-nouveau” de 1900. E assim pareceu-me pouco prudente aplicá-lo a uma construção de caráter definitivo, um edifício que precisa estar bem não só hoje, mas amanhã e sempre.
É possível que a repercussão alcançada pelo projeto para a Embaixada Argentina tenha ensejado o convite feito a Lucio Costa para colaborar no número especial de O Jornal dedicado a Minas Gerais, publicado em 1929. Daí resultou o artigo “O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional”, no qual, amparado em argumentos defendidos por José Mariano Filho,113 Lucio exaltava aquilo que é essencial na arquitetura colonial brasileira - o “verdadeiro espírito de nossa gente” - em detrimento do excessivo decorativismo que atribuía ao artista mineiro. Para ressaltar o caráter coletivo da arquitetura colonial, premissa básica do ideário neocolonial, manifestou reservas quanto ao mérito do famoso artista mineiro, afirmando:
A nossa arquitetura é robusta, forte, maciça, e tudo o que [Aleijadinho] fez foi magro, delicado, fino, quase medalha. A nossa arquitetura é de linhas calmas, tranquilas, e tudo o que ele deixou é torturado e nervoso. Tudo nela é estável, severo, simples, nada pernóstico. Nele tudo instável, rico, complicado, e um pouco precioso.114
Estas palavras guardam grande proximidade com a posição de José Mariano Filho, que costumava destacar que “as qualidades essenciais da arquitetura nacional, sua serenidade, a robustez de seus atributos, a severidade de suas linhas, a harmonia de seus elementos estruturais, não dependem absolutamente da intervenção de qualquer requisito de caráter decorativo”.115
Assim, paradoxalmente, a enfática concordância de Lucio com José Mariano Filho neste aspecto chega a prejudicar seu reconhecimento da qualidade e da originalidade da obra de Aleijadinho.116
Tanto sua participação vitoriosa no concurso da Embaixada Argentina quanto seu artigo sobre o Aleijadinho são destacados na notícia relativa à sua nomeação para a diretoria da Escola de Belas Artes, também publicada no periódico:
Moço de 28 para 29 anos, fez o seu curso de humanidades na Europa, com raro brilhantismo. Formado em arquitetura, concorreu com sucesso ao concurso de fachada da Embaixada Argentina. [...] O Sr. Lucio Costa é autor de um interessantíssimo estudo sobre a arte de Aleijadinho, publicado na edição especial d’O Jornal, dedicada ao Estado de Minas Gerais.117
É lícito supor, portanto, que tais credenciais - que não se aplicam a uma “figura do modernismo brasileiro”, na acepção corrente do termo - constituem a justificativa do convite dirigido por RMFA a Lucio Costa para a diretoria da ENBA, em 1930.
De resto, tais credenciais estariam de acordo com as preferências arquitetônicas do próprio Ministro da Educação, Francisco Campos, que escolhera o estilo neocolonial para sua própria residência: uma “casa branca, aberta em arcaria jesuítica, sobre o mar distante, que o poeta mineiro construiu para sua alma brasileira”, conforme as palavras de José Mariano Filho.118 Ademais, cabe mencionar que, na década de 1920, Campos estivera ligado ao movimento pela reforma do ensino conhecido por Escola Nova, que se concretizou arquitetonicamente através do estilo neocolonial.119
Por outro lado, o próprio Lucio Costa nada manifestara até então sobre quaisquer mudanças que, à luz dos acontecimentos posteriores, podemos supor em curso em seu pensamento. Assim, o próprio RMFA deve ter se surpreendido quando, poucos dias após ser empossado na direção da Enba, Lucio manifestou publicamente, pela primeira vez, sua famosa autocrítica: “fazemos cenografia, estilo, arqueologia, fazemos casas espanholas de terceira mão, miniaturas de castelos medievais, falsos coloniais, tudo, menos arquitetura”.120
Tal manifestação foi seguida pela introdução de mudanças nos cursos da escola, num sentido bastante diverso daquele que caracterizava sua postura profissional até então - e que resultaram na sua sumária destituição da diretoria, em setembro de 1931. De fato, Lucio logo procedeu à contratação, como professores da Enba, do arquiteto russo Gregori Warchavchik, do arquiteto alemão Alexander Buddeus, do pintor Leo Putz e do escultor Celso Antônio - todos de orientação diversa daquela predominante no corpo docente da instituição.121
Tais mudanças tiveram lugar a partir de abril de 1931, momento em que RMFA estava deixando seu cargo no ministério. Assim, quando, em setembro do mesmo ano, Lucio foi sumariamente destituído do cargo de Diretor da Enba, Rodrigo não mais pertencia ao gabinete de Francisco Campos. Mesmo assim, não se furtou a comentar o acontecimento a partir do âmbito estritamente jurídico: Rodrigo foi taxativo ao afirmar que não havia motivos jurídicos para a destituição do arquiteto, cuja situação “era absolutamente idêntica à de qualquer outro diretor de instituto universitário que, nomeado de acordo com as disposições da legislação anterior, só perderia o mandato no momento em que este expirasse ou quando deixou de merecer a confiança do governo”.122 Tal conclusão - aparentemente óbvia, mas formulada de forma sub-reptícia -, evidencia a experiência e o talento de RMFA no trato de questões delicadas do ponto de vista institucional.
