RESUMO: Na contramão das discussões contemporâneas sobre a preservação da cultura material, o debate internacional sobre a preservação da arquitetura moderna consolidou-se nas décadas de 1990 e 2000, concebendo sua conservação como meio para a permanência dos ideais do Movimento Moderno – pensamento autodefinido como preservação da autenticidade dos conceitos. Da década de 2000 ao presente, tem-se constituído uma abordagem alternativa, que se reaproxima do campo do patrimônio cultural, reconhecendo matéria e história como atributos potencialmente tão relevantes quanto as ideias dos autores do campo. Este texto busca contribuir para a crescente difusão profissional dessa corrente e para o questionamento da percepção dos edifícios modernos como puras ideias ou imagens imutáveis, ao explorar o valor cultural resultante das alterações deliberadas acumuladas no tempo. Para tanto, reconstituímos graficamente, a partir da bibliografia e de ampla exploração documental, cem reformas sofridas pelo Edifício Principal do Palácio do Congresso Nacional (Oscar Niemeyer, 1957-1960). A análise das reformas permitiu identificar diferentes intenções, estratégias e resultados em intervenções de 1960 a 2020, que buscamos associar a suas autorias, aos contextos institucionais e a diferentes momentos da história do edifício. As transformações mais relevantes evidenciam como alterações que afastam ícones modernos de sua intenção e forma iniciais nem sempre são desvirtuações a serem revertidas: elas podem gerar novas imagens que se sobrepõem às fotografias consagradas, atualizando o imaginário coletivo e apresentando valor cultural relevante, enquanto a adição pode ser um modo de intervenção propício ao enriquecimento desses edifícios.
PALAVRAS-CHAVE: Preservação da arquitetura moderna, Preservação de edifícios do século XX, Palácio do Congresso Nacional, Reforma, Alteração, Valor de antiguidade.
ABSTRACT: Setting itself apart from contemporary views on material culture conservation, the international debate on the preservation of modern architecture maintained, in the 1990s and 2000s, that such an architecture should be primarily conserved as a means of upholding the ideals of the Modern Movement. This perspective defined itself as a preservation of the authenticity of concepts. The 2000s gave rise to an alternative approach that moves toward cultural heritage tenets and deems matter and history as heritage attributes potentially as relevant as the authors’ ideas. This study contributes to the growing acceptance of this alternative approach, challenging the perception of modern buildings as pure ideas or unchanging images. It does so by exploring the cultural value resulting from intentional changes accumulated over time on the main building of the National Congress in Brasília, Brazil (designed by Oscar Niemeyer, 1957-1960). It used bibliographic and extensive documentary research as a basis for redrawing 100 renovation woks that have been carried out on the building. The analysis of the material shows diverse intentions, strategies, and outcomes from interventions from 1960 to 2020. This study sought to associate them with their authorship, institutional contexts, and different moments in the history of the building. The most significant alterations indicate that deviations from original intention and form in modern buildings fail to always configure distortions to be corrected. They can give rise to new images that replace established ones, updating collective imagery and bearing relevant cultural value. Addition acts can also offer a mode of intervention that enriches those buildings.
KEYWORDS: Modern architecture conservation, 20th century building conservation, National Congress (Brazil), Refurbishment, Alteration, Age value.
CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO
Palácio do Congresso Nacional – valor cultural de alterações em edifícios modernos
Palace of the Congress (Brazil) – the cultural value of alterations on modern buildings
Received: 14 December 2023
Accepted: 20 May 2024
Previsto no Plano Piloto de Brasília de Lucio Costa como marco vertical no vértice da Praça dos Três Poderes e articulando essa Praça à Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Congresso Nacional já era um dos pontos fulcrais de Brasília antes mesmo da definição de sua arquitetura. 1 Construído com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, 2 tornou-se símbolo da cidade, constituindo, junto com as colunas da Alvorada e do Planalto, “signos do Estado, do País e do próprio desejo de modernidade brasileira” 3 . Não por acaso, algumas das imagens mais dramáticas da cidade-capital incluem o Palácio do Congresso não como fundo distante, mas como cenário da ação (Figuras 1 a e 1 b). 4


As chaves de leitura do Palácio como parte da obra de Niemeyer foram dadas pelo arquiteto:
No Palácio do Congresso […] a composição se formulou em função […] das conveniências da arquitetura e do urbanismo, dos volumes, dos espaços livres, da profundidade visual e das perspectivas e, especialmente, da intenção de se lhe dar um caráter de alta monumentalidade, com a simplificação de seus elementos e a adoção de formas puras geométricas. 5
Após apreciações iniciais que desconfiavam do tour de force técnico, do apelo formal, do papel secundário da funcionalidade e do despropósito da presença monumental no cerrado, 6 e com o posterior reconhecimento dessas mesmas características como sendo justificadas pelo caráter simbólico e representativo do edifício, 7 o Palácio do Congresso terminou por constituir-se como um dos últimos ícones da arquitetura moderna. Indo além do específico valor arquitetônico, nas últimas décadas, multiplicaram-se os reconhecimentos patrimoniais, em âmbitos distrital, federal e mundial, que consideram também seu valor histórico e simbólico. 8
Inaugurado inacabado em 21 de abril de 1960, o Palácio do Congresso teve atividades de projeto, execução e pagamentos à firma construtora até 1964 – ano que pode ser considerado como de sua efetiva conclusão. 9 As dimensões do Palácio, a existência de duas estruturas administrativas independentes, com duas equipes de obras e manutenção, bem como a difusão do poder entre dezenas de senadores e centenas de deputados convergiram para multiplicar intervenções de pequeno, médio e grande portes ao longo das décadas seguintes. 10 Assim, observam-se tanto a eliminação de valores do projeto inicial, como uma enriquecedora estratificação de testemunhos em determinados espaços-chave. Seguindo uma indicação de André Castro, exploramos a importância dessas transformações para os valores culturais do Edifício Principal:
