RESUMO: O presente artigo discute os resultados obtidos com as análises de imagens e espectroscópicas (para determinação dos elementos e compostos químicos) não invasivas realizadas em seis pinturas do artista alemão, naturalizado italiano, Massimo Campigli pertencentes ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Os aspectos da trajetória do artista, as soluções plásticas das obras somadas às análises feitas com técnicas espectroscópicas de fluorescência de raios X por dispersão de energia (FRX-DE), Raman, e infravermelho com transformada de Fourier (FTIR), e com técnicas de imageamento como fotografia sob luz visível (VIS), luz rasante (RAS), luz transmitida (TRANS), fluorescência visível induzida por radiação ultravioleta (UV-VIS), reflectografia de infravermelho (RIV) e radiografia (RAD) fornecem importantes informações sobre o artista e sua obra. As técnicas analíticas não invasivas foram realizadas no próprio museu e com equipamentos portáteis do Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural (LACAPC) do Instituto de Física (IF) da USP. No geral, os resultados obtidos corroboram com os testemunhos de Campigli sobre o seu fazer artístico, assim como daqueles que o viram trabalhando no ateliê. A sua escolha de paleta, composta por pigmentos naturais e sintéticos, na sua maior parte brancos e tintas com tonalidades terrosas, e suas etapas produtivas de criar e recriar as pinturas, muitas vezes reutilizando telas, foram comprovadas através das investigações analíticas.
PALAVRAS-CHAVE: Massimo Campigli, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Análises não invasivas, Arte moderna italiana, Espectroscopia, Imageamento.
ABSTRACT: This article focuses on the discussion of the results obtained with non-invasive image and spectroscopic analyzes (to determine chemical elements and compounds) on the six paintings by the German artist, naturalized Italian, Massimo Campigli, that belong to the collection of the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo (MAC USP). Aspects of the artist’s trajectory, the plastic solutions of the artworks, along with the analyzes made with the spectroscopic techniques of energy dispersive X-ray fluorescence (ED-XRF), Raman, and Fourier transform infrared (FTIR), and the imaging techniques of visible photography (VIS), raking light (RAK), transmitted light (TRANS), visible ultraviolet fluorescence (UVF), infrared reflectography (IRR), and radiography (RAD) offer important information on the artist and on his work. These non-invasive analyzes were carried out in the museum itself with portable equipment from the Laboratory of Archaeometry and Applied Sciences to Cultural Heritage (LACAPC) of the Physics Institute (IF) of USP. Overall, the results obtained corroborate with Campigli’s testimonies about his artistic practice, as well as those of people who saw him working in his studio. His palette choice, composed by natural and synthetic pigments, mostly whites and paints with earthy tones, and his creative steps of creating and recreating the paintings, reusing canvases many times, were proven to be true with the analytical investigations.
KEYWORDS: Massimo Campigli, Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo, Non-invasive analysis, Italian modern art, Spectroscopy, Imaging.
MUSEUS
As seis pinturas de Massimo Campigli do MAC USP discutidas sob o olhar das artes plásticas e dos resultados de análises com técnicas de imagens e espectroscópicas
Discussing the six paintings by Massimo Campigli at MAC USP from the point of view of plastic arts and of results of analyses using image and spectroscopic techniques
Recepção: 14 Maio 2023
Aprovação: 27 Novembro 2023
O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) possui, em seu acervo, seis pinturas feitas pelo artista alemão, naturalizado italiano, Massimo Campigli (1895-1971): I fidanzati [Os noivos], de 1929,2Donne a passeggio [Mulheres a passeio], de 1929, Tre donne [Três mulheres],3 de 1940, Donna velata [Mulher velada], de 1946, Donne al piano [Mulheres ao piano], de 1946, e La cantante [A cantora], de 1949-1950.
Nos últimos anos, essas obras foram estudadas no âmbito do projeto temático Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento4 em duas instâncias. Na primeira, a pesquisa ocorreu pela lente das ciências humanas, e, na segunda, pelas ciências exatas. Na primeira, investigou-se o contexto em que as obras foram produzidas, suas procedências, trajetórias e os agentes que as levaram até o antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e, depois, ao MAC USP. Realizou-se ainda uma análise extensiva das suas soluções plásticas e, por fim, a recepção que o artista e suas produções tiveram em São Paulo, sobretudo no contexto das primeiras edições da Bienal de São Paulo.5 Na segunda etapa da investigação, o Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural (LACAPC), do Instituto de Física da USP (IFUSP), realizou análises químicas e físicas, com técnicas não invasivas, cujos resultados levaram a interpretações e discussões que atravessam os dois campos do saber.
O objetivo deste artigo é apresentar os resultados obtidos com essas análises não invasivas na medida em que eles sejam representativos do processo criativo do artista nos anos das realizações das pinturas do MAC USP. Isso permite compreender como sua técnica e seu método de trabalho, nessa pequena amostra de seis pinturas, se desenvolveram ao longo dos anos.
Para iluminar o estudo, traremos excertos de testemunhos de Campigli sobre as soluções plásticas que empregava em suas criações e sobre sua maneira de trabalhar a superfície da tela. Eles advêm tanto de entrevistas que o artista forneceu para artigos em periódicos quanto de suas publicações autobiográficas “Prefácio de si mesmo” (1931) e Scrupoli (1955), que cobrem os anos das obras aqui discutidas. Além desses depoimentos, serão apresentados outros, como o do italiano Raffaele Carrieri, um influente poeta e crítico de arte e amigo próximo do artista desde o início de suas atividades culturais.
O artigo está dividido em três partes: (1) para contextualizar as telas do MAC USP, uma breve introdução à trajetória artística de Campigli;6 (2) o detalhamento das técnicas empregadas nas análises pelo LACAPC do IFUSP; (3) a discussão dos resultados obtidos com as análises não invasivas nas pinturas, seguida das considerações finais.
O Etrusco de Florença é a maneira como o marchand e editor Carlo Cardazzo se refere a Campigli em 1953,7 em artigo de jornal no qual repassava aspectos de sua trajetória artística e divulgava sua mostra individual, há pouco inaugurada na Galleria del Cavallino, em Veneza.8 Até aqueles anos, Campigli trabalhava com uma linguagem arcaica e antiga, sobretudo ligada aos etruscos, algo que havia sido muito divulgado na Itália, Paris, Nova York e em outros países.
Mas não havia sido sempre assim. As primeiras pinturas de Campigli, criadas no ambiente parisiense nos anos 1920, enquanto trabalhava como correspondente do Corriere della Sera, carregavam mais os influxos da produção purista de Amédée Ozenfant e Charles-Edouard Jeanneret (Le Corbusier) e os conceitos propagados pela revista L’Esprit nouveau.9 Campigli não chega a frequentar um ateliê ou escola para aprender o ofício da pintura, mas o faz de forma autônoma ao visitar museus (sobretudo o Louvre e sua ala egípcia) e exposições, nas quais conhece as obras modernas, como as de Georges Seurat, Pablo Picasso e Fernand Léger, para citar apenas alguns artistas de que ele gostava. Durante seu período em Paris, Campigli lembra, em Scrupoli, a fase cristal10 pela qual passava o cubismo e a importância que o movimento teve para ele.
Até o final dos anos 1920, as obras de Campigli trazem figuras femininas maciças e arredondadas, de caráter escultórico, ocupando quase toda a tela contra um fundo em que aparecem trechos de uma arquitetura inabitada, como se vê em Ritratto femminile [Retrato feminino], de 1926.11 Em outras telas, as figuras femininas aparecem acompanhadas de outras mulheres12 ou com suas famílias,13 nas quais a estrutura compositiva e a volumetria, que emula uma espécie de mecanização, são um claro aceno a Léger e sua Le Grand Déjeuner [O grande almoço], de 1921,14 pintura admirada por Campigli.15
Seria somente a partir de 1928 que Campigli promoveria uma mudança radical na linguagem visual de suas obras. Ainda mantendo a figura feminina como assunto principal, confere-lhe um aspecto mais sintético e arcaico. Junto dessa figura feminina ele inclui elementos visuais específicos, extraídos de antigos povos mediterrâneos, como vasos, ânforas, urnas funerárias, esculturas, pinturas, jóias, vestimentas etc. Logo, ele se apropria e evoca diferentes civilizações e tempos de uma só vez na superfície de sua tela, muitas vezes simulando o afresco, criando uma mescla que resulta em um estilo próprio.16 Além dos trechos propositalmente inacabados na superfície da tela (muitas vezes as laterais), sua pintura é em geral elaborada com tons terrosos, misturados, em que beges, ocres e terras são mais manchados. Dado importante é a geometrização da superfície, que aparece em várias obras como forma de organização do espaço. Ela pode se dar via estrutura arquitetônica, e/ou ruínas, ou pela posição e agrupamento das representações femininas, que constroem uma grade invisível.
Campigli atribuiria essa modificação de linguagem visual à visita que fez, em 1928, ao Museu de Villa Giulia, em Roma, quando teve um coup de foudre com os objetos remanescentes da civilização etrusca. Esse “encontro” com os etruscos é descrito em sua autobiografia, Scrupoli, como uma espécie de epifania e de ápice em sua narrativa, e é reiterado em diversas ocasiões em seus escritos e entrevistas.17
No entanto, essa apropriação de criações de civilizações remotas, ou aquilo que o artista, seus pares e críticos entendiam como feitas por povos “primitivos”18, fez parte de uma movimentação mais ampla. Basta lembrarmos que, desde o início do século XX, muitos artistas franceses de vanguarda apropriaram-se da linguagem visual de objetos feitos em outras partes do mundo (não europeu), como África e Oceania, para desenvolver criações que se descolassem visualmente das obras feitas até então. A partir do final dos anos 1910 e ao longo do Entreguerras (1919-1939), eles continuam com apropriações, mas sob uma linguagem visual mais comedida, ou aquilo que se convencionou chamar, na França e na Itália, de fenômeno do “retorno à ordem”.19
No meio italiano, não houve apenas a recuperação dos etruscos, mas também dos pintores italianos chamados “primitivos”20 (os artistas do Trecento, como Giotto) e dos renascentistas (como Rafael, Michelangelo, Ticiano), além de seus tratados (como o de Cennino Cennini), de suas técnicas antigas, como pintura à têmpera e os afrescos. A busca por fontes de inspiração variou, e, ao tomarem de empréstimo essas produções, os artistas italianos, até meados do século XX, procuraram criar raízes que justificassem e avaliassem suas produções, numa tentativa de inscrever seus nomes em uma história da arte italiana.
O escopo teórico dessa movimentação pôde ser visto entre Roma e Milão, primeiro difundido pelos artistas ligados à revista Valori Plastici,21 como Giorgio de Chirico e Carlo Carrà, e depois, pela crítica de arte italiana e ideóloga fascista Margherita Sarfatti e o seu programa do Novecento Italiano,22 que contou com inúmeras exposições. Nessas ocasiões eram exibidas obras feitas por artistas italianos de toda parte do país que traziam variadas soluções plásticas (ainda que em geral de tendência figurativa), mas que, segundo Sarfatti, respondiam à tradição clássica da arte ocidental e à ideia de mediterraneidade.
Campigli teve obras expostas em mostras do Novecento Italiano e também fez parte da agremiação dos Italianos de Paris23 entre 1928 e 1933, enquanto morava na capital francesa.24 Formado por Alberto Savinio, Renato Paresce, Mario Tozzi, Filippo de Pisis, Gino Severini, Giorgio de Chirico, além de Campigli, o Italianos de Paris contou com exposições que circularam internacionalmente sob a batuta do crítico de arte polonês (e muito entusiasta do fascismo italiano) Waldemar George. Aquelas exposições eram respeitadas por agentes do regime por falarem conceitualmente a favor de uma superioridade da arte italiana e de sua tradição, em oposição a experiências mais subjetivas desenvolvidas na França. Nessas mostras coletivas, entre as muito diversas produções do grupo, Campigli se apresentava com obras figurativas, com predomínio da figura feminina estática e atemporal, sozinha ou em grupo, como é o caso de Mulheres a passeio (Figura 8), que participou da mostra do grupo em Milão.25 A superfície das suas telas parecia sempre granulada, inacabada, irregular, como se simulasse uma realização antiga reavivada justo por aquele que viria a ser chamado de O Etrusco de Florença.
Essa linguagem “arcaica” e “etrusca” foi, sem dúvida, um ponto de diferenciação entre seus colegas nos ambientes em que circulou. Embora não fosse o primeiro nem o único a trabalhar com esse “estilo”26 - a exemplo dos escultores italianos Arturo Martini e Marino Marini - Campigli foi, no campo da pintura, um dos que fazia isso com maior consistência, tendo em vista não apenas a visualidade das obras, mas toda a construção de sua persona como artista.
Ao longo do Entreguerras, o artista realizou obras em suportes diversos: pinturas, desenhos, gravuras, ilustrações para livros, afrescos e pintura mural. A linguagem plástica mudou pouco27 entre a epifania com a “virada etrusca” em meados dos anos 1950, como o próprio artista admitiu em Scrupoli: “Eu certamente sou dos pintores que mudaram menos. […] Eu não procuro a variedade, mas o tema perfeito, que eu possa talvez pintar infinitamente”28. Com essa linha de trabalho, suas obras eram celebradas por muitos críticos entre a Itália e a França, e adquiridas por diversos colecionadores também de outros países.
Assim, a feitura das pinturas presentes no acervo do MAC USP se circunscreve nesse cenário em que o artista esteve em trânsito, morando entre Paris, Milão, Roma e Veneza e testemunhando movimentações artísticas em diferentes contextos político-sociais. Nesse sentido, vale ressaltar que, sob o fascismo na Itália, Campigli teve laços com o regime seja por participar de mostras do Novecento Italiano, seja por ter trabalhado como muralista com Mario Sironi e outros.29
Após o fim do fascismo, Campigli continuou a ter sua produção valorizada por críticos e público em diversas mostras.30 Marco importante foi sua retrospectiva na Bienal de Veneza de 1948, a primeira após o fim do regime e a que inaugurou uma série de outras edições, que retomavam movimentos e artistas que haviam sido eclipsados pelos governos totalitários. Mas esse não era o caso de Campigli. Ele não foi um artista posto à margem durante o fascismo e sua produção plástica não foi diretamente associada ao regime,31 diferentemente do que ocorreu com Sironi.