As escassas informações relativas ao período subsequente à discreta saída de RMFA do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp) mencionam sua contratação, pouco depois, como chefe de gabinete do Secretário de Viação da Prefeitura do Distrito Federal, Mário Machado - cargo que também ocupou por pouco tempo,123 logo reassumindo suas funções no escritório de advocacia de seus tios Afrânio e João, conforme anúncios publicados regularmente na imprensa. Assim, sua passagem pela administração pública, neste ano de 1931, caracterizou-se pela brevidade, em contraste com sua futura carreira junto ao Sphan.
É oportuno mencionar que, no âmbito do Mesp, a partir de 1933 - já no mandato do sucessor de Francisco Campos, Washington Pires -, começam a vingar as primeiras iniciativas preservacionistas em nível federal do governo Vargas: a elevação da cidade de Ouro Preto a Monumento Nacional, em 12 de julho de 1933, e a criação do Serviço de Inspeção dos Monumentos Nacionais, no âmbito da reorganização da estrutura do MHN, através do Decreto nº 24.735 de 14 julho de 1934. Portanto, a partir de então, a defesa do patrimônio nacional ficava confiada ao MHN, dirigido por Gustavo Barroso.
Este decreto-lei é quase exatamente contemporâneo da Constituição de 1934, promulgada apenas dois dias depois, em 16 de julho de 1934, cujo artigo 148 instituía a proteção do patrimônio histórico e artístico do país. A rápida sucessão de peças jurídicas sugere a relevância da questão patrimonial naquele momento. Porém, como se sabe, a iniciativa definitiva a esse respeito viria a ocorrer um pouco mais tarde, durante a gestão de Gustavo Capanema na pasta da Educação e Saúde Pública, iniciada em 26 de julho de 1934, dez dias após a promulgação da nova Carta Magna.
Não há menção a qualquer envolvimento de RMFA nas marchas e contramarchas relativas à preservação patrimonial neste período. Pelo que se pode depreender de notícias em O Jornal, Rodrigo se dedicava então à sua profissão de formação124 - a advocacia -, e ocasionalmente às atividades literárias, sua especial predileção.125
Na verdade, pouco se sabe a respeito de suas atividades ao longo do tumultuado período entre 1931, quando deixou o Mesp e o cargo na Secretaria de Viação da Prefeitura do Distrito Federal, e o início de 1936, quando Capanema convidou o escritor Mário de Andrade para organizar “um serviço nacional para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio artístico”,126 dando início ao processo - já bastante conhecido - de criação do Sphan.
De acordo com um de seus mais íntimos amigos, Prudente de Morais Neto (alcunhado Pedro Dantas), Rodrigo não se encontrava então num momento especialmente favorável:
O fato, porém, é que Rodrigo atravessava, a esse tempo, um período depressivo, por incoercível enfaro aos “provarás”, embora os articulasse com excepcional proficiência. Mas, exercia a advocacia militante, como exercera o jornalismo, com uma dedicação haurida no senso da responsabilidade, e não no apelo irresistível da vocação profissional.127
Assim, quando, em abril de 1936, por indicação de Mário de Andrade e Manuel Bandeira,128 Rodrigo foi convidado por Capanema129 para diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - ainda funcionando “em bases provisórias” -,130não parece ter hesitado em aceitá-lo, a despeito de nunca ter demonstrado interesse por quaisquer iniciativas preservacionistas, mesmo aquelas relativas à sua cidade natal, Ouro Preto, como já mencionado.