Se entender o processo de construção é indispensável para compreender o projeto e a concepção arquitetônica de Oscar Niemeyer, considerar as intervenções posteriores como parte do processo histórico de construção (contínua) do edifício é fundamental à sua plena apreensão, tornando-se tão indissociáveis da sua história quanto o que foi executado entre os anos de 1957 e 1960. 11
Reconhecer valor cultural nas transformações do Palácio do Congresso Nacional permite retomar questões centrais da preservação da arquitetura moderna e questionar a percepção de determinados edifícios como puras ideias autorais ou imagens imutáveis; permite vê-los como construções continuadas no tempo, que se apresentam ao sujeito em sua forma presente. Tais questões definem a interlocução intelectual e as contribuições deste artigo. 12
Para desenvolver a discussão, o primeiro ponto de apoio é a compreensão do processo de projeto e construção do Palácio, especialmente a partir da tese de Elcio Gomes da Silva sobre os palácios originais de Brasília, que sistematizou a documentação correspondente a esse período, tendo superado inconsistências e lacunas da historiografia. 13 Também basilares foram as reflexões sobre a trajetória de preservação do edifício levantadas por André de Souza Castro em sua tese Preservando o edifício moderno: Congresso Nacional . 14
As contribuições desta pesquisa se baseiam na reconstituição o mais completa possível das transformações físicas do edifício, no período de 1960 a 2020, a partir da análise da vasta documentação, principalmente gráfica, que se encontra sob a guarda dos órgãos responsáveis pela infraestrutura física do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. As sucessivas configurações e alterações identificadas no material primário são apresentadas em pranchas-síntese correspondentes a períodos de aproximadamente uma década. 15 A individualização das obras ocorridas e sua análise, com graus de profundidade variáveis, permitiram identificar diferentes intenções, estratégias e resultados nas intervenções — que buscamos associar a suas autorias, contextos institucionais e diferentes momentos da história do edifício.
O texto abre-se com uma revisão crítica de algumas questões relacionadas a “como preservar” a arquitetura moderna, que fundamentam a análise posterior. Aborda, então, episódios selecionados do projeto e da construção do Palácio do Congresso Nacional, caracterizando um período inicial em que tanto concepção como objeto construído estavam em contínuo fluxo de transformação. A seguir, trata das transformações de maior escala sofridas pelo Palácio, concentradas no período de 1965 a 1978 e projetadas por Niemeyer, que lhe conferiram novas características, amplamente reconhecidas pelo público e pela crítica. A próxima seção caracteriza outra forma de intervenção, conduzida continuamente pelas equipes de ambas as casas legislativas, em que inúmeras obras de menor porte apontam para um maior compromisso com a funcionalidade do que com a espacialidade e os aspectos representativos e simbólicos do edifício. Um terceiro modo de ação, com preocupações especificamente patrimoniais, vem se consolidando desde o tombamento provisório do edifício em 2007, e é apresentado separadamente. Como conclusão, recapitulamos os achados da pesquisa, para afirmar a possibilidade da existência de valor cultural relevante nas transformações em edifícios modernos e a possibilidade da adição e do acúmulo como meios desse enriquecimento, retomando o diálogo com a bibliografia de referência.
Apenas na década de 1990 constituiu-se um debate internacional consistente sobre a preservação do patrimônio moderno, com protagonismo da organização internacional Comitê Internacional para Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Bairros do Movimento Moderno (International Committee for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement – Docomomo), fundada como iniciativa europeia em 1988 e rapidamente ampliada por meio de publicações, comitês nacionais, seminários nacionais e internacionais. A difusão do interesse no tema é exemplificada pelo fato de que, já em 1991, havia núcleos oficiais do Docomomo na Argentina, Brasil e Canadá. 16
Textos ligados ao grupo apresentavam o Movimento Moderno enquanto sistema de ideias e consideravam os edifícios como meios para a preservação de tais ideias, não como testemunhos humanos em sua complexidade cultural. 17 Assim, quanto maior a importância de um prédio, mais imperioso seria fazê-lo retornar a seu estado original, independentemente de sua trajetória histórica e de sua situação atual. 18 Não por acaso, tal visão por vezes se apresentava ignorando os conceitos de “monumentos” ou “patrimônio”, preferindo o termo “ícones” – as imagens de um culto ativo. Trata-se de um deliberado afastamento das visões contemporâneas sobre a preservação do patrimônio e da cultura material, rumo a um “restauro à parte” 19 .
Conforme essa concepção, “redescobrir o projeto original de um edifício restaurado deve ser o aspecto determinante da ação conservativa” 20 . Contudo, o projeto frequentemente foi depreciado por seu detalhamento considerado inadequado e seus consequentes problemas de desempenho, 21 de forma que “a significância da arquitetura moderna se deslocou para o conceitual: a ideia da intenção projetual do arquiteto” 22 .
Assim, consolidou-se, em determinados profissionais, a crença na predominância da ideia autoral sobre o objeto construído. Silvio Oksman analisou esse “olhar fetichista e mitificado para os principais arquitetos modernos” e identificou suas consequências para a preservação – com consultas aos autores, contratação de seus escritórios e de seus sucessores para o desenvolvimento de projetos de intervenção e, frequentemente, decisões de preservação pouco equilibradas. 23
Essa “preservação de ideias” foi traduzida em termos mais próximos ao discurso patrimonial da época como “preservação da autenticidade dos conceitos”. Ao identificar tal estratégia de ação, Ana Carolina Bierrenbach a denominou “restauro dos conceitos”, em texto que sintetiza as principais posições sobre o tema no debate italiano. 24 Tais proposições estavam em desacordo com a visão de preservação mais difundida internacionalmente ao longo do século XX, consolidada na Carta de Veneza 25 e baseada na historicização do patrimônio e sua materialidade. Entendemos que o afastamento em relação à reflexão patrimonial corrente tinha, como uma de suas origens, a proeminência de profissionais ligados à prática projetual corrente e ao ensino universitário de projeto nos grupos europeus do Docomomo, 26 diante de uma participação limitada de profissionais da preservação.