Naquela Bienal de Veneza, a produção de Campigli foi apresentada na chave do decorativo, como atesta o texto de apresentação escrito pelo historiador da arte italiano Umbro Apollonio.32 Segundo ele, Campigli tinha como base de sua pintura os retratos Faium, a arte egípcia, etrusca, pompeiana, e que isso não estava ligado à poética do Novecento Italiano - embora pudesse parecer-, mas a uma forma de fantasiar o ideal. Ou seja, vê-se um trabalho conceitual de distanciamento do artista do regime. Tal operação ganhará força com a publicação de Scrupoli, quando ele se posiciona como alheio às movimentações artísticas mais amplas, fala de suas primeiras incursões no meio francês e não toca na questão do fascismo, voltando-se só às questões de seu próprio fazer artístico. Ele indica suas inspirações, a relação com etruscos, o peso de sua trajetória pessoal em suas criações, as limitações e dificuldades que encontrou, e explica seu método de pintar. Mas Scrupoli não é um manual didático do seu fazer artístico, tal como seria um tratado renascentista. Embora Campigli os conhecesse,33 em seu livro oferece explicações mais sumárias de seu modo de trabalhar que vão se misturando com reflexões autobiográficas, e criando uma espécie de mitificação de seu processo criativo: “Tenho dificuldade em fazer com que minha pintura me obedeça”34.
Tal esforço não é aleatório. Como se sabe, a tradição da biografia de artista na Itália deita raízes nos escritos vasarianos e tem continuidade nos séculos seguintes. E, no século XX, a autobiografia se torna uma ferramenta poderosa para os artistas que cooperaram com o regime e precisavam se posicionar depois de seu fim, ao mesmo tempo que serviam para fixar a importância de suas criações. Alguns exemplos nesse sentido podem ser citados: La mia vita, de 1943, de Carlo Carrà; Tutta la vita di un pittore, de 1946, e Tempo de “L’Effort moderne”: la vita di un pittore, de 1968, ambos de Gino Severini; e Memorie della mia vita, de 1945, de Giorgio de Chirico.35Scrupoli vem na esteira desse tipo de esforço e logra reavivar o interesse pela produção do artista entre alguns críticos36 e público. Ao mesmo tempo, procura reforçar a sua relação com a civilização etrusca,37 situando-o quase como um herdeiro seu, tal como se percebe no trecho: “Reconheci-me nos etruscos. Com a ajuda de um pouco de poesia, leva-se subitamente em casos parecidos a se dizer ‘essa vida eu já vivi’”38.
Scrupoli seria retomado por vários críticos e historiadores em diferentes épocas e países. Sempre emblemático é o caso de Raffaele Carrieri, que não só reproduz seus trechos em artigos,39 indo além ao falar tanto do autodidatismo do pintor - “creio que ele nunca tenha lido tratado algum para se instruir”40 quanto da fidelidade aos seus próprios métodos de pintar ao longo dos anos.41 Em texto de 1941,42 o crítico comenta suas visitas aos ateliês de Campigli (em Paris, Milão e Nova York). Como testemunha ocular, tece comentários elogiosos à rotina do artista, sua personalidade, seu espaço de trabalho e traz um valioso registro fotográfico dos ateliês. Dentre essas fotos em que Campigli aparece lendo ou pintando, há uma em que ele e sua esposa, a escultora Giuditta Scalini Campigli,43 aparecem juntos, ele pintando e ela trabalhando com uma moldura. A legenda informa que eles preparavam as molduras para uma exposição, mas que a “verdadeira especialista” era a “silenciosa Giuditta”, que preparava “pátinas e formas”.
Como explica o estudioso Mauro Carrera, Carrieri foi presença recorrente no ateliê de Campigli, vendo-o pintar com uma atitude participativa e de cúmplice, e o valor de sua crítica residia justamente na interpretação da obra e sua relação com a própria existência do artista.44
Assim, a colaboração entre Campigli e Carrieri é fundamental para esta análise; seja porque ajuda a compreender o processo de feitura das obras, com base em descrições dadas por alguém que via o processo, seja por ser uma colaboração profícua e que dissemina o mito da genialidade do artista (também colocado em Scrupoli) e do seu modo de pintar.
Voltando às pinturas do artista do MAC USP e o processo artístico de Campigli, vê-se que, embora a linguagem plástica “arcaica” e a presença da figura feminina sejam constantes nas seis telas, as pinturas diferem no que tange às soluções técnicas empregadas. As duas pinturas de 1929, Os noivos e Mulheres a passeio, pertencem à “virada etrusca” sofrida no ano anterior. Como discutiremos, elas trazem elementos mais literais do mundo antigo, além de uma superfície mais lisa, com menos camadas pictóricas. Isso também é observado em Três mulheres, de 1940. Já as três outras obras - Mulheres ao piano e Mulher velada, ambas de 1946, e A cantora de 1949-1950 - contam com várias camadas de tinta, raspagens e um aspecto mais matérico, além de serem similares à outras obras feitas nos mesmos anos por Campigli, hoje localizadas em coleções no exterior.
As técnicas empregadas no estudo das seis pinturas de Campigli do MAC USP são todas não invasivas e utilizam equipamentos portáteis no próprio museu. Essas técnicas são classificadas em duas categorias: as técnicas de imageamento, que consistem em métodos de captura fotográfica de diferentes faixas do espectro eletromagnético; e as técnicas espectroscópicas, que caracterizam os elementos e compostos químicos dos materiais existentes nas obras. Todas as técnicas empregadas categorizam métodos analíticos de estudo da interação entre a radiação eletromagnética e a matéria.
As técnicas de imageamento foram realizadas sob luz visível (VIS, TRANS, e RAS) e sob luz ultravioleta (UV-VIS) com a câmera digital Canon EOS R, com a lente objetiva RF 24-105mm, f/4-12, sem o uso de filtros e com iluminação específica direta.
O imageamento com iluminação direta (VIS) consiste em fotografar a obra iluminada de forma homogênea por duas fontes de luz difusas (flashes com difusores) posicionadas 45° em relação à superfície da obra. O primeiro registro fotográfico é feito com uma cartela de cores (ColorChecker® Classic da X-Rite), que constitui um metadado fundamental para o gerenciamento de cores. A partir desse registro, é feito o balanceamento cromático das fotografias através do software de edição Lightroom. Esse procedimento de captura e processamento fornece uma imagem de referência da pintura, como registro de sua paleta cromática e detalhes estilísticos.
A técnica de iluminação transmitida (TRANS) utiliza uma fonte de luz posicionada no verso da obra e a captura da imagem é feita frontalmente pela mesma câmera descrita antes. O tratamento posterior da imagem é feito da mesma forma que na técnica VIS, com o balanceamento cromático pela tabela de cores no Lightroom. Essa técnica permite evidenciar craquelados, fragilidades na camada pictórica, camadas de pigmentos com diferentes espessuras, perdas de policromia etc.
O registro com iluminação rasante (RAS) consiste em iluminar a tela com uma fonte de luz tangencial à sua superfície. O tratamento da fotografia é feito pelo mesmo balanceamento de cores. Com isso, é possível evidenciar detalhes da camada pictórica, como relevos, pinceladas e outros detalhes da superfície. A inclinação e o posicionamento da fonte de luz são definidos visualmente, de modo a melhor viabilizar o registro das características observadas.
A fotografia de fluorescência visível induzida por radiação ultravioleta (UV-VIS), consiste em irradiar a obra com uma fonte de radiação UV para, em seguida, registrar a fluorescência visível dos materiais constitutivos da obra, como pigmentos, aglutinantes e vernizes, que podem apresentar fluorescências características resultantes da interação da radiação UV com os materiais existentes. A metodologia consiste no uso de dois conjuntos de três lâmpadas UV, com espectro de emissão de ~370 nm, cada uma inclinadas em relação à tela com angulações que variam entre 25° e 45°. A posição das lâmpadas é alterada a fim de distribuir melhor a radiação sobre a pintura e reduzir a reflexão da radiação UV, procurando registrar apenas a fluorescência visível. O tratamento posterior das imagens de UV-VIS é feito através de um balanço sistemático de branco com as ferramentas do software Lightroom. Essa técnica é principalmente empregada para evidenciar regiões de intervenções ou restauros, auxiliando na separação entre pigmentos e/ou regiões originais e de restauro. Em alguns casos particulares, é possível diferenciar pigmentos que aparentam ser similares quando visualizados sob radiação visível, mas que têm fluorescências características diferentes quando irradiados com radiação UV.
A reflectografia de infravermelho (RIV) consiste em iluminar a obra com lâmpadas halógenas que têm, dentro de sua faixa de emissão, uma parcela de radiação de infravermelho próximo (IV). A captação da reflexão dessa radiação é feita em uma câmera específica, com sensor de InGaAs, capaz de detectar a faixa do infravermelho entre 0,9 μm e 1,7 μm, fornecendo uma imagem final de alta resolução.46 A imagem final obtida é uma composição dos fenômenos de absorção, transmissão e reflexão da luz IV pelas camadas de pigmentos da pintura, o que possibilita identificar os traços ou desenhos subjacentes à camada pictórica, em geral feitos com grafite ou carvão. Essa visibilidade dos traços originais é possível dada a alta absorção da luz IV pelo grafite e carvão, e por apresentarem alto contraste na imagem de reflectografia final. Além disso, em razão das diferentes reflectividades dos materiais, essa técnica também pode auxiliar na distinção de regiões de intervenções e restauros.
Por fim, a radiografia (RAD) é realizada com a irradiação da obra por uma fonte de raios X, posicionada a uma certa distância da tela e por um detector, posicionado no verso da obra. Essa técnica permite evidenciar diferentes camadas de pigmento com densidades distintas. A imagem final fornece informações sobre detalhes escondidos na obra, como pinturas subjacentes, fragilidade na trama da tela, etapas do processo criativo, estruturas, pregos, clipes etc. Para as medidas, utilizou-se o tubo de raios X de baixa potência com alvo de prata Mini-X, da Amptek®, com 50 kV de tensão e 80 μA de corrente, 10 segundos com média de 10×, sem colimador na saída do feixe (abertura de 120°). A distância entre o tubo de raios X e a obra objeto foi de 130 cm e foram realizadas quatro exposições (obras: Três mulheres e A cantora), seis exposições (obras: Mulher velada e Os noivos) e nove exposições (Mulheres a passeio). Todas as exposições foram coletadas pelo detector digital HPX-DR da Carestream Industrex, posicionado atrás das obras.
As técnicas espectroscópicas de fluorescência de raios X por dispersão de energia (FRX-DE), Raman e espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier (FTIR) no modo reflexão frontal foram empregadas pontualmente, possibilitando determinar os elementos químicos presentes, bem como os compostos moleculares, sugerindo a composição química dos pigmentos e aglutinantes utilizados pelo artista. A primeira técnica, FRX-DE, é um método de análise que permite identificar os elementos químicos presentes na pintura. Para isso, escolheram-se regiões de cores diferentes e que não apresentaram indicações de restauro (informação obtida pela imagem com luz UV). Na análise de FRX-DE se utiliza um feixe monocromático de raios X, que interage com os elementos que compõem o pigmento, excitando-os. No processo de desexcitação, há emissão de raios X característicos de cada elemento químico existente no ponto analisado, que são coletados por um detector específico. O sistema utilizado é portátil e constituído pela mesma fonte de raios X usada para imageamento RAD, configurada para uma voltagem de 30 kV, corrente de 10 μA e com um colimador de 2 mm de diâmetro na saída do tubo. Um detector de silício do tipo “fast XR-100SDD”, também da AmpTek®, é utilizado para coleta dos raios X com um tempo de aquisição de 100 segundos. A análise dos resultados de FRX-DE é feita a partir do estudo dos espectros (contagens por energia de raios X) obtidos e da sistematização das contagens de raios X dos elementos químicos em cada ponto medido e apresentado em gráficos de barras de cada elemento químico (contagens de raios X do elemento em cada ponto medido). Nesses gráficos, para cada um dos elementos químicos, são agrupados os pontos de medição de acordo com a coloração identificada durante as coletas. Essa sistematização facilita na determinação dos pigmentos que podem estar presentes nos pontos de acordo com a coloração que estes apresentam.
A espectroscopia Raman consiste na irradiação da amostra com um laser monocromático, normalmente da faixa visível, que ao interagir com a matéria, produz uma alteração dos estados de vibração de suas moléculas. O laser espalhando de volta traz informação da molécula irradiada que, ao ser excitada, produz sinais vibracionais característicos, permitindo sua identificação. Dessa forma, com o auxílio de base de dados Raman conhecidas, é possível identificar as bandas vibracionais e determinar a composição molecular da região medida. Para as análises com Raman, utilizou-se o equipamento EZRamanDual-G, operando com um laser de 785 nm e potência 70 mW, apresentando uma resolução de 6 cm-¹. A medida Raman é feita com uma ponteira de contato, encostada levemente na obra, para que a luz externa não atrapalhe a coleta do sinal. Importante pontuar que a qualidade do sinal obtido por Raman dependerá da existência ou não de uma camada de verniz sobre a pintura e da eficiência de resposta do sistema e/ou do pigmento avaliado.
Espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (FTIR) é uma técnica vibracional que estuda o espectro de absorção que uma composição molecular apresenta para uma certa faixa de infravermelho. Nesse espectro, as bandas de absorção detectadas estão relacionadas com os modos vibracionais da composição molecular irradiada, possibilitando sua identificação. Para essa análise, utilizou-se o espectrômetro portátil Alpha Bruker operando na geometria de reflexão externa. Os espectros foram coletados em 64 varreduras com resolução de 4 cm- ¹. O ponto analisado tem uma área de 20 mm² com faixa espectral de 4000 cm-¹ a 400 cm-¹. Todos os dados adquiridos durante as medições foram comparados com os disponíveis em uma base de dados de materiais artísticos de referência. Dessa forma, com o auxílio de bases de dados, essa técnica permite determinar a composição química dos materiais existentes e, em alguns casos, o aglutinante que compõe os pigmentos.
Na imagem produzida por VIS da tela Os noivos (Figura 1) vemos a referência direta que Campigli faz ao mundo antigo, especificamente ao etrusco Sarcofago degli sposi [Sarcófago dos esposos] (530-520 a.C.), feito em terracota policromada,48 presente no Museu de Villa Giulia, em Roma. Se escultores contemporâneos ao artista conseguiam obter uma visualidade mais próxima a esse e outros sarcófagos etruscos pela própria natureza do suporte com que trabalhavam (a terracota, por exemplo), Campigli traz a sua interpretação para a superfície plana da tela, com economia de traços e limpeza da imagem, fazendo chamar atenção ao casal e à opacidade da tela.

