RESUMO: Este artigo traz uma revisão dos métodos aplicados à historiografia da tipografia no Brasil, bem como de literaturas mais recentes que levam em conta estudos de memória gráfica e micro-história como parte da historiografia. A pesquisa que originou este artigo buscou elucidar a história da fundação da Tipografia Hennies Irmãos em São Paulo. A investigação, cuja metodologia inclui o cruzamento de distintas fontes de dados e uma redução na escala de observação, se debruçou sobre os anos iniciais da oficina e as relações sociais pelas quais se inseriu no campo tipográfico paulistano. Relações estas que revelam, por meio das publicações impressas e de documentos, um intenso contato com comunidades de imigrantes que se instalaram em São Paulo, distintas composições societárias, tipógrafos hábeis em diversos idiomas, contatos internacionais com fornecedores de insumos gráficos e fundidoras de tipos. A narrativa resultante, que aborda o início da trajetória dos irmãos Hennies –entre 1891 e 1899–, foi aqui utilizada como estudo de caso para demonstração dos procedimentos metodológicos como possibilidades de revelar aspectos mais profundos em termos de investigação histórica, contribuindo para uma reflexão do fazer historiográfico no campo da tipografia.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura material, História do design, Memória gráfica, Tipografia, Oficina tipográfica.
ABSTRACT: This article reviews historiographical methods applied to typography in Brazil, as well as more recent literature on graphic memory and microhistory as part of historiography. Intending to elucidate the history of the Hennies Brothers Letterpress Printing Shop in São Paulo this research, whose methodology cross-references different data sources and reduces the scale of observation, focused on the shop’s foundational years and the social relations through which it became part of the São Paulo letterpress printing sphere. These relations reveal, through printed materials and documents, an intense contact with immigrant communities that settled in São Paulo, distinct corporate compositions, typographers skilled in several languages, international contacts with graphic material suppliers and type foundries. The resulting narrative, which addresses the early trajectory of the Hennies Brothers—between 1891 and 1899—, was used as a case study to demonstrate methodological procedures as possibilities for revealing deeper aspects in historical research, contributing to a reflection on historiographical work in typography.
KEYWORDS: Material culture, Design history, Graphic memory, Typography, Letterpress printing shop.
ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL
O estabelecimento da Tipografia Hennies Irmãos em São Paulo: um estudo de caso pela perspectiva historiográfica
Foundation of the Hennies Brothers Letterpress Printing in São Paulo: A case study on a historiographical perspective
Received: 08 January 2024
Accepted: 18 June 2024
No final do século XIX, São Paulo estava se tornando o principal centro editorial e gráfico brasileiro. Muitos imigrantes chegaram à cidade, falando diferentes idiomas e trazendo consigo diferentes culturas. Como outros imigrantes, os irmãos Hennies trouxeram com eles materiais e conhecimentos. Sua contribuição foi particularmente importante, dada a longa tradição tipográfica da Alemanha e a influência que os impressores e fundadores alemães tiveram na cultura tipográfica local. Em São Paulo, estiveram ativos durante um século, passando por três gerações familiares, produzindo artefatos impressos destinados aos mais variados setores da sociedade e às comunidades de imigrantes que viviam na cidade.
Pesquisas anteriores abordaram a Tipografia Hennies Irmãos sob aspectos metodológicos 1 de investigação das publicações impressas; análises de publicações 2 específicas, como jornais e revistas; envolveram o exame de catálogos de tipos, investigando as possíveis origens desses tipos, 3 ornamentos e vinhetas; 4 e a comparação com outros imigrantes pioneiros do setor gráfico em São Paulo. 5 Informações sobre a oficina e seu repertório tipográfico estão disponibilizadas na plataforma Tipografia Paulistana. 6
Este artigo abrange o campo das oficinas tipográficas ativas no primeiro século de impressão com tipos móveis na cidade de São Paulo, com atuação do final do século XIX ao século XX, contexto no qual se estabeleceu a Tipografia Hennies Irmãos, objeto de pesquisa. Quais são as possibilidades metodológicas de investigação da trajetória de uma instituição, com a particularidade das oficinas tipográficas fundadas no século XIX? Para responder a essa questão, a Tipografia Hennies foi abordada como estudo de caso, enquanto instituição, e as relações sociais por ela estabelecidas no contexto geográfico paulistano foram evidenciadas em um recorte temporal dos primeiros anos da oficina liderada por seus fundadores em diferentes composições societárias – anteriores ao registro da empresa na Junta Comercial, entre 1891 e 1899.