A persistência e difusão dessa visão também fica evidente no primeiro manual sobre o tema, publicado em 2008, nos Estados Unidos: Preservation of modern architecture . 27 Ao longo de duas décadas de esforços intelectuais, ao mesmo tempo em que se reconhecia uma arquitetura moderna progressivamente diversa, consolidavam-se em direção oposta princípios de preservação centrados em um único atributo do patrimônio cultural: as ideias dos autores.
Quando supervaloriza a “centelha criativa”, a preservação repete uma postura intelectual enraizada na profissão, cara aos próprios arquitetos do Movimento Moderno, que escamoteavam a complexidade da reapropriação, seleção, montagem e maturação próprias do processo projetual. Cairns e Jacobs exploram o uso dessa estratégia por Le Corbusier, que narra o “nascimento espontâneo e completo” do projeto da capela em Ronchamp, anterior inclusive à preparação dos desenhos. 28 No Palácio do Congresso Nacional, observamos como Niemeyer adotou estratégia semelhante, ao divulgar, em croquis produzidos a posteriori , as formas simples que parecem já ter nascido prontas, omitindo a longa maturação e as numerosas hesitações anteriores à síntese final.
Outro foco de interesse dos arquitetos modernos, prontamente absorvido pelo “restauro dos conceitos”, eram as imagens idealizadas dos edifícios recém-inaugurados, captadas em fotografias, divulgadas em revistas especializadas e, num momento posterior, cristalizadas nos manuais que constituíram o cânone historiográfico. Conforme observou Susan Macdonald, “as imagens em preto-e-branco do Movimento Moderno capturam o maior interesse dos arquitetos na forma em relação à materialidade […] imagens que não deixam espaço para a pátina do tempo” 29 . Ao longo do século XX, tornou-se comum pensar nos edifícios a partir dessas imagens, e não da experiência física. Enquanto as obras se transformavam no tempo, as imagens permaneceram imutáveis. Conforme observado em estudos específicos sobre o tema, as fotografias tornaram-se, além de testemunhos, partícipes da criação de mitos e afetos que se tornaram centrais para certa identidade disciplinar. 30 Voltamos, então, à ideia do “ícone” — representação que tem valor em si mesma.
No Brasil, os seminários nacionais do Docomomo, realizados regularmente desde 1995, concentraram, a partir de então, o debate sobre o acervo moderno brasileiro e sua preservação. O aumento do interesse pelo tema refletia também a ampliação do sistema de pós-graduação no país, com a consequente multiplicação das pesquisas e publicações a ele relacionadas. Nesses seminários, nos quais eram predominantes textos voltados à história e historiografia da arquitetura moderna, também se discutiam diferentes visões sobre sua preservação, incluindo contribuições que traziam ao contexto brasileiro e latino-americano a visão europeia sobre as intenções projetuais como principal determinante da preservação dos ditos “ícones” – termo caro também ao debate nacional. 31
Alois Riegl ajuda-nos a desvelar os mecanismos desse quadro intelectual, com seus conceitos distintos de “monumentos intencionais” e “monumentos históricos”. O autor marca o afastamento próprio da preservação quando define “por histórico tudo o que existiu e já não existe no presente” 32 . Diferentemente, nos lembra que “um monumento intencional […] tem o propósito de superar a distância para negar a passagem do tempo […] e é cuidado enquanto a pessoa ou evento que ele celebra ainda é lembrada” 33 . A partir dessa conceituação básica, identificamos a postura anteriormente descrita como sendo de “criação de monumentos intencionais” ao Movimento Moderno e seus mestres – e não como “preservação do patrimônio cultural”. Apagam-se os testemunhos da passagem do tempo para que não se questione a validade e atualidade dos ideais homenageados. Afinal, como lembra Helga da Silva em relação ao conjunto habitacional do Pedregulho, no Rio de Janeiro, “as marcas do tempo […] não deixam dúvidas da distância entre o projeto ideal e seu abandono real” 34 .
Este texto apresenta uma abordagem alternativa ao problema, seguindo a trilha aberta por autoras de diferentes procedências, desde a década de 2000, que reconhecem o valor que pode emergir da fricção entre os edifícios modernos e o tempo. 35 Essa linha de pensamento tem se difundido também para além do âmbito acadêmico e suas matrizes italianas, por meio da atuação de instituições como o Getty Conservation Institute e o International Scientific Committee on 20th Century Heritage do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (International Council of Monuments and Sites – Icomos). 36 Nas publicações dessas instituições, a preservação da arquitetura moderna não se configura como um “restauro à parte”, e sim como parte de um campo consolidado. Essa abordagem não busca definir princípios universais, mas explorar a flexibilidade de interpretação e de intervenção nos bens culturais, necessária diante de sua diversidade e especificidade. 37
Iniciado o projeto de arquitetura do Palácio aproximadamente em março de 1957, Niemeyer explorou numerosas possibilidades, incluindo ou não colunas similares às dos demais palácios em fase de projeto, variando a quantidade de torres e cúpulas e experimentando alternativas mais complexas para o volume mais baixo e seus plenários. Esses croquis foram fotografados por Matheus Gorovitz, cujas reproduções servem de fonte às poucas publicações do material ( Figura 2 a). Entre junho e julho do mesmo ano, os primeiros anteprojetos consolidaram o partido composto por um Edifício Principal, horizontal, com cúpulas, mais a torre dupla correspondente ao Anexo 1 de cada instituição – as formas claras e puras amplamente divulgadas nos croquis que acompanham os textos do arquiteto. Mesmo assim, continuaram as explorações. Por exemplo, no segundo anteprojeto, que resultou no projeto executivo, há 26 versões do pavimento semienterrado e trinta e uma versões do pavimento superior. 38


As narrativas de Niemeyer omitem o processo criativo e fazem crer em formas que surgem definitivas, respostas simultaneamente lógicas e inovadoras do gênio criativo aos condicionantes. 39 Contudo, as informações disponíveis mostram um projeto que tateava caminhos variados, com sucessivos testes, escolhas e ajustes. Para cada solução, pode haver uma “explicação necessária”, mas o processo que levou a tais soluções não foi linear nem dedutivo.