De fato, na catalogação da obra, e mesmo no processo de sua incorporação ao antigo MAM, a obra aparece como pintada à têmpera sobre tela,49 o que justificaria a opacidade. Contudo, as análises de FTIR indicam que a obra tenha sido possivelmente feita com uma mistura de têmpera e óleo, e não apenas com têmpera. De fato, algumas texturas dificilmente teriam sido obtidas apenas com o uso de têmpera, como atesta a imagem obtida com RAS (Figura 2), evidenciando que, em algumas regiões, uma espessura de pincelada dificilmente reproduzível apenas com têmpera devido ao seu tempo de secagem. Ainda assim, mesmo com óleo, a camada de tinta é exígua, como fica evidente na imagem obtida com o registro de luz transmitida (Figura 3)


Na Figura 4 é apresentado o espectro de uma medição de FTIR feita sobre um ponto branco na obra. Nessa, são feitas as devidas identificações das bandas características de ligação C-H, CH2 e CH3 (2923 cm-1 e 2850 cm-1) que aparecem tanto em aglutinantes à base de óleos como em têmperas. Identificam-se também as bandas em 2.513 cm-1 e 1.794 cm-1, que são atribuídas ao carbonato de cálcio (CaCO3) - também chamado de calcita, comumente utilizado como base de preparação para o depósito de tintas em têmperas - e da banda vibratória em aproximadamente 1660 cm-1, do grupo amida, característica do material proteico. Esse espectro é muito semelhante aos demais obtidos sobre a obra Os noivos, indicando a presença de pigmentos em têmpera sobre a tela.

