RESUMO: O artigo aborda a presença e a visibilidade de artistas latino-americanos na coleção do Centre national des arts plastiques (Cnap), Paris-França. Trata-se da primeira e mais perene iniciativa mundial de criação de um fundo estatal de obras dedicadas à arte viva, uma iniciativa que surgiu em finais do século XVIII e persiste até hoje. O estudo das temporalidades de ingresso das obras na coleção, apontando para a importância da década de 1980, contribui para a história da arte global ao reposicionar o impacto institucional da mostra “Magiciens de la terre”, bem como da centralidade de Paris para os artistas latino-americanos, sobretudo em tempos de exílio. Dentro desse amplo contexto, discute-se a invisibilidade das mulheres artistas nos circuitos latino-americanos a partir do corpus de obras presentes no Cnap.
PALAVRAS-CHAVE: Artistas mulheres, Arte latino-americana, Cnap, Exílio, Feminismo.
ABSTRACT: The article focuses on the presence and visibility of Latin-American artists of the Centre national des arts plastiques (Cnap), in Paris- France. It is the first and most perennial world initiative to create a state fund of works dedicated to “living art,” an initiative that began in the end of the eighteenth century and persists to this day. The study of the temporality of the entrance of works in the collection, pointing to the importance of the decade of 1980, it contributes to the history of the global art by repositioning the institutional impact of the exhibition “Magiciens de la terre,” and the centrality of Paris to the Latin-American artists, especially during exile. In this ample context, we discuss the invisibility of women artists from the corpus of works in the Cnap.
KEYWORDS: Women artists, Latin-American art, Cnap, Exile, Feminism.
RESUME: Cet article traite de la présence et de la visibilité des artistes latino-américains dans la collection du Centre national des arts plastiques (Cnap), à Paris, France. Datant de la fin du XVIIIe siècle et encore en fonctionnement, il s’agit de la première et la plus pérenne initiative mondiale de création d’un fonds d’État pour les œuvres dédiées à l’art vivant, qui a commencé à la fin du XVIIIe siècle et perdure jusqu’à aujourd’hui. L’étude des temporalités d’acquisition des œuvres, soulignant l’importance des années 1980, apporte une contribution à l’histoire de l’art mondial en repositionnant l’impact institutionnel de l’exposition « Magiciens de la terre », ainsi que la centralité de Paris pour les artistes latino-américains au temps d’exil. Dans ce cadre, on discute de l’invisibilité des artistes femmes dans les circuits latino-américains à partir de l’ensemble d’œuvres en exhibition au Cnap.
MOTS CLES: Femmes artistes, Art latino-américain, Cnap, Exil, Féminisme.
MUSEUS
Artistas latino-americanos no Centre national des arts plastiques: presenças invisíveis
Latin-American artists at the Centre national des arts plastiques: invisible presences
Des artistes latino-américains au Centre national des arts plastiques : les présences invisibles
Recepção: 14 Julho 2023
Aprovação: 11 Outubro 2023
A circulação de artistas latino-americanos na França é um fenômeno reconhecido e bem documentado, sobretudo no que diz respeito ao século XIX e primeira metade do século XX.1 No entanto, o grau de reconhecimento por eles obtido permanece menos analisado uma vez que a história da arte tende a privilegiar as trajetórias de artistas estrelares, isto é, uma minoria que logrou conquistar um renome no circuito internacional.2 Visando contribuir para uma compreensão mais abrangente sobre a inserção dos artistas latino-americanos no sistema francês após a Segunda Guerra,3 proponho aqui o estudo de suas presenças na coleção do Centre national des arts plastiques (Cnap), atentando primordialmente para algumas variáveis, como a origem nacional, o gênero dos artistas (restrito à variável sexo em função das limitações das fontes) e a década de aquisição das obras. Esses três eixos se articulam com algumas hipóteses. Primeiro acerca da heterogeneidade do termo América Latina, pois, dentro dessa região, há países com maiores ou menores possibilidades de inserção num sistema artístico internacional. Segundo, os níveis de reconhecimento dos artistas, no interior dessa região já marcada pela desigualdade, são ainda mais assimétricos quando se pensa nas artistas mulheres. Terceiro, a de que origem e gênero podem ser marcadores sociais articulados, isto é, que a condição de artistas mulheres, somadas aos países de nascimento, desempenharam um papel relevante para a baixa visibilidade e reconhecimento das obras e dos artistas.
Finalmente, o período de aquisição das obras é algo central nas discussões aqui travadas. Como se verá, as décadas de 1970 e 1980 despontam como momentos cruciais de aquisição, o que não é explicável apenas por uma dinâmica interna ao sistema artístico, mas, ao contrário, exige uma abertura para a história política. Trata-se de uma época em que diversos latino-americanos procuraram Paris fugindo dos golpes de Estado que grassaram seus próprios países. Esse “tempo de exílio”,4 como se procurará discutir, foi vivenciado de modo diverso por homens e mulheres, inclusive aqueles que se dedicavam às artes.
O estudo da presença dos artistas latino-americanos no Cnap permite também uma revisão de certos postulados recorrentes na história da arte contemporânea. A temporalidade do ingresso das obras na coleção coloca em questão os impactos institucionais da célebre exposição “Magiciens de la terre”, promovida pelo Centre Pompidou em 1989, considerada um marco para a virada global na história da arte. Não menos importante é rediscutir a tese de que Nova York “roubou” a centralidade de Paris como metrópole artística no pós-Segunda Guerra.5 Os dados apontam que, para um contingente significativo de artistas latino-americanos, Paris manteve seu poder de atração, ainda que não mais sob uma situação de monopólio. Esses dois aspectos, acredito, trazem uma contribuição crítica para a história da arte global.
A opção por investigar a presença dos artistas latino-americanos na coleção do Cnap se deu por seu pioneirismo, perenidade e abrangência internacional. Trata-se da primeira iniciativa mundial de apoio à produção dos artistas vivos, cujo início ocorreu na França após a Revolução, em 1791, e continua até hoje, culminando em um fundo que se constrói por sedimentação, aberto à arte produzida em diversos “presentes”.6 Estima-se que o Centro possui atualmente cerca de 110 mil obras recenseadas, embora o inventário ainda não esteja terminado e esse número possa ser maior.
Uma política cultural atenta ao fomento e preservação das artes foi concebida no bojo das profundas transformações promovidas pela Revolução Francesa. Já em 1790, durante a monarquia constitucional, conferiu-se ao Ministério do Interior a responsabilidade de “encorajar as artes”, o que implicava, entre outras medidas, o cuidado com os edifícios públicos e seus respectivos bens, ameaçados em sua integridade física em função das manifestações populares em curso. No ano seguinte, em um decreto votado pela Assembleia, afirmou-se que seria acordada uma soma financeira anual para apoiar as artes (pintura, escultura e gravura). O mesmo texto mencionava ainda que, naquele ano, seriam destinados valores para membros da Academia de pintura e escultura, assim como a vinte artistas não acadêmicos escolhidos em meio aos que expuseram no Salão Anual do Louvre.7 Nesse momento, iniciou-se um mecenato de Estado direcionado para artistas vivos, vinculados ao sistema acadêmico. As obras adquiridas eram encaminhadas para o Depósito do Estado (Dépôt de l’État) no interior da Divisão de Belas-Artes, Ciências e Espetáculos (Division des Beaux-Arts, des Sciences et des Espetacles), que se torna, em 1800, o Escritório de Belas-Artes (Bureau des Beaux-Arts), passando a se chamar, a partir de 1882, Escritório de trabalhos artísticos (Bureau des travaux d’art), até que, em 1962, adquiriu o nome de Serviço de Criação Artística (Service de Création Artistique).