Os objetivos compreendem uma revisão dos métodos tradicionalmente aplicados à historiografia da tipografia no Brasil e de literaturas mais recentes, lideradas por pesquisadores do campo do Design, que incluem a memória gráfica como parte da historiografia. A aplicação desses métodos revisados, combinados a um cruzamento de distintas fontes de dados, teve como objetivo revelar detalhes da fundação da Tipografia Hennies.
O corpus da pesquisa inclui dados obtidos a partir de fontes tradicionais da historiografia e o cruzamento com outras fontes de dados visuais. O primeiro inclui dados sobre a imigração dos Hennies, documentos oficiais da empresa, fotografias, entrevistas com pessoas envolvidas com a empresa e familiares, informações a partir de notícias em periódicos, notas obtidas nas próprias publicações periódicas impressas pelos Hennies (em expedientes de jornais, por exemplo) e em anúncios da oficina tipográfica divulgando os serviços prestados. Entre as fontes específicas do campo da tipografia está uma ampla cronologia de obras impressas – que inclui livros, jornais, revistas, relatórios anuais, catálogos de tipos e suprimentos gráficos – e o levantamento e investigação do repertório dos tipos móveis empregados por essa oficina.
Esta introdução retoma a literatura consagrada da história da impressão no Brasil, 7 amplamente citada em revisões de literatura nos campos do design, jornalismo e comunicação, para então abordar, na seção seguinte, o referencial teórico metodológico – entendido aqui como principal –, que considera a memória gráfica parte da historiografia. 8 A abordagem metodológica inclui também alguns procedimentos comuns à micro-história, 9 lançando mão da redução da escala de observação de fatos relacionados a trajetórias particulares de indivíduos como estratégia, na intenção de, futuramente, conectar fragmentos da história em uma narrativa mais ampla. Inclui como parte do método duas entrevistas e suas respectivas transcrições, estruturadas conforme proposta de Verena Alberti, 10 além de procedimentos de coleta e tratamento de dados textuais e visuais, que seguem os procedimentos aplicados por pesquisadores do Lab Visual, Laboratório de Pesquisa em Design Visual, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). 11
Os livros existentes, alguns decorrentes de teses, frequentemente narram a história da tipografia pelo viés de seus produtos, como a história da imprensa e dos periódicos, narradas por jornalistas e comunicadores, ou ainda a história do livro, abordada por diversos historiadores de áreas afins.
O bibliógrafo inglês Laurence Hallewell 12 analisou cronologicamente, por meio de dados estatísticos, os aspectos políticos, econômicos e sociais da impressão de livros iniciada no século XIX, na então capital, Rio de Janeiro, e de modo amplo em outras cidades do Brasil. A produção das principais editoras foi contabilizada e exibida em poucas imagens, sem ênfase na narrativa imagética. A atuação dos livreiros, a fundação das primeiras bibliotecas, a circulação e o consumo de livros especificamente na cidade de São Paulo, narrados por Marisa Deaecto, 13 segue essa perspectiva histórica, com ênfase em questões urbanas, culturais e econômicas.
A história dos meios de comunicação no país, sintetizada na obra de Nelson Werneck Sodré, 14 compreende um texto de síntese amplamente citado por historiadores das comunicações, com forte influência das questões políticas. Ao abordar a cultura impressa revisada desde a era colonial, Sodré tangencia a história da tipografia ao ressaltar os pequenos periódicos, até então deixados de lado pela historiografia, segundo Ribeiro, 15 passando pelo jornalismo político e a formação da grande imprensa jornalística com assuntos do cotidiano.
Questões políticas envolvendo a conturbada e tardia liberação da impressão tipográfica no país, bem como sua disseminação pelas principais cidades nos séculos XIX e XX, foram abordadas por Carlos Rizzini 16 e Semeraro e Ayrosa. 17 No que diz respeito ao estado de São Paulo, Semeraro e Ayrosa 18 relacionam a chegada da imprensa à criação da Academia de Direito, em 1827, ano de fundação do jornal O Farol Paulistano , cuja oficina foi posteriormente adquirida pelo governo.