Apesar do início em março de 1957, o projeto apenas foi aprovado pela comissão designada pelo Senado e pela Câmara em novembro de 1959, com as obras bastante adiantadas. 40 Por sua vez, o projeto de estruturas, concebido por Joaquim Cardozo, foi iniciado juntamente com as obras, em novembro de 1957, e estendeu-se até outubro de 1959. As dificuldades na definição da versão final são explicadas, em parte, pelas demandas apresentadas pelas comissões de acompanhamento de obras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, incorporadas ao processo tardiamente, após a definição de seu partido. 41
No Rio de Janeiro, Câmara e Senado tinham sedes próprias, e os gabinetes e escritórios dos parlamentares localizavam-se fora das sedes. Em Brasília, Câmara e Senado passaram a dividir o mesmo Palácio, com área significativamente maior do que a soma das sedes anteriores. 42 Contudo, o firme propósito dos parlamentares de ali instalar a totalidade dos espaços de trabalho fez a demanda por área crescer continuamente, já durante o projeto, de forma incompatível com o partido arquitetônico adotado.
As alterações de projeto foram numerosas, a ponto de inviabilizar a identificação de uma versão definitiva. Diferentes versões, totais e parciais, se sucederam ao longo da execução, sem que houvesse uma última versão completa. Além disso, até cerca de 1964, “os acabamentos executados em regime de urgência, para atender ao cronograma da inauguração, tiveram como consequência direta um perene estado de necessidade de complementação da obra” 43 ( Figura 2 b). Assim, também não é possível referir um “estado de completude inicial”, pois, entre a inauguração e a conclusão posterior da obra, o edifício se modificou rapidamente.
A demanda por mais área para escritórios é exemplificada pelos espaços ocupados pelo Senado na fachada voltada para a Praça dos Três Poderes, cuja ocupação foi adensada já nos primeiros anos de uso, eliminando salas de uso comum para receber Presidência, Vice-Presidência, Comissão de Orçamento e um gabinete parlamentar. Enquanto isso, o amplo saguão adjacente ao plenário da Câmara dos Deputados, também com vista para a Praça, foi precariamente subdividido em numerosas saletas, por meio de divisórias, no contexto do regime parlamentarista implantado em 1963 ( Figura 3 ). 44
Esse primeiro ciclo de acomodação recíproca entre o edifício e seus usuários pode ser observado na planta-síntese do período 1960-1970. As alterações, precariamente planejadas, afetaram a fluidez do edifício – por exemplo, o trânsito entre os dois plenários era inicialmente livre – e levaram à perda da integração visual com a Praça ( Figura 3 ).
O Anexo II da Câmara dos Deputados, construído entre 1965 e 1968 com projeto de Oscar Niemeyer, constituiu o primeiro enfrentamento mais sistemático da questão. A obra incluiu a construção do túnel que liga a Câmara à fachada sul do Edifício Principal ( Figura 3 ). Em 1972, inaugurou-se o primeiro bloco do Anexo II do Senado, com seu respectivo túnel de ligação à fachada norte do prédio. 45 Os novos acessos acentuaram o eixo longitudinal existente, correspondente ao trânsito entre as duas casas legislativas e materializado na continuidade entre os saguões de seus plenários.
No mesmo contexto, se insere a ampliação do edifício em cerca de 20% de sua área – a maior intervenção por que ele passou, também com projeto de Oscar Niemeyer. As tratativas para a execução, em convênio com a Novacap, foram iniciadas em 1968. As obras começaram em abril de 1970, com previsão de conclusão para o início de 1971. 46 Niemeyer desenvolveu estudos que resolviam simultaneamente o aumento de área, a desocupação dos salões e a manutenção da integração visual entre estes e a Praça dos Três Poderes. Contudo, para disponibilizar mais área, os parlamentares optaram pela criação de uma ala de gabinetes com dois pavimentos, em toda a extensão da fachada leste, bloqueando definitivamente a vista para a Praça.
A plataforma de cobertura teve seus dois vértices a leste demolidos e reconstruídos alguns metros adiante, mantendo a unidade visual do exterior e conseguindo efetivamente escamotear o fato de que o edifício é a soma de duas construções ( Figura 4a a). É necessário ter atenção para perceber a expansão, por meio de elementos como as diferenças nos caimentos de água entre os dois trechos e pequenas descontinuidades na borda da cobertura ( Figura 4b b).
Mesmo pouco visível a partir do exterior, essa intervenção transformou irreversivelmente a espacialidade dos ambientes voltados para a Praça dos Três Poderes. No alinhamento da fachada leste anteriormente existente, criou-se um jardim interno em dois níveis, tendo por fundo um extenso painel de azulejos concebido por Athos Bulcão, denominado, a posteriori , Ventania . De forma ainda mais clara do que os túneis de ligação aos anexos, essa ampliação evidencia que já não estava mais em andamento a conclusão do prédio a partir de seu projeto, e sim o enfrentamento de questões não atendidas pelo edifício conforme concebido e construído. Definiam-se, assim, características novas para a arquitetura.