Durante boa parte do século XIX, as obras adquiridas e encomendadas seguiam um gosto mais oficial, concentrando-se nos artistas que expunham nos Salões. Tais mostras não colocavam óbices legais à participação de artistas estrangeiros. Com isso, era possível que, entre os contemplados, houvesse artistas não franceses. À medida que Paris se tornou a capital artística do século XIX, os estrangeiros se fizeram cada vez mais presentes no sistema artístico. A condição de centro atribuída e reivindicada pela cidade implicava sua própria internacionalização. Segundo Laurent Casez,8 a proporção de artistas estrangeiros no Salon National des Beaux-Arts chegou a 41% em 1890. Entre os que se notabilizaram, alguns foram escolhidos para terem suas obras adquiridas pelo Estado e, com isso, a coleção apresentou-se como aberta à internacionalização, ainda que isso não se pautasse em um programa claro.
No entanto, os dados apontam que se trata de uma internacionalização restrita e desigual, com evidente predominância do que hoje denominamos por “norte global”. Assim, após o grande predomínio dos artistas franceses, contemplaram-se aquisições de artistas norte-americanos, ingleses, belgas, suíços, austro-húngaros, alemães, espanhóis etc. Fora desse eixo, os únicos países representados no século XIX eram a Turquia e o Japão, e nos últimos lugares.9 Noto que nenhum artista proveniente da América Latina, África ou Oceania é mencionado. É importante ressaltar que, nesse momento, “somente os artistas franceses, ou que viviam na França, foram beneficiados com aquisições públicas”.10
Ao longo do século XX, do ponto de vista estético, as aquisições se transformaram bastante, tornando-se mais abertas e plurais, no entanto, algumas diretrizes da instituição foram mantidas. As prioridades foram sistematizadas na década de 1960 durante o ministério de André Malraux:
Primeiramente, e antes de tudo, o enriquecimento das coleções do Museu Nacional de Arte Moderna e dos grandes museus de província; (2) a decoração dos edifícios públicos, tais como embaixadas, consulados, ministérios, prefeituras etc.; (3) de outro lado, a preocupação com os jovens artistas que parecem dignos de interesse; (4) enfim, ajudar, de modo limitado, os artistas idosos ou que atravessam um período difícil. É assim evidente que o objetivo visado no primeiro parágrafo é primordial, e que as obras ingressadas nas coleções públicas devem contar entre as mais representativas das tendências atuais.11
A partir de 1982, adotou-se a denominação o Centre national des arts plastiques. Trata-se de um estabelecimento público pertencente ao Ministério da Cultura e que compreende, entre suas missões, a de gerir uma coleção, o Fonds national d’art contemporain, o qual congrega as obras encomendadas e adquiridas pelo governo desde 1791 até o presente.12 Ao lado da salvaguarda, cabe ao Cnap a conservação, o restauro e a difusão dos bens sob sua tutela. É importante dizer que os princípios fundamentais se mantêm estáveis ao longo de mais de dois séculos: a ideia de fomento à “arte viva” e aos artistas jovens, o que testemunha uma política cultural de longa duração sem equivalente mundial.13 Destaca-se outra vez sua abertura internacional, posto que a segunda coleção pública a emergir com objetivos semelhantes, a do British Council, é muito mais tardia, inaugurada depois da Segunda Guerra, e voltada exclusivamente para artistas britânicos.
No entanto, a despeito de todos esses qualificativos, as obras do Cnap permanecem menos conhecidas do que as coleções dos grandes museus, como o Musée national d’Art moderne (MNAM), por exemplo - talvez por não contar com uma sede própria de exposição, bem como por sua política de ceder obras para museus de província (ou seja, externos à cidade de Paris), os quais são parceiros institucionais prioritários, ou mesmo para decoração de prédios públicos. Nesses casos, as obras estão visíveis, mas não são associadas pelos espectadores ao Cnap e sim ao lugar em que estão exibidas.14
Sabe-se ainda menos sobre os artistas estrangeiros cujas obras fazem parte do Cnap, em particular aqueles que aqui nos interessam: os artistas latino-americanos. Inicialmente, é importante esclarecer que a noção de “artista latino-americano” diz respeito ao local de nascimento dos artistas, sem aludir a concepções de identidade essencialistas. Não se postula a existência de qualquer tipo de especificidade de uma suposta “arte latino-americana”, salvo, como se verá, quando os próprios artistas a reivindicam, o que ocorre em geral muito mais em função de um posicionamento estratégico específico do que por princípios identitários que culminariam em algum tipo de unidade estética.
Como procurarei discutir, durante as décadas de 1970 a 1980, quando diversos escritores, intelectuais e artistas latino-americanos foram obrigados a deixar seus países em função dos golpes de Estado na região, algumas iniciativas de promoção de uma “arte latino-americana” tomaram corpo em Paris. Por diversos motivos, é nesse período que o maior número de obras de artistas da região é incorporado pelo Cnap. Entre esses pouco visíveis produtores latino-americanos, há uma parcela ainda mais invisibilizada: as mulheres artistas, o que não deixa de ser paradoxal quando se pensa que tal apagamento ocorre em tempos de afirmação tanto feministas quanto terceiro-mundistas. Trata-se ainda de um período em que, segundo a pesquisa de Liberty Adrien,15 a aquisição de obras femininas atingiu um pico, em torno de 18,6% do total. Mas onde estavam elas? Por que pouco ouvimos falar a respeito? O estudo das obras que ingressaram na década de 1980 e as modalidades de inserção trazem contribuições instigantes para se responder a tais perguntas.
O Estado francês não limitou as aquisições públicas a artistas nascidos na França, no entanto eles são amplamente majoritários. Entre os cerca de 10 mil artistas que constam na base do Cnap, 65% nasceram na França, o que significa que pouco mais de um terço nasceu no exterior, a despeito de ter (ou não) adquirido a nacionalidade francesa depois. Com efeito, até finais da década de 1950, as aquisições de artistas estrangeiros eram relativamente marginais.16 Apenas em 1963 a situação se modifica. Naquele ano, a maior parte das obras adquiridas foi de estrangeiros. Mas isso não se traduziu em uma política estável ou progressiva.17
É ainda relevante perceber que, entre os estrangeiros, há uma evidente desigualdade, bem como uma reiteração das hierarquias, pois são os provenientes dos países centrais do sistema internacional de arte que estão melhor representados. As porcentagens relativas ao local de nascimento são reveladoras: 65,7% são nascidos na França; seguidos por 3,9% de norte-americanos; 2,8% de alemães, mesma cifra para italianos; 2,1% de suíços; 1,9% belgas; 1,8% russos, mesmo número de ingleses; 1,6% de espanhóis; 1,3 % poloneses, cifra idêntica à de austro-húngaros; 1,2% provenientes dos Países Baixos. Apenas então começam a aparecer artistas de fora da Europa, e, nesse sentido, o país mais bem colocado é o Japão, com 1,1% de representantes; seguido pela Argentina (0,5 %); 0,4 % de canadenses e chineses e, finalmente, 0,3% de brasileiros, número idêntico ao de australianos e neozelandeses. A partir desse ponto, os agrupamentos são feitos não mais por países, mas por regiões, chamando atenção a rubrica “Outras Américas” com apenas 1,1%, assim como a pouca presença da África, sobretudo quando se considera as relações coloniais e pós-coloniais entre a França e o continente. Tem-se nesse caso 1,6 % de artistas da África do Norte e 0,7% de “Outras Áfricas”.18 Entende-se que, nesses exemplos, a presença por países específicos é tão baixa que foi preciso agrupá-la em grandes conjuntos que diluem suas particularidades. E quando se pensa em uma correlação interseccional em termos de origem, gênero e raça isso é ainda mais grave. Entre 1970 e 2000, somente três obras de artistas mulheres de origem africana foram adquiridas. Segundo Kelly Grant,19 entre as mil obras de artistas norte-americanos realizadas por cerca de 206 artistas pertencentes ao Cnap, apenas catorze foram produzidas por cinco mulheres afro-americanas.
No que diz respeito aos artistas latino-americanos, a partir do número de obras existentes na coleção, temos a seguinte distribuição, levando em consideração o país de origem e o sexo do(a) autor(a).