Sobre o uso da têmpera, o próprio artista comentaria em Scrupoli:50 “A cor à óleo não tem nada de poético. […] Mas optei, desde o início, pelas cores à óleo porque me parecia o meio típico do “profissional” […] e as adotei para sempre porque […] não obrigam, como as têmperas, a se calcular o branqueamento”.
Vemos que a paleta de Os noivos é restrita: branco, preto, tons terrosos - laranjas e marrons - e o azul. No caso do branco, embora pareça um tom uniforme, as análises com FRX-DE e Raman revelam o uso de quatro tipos de branco: litopone (constituído por zinco e bário), branco-de-chumbo, branco-de-cálcio (calcita) e o branco-de-titânio. A presença dos brancos litopone e branco-de-titânio foi reafirmada com o registro da UV-VIS,51 que possibilitou diferenciar as regiões onde pelo menos dois desses pigmentos estavam presentes, graças à fluorescência esverdeada do litopone e arroxeada do branco-de-titânio.52 Regiões nas quais são visíveis as sobreposições destes pigmentos estão identificadas em vermelho na Figura 5. Desses brancos, o litopone é sugerido como o pigmento constituinte da base de preparação da pintura, junto com a calcita, enquanto branco-de-titânio está presente apenas na camada pictórica. O branco-de-chumbo, por sua vez, parece ter sido utilizado para compor regiões com tinta mais espessa, misturado com calcita, próximos aos personagens, conforme indicado nos espectros Raman medidos sobre os pontos identificados com essa característica espessa (Figura 6). Nesses espectros, estão identificadas as bandas características do pigmento branco-de-chumbo, em cerca de 1.045 cm-¹, e do pigmento calcita, em 1.086 cm-¹.


Não por acaso, Raffaele Carrieri dizia que ver Campigli pintar lhe suscitava sempre as mesmas perguntas, entre as quais, o porquê “do emprego de variados brancos para se atingir sempre um único?53”.
É possível pensar que o artista quisesse simular a própria parede, conferindo uma sensação de afresco ao seu espectador.
A questão aparece novamente em Scrupoli,54 quando ele também aborda a escolha de tons terrosos, presente em Os noivos e em inúmeras outras pinturas do artista:
E aquele ar de afresco que tem em tantos quadros meus? […] Quando eu fazia as minhas primeiras pinturas, preferia os “terrosos”. “Terrosos” me agradavam por razões poéticas, enquanto achava antipoéticas as denominações das cores químicas. Era o tempo de grande austeridade minha e uma paleta pobre me parecia estar de acordo com minha sobriedade e meu orgulho. Essa mania passou, mas ainda tenho dificuldade de enriquecer minha paleta. A única vaidade entre os tons terrosos era o azul de cobalto, e também o verde de cobalto, que são complementares aos terrosos e que usei sempre modestamente como um embelezamento proibido. Agora me atrai também o amarelo-de-Nápoles, que sempre me pareceu muito belo. Pinto então sobre uma tela absorvente, que é mais adaptada para quem, como eu, que retorna infinitamente ao trabalho. E essa tela dá uma superfície opaca que tem mais do que nunca um ar de afresco.
As análises ainda indicam a presença do elemento químico cobalto, sugerindo a utilização do pigmento sintético azul-de-cobalto, e o elemento ferro, que está presente nos pigmentos amarelos e vermelhos indicando a presença de pigmentos minerais ocre (do amarelo ao marrom), e o pigmento sintético vermelho-de-Marte. O elemento chumbo apresenta altas contagens nas regiões espessas, conforme comentado antes, que apresentam uma coloração “branca escurecida”, e sobre os pontos vermelhos. A análise com espectroscopia Raman confirmou que o chumbo nessas regiões brancas é proveniente do branco-de-chumbo. Por outro lado, a ausência de indicativos, através da análise Raman, do pigmento branco-de-chumbo sobre alguns pontos vermelhos sugere ainda o uso de vermelho-de-chumbo. A detecção de grandes quantidades de fósforo e cálcio nas áreas com pigmentos pretos e escuros medidas com FRX-DE, e seus respectivos espectros Raman, confirma a presença do pigmento preto-de-osso.55 Logo, quanto ao uso de “cores químicas”, com exceção dos pigmentos naturais preto-de-osso e ocre, os demais pigmentos empregados são inorgânicos e artificiais.56
O imageamento por RIV (Figura 7) demonstra que não há indícios de uso de grafite e, portanto, não são encontrados indicativos de estudos preparatórios ou correções de esboços (chamado pentimenti). Talvez a única exceção seja a posição da mão da figura masculina, que parecia estar ligeiramente inclinada à direita (como indicado pela marcação com círculo azul, na posição prévia do dedão) e na versão final está em posição mais verticalizada.