Entre 1971 e 1972, ambos os plenários foram reformados, evidenciando uma busca por melhorias funcionais e espaciais. Na Câmara, o estudo preliminar de Oscar Niemeyer foi desenvolvido pelos arquitetos Carlos Magalhães e João Filgueiras Lima. 47 A intervenção manteve a forma básica do recinto, mas transformou seu caráter ao substituir mobiliário, instalações e os principais revestimentos – que passaram a ser carpete cinza e vidro fumê. A base da área elevada ocupada pela Mesa Diretora foi ampliada por meio de uma superfície de dupla curvatura, e seu fundo recebeu um painel de Athos Bulcão, formado por perfis de alumínio verticais e volumes esmaltados verdes e amarelos (Figuras 5 a, 5 b, 5 c e 5 d).




No Senado Federal, o estudo de Niemeyer foi desenvolvido pelo arquiteto Cydno Silveira. Em maio de 1972, a obra foi considerada concluída, mas, em 1973, houve serviços complementares relativos à sonorização e à votação eletrônica. 48 As principais características da reforma do plenário da Câmara foram repetidas, como a ampliação da base da Mesa Diretora, por meio do acréscimo de uma superfície de dupla curvatura, e a incorporação de um painel de perfis de alumínio, com autoria de Athos Bulcão, ao fundo dessa área. O paralelismo entre os projetos é evidente também nas perspectivas assinadas pelo arquiteto (Figuras 6 a, 6 b, 6 c e 6 d).
O mobiliário foi substituído por peças em madeira feitas sob medida em Brasília, com exceção dos assentos dos senadores, para os quais foi adotada uma versão fixa da Eames executive chair . Os revestimentos foram substituídos por carpete azul e espelhos fumê. A acústica do espaço, problemática por causa da forma da cúpula, foi resolvida combinando um novo revestimento no interior da superfície côncava com um forro de placas verticais móveis. Essa solução foi desenvolvida para a obra por meio da adaptação de um sistema disponível no mercado, cujas placas fixas eram inadequadas à aplicação na superfície curva. 49 Segundo Cydno Silveira, a participação de Athos Bulcão no projeto incluiu o painel ao fundo da mesa diretora e a definição da cor azul ultramar do carpete, mas não esse forro. 50




Depois de mais de dez anos de uso, a primeira motivação apresentada para a reforma foi a necessidade de “urgentes reparos, inclusive no tocante a som, iluminação, ar-condicionado e sistema eletrônico de votação” 51 ; secundariamente, referiu-se “o caráter provisório de suas instalações”. Contudo, também não se trata de concluir a execução do projeto de 1957, mas de atualizar as instalações e a aparência dos plenários para a década de 1970, seja na substituição dos lambris de madeira por vidros escuros (na Câmara), seja na mudança do reboco pintado de branco para espelhos fumê e carpete azul (no Senado).
Entre 1976 e 1978, deu-se outro par de intervenções, compreendendo os espaços ao redor dos plenários – então chamados de halls, saguões ou salões. Na Câmara, o estudo de Niemeyer data de 1976, e buscava “reorganizar o interior da Câmara dos Deputados, criando inclusive um salão de recepção para o Presidente, próximo ao hall principal” 52 . O projeto substituiria os septos de mármore existentes, remanescentes da construção inicial, por um painel semitransparente de Marianne Peretti e outro, em metal, desenhado pelo arquiteto, para ocultar um pilar fora do alinhamento. 53 Previa também obras de Portinari, Poty Lazzarotto e Firmino Saldanha, que não foram instaladas, e painéis de Athos Bulcão no Hall dos Deputados (atual café privativo) e na Sala de Recepção do Presidente (atual Salão Nobre) – os últimos representados com sua localização e aparência atuais. Não previsto no estudo, foi instalado no Salão Nobre o painel Pasiphae , de Marianne Peretti. Ambos os painéis de Peretti são datados de 1977, ajudando a definir a conclusão da intervenção. O carpete verde instalado na ocasião resultou na denominação corrente do espaço: Salão Verde (Figuras 7 a, 7 b, 7 c e 7 d).
Em dezembro do mesmo ano, o presidente do Senado relatou os “entendimentos mantidos com o arquiteto Oscar Niemeyer, no sentido de ser restabelecida a nobreza dos saguões do Senado, a exemplo do que fez com a Câmara” 54 . A primeira versão conhecida do projeto é um estudo de outubro de 1977. 55 O memorial do arquiteto justifica a intervenção partindo das melhorias de disposição e de iluminação propostas para o gabinete do presidente do Senado. Com essa reorganização, conseguiu desocupar o saguão do plenário, “enriquecendo-o plasticamente, dando-lhe a importância que suas funções exigem”. Com efeito, no Senado, essa área inicialmente livre permanecia tomada por escritórios, mesmo após a ampliação do Edifício Principal e a inauguração do Anexo II do Senado.