Os números apontam uma heterogeneidade expressiva entre os países em termos de representação, variando desde mais de duas centenas no caso dos argentinos até uma única obra paraguaia.20 Também do ponto de vista das relações sexo/gênero as diferenças são notáveis, havendo casos de uma quase paridade, como o do Chile ou México, passando pelos casos da Bolívia e Equador em que a maior parte das obras é assinada por mulheres,21 até países como o Uruguai, República Dominicana e Panamá, nos quais a totalidade das obras é produzida por artistas do sexo masculino.22
Até finais da segunda metade da década de 1980, a questão da internacionalização da coleção do Cnap, seja por meio da origem dos artistas ou pela presença das galerias estrangeiras entre os proponentes, é raramente abordada. Não é fortuito que, entre 1987 e 1989, esse debate agite os membros da Comissão em um período vizinho à realização da “Magiciens de la terre”, de 1989. Essa é considerada um marco no sentido de promover uma abertura das instituições para a arte contemporânea realizada pelos artistas originários de regiões não centrais. Segundo Bertrand-Dorléac: “Pela primeira vez, a cidade (Paris), como nenhuma outra antes, acolheu artistas de todo o planeta, sem distinção de raça, dinheiro, estilo ou técnica”23. Procurando criar um espaço multicultural dentro do museu, o curador Jean-Hubert Martin enviou emissários aos quatro cantos do mundo para descobrir artistas que pudessem representar diferentes países e culturas. Cinquenta artistas da “periferia” tiveram suas obras exibidas ao lado das de cinquenta artistas do “centro”, proporcionando um diálogo horizontal entre as diferentes modernidades possíveis. Interessante notar que o curador optou por, em geral, não apresentar obras de artistas d’ailleurs pertencentes às coleções francesas.24 Embora os países periféricos tenham sido forçados a responder a uma expectativa questionável de autenticidade, o que traz consigo noções de exotismo,25 é praticamente consenso na historiografia da arte que a mostra foi uma contribuição crucial para o global turn da arte contemporânea.
Note-se que Martin, diretor do MNAM, integrou, durante os anos citados, o comitê consultivo de aquisição de obras do Cnap,26 presidido então por Dominique Bozo,27 delegado de artes plásticas (délégué aux arts plastiques), o qual colocou em discussão uma polícia de acervos mais clara. Em 1987, Dominique Bozo solicita, por exemplo, que a comissão se dedique à compra de obras de artistas contemporâneos africanos e da Oceania com vistas a integrar a coleção do Musée national des Arts d’Afrique et d’Océanie (MAAO).28 A mesma preocupação é reforçada em outra reunião no ano seguinte, mas não traz referências à América Latina.29
Justo em 1989, ano da afamada exposição, “Magiciens de la terre”, o tema da internacionalização do Cnap foi debatido de modo mais direto em dois momentos. O primeiro, no âmbito das atribuições gerais do fundo com respeito à criação contemporânea, quando a crítica Catherine Millet, uma das integrantes da comissão, questiona se deveriam reservar uma parte específica aos artistas emergentes estrangeiros. O segundo quando o relatório traz um balanço das ações e aquisições da instituição, observado critérios como origem e gênero, o que é algo singular e que não torna a ocorrer, mostrando uma preocupação específica daquela gestão.30 O texto salienta que, desde março até aquele momento, as candidaturas livres apresentam uma equidade de origem entre artistas franceses e estrangeiros (26/26), o que se modifica quando se observa a lista dos indicados pelos membros da comissão: 94 são franceses e 62 estrangeiros (todos provenientes de países centrais, como Suíça, Alemanha, Estados Unidos e Grã-Bretanha). Menciona-se ainda que a maior parte das indicações provenha de artistas vinculados a galerias, sendo 109 francesas e apenas catorze estrangeiras.31
A atenção a tais questões não se manteve nos anos seguintes. Em 1991, sob a direção de François Barré, sucessor de Dominique Bozo, o qual assumira o posto de diretor do Centre Pompidou, outra vez a proposta de uma reserva orçamentária para a aquisição de artistas estrangeiros é colocada por Catherine Strasser.32 Ao que o novo presidente responde:
François Barré responde então que o princípio fundamental do Comitê é o de que cada um possa fazer suas escolhas a título pessoal. O critério da nacionalidade não é particularmente pertinente, mas pode resultar de uma opção tomada, uma vez mais, de modo individual.33
O trecho é bastante explícito sobre o quanto os debates que antecederam tal gestão foram incapazes de gerar uma política voltada à internacionalização da coleção. Do mesmo modo, o que se afirma é que o ingresso de obras de artistas estrangeiros resultaria de decisões individuais, isto é, ficaria a critério dos membros da comissão tanto apresentar propostas quanto avaliar as obras e dossiês enviados pelos próprios artistas e galeristas estrangeiros. Entende-se que a tão reputada exposição “Magiciens de la terre” não gerou frutos imediatos no que diz respeito à uma política de aquisição sensível à origem dos artistas, o que foi aliás já demonstrado no caso dos artistas africanos estudados por Maureen Murphy.34 Mas e no que tange aos artistas latino-americanos? A mostra trouxe impactos?
Com vistas a identificar a presença dos artistas latino-americanos no Cnap, construí uma base de dados com 410 entradas de obras, englobando os três países com o maior número de aquisições: Argentina (210), Brasil (120) e México (80).35 Um dos critérios de agrupamento possível é o da temporalidade de ingresso das obras na coleção. Nesse caso é perceptível que as décadas de 1970 (com 87 produções) e, em especial, 1980 (106) são aquelas que apresentam um maior volume de aquisições. A década de 1990, imediatamente posterior à “Magiciens de la terre”, assinala uma queda expressiva de quase 40% (67). Já os anos 2000 - quando supostamente a mundialização do sistema artístico teria se tornado um “fato” -, os números não respaldam tanto otimismo, pois a quantidade de ingressos de obras cai para praticamente metade (54) daquela registrada nos anos 1980.

Assim, do ponto de vista institucional, a exposição “Magiciens de la terre” teve impactos contestáveis. Segundo Murphy:
Do lado das instituições nacionais francesas, a acolhida reservada às obras foi nula. Não somente o MNAM adquire poucas obras, como também as deposita de modo permanente no Musée des arts d’Afrique et d’Océanie (MNAO) quando Jean-Hubert Martin assume a direção, em 1994. Como se a brecha aberta pela exposição não tivesse lugar num museu de arte moderna, e que elas devessem retornar às suas origens coloniais, no palácio que foi para elas construído em 193136
No caso dos artistas latino-americanos (argentinos, brasileiros e mexicanos), percebe-se que os anos 1970 e 1980 são aqueles em que o Cnap absorveu mais obras. Ou seja, isso ocorreu antes de “Magiciens”. Os anos posteriores mostram, ao contrário do que se imaginaria, uma queda expressiva nas aquisições. Tais números me conduziram a procurar compreender o que ocorreu nos decênios mencionados, tornando tal período central na investigação. As explicações para esse fenômeno são múltiplas, relacionadas a um contexto político, social e cultural complexo, marcado pelo encontro de dois movimentos: uma política cultural abrangente e cosmopolita nutrida pelo governo francês e, ao mesmo tempo, um aumento no fluxo de artistas provenientes da América Latina.
Com a eleição de François Mitterrand, em 1981, e a escolha de Jack Lang para o Ministério da Cultura (entre 1981-1986), a pasta conheceu uma grande importância e dinamismo, tornando o Estado um agente basilar dentro do sistema da arte contemporânea francesa. Como bem analisou Raymonde Moulin,37 o governo francês atuou tanto como mecenas quanto como benfeitor; adquiriu e encomendou obras de sorte a fomentar as coleções públicas, tanto do MNAM, quanto dos museus de província, e ainda ampliou de modo significativo as coleções dos fundos nacionais, regionais e municipais de cultura, notadamente por meio da aquisição de obras contemporâneas e de ajuda aos artistas vivos. Com isso, o Estado passou a exercer um papel significativo na organização da vida artística de seu tempo, em diálogo com outras instâncias, como o mercado.
