ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL/DOSSIÊ
Introdução do dossiê “Produzir, acumular e transmitir conhecimentos no império português: práticas materiais, artefatos visuais e criatividade”
Introduction to the dossier “Producing, accumulating and transmitting knowledge in the Portuguese empire: material practices, visual artifacts and creativity
Nas últimas duas décadas, a historiografia das ciências nos impérios modernos tem acentuado o papel dos artefactos visuais, dos agentes e dos suportes materiais na construção da cultura científica moderna.1 Este dossiê temático, intitulado Produzir, acumular e transmitir conhecimentos no império português: práticas materiais, artefatos visuais e criatividade, explora a complexa rede de atores que permitiu a circulação dos conhecimentos entre os domínios portugueses e a metrópole, com especial ênfase no século XVIII. Por intermédio de uma série de estudos de casos, os autores identificaram a rede de agentes - naturalistas, médicos, missionários, cartógrafos e comunidades locais - engajados na disseminação de saberes que conectavam as diferentes partes do império português, e inseriam Portugal num circuito global.
As relações entre a historiografia da cultura (visual e material) e a história da ciência encontram um ponto de convergência nos estudos aqui apresentados, reforçando as linhas de pesquisa desde há muito cultivadas pelo Museu Paulista. Nesse sentido, convém destacar a importância das abordagens pioneiras de Sérgio Buarque de Holanda e de Ulpiano Bezerra de Meneses no que tange à valorização da cultura material, visual e dos saberes técnicos. Não por acaso, escolhemos os Anais para ampliar os resultados da Jornadas realizadas online, em 4 e 5 de fevereiro de 2021, durante a pandemia de covid-19, pelo Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica (cartografiahistorica.usp.br), sediado na Cátedra Jaime Cortesão.2
Para além dos estudos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda que retomamos aqui, também vale mencionar a crítica feita pela historiografia latino-americana e pelos estudos que promoveram a quebra do paradigma difusionista, redimensionando o protagonismo das sociedades não europeias na formação da ciência na época moderna.3 Nos últimos anos, questões de gênero, raça e classe social voltaram a pautar o debate entre historiadores e historiadoras, ampliando as problemáticas propostas nos anos oitenta e noventa. O centro do debate historiográfico deslocou-se para a compreensão das “zonas de contato”, conforme propôs Mary Louise Pratt em 1991. Foi justamente nessas zonas ou áreas de sociodiversidade, que se promoveram os encontros, frequentemente assimétricos e coercitivos entre comunidades de saber locais, colonos e autoridades. Conforme demonstrou pioneiramente Sérgio Buarque de Holanda no livro Caminhos e fronteiras, publicado em 1956, os portugueses se apropriaram das técnicas indígenas milenares não só para garantir a sua sobrevivência física, mas também porque o seu domínio era condição para o acesso aos recursos naturais e à mão de obra.4 Nessa perspetiva, os artigos aqui publicados situam a complexidade em jogo na produção dos conhecimentos úteis a partir do diálogo, seja com as artes visuais e seja com a economia. Concentramo-nos em dar o devido relevo às interações entre diferentes atores envolvidos na tradução dos modelos europeus para os povos nativos, e vice-versa. Com efeito, as práticas de observação, coleta, visualização gráfica, classificação e catalogação do mundo natural deflagraram uma dinâmica multivalente, assumindo sentidos diversos para os atores e grupos sociais nela implicados.5 A criação de novos saberes produzidos em situação colonial é uma das dimensões que desejamos enfatizar, uma vez que o processo colonizador acirra os tensionamentos, ao mesmo tempo que aprofunda as interdependências, propiciando a construção de um novo léxico e de novas práticas, conforme apontam diferentes historiadores e historiadoras.6
Os artigos aqui reunidos exploram desde o peso da cultura escrita na difusão do conhecimento filosófico-natural, até a participação indígena na produção de mapas e representações visuais, passando pelas práticas médico-cirúrgicas e pela exploração de recursos naturais aquáticos. Cada estudo revela como os processos de produção e circulação de conhecimento no império português não eram operações de apropriação unilateral, mas resultado de interagências. Assim, o dossiê examina a criatividade técnica e as práticas materiais que não apenas sustentavam as estruturas imperiais, mas também transformavam os domínios em laboratórios a céu aberto, para usar uma expressão de Kapil Raj.7
Em seu conjunto, os estudos buscam compreender como as práticas materiais e os artefatos visuais foram instrumentos fundamentais na formação de redes de conhecimento que desafiaram as fronteiras geográficas e sociais, propiciando uma economia da informação que fluía em múltiplas direções.8 O dossiê, portanto, destaca a criatividade e as formas de resistência que permeavam a produção e a acumulação de conhecimentos em diferentes pontos do império colonial.
Em Cultura escrita e práticas sociais: a natureza do conhecimento filosófico-natural produzido nos espaços coloniais do Império Atlântico português (século XVIII), Gisele Cristina da Conceição explora a produção de conhecimento filosófico-natural durante o século XVIII, especialmente no contexto das políticas imperiais que visavam explorar e compreender o potencial econômico dos recursos naturais. A autora investiga como a filosofia natural, enquanto campo de estudo, foi moldada pelas interações entre instituições metropolitanas e coloniais e pelos agentes envolvidos, tanto oficiais quanto não oficiais. A cultura escrita é apresentada como um meio crucial para a circulação de ideias, além de um instrumento de mobilidade social para alguns agentes. Ao analisar as práticas de produção e controle de conhecimento, o artigo busca compreender o impacto social do saber filosófico-natural nas relações entre o Brasil colonial e Portugal. A partir de documentos históricos, o estudo ressalta como o conhecimento produzido ajudou a reforçar a legitimidade das estruturas coloniais e permitiu que agentes locais estabelecessem posições de prestígio social e intelectual.