A nomeação de RMFA como diretor do Sphan inspirou um certo desalento a alguns membros de seu círculo de relações, que tinham grandes expectativas a seu respeito, como Gilberto Ferrez, que afirmou: “tudo sacrificou: carreira literária, magistratura, e a política, para as quais estava talhado aos mais altos cargos, por um grande amor, o do SPHAN, por ele fundado em 1937, organizado e dirigido sem alarde, sem auto-propaganda, durante 30 anos”.131
Américo Jacobina Lacombe também destaca a abnegação de Rodrigo em sua carreira no Sphan diante das facilidades que suas invejáveis condições de partida lhe poderiam proporcionar: “ninguém mais dotado para uma carreira, não direi fácil, mas vantajosa, ninguém mais apto a se deixar levar, sem esforço especial para uma posição confortável em meio a uma sociedade em que poderia gozar de privilégios”.132
E assim iniciou-se a longa e profícua carreira de RMFA no “Patrimônio” - para a qual Gustavo Capanema antecipava “tarefas e realizações grandiosas”. No entanto, na opinião de seu amigo Prudente de Morais Neto, a nomeação de Rodrigo se afigurava então “uma solução transitória, menos solução do que alívio”:
Quanto a mim, por mais que me esforçasse, confesso que não conseguia participar do entusiasmo dele [Capanema]. Separamo-nos - ele, eufórico, eu lançado em perplexidade. Não via muito bem a função como adequada a Rodrigo, capaz de proporcionar-lhe o campo que faltava à sua devida realização. Muito importante que fosse, a missão de inventariar e restaurar monumentos não me parecia satisfatória para a figura admirável, que excelsas virtudes de cidadão antes indicavam para as responsabilidades de uma carreira de homem de Estado.133
O ano de 1936, que marca o início da carreira de Rodrigo no Sphan, é também o ano em que foi publicado seu primeiro, e único, livro autoral: a coletânea de contos Velórios, muito bem recebida pela crítica.134 Não deixa de ser um tanto irônica a coincidência de que o primeiro fruto de seus esforços literários tenha vindo à luz no mesmo ano em que se iniciava sua carreira no “Patrimônio” - que os encerraria. Entretanto, talvez a nova função tenha obrigado Rodrigo a dar vazão a seu talento literário, escrevendo incontáveis artigos, entrevistas, pareceres, cartas, depoimentos conferências, prefácios e outras produções relacionadas à sua ativa carreira no Sphan.135
Assim, as lides no “Patrimônio” possibilitaram a Rodrigo expandir seu talento e preparo profissional, como ficou patente já no novo “anteprojeto de lei especial de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional e de organização do respectivo serviço” - que viria a ser aprovado como o Decreto-lei nº 25, e que constitui a base jurídica do Sphan até os dias de hoje.
De fato, em 23 de julho de 1936, três meses depois do início provisório das atividades do Sphan,136 RMFA encaminhou o documento a Capanema, afirmando que “serviu-lhe de base o trabalho notável [...] executado pelo professor Mário de Andrade”. Destacou também “o excelente esboço de anteprojeto de lei federal apresentado em 10 de julho de 1925 por uma comissão nomeada pelo Governo do Estado de Minas e da qual foi relator o Sr. Jair Lins”137 e o “projeto de no. 230 de 1930 submetido à Câmara pelo deputado Wanderley Pinho”.138 Ressalte-se que, como já mencionado, Rodrigo nunca parecera manifestar interesse pelas iniciativas preservacionistas anteriores à sua nomeação como diretor do Sphan.
Como se sabe, o projeto inicial de Mário de Andrade voltava-se a estabelecer as bases conceituais de uma política de preservação patrimonial, e sua correspondente estrutura institucional,139 ao contrário do documento elaborado por RMFA, que tinha por objetivo regulamentar e embasar juridicamente as ações efetivas do órgão - o que fez com competência, dado que a peça jurídica permanece em vigor até os dias de hoje. Cabe apenas destacar que, em seu encaminhamento a Capanema, Rodrigo habilmente disfarçou a natureza fundamentalmente diversa dos dois documentos, evidenciando mais uma vez sua habilidade como escritor e sua argúcia e expertise como advogado.