Uma das medidas fundamentais foi o aumento exponencial do orçamento para o setor, o que impactou as aquisições do Cnap.38 Durante a sessão de dezembro de 1981, o presidente Claude Mollard informou que o crédito disponível às compras e encomendas triplicaria em relação ao ano anterior.39 E, com efeito, os números mostram isso, pois as cifras anuais passaram a ser maiores do que que ocorria antes no intervalo de uma década. Por exemplo, entre 1970 e 1980, 410 obras foram adquiridas; menos do que se registrara em um único ano, como o de 1981, quando 615 obras ingressaram na coleção. Tendência que se mantém nos anos seguintes, com 701 obras em 1982; 1639 em 1983 (maior cifra na história da coleção); 782 em 1984, e 749 em 1985. Dessa feita, a década de 1980 pode ser vista como um “parêntese encantado”40 na história do Cnap. O século XXI trouxe consigo, especialmente a partir de 2010, um corte de cerca de metade de seu orçamento.41 Considerando ainda que o valor das obras no mercado (francês e internacional) caminha na direção inversa, registrando cifras cada vez mais extraordinárias, entende-se que o número de aquisições globais após os anos 2000 verifique um decréscimo global, o que atinge, por certo, também os artistas estrangeiros.
Assim, esse momento de maior aquisição de obras de artistas latino-americanos coincide com um período específico de abundância de recursos, isto é, não resulta de uma política especificamente orientada para artistas dessa ou daquela nacionalidade. Mas é importante lembrar que se trata de um período de grande afluxo de artistas e intelectuais latino-americanos à França, o que, em parte, pode estar relacionado aos golpes de Estado ocorridos na região, em particular na América do Sul. A começar pelo Golpe Militar no Brasil em 1964, aprofundado pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1968; seguido pela Argentina em 1966 e, novamente, em 1976;42 Chile, Uruguai e Bolívia em 1973; Peru em 1975; Equador em 1976.43 As tomadas de poder por parte das Forças Armadas e as perdas das liberdades políticas obrigaram milhares de pessoas a partirem rumo ao exílio. Segundo Olga Gonzáles,44 até inícios dos anos 1970, a comunidade de latino-americanos na França era restrita a 10 mil pessoas, composta por estudantes, intelectuais e artistas. Com os golpes, especialmente contra Allende no Chile, essa presença cresceu bastante, de modo que, entre 1973 e 1993, registram-se mais de 9 mil pedidos de estatutos de refugiados apenas por parte de cidadãos chilenos, em sua maioria aceitas. Os destinos dos exilados foram múltiplos, e, mesmo na Europa, a Espanha é o país que atraiu o maior contingente: cerca de 42 mil argentinos; mais de 28 mil chilenos, cerca de 11 mil uruguaios etc. Dado que muitos indivíduos não tinham documentação, o contingente devia ser muito maior.45 No entanto, a visibilidade desses grupos foi mais sentida na França.
A escolha da França como destino atualizava uma tradição de circulação de elites intelectuais e artísticas latino-americanas existente desde o século XIX. A imagem de Paris como uma cidade cosmopolita e aberta à contribuição dos estrangeiros, evocada pelo próprio conceito de Escola de Paris, criado em 1925 pelo crítico André Warnod, foi reiterada pelas trajetórias mitificadas de brasileiros, como Villa Lobos, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, ou dos mexicanos Diego Rivera, anos depois Frida Kahlo, do uruguaio Pedro Figari, entre tantos outros artistas e intelectuais que estiveram na cidade durante as décadas de 1920 a 1940. Ao que se somam os casos dos escritores que chegaram na década de 1950, como Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, tão fundamentais para o boom da literatura latino-americana na Europa. No mesmo período, diversos artistas abstratos e cinéticos, provenientes sobretudo da Argentina (Le Parc, Tommasello, Aguero, Kosice, Martha Boto, Demarco) e Venezuela (Soto, Cruz-Díez), desembarcaram em Paris, assinalando trajetórias de notável inserção, contando inclusive com o apoio da reputada galerista Denise René.46
Os cinéticos, por sinal, estão bem representados no Cnap e contaram com uma atenção especial por parte dos membros da comissão de aquisição. Eles já haviam sido contemplados por aquisições para o MNAM desde a década de 1960, ao lado de integrantes de outros movimentos de vanguarda reconhecidos no período, como o Grupo COBRA, a Op Art, o Novo Realismo ou movimentos abstratos, como o Supports-Surfaces. No entanto, tais obras mais conceituais ou vanguardistas pareciam limitadas ao MNAM, ao menos até a gestão de Bozo. Foi no fim dos anos 1980 que houve um incentivo maior para a sincronização da coleção com vetores mais ousados da arte do presente. A gestão de Barré continuou essa abertura, procurando sanar lacunas da coleção. Por isso, a partir de 1991, ele estabelece como um objetivo importante a rattrapage [recuperação] de obras e artistas julgados relevantes e pouco representados no Cnap. Foi nesse movimento que, no ano seguinte, realizaram-se visitas aos ateliês de Hugo Demarco e Horacio Garcia-Rossi, “no quadro de um estudo preciso sobre a representação da arte cinética nas coleções da Fnac (Fédération nationale d’achats des cadres)”47.
Esses elementos colocam em questão a tão propalada centralidade de Nova York como a grande metrópole artística mundial no pós-Guerra, pois, para diversos intelectuais e artistas latino-americanos, Paris continuou a ser o destino escolhido. A imagem de terra de acolhida era respaldada de certo modo pela política externa nutrida pela própria França. Destaca-se nessa direção a viagem do presidente De Gaulle, em 1964, por dez capitais latino-americanas com vistas a firmar acordos de cooperação cultural, os quais se traduziram no envio de estudantes e pesquisadores. Segundo Rolland e Touzalin,48 entre 1968 e 1969, 526 latino-americanos chegaram em Paris, a maioria brasileiros, seguidos por mexicanos e argentinos, formando o primeiro grupo de bolsistas universitários estrangeiros. Além disso, a emergência na década de 1960 dos movimentos estudantis e da contracultura disseminaram uma imagem positiva da América Latina, associada politicamente à Revolução Cubana (1959) e seus heróis (como Che Guevara), ao governo de Allende no Chile (1970-1973), considerado pelas esquerdas mundiais, inclusive por François Mitterrand, como um exemplo por se tratar do primeiro governo socialista que se implantou por via democrática.49
Esse terceiro mundismo difuso colaborou também para as redes de apoio que se fizeram necessárias quando os contingentes de políticos, intelectuais e artistas começaram a chegar, fugindo de seus países em função das ditaduras, em especial a partir do caso chileno.50 Em termos gerais, porém, os números de latino-americanos entre o efetivo global de estrangeiros mantiveram-se baixos, em torno de 0,5% em 1975; 0,8% em 1982 e 1,3% em 1990.51 Mas tal realidade empírica contrastava com a alta visibilidade que eles dispunham, a ideia de uma imensa “comunidade de exilados” latino-americanos era (e ainda é) bastante forte, o que deriva em grande parte do perfil social de seus membros. De um modo geral, eram pessoas dotadas de capital cultural elevado, com possibilidades de inserção em universidades ou em instituições, e que virtualmente poderiam ter projeção pública.52 É o caso dos artistas visuais, uma categoria específica dotada de possibilidades ímpares de visibilidade para quem, de fato, Paris constituiu o principal centro de atração naqueles decênios, conforme uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), à época, bem demonstra:
Certamente, Paris continua também a ser uma das capitais mundiais das artes e das letras: uma pesquisa da UNESCO de 1981 mostra que, entre dos 220 artistas visuais latino-americanos que constituem a ponta de lança da arte latino-americana, precisamente dos 188 cuja residência é identificada, quase 40% (38,2%) tiveram uma estadia prolongada em Paris, muitas vezes dispondo aí de um ateliê. Se metade deles residem ainda em Paris, ao mesmo tempo Nova York reúne apenas 9% dos artistas plásticos mencionados, ou seja, duas vezes menos.53