Se Campigli normalmente traçava alguns elementos estruturantes na tela para iniciar suas criações - como veremos adiante -, aqui é possível pensar em duas hipóteses: (1) que Os noivos fosse uma variação, ou quase, como um frame da pintura Gli sposi [Os cônjuges], de 1929 (coleção The University of Michigan Museum of Art),57 da qual corresponde a praticamente dois terços da parte superior. Se sim, isso remontaria a uma prática usual sua de repetição e reelaboração dos mesmos assuntos e empréstimos de elementos visuais; (2) que fosse, como sugerido a nós pelo prof. dr. Gianluca Poldi, um estudo preliminar para Gli sposi.
Reforçam essa última teoria dois pontos: (1) a assinatura não foi feita em vermelho de Marte, pois sua medição na análise com FRX-DE apresenta baixa quantidade de ferro e o espectro Raman não é característico desse pigmento sintético, ao contrário de outras regiões avermelhadas da tela. Sugere-se, portanto, que o artista assinou a obra depois, com um pigmento vermelho diferente dos utilizados na produção da obra, possivelmente com vermelho ocre, pigmento natural que não responde bem à técnica Raman, mas que é sugerido dada à presença de ferro. (2) Essa interpretação de que a assinatura foi realizada depois também é fortalecida pelo imageamento de UV-VIS, na qual o pigmento branco de titânio (fluorescência roxa), depositado por cima das regiões brancas de forma não homogênea, aparenta ter tido seu excesso “removido” para que a assinatura pudesse ser depositada (Figura 8).

Outro dado importante surge da observação da Figura 7, na qual vemos que partes dos dedos da figura masculina acabaram ficando para fora da parte visível da tela. Novamente, como sugere Poldi, é possível pensar que o artista não tenha achado um chassi no tamanho ideal para a tela, o que fez com que essa parte da camada pictórica não fosse visualizada. Como o estudioso conta, Campigli comprava as telas e as fixava em um chassi provisório, o que permite que se veja pequenas perdas e furos prévios, resultantes da fixação, na lateral da tela - como indicado com círculos na Figura 9.

Trata-se de prática recorrente, também posta em questão por Carrieri: “Por que a tela [de Campigli] não é esticada no chassis como costumam ser as telas dos pintores?58”.
Feita em 1929, e adquirida em 1947 por Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado para o antigo MAM, Os noivos só passou a ser exibida a partir de 1951 em São Paulo,59 e seu único proprietário foi o Museu. Diferente é o caso de Gli sposi da coleção The University of Michigan Museum of Art, que foi exposta no ano seguinte à sua feitura no Kunsthalle, em Basiléia.60 Logo, é plausível imaginar que a pintura Os noivos do MAC USP tenha ficado guardada justo por ser um estudo, recebendo a assinatura depois.
Em Scrupoli, o artista revela:61 “Os meus quadros que mais dão a impressão de facilidade e rapidez de execução são sempre aqueles resultado de infinitas relações e tentativas em diversas telas, em diversas dimensões”.
Ainda que não exposta em território italiano, a obra já fora vista por pelo menos um crítico, Raffaello Franchi.62 Ele discorre sobre sua potência plástica e diz que a representação dos dois rostos contra um fundo branco, conferia-lhe um aspecto arcaico. Ele ainda afirma que, apesar de Campigli ter pintado mais sobre o cavalete, era substancialmente um pintor de parede.63
Independentemente de Os noivos ter sido um estudo preparatório ou não, ao olhar para a tela, temos a impressão de estar diante de um afresco que fora removido de seu local de origem e agora é um vestígio arqueológico, tal qual os sarcófagos, as urnas funerárias ou os retratos de Faium que o artista tanto admirava e que o ajudavam a conferir um aspecto moderno e singular para sua produção.
Do mesmo ano de Os noivos, Mulheres a passeio (Figura 10) é uma tela que teve enorme visibilidade e circulação no exterior antes de chegar ao Brasil. Não apenas em exposições, mas também em publicações, circulando até mesmo como cartão postal. É uma pintura em que temos duas figuras femininas - que retomam e reiteram a frontalidade e o perfil do mundo antigo, sobretudo, egípcio64 - em um espaço arquitetônico composto por áreas abertas e fechadas. A cena apresenta uma narrativa interessante, paratática, porque temos as duas figuras femininas em momentos diferentes dentro do espaço arquitetônico. Se à primeira vista, parece haver seis figuras, um olhar mais atento e informado pelas explicações fornecidas pelo artista,65 sugere que sejam só duas.

Tais representações femininas aparecem em outras obras do artista em posições semelhantes,66 ou ligeiramente diversas. Nesse sentido, um exemplo que poderíamos citar é o de Donna alla fontana [Mulher à fonte], de 1929 (coleção Riki Burstein),67 que traz apenas uma figura feminina ao centro - muito similar àquela da direita de Mulheres a passeio. Ambas ocupam o mesmo lugar nas respectivas telas,68 mas seus entornos são diferentes. Enquanto aquele da pintura do MAC USP é mais preenchido com uma camada de tinta (embora algumas partes estejam com escassa cobertura, como se vê na Figura 11), aquele de Donna alla fontana traz elementos gráficos que sugerem antigas esculturas, pedaços de construções arquitetônicas e ânforas, com uma cobertura de tinta ainda mais sumária.

Dado curioso diz respeito à posição de braços das figuras femininas de Donna alla fontana e Mulheres a passeio. Em Donna alla Fontana, ela segura duas ânforas, mas seu braço direito parece estar na mesma posição da figura da direita de Mulheres a passeio, enquanto essa segura na cintura da figura feminina com rosto de perfil. A diferença é que a inclinação dos braços é distinta, assim como a demarcação do ombro em cada obra. Além disso, em Mulheres a passeio, o braço esquerdo da figura feminina à direita, que ergue e segura a saia, tem pouca relação com a anatomia real do braço de uma figura humana. Ele parece ter sido alterado depois, como demonstra a comparação das imagens obtidas pelas técnicas VIS e RIV. Ainda sobre o braço direito da figura da direita de Mulheres a passeio, com as imagens obtidas com RIV, vemos que, em sua posição inicial, estava abaixado, como se estivesse segurando na grade (Figura 12, marcação com retângulo azul), e não na horizontal, como observamos na imagem da obra com iluminação normal. Uma hipótese é que a figura tenha sido pensada para segurar um cachorro (ou ânfora, como em Donna alla fontana), e não estar com o braço à cintura da outra figura feminina. Corroboram com essa ideia duas coisas: (1) há outras pinturas de Campigli em que representações femininas semelhantes estão com o braço para baixo, segurando o animal;69 (2) a figura da esquerda parece ter sido acrescentada depois, dada a sobreposição entre as imagens das mulheres e a ausência dos braços da figura à esquerda, conforme indicado também pela marcação em azul no imageamento por RIV (Figura 12).

Ainda com essa técnica de imagem, outros arrependimentos são revelados, como a posição dos seios da figura feminina à esquerda, que foi modificada. Se antes apareciam em três quartos, na versão final estão completamente representados de frente, assim como o corpo todo, à exceção do rosto, que está de perfil. Novamente, é possível pensar que o artista quisesse reforçar os laços com a produção dos antigos egípcios com essa operação, em que a frontalidade do corpo contrasta com o rosto em perfil.
A figura feminina da direita, por sua vez, tem uma espécie de contorno em volta à cabeça (Figura 13), quase como se seu espaço tivesse sido demarcado de antemão. Tal preparo encontra explicação também à luz do que o artista diz em Scupoli:70 “Parto quase sempre na invenção de um quadro de um hieróglifo, quadrados e círculos que me vêm por instinto. […] Há sempre uma forma de oito que me surge: pode se tornar um busto em ampulheta ou uma cabeça em cima de um decote”.

Não sabemos o quanto esse contorno redondo, feito ou não “por instinto” - para organização geral da superfície - diz respeito ao traçado que vemos. Poderíamos até pensar que essas linhas estruturadoras se relacionem ao emprego da proporção áurea, claramente usada na tela, muito embora o artista tenha afirmado em manuscrito não publicado em vida,71 que a seção áurea não devia ser buscada, mas surgia naturalmente em seu trabalho.
Outro ponto significativo de seu método de trabalho, visível nessa e outras telas, são os arranhados e as raspagens na superfície da obra. Outra vez, Campigli explica:72
Quanto ao afresco, depois de ter pensado por anos que era uma técnica para mim, e depois de ter coberto grandes paredes e atingir uma certa perícia com ele, entendi que, com essa técnica, não se permitiria arrependimentos, arranhados e refazimentos, que são a minha mania.
De fato, não apenas os arrependimentos aparecem, como apenas visto, mas os arranhados. Com a técnica VIS (Figura 10), vemos a raspagem em vários pontos, como no cabelo da mulher da direita, onde os arranhados sugerem seus cachos, e na sua saia. Os instrumentos para tal efeito podem ter sido desde o cabo do pincel, até lâminas. E com a imagem RAS, vemos que o artista criou volumes com a espátula, muito embora a obra tenha uma camada de tinta pouco espessa, como já indicado (Figura 14).