Considerada uma fonte primária de pesquisa, a listagem dos periódicos impressos nas primeiras décadas em São Paulo, realizada por Affonso de Freitas, 19 sintetiza informações que possibilitam quantificar e fomentar novas investigações que envolvam este corpus. As revistas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo trazem textos pontuais da história da tipografia escritos por diversos autores, entre eles cabe destacar o relato de Freitas 20 acerca da conferência sobre o primeiro centenário da fundação da imprensa paulista. O autor parte dos fatos que antecederam a chegada de um prelo em 1827, revelando as articulações necessárias com a Corte para a remessa de uma tipografia para São Paulo, e a proliferação de periódicos nos anos seguintes, ressaltando os fundadores dos principais jornais que circularam em São Paulo.
Do ponto de vista do design, Chico Homem de Melo e Elaine Ramos 21 compilaram importantes momentos do design gráfico brasileiro em uma obra colorida e rica em imagens de impressos, que inclui, além de livros, periódicos e impressos efêmeros. Ao considerar a enorme expansão do setor gráfico no cenário paulistano pontuada por Margarida Gordinho, 22 ainda há muito o que pesquisar sobre os artefatos gráficos e o repertório tipográfico.
Nesse contexto, os autores apontados brevemente nesta introdução apenas tangenciam a história da tipografia, portanto não jogam luz sobre a trajetória das oficinas tipográficas aqui instaladas, cujo perfil e atuação diferem das grandes indústrias editoriais e dos jornais renomados que entraram para a história. Refere-se aqui às oficinas tipográficas de produção efêmera, com produção editorial e periódica de alcance regional, com atuação comercial ou na esfera pública, mas não menos importantes ou representativas do alcance da tipografia no país. Deste modo, ao revisar a literatura existente, constata-se a necessidade de redução da escala de observação, procedendo às análises circunscritas em trajetórias particulares e locais que se relacionam com fatos da história mais ampla. Nesse sentido, os resultados da pesquisa relatada neste artigo revelaram detalhes da fundação de uma oficina tipográfica por alemães em São Paulo, que até então esteve às margens da historiografia da tipografia, como tantas outras que vêm sendo reveladas por Priscila Farias 23 e, como investigação metodológica, visam extrair um parâmetro que possa nortear pesquisas futuras que contribuam de modo mais abrangente para uma história da tipografia.
As referências metodológicas revisadas neste tópico se alinham de alguma maneira à abordagem da micro-história proposta por Barros, 24 ampliando o âmbito de possibilidades investigativas ao aproximar o pesquisador de uma determinada realidade social. A redução na escala de observação, sem desprezar pequenos indícios, contrapondo diferentes pontos de vista e diferentes aspectos de um mesmo objeto, corresponde ao que Barros 25 chama de análise intensiva das fontes, proposta que pode enriquecer as pesquisas históricas no campo do design. Martinez de Schueler Frota e Sooma Silva 26 chamam atenção para uma contribuição especial no trabalho de Lima Filho, 27 no que se refere ao “jogo de escalas” de observação no olhar do micro-historiador: ao reduzir a escala de observação para se atentar aos pormenores não se perca a “visão panorâmica”, de modo que, ao ampliar a escala, se considere outros contextos relacionados, como sociais, políticos e culturais.
Marcos Braga e Eduardo Ferreira 28 aprofundaram, mais recentemente, os estudos que caracterizam a abordagem da micro-história, apontando contribuições significativas para a ampliação e a democratização da História do Design no Brasil. Os autores apontam alguns exemplos de pesquisas que demonstram a diversidade do design no contexto brasileiro, cujas estratégias se utilizam ou tangenciam a abordagem da micro-história, visto que não se trata de um único caminho, permitindo múltiplas possibilidades de conexões com outras estruturas metodológicas específicas de cada campo do conhecimento ou do objeto em foco. Segundo Braga e Ferreira, “são visadas que ajudam na construção de uma descrição mais densa que vão desvelar aquilo que os objetivos da pesquisa procuram entender” 29 . Por esse motivo, os autores apontam para pesquisas atualmente verticalizadas envolvendo histórias do design locais, específicas de determinados personagens, objetos e contextos culturais, sem que haja neste momento a construção de narrativas horizontais amplas, visando dar conta do contexto brasileiro como um todo.