Dentro desses circuitos, identidades são forjadas e redes de apoio são criadas. Para os brasileiros, por exemplo, Anette Goldberg explica que “permanecer na França significava dizer desde então participar daquilo que ocorria, aprender e tentar tirar lições válidas para a esquerda brasileira. Isso se traduzia, entre outras coisas, por uma tomada de consciência de uma identidade latino-americana, pela adesão à teoria da luta armada defendida por Che [Guevara] e difundida por Régis Debray”54. Diversas iniciativas de criações de associações e grupos de apoio e solidariedade foram construídas naquele momento.55
Naquele contexto se destaca a fundação do Espace latino-américain [Espaço Latino-Americano] (1980-1993) pelos artistas argentinos Rodolfo Krasno (1926-1982), Julio Le Parc (1928), Luis Tomasello (1915-2014), Luis Felipe Noé (1933), Jack Varnarsky (1936-2009) e Fernando Maza (1936); os brasileiros Arthur Luis Piza (1928-2017) et Gontran Guanaes Netto (1933-2017); os uruguaios Leopoldo Nóvoa (1919-2012) e José Gamarra (1934), além do peruano Alberto Guzman (1927-2017) e do venezuelano Juvenal Ravelo (1934). O grupo reúne artistas com semelhanças de origem, posto que todos são da América do Sul; orientação política, todos alinhados com os movimentos de esquerda e identidade de gênero, são todos homens (o que não pode ser naturalizado). A iniciativa foi bem estudada por Christine Frérot, que assim o descreve:
Essa iniciativa de artistas estrangeiros que viviam e trabalhavam na França, ligados pela amizade, pela cultura, pela língua e pelo exílio, muitas vezes político, é absolutamente inédita. O desafio é grande porque se trata de autogerir coletivamente e tornar o Espaço autossuficiente. É um espaço privado, financiado pelos seus membros, que pretende destacar-se no cenário artístico comercial. O objetivo era também contribuir para a própria divulgação deles. Nele, os artistas expõem gratuitamente. O Espaço não cobra comissão sobre as vendas. No entanto, por vezes, organiza exposições-vendas nas quais os rendimentos lhe são revertidos para participar estritamente de seu funcionamento.56
No Espaço, realizaram-se diversas exposições coletivas, que eram consideradas prioritárias, assim como algumas individuais, especialmente de membros do grupo. Durante os anos de 1981 a 1984, tiveram ajuda de custo do Estado francês na forma de subvenção, bem como apoio de outros artistas latino-americanos que estavam no país, como Antonio Seguí, Jesus Soto e Roberto Matta, entre outros. Esses deixavam suas obras ali à venda, revertendo para o local a verba derivada da transação. Diversas obras adquiridas pelo Cnap são provenientes desse espaço coletivo, como: Portrait du nom de Paris, de Horacio Garcia-Rossi; Modulation 452, de Julio Le Parc; Objet plastique, de Luis Tomasello, Peuples de la terre de perrouquet, de Gontran Guanaes Netto; e Relief, de Luis Zárate. Mas indubitavelmente, a obra que mais vezes aparece citada na base é La Valise.
La Valise é uma obra coletiva, composta por um conjunto de onze gravuras numa caixa de madeira, cada uma assinada por um artista do grupo, a saber: Krasno, Guzman, Noé, Le Parc, Nóvoa, Gamarra, Maza, Ravelo, Tomasello, Piza e Netto.57 A diferenças estilísticas entre cada um deles é mantida, embora haja uma maior presença de obras abstratas (Krasno, Le Parc, Nóvoa, Ravelo, Tomasello e Piza), há outras de teor figurativo (caso de Gontran Guanaes Netto, Gamarra e Luis Felipe Noé). Também do ponto de vista técnico, as produções são bastante heterogêneas, ainda que todas tenham em comum o suporte do papel, em alguns casos emprega-se guache, ou estêncil, há também papel pintado e recortado; papel pintado sobre papelão e até, no caso de Nóvoa, a utilização de areia, gesso, cordão e arame sobre a gravura.58 A diversidade não os impede de reivindicar uma identidade de grupo, essa se dá a partir de critérios não estritamente artísticos, como a condição de estrangeiros em Paris, membros de uma comunidade de “artistas latino-americanos” e, vale a pena notar, totalmente masculina.

A hegemonia masculina no Espaço Latino-Americano me chamou atenção por coincidir com a eclosão do pensamento feminista, não apenas nos Estados Unidos, mas na própria França, trazendo impactos teóricos e práticos também para o campo das artes.59 Soa, assim, incômodo imaginar um silenciamento tão grande das artistas, mulheres e latino-americanas justo numa época tão efervescente. Mas, sim, elas existiram, produziram, e algumas tiveram obras adquiridas pelo Cnap, tais como as argentinas Lea Lublin e Marie Orensanz, a brasileira Cybèle Varela ou a sino-brasileira Hoo Mojong,60 que, a despeito de ser uma das mais bem representadas na base, é hoje profundamente desconhecida na história da arte nacional e internacional.61
As memórias da artista argentina Marie Orensanz, instalada em Paris desde 1975, contribuíram para compreender a complexidade desse momento. Ela já havia vivido por algum tempo em Paris entre 1964 e 1965. Depois, retornou para a Argentina e, com o acirramento das tensões políticas no país, volta, com seu marido e filhos, à Itália (1969-1974), onde integra os circuitos artísticos de Milão, por ela considerados muito limitados, em particular para as mulheres. Por isso, optou por migrar novamente com a família para Paris. Mesmo contando com o apoio de sua conterrânea Lea Lublin, artista já bastante reconhecida no circuito francês, a inserção de Orensanz não foi fácil:
No início, quando voltei a morar na França, não perguntei aos muitos artistas argentinos - homens - que viviam em Paris como fazer para expor. Eu percebi que havia salões e disse para mim mesma que era isso que eu tinha que fazer. Como não queria me impor, passei pelos salões onde ofereci meus trabalhos.62
Como a artista pontua, havia um conjunto de artistas (homens) compatriotas bem situados na França, como Le Parc, Tommasello, Krasno e Seguí, seu ex-professor. Não obstante, isso não garantiu nem convites para participar da Bienal de Paris, ou mesmo para expor “com eles”. Consciente de que as assimetrias no mundo da arte existiam, trazendo, entre outros problemas, menores possibilidades de exporem seus trabalhos, Orensanz passou a participar de circuitos de mulheres artistas compostos por francesas e estrangeiras. Elas se reuniam para discutir suas produções e estratégias de inserção, de exposição das obras. Algumas iniciativas nesse sentido foram a criação da Galerie des Femmes, que organizou sua primeira exposição individual em Paris.63 A mostra “Fragmentismo” ficou aberta entre 7 de maio e 14 de junho de 1982. Foi a partir dela que Orensanz teve sua primeira obra adquirida para o Cnap, a fotografia Diriger à distance.64 Nota-se que é uma aquisição feita a partir de proposição individual da artista, sem estar associada a nenhum grupo. Algo que, como veremos, é comum às artistas mulheres do período.
O ano de 1982 foi relevante para o ingresso de obras latino-americanas no Cnap, notadamente por meio da aquisição de um conjunto expressivo proveniente da exposição “L’Amérique latine à Paris: droits socialistes de l’homme (im 3)”. Foram elas: Boules de pyramide, de Julio Le Parc;65Jaune et bleu, de Tomasello;66Hamlet, de René Zapata;67Les Filles II, de Gustavo Verajano;68Foulle, de Gontran Guanaes Netto; Paris, de Garcia-Rossi;69Collage, de Zarate; Post atomicum, de Francisco Melo; Cheminées d’usine, de Jario Tellez.70 Essas obras são diversas entre si, comportando desde pinturas em grandes dimensões até pequenos desenhos. Há trabalhos que podem ser classificadas como neofigurativos, como a interessante tela de Francisco Melo, a qual aborda um cenário distópico futurista sobre a relação homens × máquinas;71 ou ainda de um realismo politicamente militante, como a obra de Gontran Guanaes Netto,72 a qual, com coloridos estridentes, figura um grande conjunto de trabalhadores rurais; ou mesmo obras mais conceituais, como o Retrato do nome de Paris, de Garcia-Rossi (que no documento anterior aparecia apenas como Paris). Nem todas as mencionadas no texto podem ser encontradas na base de dados do Cnap, o que não significa que elas não a integrem, pois o inventário está incompleto. Mas daquelas cujas imagens estão acessíveis, pode-se dizer que apenas a de Gontran Guanaes Netto se vincularia, de algum modo, a um certo imaginário (questionável sempre) de “latino-americanidade”.

