Resumo: O objetivo desde ensaio é refletir sobre as bases da exclusão social presentes nas práticas que possibilitaram o delineamento e construção de um imaginário social sobre a cidadania no Brasil. Examina o momento da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e o período da proclamação da República no país, buscando perceber as linhagens definidoras do patrimônio autoritário brasileiro e suas relações com os homens comuns pobres. O ensaio enfatiza por fim o elemento político da construção do ideário de cidadania no Brasil como uma escolha analítica para revelar aspectos da vida política atual.
Palavras-chave:cidadaniacidadania,exclusão socialexclusão social,patrimônio autoritáriopatrimônio autoritário,BrasilBrasil.
Abstract: The objective of this essay is to reflect based on social exclusion present in the practices that allowed the design and construction of a social imaginary about citizenship in Brazil. The essay examines the moment of the transition from slave to free labor, and the period of the proclamation of the Republic in the country, seeking to understand the defining lineages of the Brazilian authoritarian heritage and its relations with the poor common people. Finally, the essay emphasizes the political element of the construction of the idea of citizenship in Brazil as an analytical choice to reveal aspects of today’s political life.
Keywords: citizenship, social exclusion, authoritarian heritage, Brazil.
Artículos
Exclusão social, Cidadania e Clientelismo: o pensamento autoritário no Brasil
Social exclusion, Citizenship, and Clientelism: or authoritative thinking not Brazil
Recepção: 09 Outubro 2019
Aprovação: 30 Outubro 2019
O propósito desde ensaio é o de refletir sobre as bases da exclusão social presentes nas discussões e práticas que possibilitaram o delineamento e construção de um imaginário social sobre a pobreza no Brasil. O ensaio perscruta, sobretudo, o momento da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e o período da proclamação da República no país, buscando perceber as linhagens definidoras do patrimônio autoritário brasileiro e suas relações com os homens comuns pobres.1
O intento aqui é o de levantar questões sobre as noções de cidadania enquanto regulação e ordenamento do mercado de trabalho livre no Brasil. Noções estas que serviram de fundo não apenas para as discussões e debates sobre o problema da nação, mas que encaminharam as práticas e processos de sedimentação do modo de ser brasileiro.
Joseph Love (1970) em um artigo intitulado A participação política no Brasil, 1881-1969 afirma, baseado em dados sobre participação eleitoral, que a República representou um aumento significativo na participação política em relação ao Império. José Murilo de Carvalho (1984:26), comentando o artigo de Love diz que, infelizmente, este autor não levou em consideração os dados eleitorais de antes da eleição direta, o que o induziu à conclusão sobre o aumento da representação política com o advento da República. Tal conclusão, segundo Carvalho (p. 26) não seria válida se a comparação tivesse sido realizada com o número de votantes das eleições indiretas do Império.
De acordo com Carvalho (1984: 5), o espírito das mudanças dos códigos e da participação eleitoral na República era o mesmo de 1881, quando foi introduzida a eleição direta no país. E, segundo ele, não foi “coincidência que Rui Barbosa estivera envolvido na passagem da Lei de 1881 e tenha sido um dos redatores do projeto da Constituição [brasileira] de 1891”.
Até o ano de 1881, informa ainda Carvalho (p. 5), o processo de eleições indiretas permitia uma participação em torno de 10% da população total do país. A implantação do processo de eleições diretas, de outro lado, reduziu este montante de 10% para menos de 1% e, com o advento da República, houve apenas um aumento ínfimo, pouco representativo, para algo em torno de 2% da população (dados da eleição presidencial de 1894).
O aumento ínfimo e pouco representativo da participação da população brasileira no processo eleitoral, com o advento da República, pode ser encontrado, por exemplo, exclusivamente na redução do requisito de idade para votar, de 25 para 21 anos; já que a exigência de renda, de residência em local fixo, e de alfabetização continuaram presentes na Carta Constituinte de 1891. Com o agravo no fato da Constituição de 1891 ter retirado a obrigação do governo federal de prover instrução primária e promover os socorros públicos.2
O advento da República no Brasil, por conseguinte, ampliou os limites da exclusão social no país e definiu os contornos do que, do como e por onde se poderia pensar a questão da cidadania no país. Ao reafirmar a exigência de renda, retiraram do processo eleitoral de então as mulheres, as ordens religiosas, os menores de idade, os praças de pré3 da força pública, os pobres e os mendigos, agravados pelo fato da exigência da alfabetização e da residência fixa. A noção de cidadania no Brasil, desta maneira, se fundamentou, com o advento da República, na ideia de exclusão social; e o fez de uma forma singular.