A pesquisa em memória gráfica frequentemente tem como objeto de estudo os impressos efêmeros, não se limitando a estes que, segundo Farias e Braga, 30 podem incluir “artefatos produzidos a partir de projetos de design gráfico e da prática das artes gráficas; materiais, técnicas e meios de produção gráfica (composição e reprodução), e artefatos bi ou tridimensionais em seus aspectos comunicativos ou informacionais”. A natureza do olhar da pesquisa em memória gráfica permite ao pesquisador avançar para “além dos territórios mais tradicionais de temas do campo da história do design gráfico, abarcando a maior abrangência do campo gráfico ou da cultura da impressão, mas também da cultura visual e da cultura material” 31 . Essa postura abrangente considera um recorte temporal mais amplo do que se entende por design gráfico, como pontua Rafael Cardoso, 32 englobando artefatos anteriores à década de 1960.
Alguns procedimentos se referenciam em literaturas que incluem a memória gráfica como parte da historiografia no campo do design, tangenciando aspectos metodológicos tradicionalmente usados pela história gráfica que se aproximam de estudos em história social, “o que envolve identificar a trajetória, a inserção social e a contextualização histórica do autor” 33 . O estudo da memória gráfica explora ainda a dimensão de uma identidade local, 34 possibilitando lançar um olhar aos fatos históricos da cena tipográfica paulistana.
Farias 35 retoma a chegada da impressão tipográfica em São Paulo e recorta a pesquisa nos primeiros cem anos de tipografia na cidade a fim de revelar quais empresas imprimiam e comercializavam tipos, quem eram as pessoas envolvidas, qual era o repertório de tipos utilizado e como reunir e visualizar os dados resultantes com o objetivo de fomentar futuras investigações. Defronte dessas questões, os procedimentos metodológicos partiram de buscas em almanaques comerciais, em que listas de impressores e fornecedores podem ser encontradas, e revistas, em busca de anunciantes do setor gráfico, para então revelar nomes e obras ainda desconhecidos da historiografia. Dados brutos dessas obras foram digitalizados e tratados, como imagens dos caracteres tipográficos, vinhetas e ornamentos. Os dados obtidos por Farias 36 foram compilados na plataforma digital Tipografia Paulistana, que foi ponto de partida de diversas pesquisas 37 sobre oficinas de impressão na cidade de São Paulo nos séculos XIX e XX.
Farias, Aragão e Lima 38 mapearam, por meio dos almanaques comerciais publicados no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como por meio de catálogos de tipos móveis, as principais figuras do comércio tipográfico brasileiro no século XIX, revelando nomes menos conhecidos pela historiografia. Os métodos adotados por essas pesquisadoras seguiram tendências internacionais para compreensão e descrição dos elementos tipográficos 39 e uma perspectiva de design gráfico a partir de estudos similares na América Latina. 40
Lima, Aragão e Farias 41 revelaram os materiais tipográficos disponíveis em catálogos de tipos do século XIX, publicados no Rio de Janeiro e no Pará, a partir da análise minuciosa dos artefatos efêmeros. Ainda referente aos fornecedores de tipos, Isabella Aragão 42 resgatou a memória da Funtimod, fundidora de tipos móveis de metal fundada em São Paulo por alemães no século XX. Para isso, a pesquisadora utilizou entrevistas, análises de documentos e de catálogos de tipos, com estudos visuais comparativos, a fim de identificar a origem dos tipos comercializados pela empresa e verificar se houve algum desenho de tipo originalmente produzido por eles.
Nesse sentido, caminhou a investigação de Martins et al . 43 sobre João Francisco Madureira, o pioneiro da tipografia na província do Grão-Pará, ao qual a historiografia existente até então dedicava apenas alguns parágrafos. Ao investigar a tipografia da década de 1820, partiram da revisão da literatura existente, cruzando com dados de documentos, relatos do próprio Madureira e os efêmeros, materiais impressos por ele, cuidadosamente examinados. Descobriu-se que Madureira construiu sua tipografia a partir de referências em livros, ainda sem conhecimentos técnicos e fundiu os tipos necessários para impressão, sendo considerado por Martins et al . 44 um marco na história da impressão no Pará.