A exposição mencionada, organizada pela Associação Droits Socialistes de l’Homme, ocupou o Grand Palais, em Paris, entre 8 e 15 de dezembro de 1982. Teve apoio do governo francês e foi inaugurada pelo presidente Mitterrand e pelo ministro da cultura Jack Lang, reunindo mais de 250 artistas de diversas nacionalidades e dedicados a modalidades distintas, como pintores, gravuristas, fotógrafos e escultores. Além disso, o catálogo da exposição informa que houve também participação de músicos e escritores. Nas artes plásticas, os curadores foram Christine Frérot e Jorge Volpe. Segundo Frérot, a repercussão da mostra foi quase nula e passou desapercebida pela crítica e grande imprensa, o que, segundo ela, decorreu da dimensão oficial e política do evento, que se sobrepôs à qualidade artística.73
De fato, até hoje, a exposição foi pouco estudada e ocupa um lugar marginal na história das exposições de arte latino-americana que ocorreram em países centrais. Porém, quando se observa seu impacto do ponto de vista institucional, ao fomentar a inclusão de obras de artistas latino-americanos nas coleções francesas, pode-se ter uma percepção diferente. Afinal, ela permitiu a aquisição de nove obras para o Cnap, todas assinadas por homens, a despeito de muitas artistas terem participado da exibição. Segundo o catálogo, as seguintes artistas expuseram na mostra: Agna Aguade (Chile); Maria Amaral (Argentina); Beatriz Solano (Colômbia); Ximena Armas (Chile); Maria Arvelazi Gordon (Venezuela); Maria Eugenia Arria (Venezuela); Susana Aviles (Méico); Concepción Balmes (Chile); Maria Cristina Barbosa (Brasil); Gracia Barrios (Chile); Martha Boto (Argentina); Monica Bunster (Chile); Ana Cechile (Uruguai); Ester Chacon Avila (Chile); Irene Domínguez (Chile); Beatriz Duque Molina (Colômbia); Antonia Ferreiro (Chile); Maria Virginia Giusto (Argentina); Mina Gondler (Argentina); Matilde Grant (Argentina); Sarah Grilo (Argentina); Susana Lamberti (Argentina); Leonor Llosa (Peru); Agueda Lozano (México); Patricia Lopez-Merino (Peru); Hebe Lo Prete (Argentina); Lea Lublin (Argentina); Olga Luna (Peru); Carmela (Bolívia); Cristina Martinez (Argentina); Gala Martinoya (Chile); Teresa Montiel (Chile); Marie Orensanz (Argentina); Monica Ortiz (Argentina); Gina Pellón (Cuba); Alicia Penalba (Argentina); Nell Politi (Argentina); Miriam Presnam (Argentina); Emma Reyes (Colômbia); Ofelia Rodriguez (Colômbia); Cristina Rubalcava (México); Clara Schneider (Chile); Felicia Sewicki (Argentina); Vivian Scheihing (Chile); Silvia Tabares (Argentina); Beatriz Tanaka (Brasil); Virginia Tentindo (Argentina); Gloria Uribe (Colômbia); Maty Vitart (Brasil); Elsa Zambrano (Colômbia); Alicia Zadán (Argentina); Cris Queiroz (Brasil). Como se vê, não foram poucas.
A consulta aos arquivos e relatórios revelou que algumas dentre as acima citadas tiveram obras adquiridas pelo Cnap, mas sem estarem associadas jamais ao “grupo latino-americano”. Esse é o caso da argentina Alicia Zadán,74 que participou da mostra e, em 1984, teve uma obra similar, provavelmente pertencente à mesma série, adquirida. Trata-se de Le Cannibale (Figura 3), que se encontra hoje na embaixada francesa no Chile. Uma tela de grandes dimensões em que um homem indígena está em primeiro plano, sozinho, portando armas simples para se defender do que está atrás: um grande navio que alude ao início da colonização. A artista faz uso de uma representação exótica, recorrendo à tipificação do indígena e a um ambiente “tropical”, mas claramente se trata de algo irônico, pois é inevitável pensar que o protagonista é bastante frágil, ainda que armado, para resistir à grande máquina do empreendimento colonial. Observando o título não há como não se perguntar, afinal, quem é o “canibal” nesse processo?

A compra do trabalho foi aprovada pelo Cnap em 1984 após pleito estabelecido individual e diretamente pela própria artista;75 isto é, sem representação de galeria, sem intermediação de algum membro da comissão e sem associação a qualquer grupo artístico. Interessante ainda notar que ela chegou a integrar o Espace latino-américain, constando entre os expositores da mostra levada a cabo em 1981, “Petits formats”. Dela fizeram parte em meio a um grande contingente masculino, algumas mulheres como Ximena Armas, Monica Bunster, Gracia Barrios, Patricia Duran, Sarah Grilo, entre outras. No entanto, nem Zadán e nem essas companheiras de mostra não parecem ter seus nomes associados ao “grupo”.
Em entrevista à Radio France, em 2016, Zadán se recorda da exposição, da qual teria sido uma das responsáveis (embora sem receber os devidos créditos), ao ajudar a escolher a lista de sul-americanos presentes. Segundo a artista, a mostra começou com um “mal-entendido”. O nome inicial seria “Artistas latino-americanos em Paris”. Depois, sem se entender como, agregou-se “frutos do exílio”, o que caiu muito mal na comunidade porque diversos artistas lá estavam há décadas, de sorte que não se encaixariam na categoria “exilados”. A artista ainda se lembra que o patrimônio francês (certamente se referindo ao Cnap) havia proposto a aquisição de uma obra de sua série “Tatuados” (provavelmente a que consta no catálogo; ver Figura 4). Ela explica se tratar de uma sutil crítica política aos ingleses, pois as tatuagens remetem à ideia de pirataria, e com isso ela procurava aludir à Crise das Malvinas, uma guerra iniciada em 1982 entre ingleses e argentinos pelo controle daquele arquipélago. A artista, no entanto, teria optado por não vender a obra. Mas, no ano seguinte, como se viu, ofereceu obra similar à aquisição do Cnap.76
Outra artista que tem obra adquirida em 1982 sem estar vinculada ao grupo, ou a galeria, mas por meio de proposta individual é Lea Lublin. Nascida na Polônia, em 1929, de origem judaica, migrou com a família para a Argentina, onde formou-se em 1949 na Escola de Belas-Artes. Em inícios dos anos 1960, seu trabalho com novos materiais experimentais tem boa recepção, especialmente no Instituto Torcuato Di Tella (ITDT), que exerceu papel importante para o desenvolvimento da arte contemporânea na Argentina. Em 1965, mudou-se para Paris, onde teve uma carreira muito bem-sucedida, com amplo reconhecimento, inclusive pelas pautas feministas que abordou em suas obras, como na célebre performance Mon Fils (1968), realizada no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris. Embora ela tenha tido contato com diversos artistas latino-americanos e tenha mantido conexões com a Argentina ao longo de sua vida,77 essas relações desaparecem em seu histórico no Cnap. Nenhuma de suas obras ali presentes tem qualquer relação com o grupo latino-americano. Aliás, segundo Lublin, ao rememorar o período em que se aproximou de Lygia Clark, a qual, com ela, também era uma artista contemporânea latino-americana bem inserida no circuito francês,78 ambas inclusive professoras da Sorbonne:
Nos víamos sempre, passamos a ser amigas e frequentar nossos ateliês. […] Por intermédio de Julio Le Parc conheci o pessoal da Robho, mas não fiz parte do grupo (venho da pintura expressionista e da figuração). Encontrava-os sempre nas festas. Aquele, aliás, foi um momento formidável em que as festas e encontros entre artistas eram constantes.79
A primeira obra de Lublin a entrar no acervo é La mano di Dante, um díptico de duas fotografias produzidas em 1977, resultante de uma performance/intervenção pública que a artista realizou em uma galeria napolitana. A obra faz parte de uma série intitulada “Dentro/Fora dos museus”, por meio da qual a artista evoca o espectador a olhar de modo diverso toda uma cultura visual, herdada da tradição (inclusive artística) que compõe um conjunto de valores, modos de ver, pensar, classificar o mundo hierárquico e atravessado por um sistema patriarcal.80 Embora a aquisição tenha ocorrido em 1983, em plena efervescência do grupo latino-americano e que ela tenha participado da já mencionada mostra de 1982, também em seu caso se trata de uma proposta individual feita pela própria artista e aceita pela Comissão. Em suma, uma conquista - mas também um ato - individual.