Como lembra Raffaele Carrieri, em texto do final dos anos 1950,73 o artista usava a ponta do pincel e as espátulas para obter esse efeito arranhado e escovas, como se fosse um “pintor de parede”. Ele ainda explica que nas obras de Campigli havia sempre abundância de biacca [branco-de-chumbo]74 e que seus vermelhos pareciam aqueles dos “tijolos”.
Com efeito, com as espectroscopias de FRX-DE e Raman se levanta a possibilidade do branco-de-chumbo (identificado pela presença da banda característica no espectro Raman) e branco-de-zinco (identificado pela alta contagem de zinco nos espectros de FRX-DE, sem correlação com o elemento bário) terem sido usados como base de preparação, junto de calcita (pigmento identificado na análise por Raman). Quanto aos vermelhos, localizaram-se pigmentos à base de ferro, como o vermelho-de-Marte (determinado nas áreas analisadas por Raman) e vermelho-ocre, assim como os laranjas (conforme indicado pela alta quantidade de ferro no espectro FRX-DE e pela ausência de bandas características de outros pigmentos no espectro Raman).
Além disso, as contagens de ferro, cromo e zinco nos pontos amarelos e verdes sugerem o uso de amarelo-ocre (que contém ferro) e amarelo-de-zinco (constituído por cromo e zinco); azul-de-cobalto, indicado pela presença de cobalto em um único ponto azul e em áreas cinzas, pretas e vermelhas, nas quais o uso de azul-de-cobalto pode ter sido feito como parte da mistura dos pigmentos, para escurecer a coloração; verdes a base de cromo (presença de cromo nas únicas áreas esverdeadas da obra), podendo ter sido utilizado o pigmento óxido-de-cromo e/ou viridian, os quais têm composições muito semelhantes e, finalmente, sugere-se o uso do pigmento preto-de-osso (conforme indicado pela alta quantidade de fósforo e cálcio no espectro FRX-DE e também pela presença das bandas característica desse pigmento nos espectros Raman).75 Assim, comparativamente à obra Os noivos, vemos que há repetição do uso pelo artista de determinados pigmentos, atribuídos nas análises realizadas como sendo branco-de-chumbo, calcita, azul-de-cobalto, amarelo-ocre, vermelho-de-Marte e preto-de-osso, ou seja, indicativos do uso de pigmentos inorgânicos, naturais e artificiais.
A pintura Três Mulheres (Figura 15) foi feita uma década depois das duas obras anteriormente discutidas. Contudo, assim como elas, a solução visual e compositiva proposta pelo artista faz menção ao mundo antigo, no que poderíamos interpretar como uma referência às estelas romanas, por exemplo.76 Cada uma das figuras parece estar contida dentro de um espaço arquitetônico de tonalidade terrosa, que confere uma unidade a toda superfície da obra. Embora em poses diferentes, as figuras femininas estão imóveis, quase como se fossem esculturas, participando de um friso.

Totalmente diferente do que vemos a olho nu, a imagem de RAD da obra (Figura 16) revelou o que estava oculto sob a superfície da tela: um retrato que não está catalogado no raisonné do artista. A dra. Eva Weiss, especialista na produção de Campigli e uma das responsáveis pela organização do raisonné de Campigli, diz ser um retrato feito pelo artista, e não um autorretrato, mas talvez um retrato feminino.77

Caso único entre as demais pinturas do MAC USP, essa obra expressa aquilo que Campigli afirmava ter como método de trabalho, isto é, o uso de telas antigas, já pintadas, “as quais raspo até tornar irreconhecível a pintura, mas não além; deixo um fundo marmorizado e liso que exploro, deixando algumas partes da pintura sem cor ou com pouquíssima cor em contraste com o restante bem definido”78.
Embora o fundo aproveitado na obra do MAC USP não seja apenas o “marmorizado”, mas um retrato completamente visível, temos a concretização do aproveitamento de tela por parte do artista. Não sabemos o quão antiga era essa tela, uma vez que, em 1940, e em anos anteriores, o artista pintou várias obras com retratos e em formatos similares.79
No entanto, como a parte superior da cabeça está cortada, é possível que se tratasse de um esboço, ou mesmo que a tela tenha sido cortada, como nos sugeriu Poldi.
Outro dado interessante revelado pelas análises é que, além do rosto, há um braço pendente na vertical, ao lado esquerdo do rosto (indicado pelo círculo vermelho na Figura 16). Ou seja, possivelmente mais de uma pintura foi realizada antes de receber Três mulheres.
No que diz respeito a possíveis arrependimentos do artista, a comparação da imagem visível da tela com a imagem de RIV (Figura 17) revela várias surpresas: elementos arquitetônicos ao fundo (marcação com círculo laranja); o posicionamento de braços da figura à direita (também indicado na marcação com círculo laranja); o pé da figura da esquerda, que acabou sendo eliminado da versão final (marcação com círculo vermelho). Há ainda o esboço de uma saia arredondada na figura do meio (marcação com retângulo azul), o mesmo tipo de saia que ele insere em outra obra,80 mas que aqui é deixado de fora na versão final, conferindo mais rigidez à composição.

Com relação aos pigmentos usados, vemos de imediato a predominância de um marrom-avermelhado. Não por acaso, Carrieri dizia, em 1959, que o pigmento de terra-de-Siena-queimada era fundamental para o artista, que era a sua “parede de barro”81.
Mais informações significativas sobre a paleta do artista foram fornecidas em Arte italiana contemporânea.82 Publicado na Itália no mesmo ano da feitura de Três mulheres, o volume trazia uma seleção de obras de importantes artistas italianos (ou naturalizados), com uma listagem de suas assinaturas e a descrição de suas respectivas paletas de cores. No caso de Campigli, indicou-se como pigmentos de uso “branco-de-prata-Lefranc, e recente adoção do branco composto “di volo”, Florença - terra-de-Siena-queimada e natural - sombra-queimada e natural - vermelho-de-Veneza-especial - amarelo-ocre-e-ouro - terra-verde - azul-de-cobalto e, mais raramente, ultramar - verde-veronese - amarelo-cromo - preto-marfim”.
Vemos, portanto, que o artista indica especificamente duas renomadas empresas em que comprava o branco: a Lefranc&Cie (hoje Lefranc Bourgeois Paris),83 de Paris, mas com distribuição na Itália; e a florentina Divolo, como nos foi sugerido por Poldi.84 As demais cores citadas, sem a marca indicada, são encontradas na cartela de cores de ambas as empresas.
Há vários brancos na tela. O branco-de-prata, nomenclatura usada para o branco-de-chumbo,85 está presente no retrato oculto (a imagem RAD evidencia muito bem isso nas regiões mais brancas), enquanto o branco-de-zinco, parece ter sido usado como base de preparação para a nova obra, cobrindo o retrato, conforme o resultado das análises de FRX-DE, que mostram contagens altas de zinco para todos os pontos medidos na obra (Figura 18). O titânio, também medido em todos os pontos da tela, embora em quantidade proporcionalmente mais baixa em relação às de zinco e chumbo, pode indicar que o artista tenha utilizado o branco-de-titânio tanto na mistura dos pigmentos como na base de preparação.

Voltando aos pigmentos enumerados na publicação citada, além do branco-de-chumbo, foram identificados nas análises de FRX-DE: o azul-de-cobalto (presença de cobalto), o amarelo e vermelho-ocre (presença de ferro) - este último chamado de vermelho-de-Veneza86 por Campigli -, o pigmento umbra-queimada (presença de ferro e manganês), o verde-veronese (presença dos elementos cobre e arsênio), terra-verde (presença de potássio e ferro) e preto-de-osso ou marfim (presença de fósforo e cálcio).87
Contudo, nessa obra há indícios de mais amarelos, vermelhos, laranjas e verdes do que os indicados por Barbaroux e Giani88 (amarelo-de-bário, vermelho ou laranja-de-Marte e verde à base de cromo), demonstrando que a paleta, ao menos nesse ano, não era tão restrita, com maior variedade de pigmentos. Desse modo, Campigli parece trabalhar tanto com pigmentos naturais como artificiais, com uma paleta mais ampla do que a utilizada nas demais obras aqui estudadas.
Por fim, assim como as telas anteriormente comentadas, em Três mulheres há também uma fina camada de tinta sob a superfície e as pinceladas são mais econômicas. A análise com a técnica RAS (Figura 19) reforça esse aspecto, observado nas três obras até aqui discutidas.

As obras que analisaremos a partir de Mulher velada (Figura 20), datadas depois de 1946, apresentam uma continuidade conceitual e visual com aquilo que o artista vinha produzindo antes, mas sua maneira de trabalhar a superfície da tela muda, sobrepondo mais camadas de tinta, empastando e texturizando mais. A tinta é colocada, depois arranhada, removida e muitas vezes recolocada, conforme o processo característico do artista, já descrito.

Em Mulher velada isso fica explícito com as imagens obtidas com a técnica RAS, em que se vê mais matéria pictórica e relevos, que fazem o observador ver a obra de modo diferente, a depender do ângulo em que ele está posicionado em relação à luz (Figura 21). O imageamento por RAD também comprova esse empastamento e a turva visibilidade de elementos subjacentes.