Mais recentemente, Letícia Fonseca 45 propôs um conjunto de métodos voltados para pesquisas em história do design, considerando a análise de materiais impressos em discussões que levam em conta aspectos da prática projetual. Os procedimentos adotados por pesquisadores do laboratório, relatados por Fonseca, 46 dão ênfase a fichas de coleta de dados, revisão bibliográfica de historiadores da imprensa e autores que trataram sobre artefatos gráficos. A partir da aproximação do pesquisador com o contexto histórico, a proposta inclui a revisão de outros estudos similares e dados adicionais, como entrevistas, e em uma segunda etapa, a análise gráfica do impresso, que inclui o mapeamento do acervo, registro fotográfico, organização do acervo digital, elaboração e preenchimento de ficha de análise dos impressos, análise e discussão dos resultados.
Cabe aqui a consideração de alguns pontos em comum observados na seleção de fontes e estruturas metodológicas adotadas por estes pesquisadores do campo do design mencionados: abordagem vertical de pesquisa; conexão de diferentes estruturas metodológicas; como cultura material, o olhar para artefatos gráficos efêmeros em contraponto a obras literárias amplamente estudadas; recorte geográfico local, por vezes realizando mapeamentos; foco em trajetórias pessoais ou de pequenos grupos, com a consideração de relatos e entrevistas; sistematização de tratamento e análise dos dados visuais. A partir desses pontos elencados, um parâmetro observado foi a consideração de dados de diferentes naturezas e o cruzamento destes, a fim de enriquecer a aproximação do pesquisador com objeto de pesquisa, sem menosprezar as mais distintas fontes de informação.
Literatura existente, artefatos físicos (análise das características visuais e informativas destes), documentos textuais, fotografias, notícias em periódicos, entrevistas, biografias de pessoas envolvidas, dados geográficos, bancos de dados (de imigração, por exemplo) são alguns exemplos de fontes de dados que podem ser cruzadas simultaneamente sob diferentes perspectivas, possibilitando uma redução da escala de observação e um aprofundamento nas especificidades do objeto pesquisado. Ao cruzar dados visuais, obtidos por meio do levantamento e análise de artefatos gráficos, com informações históricas e sociais a respeito da produção, insumos, uso, circulação e comércio de materiais impressos e de pessoas relacionadas a eles de algum modo (e suas trajetórias sociais e culturais), ampliam-se as possibilidades de compreensão dos fatos por parte do pesquisador historiador. Nesse sentido, faz-se uso de algumas das técnicas de investigação propostas pela micro-história neste estudo de caso, 47 com a retomada de uma visão panorâmica da trajetória dos irmãos Hennies.
Os dados para a investigação da Tipografia Hennies foram obtidos a partir das respectivas fontes primárias, que incluem obras impressas em acervos de bibliotecas públicas e particulares, no Brasil e no exterior, como Portugal, Alemanha e Letônia; acervos digitais de periódicos; o acervo de documentos, fotografias e catálogos de tipos preservados e cedidos para a pesquisa pela família Hennies; entrevistas com o último proprietário da empresa, Waldemar Hennies; e conversas com outros familiares. Os dados foram coletados e tratados, as informações foram planilhadas e organizadas cronologicamente. As informações documentais compuseram uma planilha, os dados das publicações deram origem a uma segunda planilha e os dados visuais investigados originaram planilhas específicas sobre análise dos tipos móveis, ornamentos e vinhetas. Levando em conta as pesquisas do campo de design e o parâmetro aqui mencionado, todos esses dados foram considerados no relato dos resultados, exposto a seguir.
A pesquisa sobre a Tipografia Hennies se iniciou com a entrevista de Waldemar Hennies, 48 então com 80 anos de idade, residente na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Parte da terceira geração familiar que tocou a oficina a partir de meados da década de 1950, Waldemar e seus dois irmãos aprenderam o ofício na prática, com o pai e os tios à frente da empresa. Iniciou na composição tipográfica, mas poucos meses depois já lidava com clientes, fazia orçamentos, cuidava da entrega dos serviços gráficos, da contabilidade e ajudava a orientar funcionários. Ele menciona os serviços prestados a clientes de cunho comercial, produzindo impressos como cartão, papel de carta, envelope, fatura, bula de remédio, calendário, agenda, diploma, encadernação e douração, recordando-se de alguns poucos livros e embalagens.