A justificativa para a completa reelaboração do novo projeto de lei foi dada, anos mais tarde, pelo próprio Rodrigo. Ele afirmou que, apesar de reconhecer em Mário “atributos notáveis de organizador”, considerava também que “para os fins que urgia alcançar, do ponto de vista legal, o plano traçado pelo ilustre escritor não tinha o préstimo desejável”. Nesse sentido, RMFA parece antecipar, aqui, futuras “pressões vigorosas em defesa do pleno exercício do direito de propriedade”, a requerer uma legislação cuidadosamente elaborada.140 Seu tirocínio e argúcia na redação da peça jurídica contrastam com seu aparente desinteresse em acompanhar as lides patrimoniais anteriores à sua nomeação para o Sphan, tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista cultural.
Aprovado por Capanema e por Vargas, o anteprojeto elaborado por Rodrigo foi encaminhado ao Poder Legislativo em 15 de outubro de 1936, onde iniciou longa tramitação,141 em meio à qual foi aprovada a Lei nº 378, que dava nova organização ao Mesp, oficializando o Sphan, criado em caráter experimental em 13 de janeiro de 1937.142 A votação definitiva do anteprojeto regulamentando a atuação do novo Serviço estava prevista para o dia 10 de novembro 1937 - data em que foi desencadeado o golpe de estado que dissolveu o Congresso Nacional, conhecido como Revolução de 1930. Como apontou RMFA, “dessa vez, no entanto, a dissolução do parlamento não retardou mais por muito tempo a promulgação da lei reclamada”-143 ao contrário, pareceu agilizá-la, se não mesmo viabilizá-la, já que, em 30 de novembro de 1937, menos de um mês depois da eclosão da revolução, foi aprovado o Decreto-Lei nº 25, oficializando a existência do Sphan. Tal celeridade indica que a criação do novo órgão interessava ao regime recém-instaurado.
Portanto, por um espaço muito breve de tempo, coexistiram em âmbito federal dois órgãos de preservação do patrimônio, ambos abrigados em instituição pré-existente, criados em caráter experimental, sem estrutura definida, nem orçamento próprio: o já mencionado Serviço de Inspeção de Monumentos Nacionais do Museu Histórico Nacional, criado em 1934, e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937. Tal coexistência foi, entretanto, bastante curta, pois a aprovação do Decreto-lei nº 25 ocasionou o encerramento do primeiro naquele mesmo ano,144 denotando as mudanças no ambiente político então em curso.
A criação definitiva do Sphan pôs fim às obras que o Serviço de Inspeção dos Monumentos Nacionais do MHN vinha realizando em Ouro Preto entre 1935 e 1937.145 De fato, no que tange aos monumentos nacionais, as atribuições preservacionistas do MHN cessaram no início de 1938, sem que tenha havido qualquer interação entre o museu e o Sphan no período de sua coexistência, num evidente indício de antagonismo político - ou, no mínimo, de incompatibilidade. Tal situação fica evidente perante a constatação de que, no Guia de Ouro Preto publicado pelo Sphan em 1938, nenhum crédito pelas obras de restauração da cidade tenha sido atribuído ao MHN ou a seu diretor Gustavo Barroso, mas apenas à “Inspetoria de Monumentos Nacionais” - como se se tratasse de um órgão autônomo - e ao engenheiro Epaminondas de Macedo, responsável pelo acompanhamento das obras.
Em certo sentido, pode-se dizer que a oficialização do Sphan vem culminar o processo de institucionalização das iniciativas preservacionistas em nível federal inauguradas com a elevação da cidade de Ouro Preto a monumento nacional, em 1933, no bojo das tratativas políticas relacionadas à base de apoio do governo revolucionário - no qual também se insere a nomeação de Rodrigo Melo Franco de Andrade para a direção do novo órgão, a despeito de seu completo alheamento em relação à temática até então.
É significativo, para os objetivos do presente trabalho, mencionar um episódio ainda pouco conhecido, protagonizado por Assis Chateaubriand, ex-chefe de RMFA em suas atividades jornalísticas da década de 1920 - que, à sua maneira, veio prestigiar a nova carreira de seu ex-colaborador junto ao Sphan.