O projeto beneficiou-se do fato de que a abertura do túnel de ligação com o Anexo II, no início da década de 1970, levara à demolição de um conjunto de salas ao longo da fachada norte. Desde então, essa fachada tinha uma transparência para o exterior que colaborava para a orientação no interior do edifício. Essa área livre recebeu o café dos senadores, que antes se localizava entre o Salão Nobre e o saguão do plenário. Os banheiros do café, por sua vez, foram deslocados para o interior do plenário (Figuras 8 a e 8 b). 56




A execução da obra deu-se no recesso parlamentar entre 1977 e 1978. 57 Anotações na planta baixa disponível no acervo do Senado, talvez do próprio Niemeyer, indicam as especificações, a introdução de um painel artístico ao fundo do Salão Nobre e a criação das superfícies curvas que passaram a caracterizar o saguão. Os acabamentos em espelhos fumê e carpete azul ultramar, introduzidos no plenário em 1971-1972, foram estendidos a esse espaço, que terminou por ser chamado de Salão Azul (Figuras 8 b e 8 c). Em junho de 1978, autorizou-se a aquisição dos painéis artísticos para o Salão Nobre – um de Athos Bulcão, instalado aproximadamente na localização prevista no projeto, e um de Marianne Peretti, denominado Lago e peixes , não previsto nas pranchas de projeto identificadas ( Figura 9 ). 58





Em síntese, as sete obras de médio e grande porte conduzidas por Oscar Niemeyer de 1965 a 1978 no Edifício Principal reconfiguraram por completo seu pavimento superior ( Figura 10 ). 59 As intervenções se encadeiam, respondendo às anteriores, e dão novas formas, materiais, fluxos e obras de arte aos espaços mais representativos do Palácio. Com isso, contornam a perda de qualidade arquitetônica das ocupações não planejadas dos primeiros anos. Cientes do projeto inicial, essas intervenções não o recuperam ou completam, mesmo quando se fala em “restauração do projeto inicial” 60 . Elas dotam o interior de características novas, próprias de seu tempo, que se integraram a sua imagem e a atualizaram.
Os resultados do processo são amplamente reconhecidos pelo público e pelas instituições envolvidas, sem que hoje se questione sobre serem originais ou não. Esse reconhecimento transparece no fato de que o verde e o azul dos carpetes terminaram por nomear os salões mais utilizados de cada casa legislativa e tornaram-se tão representativos de cada uma delas que foram adotados na programação visual das instituições, chegando à logomarca do Congresso ( Figura 11 a). Também o grande painel de azulejos de Athos Bulcão, inicialmente apenas substituto da vista para a Praça dos Três Poderes, tornou-se uma das imagens-síntese do prédio, protagonista de numerosas peças gráficas e um dos pontos de interesse de seu programa de visitação ( Figura 11 b). Não por acaso, as transformações posteriores introduziram apenas modificações pontuais nesses espaços.
As obras de arte que foram sendo integradas à arquitetura tiveram papel relevante na nova configuração do edifício. Até 1970, este dispunha apenas do painel de Athos Bulcão, no Salão Negro, e da tela de Di Cavalcanti, no saguão da Câmara dos Deputados. 61 Ao longo da década, multiplicaram-se os painéis de Athos Bulcão e Marianne Peretti. O Salão Verde exemplifica como não se trata de mera acumulação de obras, mas de adições integradas à concepção arquitetônica: enquanto o muro-divisória de Bulcão isola o Hall dos Deputados, o painel semitransparente de Peretti substitui os septos em mármore, dando mais fluidez ao espaço e ajudando a equilibrar a perda da transparência para o exterior.
Duas décadas depois do ciclo de intervenções analisado, Niemeyer projetou um conjunto de cinco espelhos d’água entre o Edifício Principal e a Esplanada dos Ministérios, para “proteger um prédio público de manifestações agressivas e baderneiras”, nas palavras do então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães. Aprovada a concepção de Oscar Niemeyer em agosto de 1998, a obra já se encontrava concluída em março de 1999. 62 Trata-se de intervenção de grande porte e impacto, comparável àquelas da década de 1970, inclusive pelo fato de que os espelhos d’água se integraram ao Palácio do Congresso, atualizando sua imagem publicamente reconhecida (Figuras 12 a e 12 b). Assim, não são comuns as referências textuais ou fotográficas à época em que o acesso ao edifício era mais franco e direto, nem as reclamações sobre os novos elementos constituírem inserções inadequadas ou perda de valor.




Para além das transformações de maior porte e visibilidade, o Edifício Principal tem passado por frequentes alterações menores e menos visíveis, em suas áreas parlamentares, administrativas e de apoio, conduzidas pelas equipes técnicas da Câmara e do Senado. Assim, em paralelo às transformações que analisamos no pavimento superior do edifício, numerosas outras aconteciam no pavimento inferior. Com efeito, como se observa nas plantas-síntese do período 1975-1985, com exceção do Salão Branco e do saguão de distribuição entre Senado e Câmara, a totalidade do pavimento foi reformada neste período, em diversas obras isoladas ( Figura 13 ).
Em 1972, a escada do Salão Branco à Taquigrafia do Senado foi eliminada, criando uma lanchonete; em 1978, essa área foi transformada em barbearia, charutaria e engraxataria, com projeto que seguia os acabamentos instalados no Salão Azul na mesma época. Entre 1979-1980, as salas trapezoidais projetadas para as comissões do Senado, que àquela altura funcionavam como Serviço Médico, foram fundidas e reorganizadas para a instalação de agências do Banco do Brasil e dos Correios, fazendo desaparecer uma geometria relevante para a leitura dos usos iniciais do edifício. 63 Na Câmara dos Deputados, as Comissões passaram por intervenção análoga, tendo sido incorporadas à Taquigrafia. Os gabinetes parlamentares junto aos jardins internos do Senado e da Câmara seguiram com seu uso, mas foram intensamente subdivididos, inclusive ocupando partes do jardim. Os gabinetes ao longo das fachadas leste e sul do edifício e as Taquigrafias de ambas as instituições também sofreram reformas extensas ( Figura 13 ). Houve setores completamente reformados duas vezes no período.
Assim, nos primeiros 25 anos de existência do Palácio, as mudanças nas áreas secundárias foram tão intensas quanto aquelas de maior valor simbólico e arquitetônico, e mais frequentes do que elas. Esse edifício em transformação constante tornou-se, em grande medida, outro, que não aquele inaugurado em 1960. Nos espaços que, por sua função e configuração de projeto, eram menos representativos, frequentemente se resolveram demandas funcionais pontuais às custas do valor arquitetônico do edifício. Isso se evidencia, por exemplo, na instalação de sanitários ocupando e fragmentando o jardim interno; na perda da configuração das salas trapezoidais das comissões; na subdivisão excessiva dos gabinetes, incompatível com a modulação estrutural e infraestrutural do edifício; e na supressão dos eixos de circulação entre as Taquigrafias e as Comissões.