É importante levar em conta o referencial temporal da experiência de Waldemar Hennies dentro da oficina, cujas histórias antigas foram ouvidas dos familiares envolvidos com a empresa e do avô Heinrich Hennies durante sua infância. Dentre esses relatos, um tema que chamou a atenção, tornando-se objeto deste estudo, foi o início das atividades tipográficas exercidas pelo avô, Heinrich, e pelo tio-avô, Theodor Hennies, cujo registro se deu apenas no ano de 1900. 49 O entrevistado declarou não ter conhecimento de outras composições societárias além das que envolveram familiares, anteriores a 1900, 50 tampouco revelou detalhes da chegada do avô ao país, restando assim uma lacuna sobre o prelúdio da fundação da oficina.
Ao conversar com outros membros da família Hennies foi possível localizar os dados disponíveis no Centro de Estudos Migratórios da América Latina 51 e constatar a chegada dos irmãos ao continente. Heinrich Hennies 52 desembarcou na Argentina em outubro de 1888, então com 24 anos, junto com seu irmão Theodor, 53 de 19 anos, vindos de Bremen, Alemanha, a bordo do navio Graf. Bismark. Pouco depois vieram para o Brasil. 54
A partir de um minucioso levantamento de obras impressas assinadas pelos Hennies em 49 acervos físicos e virtuais, no Brasil e no exterior, a busca resultou em mais de 560 obras consultadas. Foram encontrados 136 livros e muitos periódicos, como 308 revistas, 48 jornais e exemplares de outros gêneros, por exemplo catálogos e relatórios anuais. A maior parte dessas publicações foi produzida nas primeiras quatro décadas de funcionamento da empresa, motivo pelo qual Waldemar declarou desconhecê-las em sua maioria.

A partir da organização cronológica das obras impressas foi possível confirmar que a empresa foi fundada em 1891. Confirmou-se o ano por três evidências, sendo uma delas a primeira edição do jornal P rogredior: Revista do commercio, industria e agricultura do Estado de São Paulo , publicado em 1º de setembro de 1891 sob direção de Lucio da Silva Gonçalves ( Figura 1 ). Além da assinatura na quarta página, um anúncio na primeira página assinado por Typographia de Hennies, Schulz & Comp. mencionava ser esta a oficina na qual se imprimia o jornal, com endereço 55 à Rua dos Imigrantes, 48. 56 A segunda evidência vem de um anúncio em alemão da Tipografia Hennies Irmãos & Cia., de 1930, 57 cujo desenho da fachada do endereço contém a legenda “Gegruendet 1891” (Fundada em 1891). Por fim, a terceira evidência trata-se de um papel timbrado da empresa utilizado na década de 1930, com a data e a fotografia da fachada da oficina ( Figura 2 ). Em dezembro de 1891, Hennies, Schulz & Comp. foram anunciados pelo Correio Paulistano 58 como uma tipografia “recém aberta” cujos serviços eram “executados com muito capricho”.

Fontes: APESP, Instituto Martius Staden e acervo da família Hennies.
Voltando à primeira publicação – que se tem notícia – impressa e assinada pelos Hennies em sua sociedade inicial com Schultz, 59 cabe mencionar que trata-se de uma folha ilustrada, inicialmente semanal, bastante vistosa e arrojada para aquele período. 60 Embora quebradiço, o original 61 consultado no Arquivo Público do Estado de São Paulo mede pouco mais de 36 x 49 cm. Com um cabeçalho ilustrado, o nome do jornal é ladeado por figuras femininas com elementos do comércio, trazendo ao fundo um horizonte marítimo. Um lettering (letreiramento) com o título da publicação compõe a ilustração, em formato de arco, sombreado e com preenchimento listrado. Mais duas ilustrações estampam a primeira página: um clichê com elementos simbólicos junto ao nome do jornal na seção de expediente e uma fotogravura de Joaquim Payão, ao centro, assinada por Comp. Ind. de S. Paulo. O repertório tipográfico surpreende, com tipos serifados, grotescos, escriturais, fantasias e toscanos, os últimos três diferenciando ricamente títulos e os anúncios na quarta página – que também conta com complexas tabelas de estatísticas comerciais –, além de alguns ornamentos pontuais na primeira página. Para uma publicação de uma oficina tipográfica recém-instalada, os elementos aqui destacados indicam a posse de um maquinário para grandes formatos de jornais, capacidade de reprodução de imagens por meio de clichês, relação com fornecedores de clichês, como a Companhia Industrial, além de um vasto repertório de tipos.