Trata-se da campanha em prol da preservação dos monumentos históricos de Porto Seguro, na esteira da realização de uma excursão aérea à cidade, iniciativa dos Diários Associados - o conglomerado de empresas de mídia então de propriedade de Assis Chateaubriand - lançada por Chatô, notório entusiasta da aviação civil brasileira, em dezembro de 1938. Comandada pelo aviador português Gago Coutinho, a excursão teve lugar em 3 de maio de 1939, ficando conhecida como “Revoada de Maio”.146
A excursão aérea rendeu dezenas de artigos em O Jornal e, uma vez finalizada, articulou-se imediatamente com outra campanha dos Diários Associados, agora em prol da restauração dos monumentos de Porto Seguro, justificada com os seguintes argumentos:
A revoada sensacional a Porto Seguro proporcionou a numerosos brasileiros oportunidade de conhecer o pedaço de terra onde desembarcaram os nossos descobridores. Berço do país, a velha cidade litorânea devera ter sido tratada com o carinho que se dispensa aos monumentos nacionais. No entanto, bem diferente do imaginado foi o aspecto que a cidade ofereceu aos seus visitantes de 3 de maio. Abandonada, triste, carente de tudo, Porto Seguro mostrou aos que ali aportaram sob o comando do almirante Gago Coutinho quanto cuidado estava reclamando, quanta assistência pedia.147
O artigo destacava as adesões ao movimento patrocinado pelos Diários Associados no meio empresarial, enumerando as doações espontâneas de figuras proeminentes, como o pernambucano Othon Lynch Bezerra de Mello; Rafael Crisóstomo de Oliveira, diretor-gerente da Companhia Vieira Martins, de Campos, RJ; e Samuel Ribeiro, presidente da Caixa Econômica Federal de São Paulo.
Destacava também a pronta adesão e colaboração de Gustavo Capanema, Ministro da Educação, que “incumbiu o sr. RMFA de examinar pessoalmente a situação das diversas obras existentes na mais antiga cidade do Brasil”, com a finalidade de “sugerir as providências indispensáveis à manutenção desse precioso repositório de monumentos, autênticos símbolos de episódios marcantes da nossa história”.148
Assim, vemos Chatô apoiar a causa da preservação do patrimônio, num aceno prestigioso a seu ex-colaborador. Está ligada a essa iniciativa, portanto, a viagem a Porto Seguro empreendida por RMFA em agosto de 1939, em companhia do arquiteto José de Sousa Reis, de Vinícius de Morais e do fotógrafo Erich Hess - viagem que se estendeu também a outros estados do Nordeste, como Sergipe, Paraíba e Pernambuco.149 Segundo Rodrigo, da viagem resultaram “muitas notas e levantamentos topográficos”, e foram adotadas “medidas necessárias para iniciar, dentro de curto prazo, os trabalhos que temos em vista”, com os generosos recursos levantados pela campanha dos Diários Associados. No entanto, em que pesem as manifestações do diretor do Sphan sobre a importância do patrimônio de Porto Seguro, nada foi tombado ali. Tampouco se tem informações sobre a efetiva realização das obras de conservação então anunciadas.150
Por outro lado, diante dos parcos recursos financeiros de que dispunha o Sphan, é possível que a campanha dedicada a Porto Seguro tenha viabilizado economicamente a visita do grupo do Sphan, encabeçado por RMFA, a outros estados do Nordeste, além da Bahia - entre eles o estado natal de Chatô, a Paraíba. O próprio Rodrigo afirmou:
Não fui somente ver Porto Seguro, mas realizar também uma viagem de inspeção, que durou mais de um mês. Visitei quatro estados do Nordeste - Bahia, Sergipe, Pernambuco e Paraíba. Mas o principal objetivo da minha viagem foi ver Porto Seguro, em favor de cujos monumentos, de tanto valor histórico e também artístico, os Diários Associados levantaram uma subscrição entre particulares que, coisa única no Brasil, acudiram generosamente a seu apelo, atingindo a subscrição a elevada soma.151
A inusitada campanha preservacionista de Chateaubriand parece inaugurar um conjunto de iniciativas, por ele patrocinadas, relacionadas às atividades de Rodrigo no Sphan, sempre dedicadas à arrecadação de verbas para mitigar os insuficientes recursos com que contava o Serviço para realizar sua hercúlea missão. Em certo sentido, poderia ser considerada uma espécie de retribuição ao empenho de RMFA junto às elites mineiras em prol da aquisição de O Jornal por Assis Chateaubriand, mencionada anteriormente.