Campigli fez várias obras com tema e a representação de mulheres veladas. No catálogo das obras do artista vemos que algumas foram feitas inclusive com outras técnicas, como nanquim.89 Em 1946, especificamente quando foi pintada a tela do MAC USP,90 o artista criou seis obras com esse tema, sendo que em cinco delas, a mulher aparece sozinha e, em uma delas - uma monotipia - há, além da mulher velada, uma outra à frente, de costas ao observador. Donna velata con scialle [Mulher velada com xale], obra também de 1946, é particularmente parecida com a obra do MAC USP em termos de composição, enquadramento e mesmo da dimensão da tela.91
A partir de 1948, Campigli passou a incluir uma segunda mulher velada atrás da representação feminina igualmente velada,92 a qual vinha aparecendo sozinha nas obras anteriores, como visto. Nessas obras do final dos anos 1940 as duas representações interagem, uma vez que as mãos de uma tocam a da outra e vice-versa. O olhar de ambas está direcionado ao espectador, mas as figuras estão em estreito contato entre si. Embora difiram da mulher velada do MAC USP pela ausência de chapéus, as vestimentas são similares, assim como o posicionamento das mãos.
Contudo, ao que tudo indica, Campigli pensava em introduzir uma segunda figura feminina em sua produção já em 1946. Através da imagem de RIV (Figura 22) e do imageamento por UV-VIS (Figura 23) é possível supor que Campigli tenha inicialmente pintado uma cena com duas figuras posicionadas à mesma distância do observador (lado a lado), sendo depois encobertas pela imagem final da mulher velada. A imagem de RIV revela, à direita da mulher velada, rastros de um rosto escondido (circulado em vermelho na Figura 22), com a característica forma de ampulheta, construção muito utilizada por Campigli. Inicialmente, poderia se pensar que, subjacente à camada pictórica que vemos, está apenas essa figura escondida, porém por UV-VIS há indicativo de que há uma segunda personagem. Observando a Figura 23, nota-se uma fluorescência arroxeada distribuída sobre o rosto previamente identificado na imagem de RIV. A mesma fluorescência também é observada do lado esquerdo da mulher velada, naquela mesma altura (circulado em vermelho na Figura 23). O pigmento causador dessa fluorescência aparenta estar concentrado principalmente nessas regiões, subjacente à figura final.


Não à toa, Raffaele Carrieri diria que, na prática de Campigli, era comum o desfazimento de espaços dentro da composição, assim como esboços de rostos e perfis apagados e retomados “dez vezes”93.
Ainda com a técnica de RIV é possível encontrar vários arranhões na tela, em especial no quadrante inferior esquerdo.
No que concerne ao uso das cores, embora a impressão geral seja de uma superfície com matizes de bege (com exceção dos olhos e do colar), há uma variedade de brancos, além do amarelo-ocre, vermelho-ocre e de-Marte e/ou o laranja-de-Marte. Com as técnicas de FRX-DE e Raman ainda foram localizados os pigmentos: litopone; branco-de-titânio, usado muito provavelmente como base de preparação; branco-de-chumbo, usado expressivamente na camada invisível da tela; e branco-de-bário, em algumas áreas junto com o branco-de-chumbo. Novamente foram encontradas variedades de brancos, só que nesse caso, não de forma facilmente discriminável, como em Os noivos.
Os demais pigmentos identificados foram azul-de-cobalto, verde-viridian e/ou óxido-de-cromo, umbra-queimada ou natural e preto-de-osso.94
Portanto, os pigmentos encontrados nas obras Mulheres a passeio e Os noivos se repetem na paleta da obra Mulher velada, na qual também se empregam pigmentos artificiais e naturais.
Feita no mesmo ano de Mulher velada, Mulheres ao piano (Figura 24) é uma obra que também conta com uma superfície cheia de ondulações, sendo mais rugosa e matérica. O registro por RAS (Figura 25) acentua essa condição e reitera o procedimento de Campigli, de acrescentar camadas de tinta, remover trechos, recolocá-los e desgastar a superfície.


As camadas subjacentes e arrependimentos podem ser melhor compreendidos com outras técnicas, como a de RIV e RAD, as quais permitem visualizar elementos decorativos no canto superior direito da tela - eliminados da versão final - e uma área entre as duas figuras femininas, inicialmente preenchida com traços em xadrez.
Ainda com a RAD (Figura 26), observa-se duas informações novas: a marcação das figuras femininas no espaço da tela e a sua localização em posições ligeiramente diferentes das que vemos na versão final da obra. Isso fica evidente nos olhos das figuras da esquerda que, a princípio, estavam posicionados em local mais baixo do que na versão final (marcação com círculo vermelho na Figura 26). A cabeça de uma terceira figura feminina estava presente atrás da figura da esquerda, mas foi removida da solução final (marcação com quadrado azul). As proporções das duas figuras também foram alteradas. Outra evidência interessante é a marcação da cabeça, do pescoço e dos braços da mulher à direita, em que se nota o formato de um número oito na imagem, característico do processo criativo do artista, como comentado antes.95

Diferentemente de Mulher velada, em que havia um esboço de uma segunda figura feminina, a qual seria incorporada em telas futuras do artista, em Mulheres ao piano, a terceira figura não foi adicionada em obras semelhantes feitas nos anos posteriores. Um exemplo disso é Donne al piano [Mulheres ao piano], de 1947, do acervo do Museo di Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto (MART)96. A quantidade de figuras permanece a mesma, ou seja, duas, e sempre uma é um pouco mais alta que a outra. Nessas obras parecidas há pouca diferença compositiva e o que as distingue são a decoração do fundo, a cor de pele das figuras e os tons dos seus vestidos, além de traços dos rostos e a inserção ou não de colares.
A paleta empregada na superfície da tela é, assim como em algumas das obras analisadas, muito restrita. Vai do bege-claro - presente em uma das figuras, no teclado e na parte do fundo - aos tons terrosos e avermelhados, com alguns pretos, como nas teclas do piano.
Com a iluminação transmitida97 percebe-se que há perda de policromia e, com as técnicas espectroscópicas empregadas, definiram-se os pigmentos utilizados.98 No caso dos brancos, há outra vez o uso de branco-de-titânio, litopone e branco-de-chumbo. Os dois últimos, presentes em várias partes da obra, parecem ter sido usados como base de preparação. Além disso, identificaram-se os elementos ferro, nos tons amarelos e marrons (pigmentos ocre), manganês (óxido-de-manganês ou umbra), cobre e arsênio (de modo correlacionado, sugerindo a utilização de verde-veronese) e, novamente, ferro nas áreas verdes analisadas (terra-verde) - citados na publicação de 1940 -, entre outros. Assim como nas demais pinturas discutidas, há o uso de pigmentos naturais e sintéticos.
A cantora (Figura 27) foi doada pelo governo italiano ao antigo MAM99 por ocasião da I Bienal de São Paulo (1951), como ato diplomático entre instituições culturais de ambos os países. Era a primeira vez que a tela era exposta e a escolha para que fosse doada essa em detrimento de outras da representação italiana foi feita pelo crítico de arte italiano Marco Valsecchi, da delegação daquele país.

O tema da cantora já havia sido trabalhado pelo artista em outras telas nos anos de 1946100 e 1949,101 com variações de formato, título da obra e de fundo - às vezes com plateia - e elementos decorativos em torno do espaço em que a cantora e a pianista estão colocadas. A pintura A soprano, de 1949,102 em especial, parece ser um frame da obra do MAC USP. Nessa tela vertical, veem-se as duas figuras com o piano em close, sem o fundo em perspectiva que aparece em A cantora. Como visto antes, no caso de Os noivos e Mulheres a passeio, Campigli afirmava trabalhar com diferentes formatos103 em suas “infinitas refações”.
Assim, presume-se que vários exercícios compositivos tenham sido realizados para que a obra do MAC USP e as demais cantoras recebessem suas soluções finais.
A RAD da obra A cantora (Figura 28) demonstra que, de fato, há indícios de trabalhos e exercícios anteriores. Mas ela é muito diferente daquelas obtidas nas análises das outras obras do MAC USP, em que se via mais claramente os traços da imagem final. Em A cantora, há mínima evidência da figura que canta, mas, em geral, a imagem não é visível; ela é confusa e tem muitas manchas. De acordo com Poldi,104 a imagem aparenta ter algo diferente na camada subjacente, usualmente pintada de modo a constituir as camadas espessas, observadas nas obras de Campigli, além dos arranhados na diagonal - típicos de sua prática - na parte superior direita. Assim, tudo indica que essa tela tenha sido produzida com o reaproveitamento de uma tela.

Mas, como é possível que se veja a trama da tela (tendo como referência o imageamento por RAD da obra), fica evidente que, mesmo reutilizando uma tela, o artista não deixou uma camada grossa subjacente.
O registro de RAS mostra o quanto a superfície da tela é matérica e cheia de volumes de tinta, provavelmente feitos com a espátula. Já o imageamento por UV-VIS (Figura 29) traz, de forma muito marcada, os arranhados e sulcos que o artista faz na superfície. Logo, ambas análises reiteram os procedimentos artísticos já apontados.