Em um diálogo próximo, Breno Leal Ferreira com o texto Delimitando o humano: João de Loureiro, Alexandre Rodrigues Ferreira e o debate sobre as fronteiras entre seres humanos e outros animais na segunda metade do século XVIII, investiga o debate sobre a distinção entre humanos e outros animais, focando-se nas contribuições dos naturalistas lusófonos João de Loureiro e Alexandre Rodrigues Ferreira. O estudo contextualiza a discussão científica sobre a “história natural do homem”, na qual se questionava se humanos e animais como os orangotangos compartilhavam características biológicas significativas. A análise aborda o confronto entre as ideias de Lineu, que propôs uma espécie humana intermediária, e Buffon, que defendia uma diferenciação clara entre humanos e macacos. Loureiro e Ferreira criticaram as teorias que sugeriam a existência de múltiplas espécies humanas ou de descendência híbrida entre humanos e macacos, utilizando representações visuais para sustentar suas posições. O artigo, assim, oferece uma reflexão sobre as fronteiras entre o humano e o animal, bem como sobre o papel das imagens na consolidação das ideias científicas da época.
Nina Vieira, Ana Catarina Garcia e Cristina Brito aprofundam essa perspectiva do diálogo entre a agência humana e não humana no artigo Manatins e tartarugas no Brasil colonial (XVI-XVIII): apropriação, extrações, consumos e teleconexões oceânicas. As autoras abordam a exploração de espécies aquáticas, como manatins e tartarugas, durante o período colonial brasileiro, destacando a percepção europeia de abundância de recursos naturais e seu impacto nas práticas de subsistência e comércio. O artigo analisa como a exploração dessas espécies foi moldada pelas interações entre colonizadores e populações indígenas, que já utilizavam esses animais para alimentação, confecção de utensílios e outras práticas culturais. O conceito de teleconexões oceânicas é introduzido para descrever as redes de exploração que conectaram o Atlântico e impactaram ecossistemas locais. Esse estudo contribui para a compreensão das consequências ambientais e sociais da exploração de recursos naturais no período colonial, refletindo sobre as implicações para os ecossistemas costeiros e marinhos.
Numa perspectiva centrada na História Social das ciências, Fabiano Bracht nos leva para a Índia portuguesa e o Índico com o artigo Artefatos de conhecimento e redes de circulação no Império português setecentista: entre as instituições e os processos auto-organizados. Bracht examina o desenvolvimento das redes de produção e circulação de conhecimento no Império português, com foco nos artefatos de História Natural e nos agentes responsáveis por sua disseminação. O estudo revela como o contexto social e as hierarquias do Antigo Regime influenciaram o valor atribuído ao conhecimento produzido por agentes informais, discutindo as dinâmicas de cooperação entre redes auto-organizadas e instituições imperiais. O estudo contribui para História do conhecimento conforme proposto por Jürgen Renn, destacando o impacto social provocado pela criação de uma rede global de saber. Essa análise amplia a compreensão sobre a circulação dos conhecimentos científicos e técnicos e o papel das redes imperiais na criação de uma economia do conhecimento no século XVIII.
Na mesma perspectiva, Monique Palma foca-se na circulação de conhecimentos médico-cirúrgicos entre Brasil e Portugal no século XVIII, discutindo como as práticas médicas locais e europeias interagiram nesse período. Circulação de conhecimento e práticas médico-cirúrgicas entre Brasil e Portugal no período setecentista analisa uma lista de botica e de instrumentos de cirurgia enviados de Portugal para a América portuguesa, comparando-a com o conteúdo do tratado médico-cirúrgico “Erário mineral” de Luís Gomes Ferreira, publicado em 1735. Por meio desse cruzamento, o artigo explora o contexto colonial, evidenciando também sua repercussão nas práticas e na formação dos agentes de saúde.
Este Dossiê chega a bom porto com uma análise fundamental feita por Júnia Ferreira Furtado e Artur Henrique Barcelos no artigo O Terrarum S. Michaelis do padre Tadeu Henis: um mapa missioneiro e seus cartógrafos Guarani. Os autores analisam o mapa Terrarum S. Michaelis Oppidi Americae Meridionalis, produzido nas Reduções jesuíticas por Tadeu Henis com a colaboração de cartógrafos Guarani. O estudo investiga a formação cartográfica dos Guarani, seus papéis nas demarcações territoriais pós-Tratado de Madri (1750) e o conhecimento geográfico que possuíam. Ao discutir o conceito de autoria cartográfica, o artigo argumenta que a agência indígena é visível nas representações espaciais e na toponímia Guarani, usadas para reafirmar direitos ancestrais sobre o território. A análise contribui para a compreensão do papel ativo dos Guarani na produção de mapas e na preservação de sua identidade cultural.
O Dossiê evidencia a complexidade das dinâmicas de produção, circulação e transmissão dos conhecimentos multifacetados no âmbito do império português, destacando a importância das interações dos atores sociais. As análises das redes de colaboração sugerem que o conhecimento acumulado não dependia apenas da iniciativa das instituições e dos agentes formais, mas também das redes informais e auto-organizadas que permitiram a construção de uma esfera de convivência que em muitos casos produziu efeitos imprevistos aos olhos das autoridades coloniais. As práticas materiais, os artefactos visuais e a expertise técnica examinadas neste dossiê demonstram as múltiplas formas de adaptação às circunstâncias locais, adequações que redimensionavam o próprio entendimento metropolitano sobre os limites de sua atuação. Nesse sentido, buscamos identificar as linhas de força que modelaram as práticas científicas e a cultura material e visual a ela relacionadas, ao longo da época moderna.9