Assim, o episódio constitui um evidente elo entre a trajetória de RMFA prévia à sua nomeação como diretor do Sphan, em 1936, e o período posterior, no qual o advogado mineiro dedicou-se de corpo e alma ao novo Serviço.
Para finalizar estas notas biográficas, cabem algumas observações à guisa de conclusão. A primeira diz respeito ao meio familiar de Rodrigo Melo Franco de Andrade, plenamente inserido nas elites econômicas, políticas e culturais brasileiras, formadas por grupos familiares de peso em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, que apresentavam inclinações políticas diversificadas, porém com predominância claramente pró-varguista, e que exerciam significativa participação na diplomacia internacional - condições amplamente favoráveis, portanto, à sua própria inserção social e profissional.
De seu tronco familiar materno, o clã Melo Franco, destaca-se o lastro cultural do sertanista Afonso Arinos, e a desenvoltura diplomática, em nível internacional, de Afrânio; por parte de pai, se não pôde contar com uma rede de sociabilidade comparável à da família Melo Franco, Rodrigo herdou um precioso vínculo simbólico com o Aleijadinho, através do interesse precoce de seu bisavô Bretas pelo escultor mineiro - interesse que teria ampla continuidade na atuação do Sphan, sob a direção de Rodrigo. Todo esse patrimônio familiar foi acrescido de agilidade intelectual, talento literário, cultura geral e competência profissional temperados e afiados nas lides jornalísticas - qualidades que muito lhe valeriam em seu futuro engajamento à frente do Serviço.
De fato, como muitos de sua geração, RMFA conciliou vários tipos de atividade em seu início de carreira: inicialmente, até por volta de 1927, o serviço público, juntamente com a atividade jornalística (fortemente marcada pelas iniciativas de Assis Chateaubriand, muito próximo dos Melo Franco então, e das quais Rodrigo participou ativamente); e depois, entre 1927 e 1936, mantendo a atividade jornalística e exercendo a advocacia no escritório de seus tios Afrânio e João de Melo Franco, com passagem intermitente pelo meio político pós-revolucionário.
Deste último ponto de vista, não há indício de qualquer engajamento direto de Rodrigo no complexo conjunto de articulações, marchas e contramarchas que acabaram por resultar na Revolução de 1930, culminando com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência do Brasil. Nisto, diferia de muitos de seus parentes Melo Franco, como seus primos Afonso e Virgílio, filhos de Afrânio, que atuaram de forma incisiva nesse sentido, juntamente com Assis Chateaubriand. Por outro lado, cabe assinalar a posição fortemente dissonante de seu já falecido tio Afonso Arinos, que era monarquista. Portanto, Rodrigo conviveu com posições políticas variadas em seu ambiente familiar - o que certamente acontecia, em escala muito ampliada, nos meios jornalísticos que frequentava. Tal convivência em ambientes politicamente diversificados se revelaria certamente muito valiosa no futuro, especialmente em seu visado cargo de diretor do Sphan.
Assim, RMFA, fruto empobrecido das elites mineiras, escritor bissexto, apresenta uma trajetória pessoal emblemática das mudanças vivenciadas pelos intelectuais cujas carreiras se desenvolvem a partir das décadas de 1920 e 1930, de acordo com Miceli.152 De fato, ao iniciar sua carreira em 1921, imediatamente após a conclusão de seu curso de direito, Rodrigo dividiu-se entre um emprego público pouco expressivo - auxiliar de diretor da Inspetoria de Obras contra as Secas -, que manteve por oito anos, em paralelo a atividades jornalísticas de cunho variado - política externa, crítica literária - em O Dia, jornal dirigido por intelectuais próximos ao seu círculo familiar. Neste período, manteve distância cautelosa das novas propostas literárias lançadas na Semana de 1922 - as quais endossaria fortemente, como diretor da Revista do Brasil, já vinculado a Assis Chateaubriand, também devido à proximidade entre o jornalista paraibano e Afrânio Melo Franco.