A tonalidade roxa exibida com a irradiação da obra com radiação UV demonstra que há abundância de branco-de-titânio. Como essa tonalidade aparece mais nos sulcos, é plausível pensar que Campigli tenha passado o branco-de-titânio e o removido depois. De toda forma, esse branco está presente em quase todos os pontos da obra selecionados para análise, como indicam as técnicas de FRX-DE e Raman. Para exemplificar, na Figura 30 são apresentados espectros Raman de pontos de diferentes cores (marrom, bege, laranja, vermelho e branco) que apresentam as bandas características de branco de titânio em 143, 395, 515 e 635 cm-¹ devidamente identificadas. Essa presença abundante do pigmento demonstra também que o pigmento litopone está na base de preparação, enquanto que, na camada visível, há o amarelo-de-cromo, amarelo-de-zinco, ocre e/ou laranja-de-Marte e o preto-de-osso.105

No conjunto de obras do MAC USP, é curioso notar que o branco-de-titânio, mais difundido a partir dos anos 1920, 106aparece apenas nas telas dos anos 1940. Por fim, uma relação sistemática da paleta sugerida para cada uma das obras é apresentada na Tabela 1 do Apêndice B, baseando-se nos resultados de imageamento e espectroscópicos discutidos.
Massimo Campigli foi exímio articulador e comunicador de seu fazer artístico, de suas técnicas e de sua persona. Seu discurso, erudito e impregnado de mistificação da figura solitária do artista, foi eficiente, contaminando a maioria daqueles que escreviam sobre sua produção. Um dos casos mais notórios é aquele de Raffaele Carrieri, o qual era espectador de primeira hora e entusiasta da atividade do artista, e cujo discurso se tornou fundamental na propagação das suas ideias e das suas considerações a respeito do modo de feitura das pinturas. Não por acaso, suas descrições como testemunha do ato de pintar do artista, têm um quê de sobrenatural:107
Numa folha presa ao eixo do cavalete estão esboçados, em pequenos retângulos, à maneira de monogramas, os hieróglifos por meio dos quais ele [Campigli] inventa as suas pinturas. É uma escrita quase ilegível. […] Uma aparição geométrica não definível. […] Com o passar dos dias a entonação geral muda. A forma retorna ao seu estado inicial. O hieróglifo se reforma. E o hieróglifo é que lidera Campigli. Impõe-lhe o seu ritmo. […] O hieróglifo é mais forte. […] O destino do hieróglifo e o de Campigli se identificam. Eles estão um no outro como uma mão em uma luva. Como os círculos do ilusionista.
Discursos sozinhos não sustentariam o sucesso de crítica, público e vendas do artista. A técnica que Campigli empregou foi elemento fundamental para tornar crível tudo o que dizia. No aproveitamento de telas antigas, nas superfícies que raspava e que deixava com aparência inacabada, áspera, com tons marmorizados ou fundos que simulavam a parede, as obras de Campigli se parecem com vestígios arqueológicos. Como vimos, a reutilização de tela não está ligada a adversidades financeiras ou a escassez de materiais, como no caso de outros artistas, mas era parte da técnica e do processo criativo do artista.
As análises não invasivas permitiram reiterar e confirmar a maior parte dos procedimentos explicados por ele em Scrupoli e por Raffaele Carrieri em seus artigos. Demonstram ainda que, no caso das obras do MAC USP, a paleta do artista pouco variou, mas teve, de modo circunstancial, mais pigmentos do que os já descritos como sendo os utilizados pelo artista. Além disso, nas telas feitas a partir de 1946, as camadas de tinta tornam as produções subjacentes e as relações figurativas pouco visíveis. Essas últimas telas são, portanto, mais matéricas e têm mais textura.
Em outras palavras, embora a superfície dessas telas evidencie o esforço do artista em remeter a ideia de arcaico, antigo e à materialidade do afresco,108 as análises não invasivas trazem dados que as diferenciam na maneira pela qual o artista procurou atingir tal visualidade com o passar dos anos.
Além disso, alguns achados são significativos porque são exceções ao discurso difundido pelo artista: o uso de óleo e têmpera na obra Os noivos e a paleta mais abrangente em Três mulheres, do que aquela indicada na publicação de 1940.
Outro aspecto importante são os exercícios e estudos que ele inicia, como vemos na figura existente como arrependimento na Mulher velada e apagada; portanto, na versão final, mas retomada e incorporada definitivamente em pinturas posteriores. Percebe-se, assim, que há uma longa meditação sobre o fazer artístico, que não é algo apenas colocado em palavras.
As análises aqui realizadas contribuem com estudos análogos que venham a ser realizados em outras pinturas de Campigli, pois há muito a se investigar e descobrir sobre sua técnica109 (inclusive a extensão da participação de Giuditta e dos materiais que usava).
Ademais, é possível ampliar a chave de leitura e interpretação se relacionarmos os resultados obtidos com o quadro maior de técnicas empregadas por artistas com os quais Campigli colaborou, como aqueles da agremiação Italianos de Paris,110 com obras existentes, inclusive no acervo do MAC USP. Até onde pudemos verificar, Poldi foi um dos poucos a realizar e publicar reflexões a respeito das técnicas dos artistas dessa agremiação.111
Analisar os pigmentos usados por esses artistas nos anos 1940, tendo por base aqueles enumerados em Arte italiana contemporânea, configura-se como mais uma possibilidade. Essas seriam duas, entre as diversas alternativas de investigação comparativa, a serem desenvolvidas entre Campigli e outros artistas italianos modernos.
A.1. OS NOIVOS, 1929

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, tem-se a organização por cores na seguinte sequência: azul, bege, branco, cinza (branco-“sujo”), preto e vermelho.
Pigmento sintético litopone (ZnS, BaSO4).

Pigmento sintético branco-de-titânio (TiO2).

Pigmento sintético azul-de-cobalto (CoO.Al2O3).

Pigmento sintético vermelho-de-Marte (Fe2O3).

Pigmentos naturais e sintéticos à base de ferro (Fe).

Pigmento natural preto-de-osso (C, Ca3(PO4)2).

A.2. MULHERES A PASSEIO, 1929

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, têm-se a organização por cores na seguinte sequência: amarelo, azul, bege, branco, cinza, marrom, preto, laranja, verde e vermelho.
Pigmentos branco-de-chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2) e calcita (CaCO3).

Vermelho: pigmento sintético vermelho-de-Marte (Fe2O3).

Pigmentos naturais e sintéticos à base de ferro (Fe).

Pigmentos amarelo-de-zinco (K2O.4ZnCrO4.3H2O), verde-de-cromo/viridian (Cr2O3/Cr2O3.nH20) e branco-de-zinco (ZnO).

Pigmento sintético azul-de-cobalto (CoO.Al2O3).

Pigmento natural preto-de-osso (C, Ca3(PO4)2).

A.3. TRÊS MULHERES, 1940

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, tem-se a organização por cores na seguinte sequência: amarelo, azul, bege, branco, cinza, marrom, preto, verde e vermelho.
Pigmento sintético branco-de-chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2)

Pigmento sintético branco-de-titânio (TiO2).

Pigmento sintético vermelho-de-Marte (Fe2O3).

Pigmento sintético azul-de-cobalto (CoO.Al2O3).

Pigmentos naturais e sintéticos à base de ferro (Fe).

Verde: pigmento sintético verde-veronese (Cu3(AsO4)2.4H2O).

A.4. MULHER VELADA, 1946

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, tem-se a organização por cores na seguinte sequência: bege, branco, cinza, marrom, preto, rosa, verde, verde-azulado e vermelho.
Pigmento sintético litopone (ZnS, BaSO4).

Pigmentos sintéticos branco-de-titânio (TiO2) e branco-de-chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2).

Pigmentos marrons a base de manganês (Mn) e ferro (Fe).

Pigmentos óxido-de-cromo/verde-viridian (Cr2O3/Cr2O3.nH20).

Pigmento sintético azul-de-cobalto (CoO.Al2O3).

A.5. MULHERES AO PIANO, 1946

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, tem-se a organização por cores na seguinte sequência: bege, branco, marrom, preto, laranja, verde e vermelho.
Pigmento sintético litopone (ZnS, BaSO4).

Pigmentos sintéticos branco-de-titânio (TiO2) e branco-de-chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2).

Verde: pigmento sintético verde-veronese (Cu3(AsO4)2.4H2O).

Pigmento natural verde-terra (K[(Al,Fe³+),(Fe²+,Mg)](AlSi3,Si4)O10(OH)2) e pigmentos marrons a base de ferro (Fe).

A.6. A CANTORA, 1949-50

Para os gráficos de barras apresentados abaixo, têm-se a organização por cores na seguinte sequência: amarelo, bege, branco, cinza, laranja, marrom, preto, rosa, verde e vermelho.
Amarelo: pigmento sintético amarelo-de-cromo (2PbSO4.PbCrO4 ou PbCrO4).

Amarelo: pigmento sintético amarelo-de-zinco (K2O.4ZnCrO4.3H2O).

Pigmentos a base de ferro (Fe).

Confirmação da presença de preto-de-osso (C, Ca3(PO4)2).


Agradecemos o Prof. Dr. Gianluca Poldi, a Dra. Eva Weiss e a Riki Burstein pelas inestimáveis contribuições para nossa pesquisa, e todo apoio e acompanhamento de Marcia Sampaio Barbosa, especialista em conservação e restauro do MAC USP, ao longo das análises não invasivas entre 2021 e 2022.



































