Além dos elementos visíveis nas plantas de demolição e construção, observamos, por meio das poucas fotografias disponíveis das áreas menos representativas do Senado Federal, a substituição de acabamentos existentes por outros menos adequados ao caráter daqueles espaços – como piso Paviflex preto substituído por granito cinza andorinha e lambris de madeira substituídos por paredes pintadas de branco (Figuras 14 a e 14 b). Resulta, do conjunto desses processos, diferença significativa entre a qualidade arquitetônica que se observa nos plenários e nos salões reformados e aquela remanescente nas demais áreas do Palácio.
As pranchas-síntese dos períodos 1985-1994 e 1994-2010 mostram a continuidade do processo descrito. No pavimento superior, sucedem-se reformas nos cafés dos Senadores e dos Deputados, nos Comitês de Imprensa, Presidências e gabinetes parlamentares de ambas as casas. No pavimento inferior, repetem-se as reformas nos gabinetes, bancos e Taquigrafias – no caso da Câmara, esta última foi ocupada por órgãos de comunicação institucional (Figuras 15 e 16 ). Nesses 25 anos, assim como nos 25 anteriores, a maioria dessas áreas foi reformada duas vezes. Enquanto isso, o Salão Branco permaneceu com sua configuração de inauguração, e os plenários, Salões Nobres, Salão Azul, Salão Verde e Salão Negro mantiveram a configuração aproximada adquirida na década de 1970.
Na década passada, conforme se observa na prancha referente ao período 2010-2020, persistiu o ritmo de reformas periódicas em áreas como bancos, cafés e gabinetes parlamentares ( Figura 17 ). Houve também novas intervenções em ambos os plenários, de forma a garantir acessibilidade de pessoas com deficiência às tribunas e às mesas diretoras, com projetos das equipes de cada casa legislativa. Esse par de intervenções permite identificar novas abordagens arquitetônicas nas intervenções sobre o Palácio, relacionadas a seu progressivo processo de reconhecimento patrimonial, 64 que não significam o abandono completo dos métodos descritos na seção anterior.
Em 2014, 65 no plenário da Câmara, o acesso para pessoas em cadeira de rodas foi resolvido rebaixando (demolindo e reconstruindo) toda a superfície elevada da Mesa Diretora, de modo a conseguir vencer sua altura com uma única rampa. Em função da rampa, o mobiliário existente foi deslocado. O acesso às tribunas agora é feito por plataformas eletromecânicas embutidas no piso ( Figura 18 a). Conforme análise de André Castro, a intervenção viabilizou a retirada de uma plataforma elevatória convencional anteriormente instalada, que tinha maior impacto visual, e “não se sobressai no ambiente nem é perceptível sem que se tenha prévio conhecimento do fato” 66 .



No plenário do Senado, a rampa construída para os mesmos fins, em 2018-2019, tem dois lances, com um patamar intermediário a partir do qual se acessa a tribuna. A maior extensão do percurso evitou a necessidade de rebaixamento da superfície elevada, mas também houve deslocamento do mobiliário fixo existente. O volume da rampa e de seu patamar se apresenta visivelmente como adição à construção existente, mas, por sua forma e materiais, não compromete a apreensão do espaço ( Figura 18 b). 67
Enquanto adição visível que se integra ao edifício com mínimas demolições, essa intervenção é análoga à instalação do painel artístico Alumbramento , de Marianne Peretti, no Salão Branco, em 2016 (Figuras 17 e 18 c). Criado para o Anexo II do Senado em 1978 e desmontado em função de reformas naquele edifício, o vitral foi trazido ao Edifício Principal para mantê-lo em exibição permanente. 68
Por sua vez, as obras realizadas pela Câmara dos Deputados no saguão do pavimento inferior do Edifício Principal correspondem à mesma lógica da intervenção em seu plenário: transformações físicas de maior porte, não-identificáveis após sua conclusão. As alterações se integram ao Plano de Preservação da Câmara, que pretende “resgatar valores da configuração original do edifício […]: setorização clara distribuída em blocos separados por largas circulações” 69 . Na etapa de 2019-2020, executaram-se: conversão das agências bancárias em salas de reunião para as lideranças partidárias; transferência de caixas eletrônicos do saguão para área segregada; e reconfiguração do saguão, com eliminação de elementos físicos da área de exposições Espaço Ivandro Cunha Lima, criação de área de recepção de visitantes e substituição do revestimento de piso tipo Paviflex preto por granito verde Ubatuba ( Figura 17 ). 70 Além da resolução de questões funcionais, a intervenção aumentou a fluidez do saguão e sua integração às demais áreas mais representativas do Palácio.
Nos quatro casos referidos, a resolução dos desafios de programa foi buscada por meio de intervenções que se pretendiam mínimas. A diferença observada entre elas é que, enquanto os projetos da equipe da Câmara dos Deputados buscaram a mínima diferença em relação à imagem tomada como referência, os projetos concebidos pela equipe do Senado Federal buscaram as mínimas perdas físicas, ao tempo em que se apresentam como adições.
Essas posturas profissionais e suas diferenças foram extensamente analisadas por André Castro, que buscou sintetizá-las: para a equipe da Câmara dos Deputados, as principais referências seriam a concepção do edifício, sua lógica própria e seu projeto inicial; para a equipe do Senado, as principais referências seriam a situação atual do edifício, seu processo histórico e sua materialidade. 71 De toda forma, ambas constituem uma nova abordagem, diversa das grandes transformações de Niemeyer, que haviam resolvido os programas propostos ao tempo em que efetivamente “reconfiguram” o edifício, conferindo-lhe novas e potentes imagens. Essa abordagem também é diversa do conjunto das obras de menor porte, em que a funcionalidade predominou sobre outros objetivos, com frequentes perdas de valor arquitetônico.