A partir da ascensão de Vargas - e de Chatô - ao poder, Rodrigo começa a se beneficiar das diversas tarefas políticas e ideológicas disponibilizadas aos intelectuais, através da crescente intervenção do Estado nos mais diferentes domínios de atividade.153 Sua breve e discreta passagem pela chefia do gabinete de Francisco Campos, Ministro da Educação e Saúde Pública, lhe valeu o papel de articulador de outros quadros intelectuais, como a indicação de Lucio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas Artes imediatamente após a vitória dos revolucionários, em 1930. E, após um interregno dedicado à advocacia, no escritório de seus tios Afrânio e João de Melo Franco, Rodrigo assume seu lugar definitivo na estrutura federal, como diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nessa posição - para a qual até então jamais demonstrara qualquer especial pendor -, desenvolveu um trabalho pioneiro no Brasil, com grande habilidade e qualidade, para a qual muito lhe valeu sua multifacetada experiência anterior.
Percebe-se efetivamente que as múltiplas atividades a que se dedicou RMFA nos seus dezessete anos de atividade profissional anteriores a seu ingresso no Sphan (1919-1936) lhe possibilitaram exercitar e aperfeiçoar habilidades que lhe seriam muito úteis na sua carreira no ”Patrimônio”: a consciência da responsabilidade no exercício de cargos públicos; a desenvoltura na escrita; a prática advocatícia e o trato com o público; a familiaridade com os meandros do ambiente político-institucional brasileiro.
Identifica-se claramente, ao longo de todo o período abordado, sua paixão pela literatura, que, em consonância com a dos amigos Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, vai paulatinamente convergindo para o movimento modernista, mais especificamente para o grupo ligado à Semana de 1922 e à figura de Mário de Andrade, de quem começa a se aproximar em meados da década de 1920, e que acompanhará de muito perto sua trajetória no Sphan.
Por sua vez, a temática da preservação do patrimônio - central para o órgão - nunca merecera qualquer manifestação explícita de interesse da parte de Rodrigo até sua nomeação como diretor do Iphan. Seu silêncio a esse respeito contrasta com seu efetivo engajamento na causa da preservação e sua contínua exposição pública em defesa das atribuições do novo serviço a partir de 1936.
Talvez Rodrigo tenha resolvido tal disparidade de afetos a partir da paulatina união desses dois campos - a literatura e a temática, que parece afigurar-se lhe até então pouco atraente, da preservação do patrimônio - através da convocação de intelectuais e escritores de seu círculo de amizades para colaborar com o Sphan, seja como representantes do Serviço nos estados - como Mário de Andrade em São Paulo e Godofredo Filho na Bahia -, seja como autores de artigos e publicações do órgão, a começar por Manuel Bandeira, a quem foi confiada a tarefa de escrever nada mais, nada menos do que o Guia de Ouro Preto. De fato, é digno de nota que o campo literário forneceu boa parte do quadro de funcionários, colaboradores e simpatizantes do Iphan durante a gestão de RMFA.
Assim, a carreira de Rodrigo antes do Sphan não é uma trajetória linear: caracteriza-se pela versatilidade na conciliação de diversas atividades, não conduzindo necessariamente à posição - aparentemente predestinada - que sua presença ponderada e competente à frente do Sphan por 30 anos pareceu lhe conferir. Mas a multiplicidade de posições previamente ocupadas por ele muito contribuiu para seu desempenho em tal cargo, unanimemente destacado como exemplar, como colocou Alceu de Amoroso Lima: “Enfin Rodrigo vint. Foi o único legado perfeito do Estado Novo”.154
São palavras pertinentes. De fato, inserindo-se plenamente na ampliação e valorização do setor cultural, que é uma marca do período varguista, o Sphan foi sem dúvida um legado do Estado Novo, dado o papel da temática da preservação do patrimônio na arregimentação do imprescindível apoio mineiro para o sucesso do golpe militar liderado por Vargas. Este papel é passível de ser identificado a partir da visita de Batista Luzardo e Assis Brasil a Ouro Preto, em 1929, e da proposta de legislação preservacionista para a cidade, só efetivamente aprovada após a revolução, em 1931; e pode ser corroborado pela sucessão de outras medidas de preservação tomadas ao longo da década de 1930, iniciadas com o tombamento federal de Ouro Preto, em 1933, e culminando na rápida aprovação do Decreto-lei nº 25 imediatamente após a decretação do Estado Novo, posteriormente a morosa e infrutífera tramitação no congresso iniciada em 1936.