Com efeito, tanto no imaginário da época quanto nos documentos que nos chegam hoje, a impressão que se tem é a de que os grupos de artistas latino-americanos eram formados só por homens. Não se deve negligenciar o peso que esse fenômeno pode ter desempenhado para o desconhecimento, e mesmo desvalorização, da produção feminina realizada nesse momento. O que se torna mais evidente quando se observa o sucesso internacional de alguns artistas, em geral, associados ao cientismo, como Julio Le Parc ou Jesús Soto.81 Como assinala Andrea Giunta, “um fator que possivelmente o explique é que as mulheres tem uma tendencia a se isolar, enquanto os homens trabalham em equipe”82. Diversos estudos em sociologia da arte83 já analisaram que os grupos artísticos são sujeitos fundamentais na dinâmica da arte moderna e contemporânea, dotando-os de uma identidade particular em um espaço concorrencial no qual, “existir é diferir”84. Analisando o caso de Émilie Charmy, artista que pertencia ao círculo fauvista, expunha próxima a eles no Salon, mas permaneceu à sombra de seus companheiros, Gill Perry apontou que o fato dela se manter independente em relação ao grupo contribuiu para que tenha ficado às margens do movimento fauvista, carecendo de reconhecimento equiparável a dos colegas homens.85 O mesmo é pontuado por Patricia Mayayo a respeito de Louise Bourgeois, cujo reconhecimento é, como se sabe, muito tardio.86 A tendência à não participação (ou a invisibilidade de sua participação) nos grupos artísticos provoca um impacto negativo em termos de notoriedade para as mulheres artistas.
A presença de Marie Orensanz, como de outras colegas de geração, na “comunidade latino-americana” é bastante ambígua e complexa. De um lado, ela própria não se sentia à vontade com aquela etiqueta, o que a fez ter dúvidas de participar de uma exposição organizada pelo crítico Jorge Glusberg no Espace Cardin, em Paris, em 1975, intitulada “Art de systèmes en Amérique latine”. Segundo ela: “Eu estava, talvez, um pouco reticente à ideia de ser associada à cena latino-americana”87. Essa mesma questão reaparece hoje em sua fala, quando questionada acerca de sua frequente participação em exposições que tem como tema a arte latino-americana:
Não, para mim o metro quadrado que me rodeia, onde quer que esteja, é a minha pátria. As pessoas me dizem: “Ah, você é argentina”, ou: “Você é latino-americana”, ou ainda: “Você é franco-argentina”. Essas classificações não fazem sentido para mim. Na minha opinião, cada vez que vou a um país, procuro me apropriar dele sem perturbá-lo. […] Em 1982, houve uma exposição no Grand Palais intitulada “A América-Latina em Paris: os frutos do exílio”. Ela reuniu artistas latino-americanos como Wilfredo Lam, Roberto Matta, Antonio Seguí, o cinético Rafael Soto, Julio Le Parc etc. Lá expus trabalhos em mármore, mas também acrescentei um panneaux [painel], que os organizadores rapidamente retiraram, que dizia: “Meu trabalho não é fruto do exílio, mas de um longo processo rumo à liberdade em todas as áreas”88.
Entende-se que Orensanz não se identificava com uma identidade artística derivada da origem nacional, mas participava das mostras por ver nelas uma oportunidade de expor suas obras. Não se identificava tampouco com a categoria de exilada, embora tenha deixado seu país, em 1969, em função do clima político e da censura à sua instalação “La gallareta”. Outras duas artistas, agora brasileiras, presentes nesse mesmo contexto na França, quando interpeladas sobre a questão afirmaram não terem procurado se integrar aos circuitos latino-americanos. Esse é o caso de Cybèle Varela e Gretta Sarfaty. Ambas afirmaram ter se inserido com facilidade no circuito francês por dominarem bem a língua, entre outros fatos.89 Nota-se em ambas um desconforto com a própria etiqueta de “artista latino-americana”, isso mesmo no caso de Varela, que deixou o Brasil após ter uma obra vetada na IX Bienal de São Paulo, em 1967, em função de seu teor político, e que, portanto, vivenciou uma situação próxima a do exílio artístico, partilhada por diversos artistas daquela geração.90 Todavia, a experiência do exílio não se traduziu, no caso dela, por uma identificação com a categoria “artista exilada”.
A dimensão do gênero na experiência do exílio merece maior atenção e apontamentos sobre o quanto ela trouxe experiências profundamente diversas e desiguais entre homens e mulheres.91 Ao analisar os casos de exilados brasileiros, Anette Goldberg-Salinas92 afirma que, enquanto os homens, ao chegarem na França, encontravam redes de apoio e podiam contar com o mito do “herói revolucionário”, angariando simpatia entre a esquerda francesa, o que viabilizava suas inserções, no caso das mulheres a experiência foi uma tragédia. Em geral, elas vivenciaram um grande déclassement [declínio], além da dificuldade de integração e uma desvalorização de seu status nos próprios grupos de esquerda.93
Algo muito semelhante ocorre com as chilenas, a despeito do grupo feminino ser significativo (cerca de 40% do total de exilados), as quais tiveram suas experiências profundamente invisibilizadas. Como bem analisa Yvette Marcela Garcia, enquanto seus maridos e companheiros eram vistos como “militantes” e gozavam de uma boa imagem pública na França, elas tiveram que se ocupar dos cuidados com os filhos, com a casa, “se virar” para conseguir dinheiro para subsistência e, além disso, participar das organizações políticas. Os papéis de mãe e esposa a que eram submetidas eram naturalizados como obrigações femininas e não gozavam do mesmo tipo de importância que a militância política, atividade vista então como masculina por excelência. Assim, muito embora as famílias e os casais de exilados tenham sido todos submetidos a uma situação de deslocamento e desenraizamento violenta e total, os papéis acumulados pelas mulheres, embora penosos, foram desvalorizados.94 Com isso, é possível entender que diversas artistas mulheres tenham refutado esse lugar de “mulher exilada” pela subalternidade que ele trazia consigo.