Em meio à contínua transformação durante os sessenta anos de existência física do Edifício Principal do Palácio do Congresso Nacional (e mesmo antes disso, ainda em projeto), a análise e sistematização de suas alterações permitiram identificar espacial e temporalmente o conjunto dessas transformações, bem como aprofundar o conhecimento disponível sobre reformas fundamentais para a história do prédio, como aquelas ocorridas no Plenário do Senado (1971-1972) e no Salão Azul (1977-1978). Foi possível observar três diferentes linhas de intervenção, que não abarcam a totalidade dos contextos e intenções dos projetos desenvolvidos, mas descrevem suas tendências principais. 72
Nas áreas mais representativas e nas situações de maior impacto potencial sobre o edifício, costumou-se recorrer ao arquiteto do projeto inicial, Oscar Niemeyer. Nos demais espaços do edifício, as transformações vêm sendo conduzidas pelas equipes técnicas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Observamos, já nas condições de encomenda, uma divisão entre situações ou espaços mais sensíveis, nos quais o convite a Niemeyer parece corresponder a uma disposição prévia de atender a demandas funcionais em consonância com a qualidade arquitetônica do todo; e situações ou espaços entendidos como corriqueiros, nos quais frequentemente o atendimento direto às demandas apresentadas se sobrepôs a uma visão mais ampla do edifício.
Nesse contexto, a diferença entre os resultados verificados não se explica apenas pela diferença entre o “gênio” de Niemeyer e dos demais arquitetos, mas igualmente pelas diferentes disposições dos encomendantes em aceitar as propostas do “Professor” 73 ou de funcionários das instituições. Essas diferentes formas de intervir aprofundaram, ao longo do tempo, uma hierarquia espacial já presente no projeto.
A partir do processo de patrimonialização do edifício, na década de 2000, identificamos uma terceira estratégia, que toma as questões de preservação como um dos determinantes centrais de projeto. Conforme apontado por André Castro, para além das implicações legais do tombamento federal, também foram fundamentais para a emergência desse posicionamento a formação e a postura profissional dos arquitetos que ingressaram como servidores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal desde essa década. 74
Nessa longa trajetória, as transformações mais amplas conduzidas por Niemeyer constituíram nova arquitetura entrelaçada à antiga. Ora de continuidade com o existente, como nos plenários, ora de clara ruptura, como no Salão Azul, vão além de “completar” ou “concluir” o edifício, e efetivamente transformam-no em outra versão de si próprio. Suas alterações acomodam as questões programáticas, afastando-se do projeto inicial sem ignorá-lo. Hoje, elas não são vistas pelo público leigo ou especializado como deturpações e, em alguns casos, chegam a se identificar com as próprias instituições do Senado e da Câmara. Sem se pretenderem como intervenções no patrimônio cultural, elas recriaram espaços que hoje apresentam valores culturais amplamente reconhecidos.
O caso aponta para a importância da “autoria” não só como fator gerador, autenticador ou explicativo da arquitetura, mas também como condicionante fundamental de seus processos de transformação e preservação. A autoridade acumulada pelo profissional Oscar Niemeyer justifica suas repetidas contratações, assim como sua capacidade profissional se relaciona à qualidade dos resultados alcançados. Trata-se do profissional responsável por um conjunto de valores arquitetônicos iniciais e também pela maior parte dos valores desse tipo que se constituíram na trajetória do edifício.
Diferentemente do que argumenta uma corrente relevante da bibliografia sobre a preservação da arquitetura moderna, definida na Introdução deste artigo, o Edifício Principal do Palácio do Congresso Nacional evidencia como alterações que afastam ícones do século XX de sua intenção e forma iniciais nem sempre são desvirtuações e descaracterizações a serem revertidas. Ao contrário, essas mudanças podem gerar novas imagens que concorrem e se sobrepõem às fotografias consagradas, atualizando o imaginário coletivo e apresentando valor cultural relevante, em acordo com o que argumenta outra corrente de pensamento.
O caso aponta também, pela relevância espacial e, mais amplamente, cultural das obras de arte gradualmente incorporadas à arquitetura, para a adição enquanto modo de intervenção propício ao enriquecimento dos valores desses edifícios – o que não é novidade para o patrimônio mais antigo. Mostra, ainda, como a arquitetura do século XX, ao alcançar o modo monumental, na variedade de sentidos do termo, se apresenta à preservação de modo conceitualmente análogo à arquitetura monumental de outras épocas. Trata-se, enfim, de ver tais objetos não apenas como ícone – imagem cultuada imutável – mas também como palimpsesto – documento com múltiplas escrituras sobrepostas.
Em síntese, o Palácio do Congresso reitera a oportunidade de pensar a preservação de edifícios modernos considerando-os na (já longa) continuidade temporal que medeia seu processo de projeto e sua situação atual, e alerta os profissionais para condicionar escolhas que impliquem apagamentos históricos à consciência das perdas e ganhos de tais operações. Afinal, os apagamentos são irreversíveis, enquanto seus eventuais ganhos permanecem como possibilidade para reavaliação e execução futuras.
Ao Senado Federal, que viabilizou a realização desta pesquisa, por meio do afastamento de minhas atividades regulares.
Ao Prof. Dr. Eduardo Pierrotti Rossetti, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (PPG-FAU-UnB), que orientou a tese de doutorado que resultou neste texto.
julianolcarvalho@gmail.com .




