Assim, a sequência de acontecimentos que levou à efetiva criação do Sphan está ligada, de forma muito clara, aos acontecimentos políticos do período e aos interesses que confluíram no Estado Novo. Por outro lado, se no âmbito político Rodrigo manteve uma postura aparentemente neutra ao longo da década de 1930, sua nomeação para diretor do Sphan - para além de suas inegáveis qualidades e atributos pessoais - não pode ser dissociada dos pendores políticos de sua família e de sua proximidade com o poderoso jornalista Assis Chateaubriand.
A contribuição de Rodrigo em sua trajetória de trinta anos à frente do Iphan está perfeitamente sumarizada nas palavras de um de seus amigos mais próximos, Prudente de Morais Neto:
Já em exercício virtual, antes mesmo da instituição oficial do Serviço, deu ele início ao seu estupendo trabalho de modelagem. O Serviço tomou forma e sentido, sob suas mãos. Forma e sentido como ninguém mais lhe poderia dar e que, com Rodrigo, graças a Rodrigo, lhe vieram do exercício cotidiano das suas atribuições, do criterioso recrutamento de pessoal - especialmente do fabuloso corpo técnico de arquitetos, artistas, pesquisadores, que só o prestígio e a sedução de Rodrigo permitiram constituir, naqueles momentos iniciais - e da criação de um “espírito” do Serviço, como órgão da Administração Pública, mas de finalidade essencialmente cultural. Aos poucos, dos duros embates com a realidade dos problemas de toda ordem, de encontro à força dos interesses contrariados - alguns até respeitáveis - desprendeu-se da atuação específica nesse campo, uma “filosofia”, graças à qual foi possível a Rodrigo extrair do arcabouço legal, de formulação abstrata, as bases, os fundamentos de uma extraordinária realização. Para a defesa dos monumentos nacionais, Rodrigo começou, assim, por edificar, ele próprio, um monumento nacional, já agora imperecível - o nosso Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico. 155
Nas palavras de Prudente de Morais (ou Pedro Dantas, o apelido utilizado pelos amigos), é possível identificar os nexos do diretor do Iphan com seu período de formação e com seus dezessete anos de atividade profissional diversificada, que - acrescidos do desenvolvimento, aparentemente paulatino, de uma paixão pelo patrimônio brasileiro - convergiram, num processo feliz, para seu sucesso à frente do órgão.
São ainda de Prudente de Morais Neto as palavras mais adequadas para finalizar o presente texto:
Acompanhante desse processo de fixação e transubstanciação, que uniu o homem e o cargo numa simbiose perfeita, verifiquei, de há muito, a sem-razão da minha perplexidade, quando o nome de Rodrigo ainda estava por se precipitar. Hoje percebo nitidamente que o problema nunca foi dele. Era meu, era nosso - de alguns amigos que o admiramos na justa medida dos seus méritos. Nós, é que, por vezes, ainda nos sentimos frustrados, pelos serviços de outra natureza que ele não teve o ensejo de prestar ao país. Perdeu o país - não há dúvida. Rodrigo, porém, não se perdeu: encontrou-se. Nenhuma outra atividade, nenhum outro tipo de função, por mais prestigiosa, lhe teria facultado realizar-se no universo e no permanente, como se realizou. Nenhuma outra missão lhe permitiria organizar em constelação o elenco de suas virtudes, seus interesses espirituais mais profundos, sua visão panorâmica dos fatos culturais - que não exclui a respectiva e oportuna microscopia - numa aliança particularmente fecunda do nacional com o universal, do passado com o presente e o futuro, do mais puro espírito público com o mais agudo, alertado e sensível espírito crítico. Essa, a extraordinária, a admirável, a perene lição de Rodrigo.156
E assim encerram-se estas notas, que evidenciam a necessidade de outros estudos capazes de preencher as muitas lacunas que ainda revestem de singular opacidade vários momentos da trajetória de um personagem central do panorama cultural brasileiro pós-1930.