Por outro lado, sabe-se também que o lugar de “artista feminista”, ou do próprio feminismo dentro das esquerdas em geral, era, à época, bastante incômodo. O trauma do exílio, e de sua experiência assimétrica, levou diversas mulheres latino-americanas a se conscientizarem sobre as desigualdades de gênero a que estavam sujeitas. Foi ali que muitas delas desenvolveram uma consciência feminista, fomentando a criação de grupos específicos, entre eles o círculo Femmes brésiliennes à Paris (1976-1979), que chegou a reunir centenas de pessoas. A importância dessa vivência para o desenvolvimento do feminismo no Brasil após o retorno de muitas exiladas é hoje reconhecida.95 No entanto, à época, elas enfrentaram diversos obstáculos no interior da própria esquerda, a qual acusava o grupo de “divisionista” ou pouco importante uma vez que se acreditava que o socialismo resolveria todas as desigualdades.96 Goldberg menciona que, no primeiro ano das reuniões do grupo, ainda de forma pouco institucionalizada, os companheiros das mulheres tendiam a boicotá-las; alguns deles inclusive disseram que aquelas que não abdicassem dos encontros perderiam os auxílios financeiros outorgados aos exilados.97
A situação das mulheres artistas naquele momento era complexa por elas parecerem não se encaixar em nenhuma das posições disponíveis, ou, ao menos, não de modo confortável. Embora estrangeiras e oriundas dos países latino-americanos, elas nem sempre procuraram defender tal identidade, a qual, porém, foi estratégica para angariar apoios e promover visibilidade coletiva. O caso do Espace latino-américain é revelador. Nele, embora por vezes presentes, as artistas mulheres, em geral, passaram desapercebidas. As obras coletivas eram assinadas por homens, as compras feitas pelo Cnap associadas ao espaço foram todas masculinas. Mesmo aquelas que tiveram suas obras adquiridas, provenientes dos mesmos eventos que tais homens, lograram isso individualmente. Aliás, não deixa de ser interessante notar que a única exposição que o Espaço latino-américain organizou especificamente para mulheres artistas, em 1985, se chamou “Individu-elles”. Segundo Frérot, a ideia inicial partiu de Arthur Luiz Piza, sensível às questões feministas em função da atuação de sua esposa, Clélia Piza (responsável por introduzir a obra de Clarice Lispector à Galerie des Femmes). Participaram da mostra as artistas Agueda Lozano, Vilma Fuentes, Ximena Arma, Christine Frérot, Marie Orensanz e Alicia Dujovne Ortiz. Tendo como objetivo central colocar em evidência obras que discutissem a relação entre imagem e texto, a proposta era a de que cada crítica ou escritora escrevesse um texto sobre cada uma das artistas.98 No fôlder abaixo (Figura 5) se vê, à esquerda, o nome da artista e, à direita, da autora do texto correspondente.

O título da mostra comporta uma brincadeira entre a noção de indivíduo e de elas (elles, em francês). Ainda que seja sagaz, é importante lembrar que, dentro da lógica dominante nas esquerdas dos anos 1970 e 1980, o caráter individualista e burguês do movimento feminista era aquilo que o tornava tão malvisto. Para emergirem naquele universo, as mulheres precisavam pagar um preço alto: como artistas precisavam afirmar sua individualidade, no entanto, isso as afastava dos valores comunitários dos grupos de esquerda latino-americanos. É certo que elas procuraram, e ainda hoje em seus discursos reiteram, concretizarem o desejo de serem vistas como independentes, livres das “prisões simbólicas” que os rótulos de “esquerda”, “latino-americana”, “exilada”, “feminista” poderiam impingir. O preço pago por tal desejo de autonomia e afirmação de suas individualidades foi a invizibilização de suas trajetórias e obras, mesmo em se tratando daquelas que lograram fazer parte de uma pequena elite artística mundial, cujas obras pertencem, hoje, a uma importante coleção pública francesa.
A presença de obras de artistas latino-americanos na coleção do Cnap é um indicador relevante da inserção deles no sistema artístico internacional. Trata-se da primeira e mais longeva coleção pública dedicada à produção da arte viva (art vivant) conhecida e que, desde seu início, esteve aberta aos artistas estrangeiros. No entanto, essa participação é desigual na medida em que os países periféricos estão menos representados do que os europeus ou os Estados Unidos. A assimetria é também muito perceptível no interior da própria América Latina por haver países como Argentina, Brasil, México, Peru e Chile bem representados e outros, como Paraguai, Panamá, Costa Rica ou Bolívia, com pouquíssimas obras na coleção.
Com vistas a compreender o perfil das aquisições, organizei os dados em uma base quantitativa com mais de quatrocentas entradas, que foram somadas depois a um estudo qualitativo sobre os processos de aquisições, bem como das pastas das obras presentes nos arquivos do Cnap. Ao longo da investigação, algumas questões se tornaram prementes. Primeiro, a temporalidade das aquisições, pois, evidentemente, as décadas de 1970 e 1980 foram aquelas em que mais obras ingressaram. Isso permite uma reflexão crítica sobre os efetivos impactos institucionais da célebre exposição “Magiciens de la terre”. Tratei então de compreender o que teria ocorrido de específico naquele período, e, com base em diversas fontes bibliográficas, conclui se tratar de uma somatória de variáveis. De um lado, a política cultural levada a cabo pelo ministro da cultura Jack Lang, que triplicou o orçamento daquele ministério, possibilitando um período de bonança inédito. De outro lado, tais décadas foram marcadas por um aumento no fluxo de artistas latino-americanos que realizaram longas estadias na França (especialmente Paris), movidos, entre outros motivos, pelo desejo ou pela necessidade de deixarem seus países de origem em função de um contexto político adverso, assolado por sucessivos golpes de Estado, sobretudo na América do Sul. Desse modo, em um momento em que o governo ampliava a aquisição de obras, e segundo uma política que tradicionalmente priorizava artistas que “estavam” em Paris, havia um contingente expressivo de artistas latino-americanos ali reunidos. Muitos deles se organizaram para promover organizações, construindo redes de solidariedade típicas de situações de exílio. Visava-se também promover uma integração de suas produções no mercado francês. Para tanto, organizaram exposições, criaram o Espace latino-américain, o qual chegou a obter apoio do governo Mitterrand. Em todos esses processos e ações, as mulheres artistas pareciam ausentes, ou, no mínimo, secundarizadas.
Com efeito, todas as aquisições que constam como provenientes do Salon d’Amérique latine ou do Espace latino-américain são atreladas a nomes masculinos, mas as mulheres artistas existem na base. A pesquisa também revelou que elas estavam presentes nos catálogos de mostras importantes do período e, nos relatórios de aquisição consultados, que também eram nomeadas (por seus sobrenomes apenas, o que sempre é um problema para nossas análises calcadas no gênero, identidade em geral revelada pelo nome próprio). Porém, enquanto os homens pareciam articulados em “coletivos”, no caso delas, todas as aquisições foram frutos de iniciativas individuais, partindo das próprias artistas. Em todos os casos analisados, sobre os quais logrei obter documentação mais precisa, as obras foram propostas pelas próprias autoras, sem intermediação de galerias, sem apoio institucional (como no caso dos homens atrelados ao Espace latino-américain) e sem apresentação de algum membro do Comitê de seleção do Cnap.
Entender esse processo significou mergulhar em um universo inesperado no começo desta pesquisa, a saber, as articulações entre gênero e exílio, ou seja, o modo com que homens e mulheres latino-americanos vivenciaram de modo diverso essa violenta situação. Em diálogo com uma bibliografia específica sobre tal tema, procurei trazer alguns elementos para pensar o caso específico das artistas mulheres. Ao meu ver, naquele universo complexo, elas não possuíam nenhum lugar confortável. Elas não foram convidadas a integrar, de modo simétrico, os grupos artísticos de exilados, os quais eram, quase todos, masculinos e masculinistas. Importante dizer que algumas se viam nesse rótulo de exiladas, outras não. Algumas se viam como latino-americanas, talvez a maioria não. Algumas procuraram participar de organizações feministas que despontavam no ambiente francês, outras não. Em comum apenas o desejo de poder expor seus trabalhos, participar de algum modo daquele sistema e serem independentes. Mas, como os estudos feministas no campo da arte já mostraram, um dos fatos que pesa sobre o pouco reconhecimento das mulheres artistas é o fato de que muitas delas não se vincularam, ou não foram vistas como membros de grupos artísticos, os quais se tornaram sujeitos importantes nas narrativas estruturantes do sistema. Tomando de empréstimo a expressão de Gill Perry para as modernistas, pode-se dizer que tais artistas estavam nas “fímbrias” das vanguardas latino-americanas em Paris, ou seja, nas margens. Olhar hoje para elas, entender os processos de aquisição de suas obras, suas trajetórias ou os sentidos de cada uma de suas produções é um modo, creio, de contribuir para que suas suas trajetórias e obras sejam melhor conhecidas. Com isso ilumina-se um capítulo fundamental, embora ainda pouco analisado, da presença dos artistas latino-americanos na França.
A presente pesquisa conta com apoio do Institut d´Études Avancées de Nantes e com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (bolsa produtividade- processo 311313/2022-1). Sou grata a ambas as instituições por tal apoio fundamental. Bem como ao CNAP, em especial às arquivistas Christine Vellut e Juliette Lapize pela acolhida profissional e generosa.