A segunda publicação encontrada, datada de 1892, aponta para uma nova formação societária. Primeiro de Maio: jornal commemorativo do Centro do Partido Operario de S. Paulo trazia a assinatura de Typ. Hennies & Winiger ( Figura 3 ). Publicada pelo Centro do Partido Operário de S. Paulo na célebre data de 1º de maio, a folha comemorativa era ainda maior que o primeiro jornal, com 38 x 56 cm. Com uma capa emoldurada e ornamentada, a ênfase no espaço em branco destoa dos periódicos tradicionais, com destaque para o título da publicação, ano, o emblema do partido e título de capa, ressaltando a emancipação dos trabalhadores. O impacto visual da capa se diferencia das tradicionais massas de texto densas para um melhor aproveitamento do espaço visual. Sabe-se que a ligação dos Hennies com Winiger existia desde 1890, por meio de relatos de reuniões do Partido Trabalhista publicados no jornal Germania . 62
O exame sistemático de doze publicações encontradas permite afirmar que Winiger 63 foi sócio dos irmãos Hennies na Tipografia Hennies & Winiger entre 1892 e 1893 ( Figura 4 ). Sabe-se que após dezembro de 1892 64 a oficina se estabeleceu na Rua Caixa d’Água, 1C. 65 Nesse período, publicaram livros de poesia, trazendo capas ricamente ilustradas com molduras compostas por ornamentos e vinhetas variadas, impressão em cores, papéis coloridos especiais e uma ampla variedade de tipos; de direito, uma biografia em francês, e outrosperiódicos, como A Eschola Publica , cuja sequência das edições permite dizer que o encerramento da sociedade com Winiger se deu entre setembro e outubro de 1893.
Após a sociedade com os Hennies, em 1894 Winiger dirigiu o Paulistaner Echo , 66 jornal impresso pela empresa em idioma alemão. Publicado às terças e sábados, Paulistaner Echo tinha teor político, com agentes correspondentes na Argentina (Buenos Aires) e na Alemanha (Hannover) – locais pelos quais os Hennies passaram antes de chegar ao Brasil. O jornalista foi acusado de escrever “artigos alarmantes e subversivos à ordem pública” 67 , intimado a depor e, posteriormente, detido por não revelar a fonte das informações publicadas. Sabe-se que Winiger também dirigiu o Echo von Brasilien , periódico em alemão, cuja edição nº 5, ano 3, publicada em 1895 também foi impressa pelos Hennies, indicando uma relação de cliente, estabelecida posteriormente ao desfecho da sociedade.
Logo após a saída de Winiger, a oficina passou a assinar suas publicações como Typographia Hennies Irmãos. Importantes títulos foram impressos nos anos seguintes pelos Hennies, como os periódicos em italiano Il Lavoro, L’Asino Umano: Ragliata Settimanale Illustrata e La Bestia Umana ; o semanário Echo Portuguez , voltado à comunidade de imigrantes portugueses em São Paulo; e O Correio Academico: orgao scientifico e llitterario ( Figura 5 ). Algumas revistas desse período também merecem destaque, como os três primeiros números da R evista do Museu Paulista, a Revista Agricola e o Almanak de Piracicaba para 1900 . 68 Foram impressos livros voltados aos temas de ciências sociais, literatura, direito e ciências naturais, incluindo peças para administração pública e diversas associações.


Ao todo, datadas de 1891 a 1899, foram levantadas 74 publicações. Elas revelam uma intensa atividade comercial da empresa em São Paulo, passando por duas composições societárias nos anos iniciais e estabelecendo articulações com editores de diversas comunidades de imigrantes 69 – o que envolve ainda a contratação de tipógrafos falantes de idiomas distintos–, bem como fornecedores de tipos e insumos gráficos importados.
Uma minuciosa investigação acerca das origens dos tipos utilizados pelos Hennies revelou a relação com grandes fundidoras da Alemanha desde o início. Parte dos tipos empregados nos periódicos citados, como por exemplo o Echo Portuguez , são oriundos das fundidoras de tipos H. Berthold, J. G. Schelter & Giesecke, D. Stempel e Emil Gursch. 70

O crescimento da atuação dos Hennies nesses primeiros anos em atividade ficou evidente ao comparar cronologicamente os anúncios que divulgavam os serviços prestados: tipografia em 1891 ( Figura 2 ); tipografia e encadernação em 1893; todo tipo de serviços de impressão, clichês xilográficos e gravuras em zinco em 1894; tipografia a vapor em 1895, indicando novas máquinas gráficas com maior capacidade de impressão por hora; e de primeira fábrica no Brasil de cartões de fantasia em relevo e aerografia, estereotipia, encadernação, pautação, grande depósito de artigos para artes gráficas e papelarias após 1900 ( Figura 6 ). Tais diversificações nos serviços de impressão, a modernização do maquinário e do repertório de tipos, a atuação como revenda de suprimentos gráficos podem ter sido fatores que contribuíram para a longeva atividade dessa empresa, incrementando sua atuação comercial ao longo de um século.
As obras que fazem uma tentativa de abordar a história da impressão a nível nacional trouxeram importantes contribuições que sintetizam o conhecimento histórico disponível até o momento de suas publicações. Como toda obra de síntese, estas merecem ser complementadas, discutidas e ampliadas por estudos de pós-graduação contemporâneos, envolvendo a memória gráfica no contexto da historiografia do design gráfico e da tipografia. A riqueza de pesquisas pontuais, como as centradas em um único periódico, voltadas a um determinado período temporal ou um impressor específico, podem ser comparadas com estudos similares em outros contextos e relacionadas a contextos históricos mais amplos, como nacionais e em países vizinhos, com processos de colonização similares, a fim de amadurecer reflexões nessas áreas do conhecimento.
Nesse sentido, e respondendo à questão principal deste artigo, a investigação dos primeiros anos de atuação dos alemães Hennies na tipografia em São Paulo demonstra como o cruzamento de distintas fontes primárias pode revelar aspectos mais profundos em termos de investigação histórica, contribuindo para uma ampliação do que se entende por historiografia da tipografia a partir deste estudo de caso. Apenas a título de comparação, se fossem consideradas apenas as documentações existentes na junta comercial como recorte de pesquisa, os anos que antecedem o registro da empresa em 1900 não teriam sido considerados na investigação, restando uma lacuna ainda maior sobre os processos históricos que conectam a imigração alemã e as atividades de impressão em São Paulo.
A aproximação do pesquisador com o contexto investigado, por meio do cruzamento de informações e a complementaridade de dados em uma escala reduzida de observação, incluindo artefatos efêmeros, como propõe os estudos em memória gráfica, difere da visão de historiadores clássicos que apenas tangenciam o campo da tipografia, de modo que muitos aspectos passam despercebidos. Buscou-se aqui, portanto, construir uma narrativa mais completa ao abordar a trajetória cronológica dos irmãos Hennies, as diferentes sociedades da empresa, as pessoas envolvidas, os serviços prestados, a relação com o campo gráfico internacional, a relação com as comunidades imigrantes em São Paulo, questões visuais dos impressos e tipos, sem perder de vista a origem da pesquisa, que se deu por meio de entrevistas que nortearam as investigações decorrentes. Esses estudos podem ser comparados futuramente com historiografias de outros grupos de imigrantes, de portugueses e italianos, por exemplo, que também se dedicaram à tipografia no Brasil.
Pesquisa apoiada por bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2019/07566-6 e bolsa BEPE processo nº 2021/10507-1. À família Hennies pelo empréstimo de documentos relacionados à empresa. Aos professores Marcos da Costa Braga e Eduardo Augusto Costa por compartilharem valiosos ensinamentos sobre História do Design na FAU USP. À professora Priscila Lena Farias pela supervisão da pesquisa.
E-mail:jade.piaia@unesp.br