Este ensaio busca, assim, ressaltar o elemento político, e os direitos políticos, propriamente ditos, da construção do ideário de cidadania no país como um caminho analítico que possibilite desvendar alguns aspectos da vida política do Brasil atual.
A República no Brasil ao mesmo tempo em que redefine papéis sociais e contornos da sociedade de mercado, o fez de acordo com a ótica política clientelista. Ótica política esta que passou impávida por toda a história do país.
O binômio latifúndio e trabalho compulsório acompanharam desde sempre a vida política e ideológica brasileira. Tal binômio tem orientado, igualmente, os ritmos da modernidade conservadora no país, ao mesmo tempo em que exacerba ambiguidades e ambivalências nas quais o progresso é sentido como uma desgraça e o atraso como uma vergonha.4
A lógica ambivalente e ambígua acima estabelece os liames da construção e consolidação de um imaginário social dominante estreito e estritamente conservador. Nesse imaginário dominante a política e a ideologia modernizante se deparam, a cada instante, com os limites dos seus opostos. Os seus resultados, por conseguinte, são redefinidos, de modo contínuo, em função dos significados intrínsecos à prática oligárquica, isto é, no interior de uma estrutura econômica e política fechada e clientelística.5
O advento da República no Brasil e a modernização conservadora produzida e imposta ao país, desse modo, acompanharam a passos largos a consolidação dos interesses e a manutenção da oligarquia no poder. (Koury, 1984; 2017). O começo da República no Brasil definiu, também e concomitantemente, o espaço de representação de uma nacionalidade desterrada. O desterro aqui assume o sentido de exclusão social e de participação dos homens comuns da res publica.
O conceito de nação, dessa maneira, forjado no tripé latifúndio, escravo, e homens livres pobres e seus agregados, emerge no país como um conceito moral, disciplinador e excludente, antes que político. É sobre este conceito moral (Thompson, 1979) que se estruturam, a partir de então, as novas bases de regulação e disciplina de trabalho. (Koury, 2017).
A abolição do sistema escravocrata aguça a discussão de então sobre a manutenção do trabalho compulsório no país.6 A vinda de colonos, entre outros aspectos, estava subordinada às ideias de um embranquecimento da população, antes que por uma ótica modernizante e industrial.
O colono branco, europeu, deveria servir de substituição da mão de obra escrava nas fazendas e plantations no interior de uma espécie de compulsoriedade redefinida. Para tal, houve a imposição, em um primeiro momento, de rejeição aos outros povos imigrantes: principalmente, os de etnia asiática, considerados pela elite dominante no poder de então, como refugos da humanidade. Ao mesmo tempo em que continuava a compressão dos pobres nacionais a uma ótica compulsória mesclada direta ou indiretamente por tentáculos de compadrio e de apadrinhamento que alimentavam e os alinhavam a uma política de favor7 (Carvalho Franco, 1974).
É o processo do favor, nesse sentido, constituído nas entranhas da lógica clientelística, enquanto modo de dominação, que estabelecerá os contornos do ser nacional e firmará as bases de estruturação da cidadania republicana. Não que os ideólogos republicanos brasileiros estivessem distantes do debate europeu do positivismo e do liberalismo. Pelo contrário, se assentavam a partir deste debate, dando um colorido atrasado e conservador à prática local de implantação de uma modernização conservadora no país.
Como disse Richard Morse (1989: 175) se referindo ao acompanhamento do debate europeu sobre o liberalismo e o positivismo pelas elites econômicas, políticas e sociais brasileiras de então: “... atrasados, talvez..., mas de alguma forma acompanhavam a evolução dos seus pares europeus”, e, com certeza, liam a cartilha liberal-positivista do debate europeu à luz e à procura de manutenção da política clientelística e do trabalho compulsório e da lógica do favor a que estavam acostumados e em que se assentavam os códigos do poder local.
Desta leitura, analisada às vezes por cientistas sociais como deslocadas da prática clientelística nacional, só aparentemente se pode senti-la enquanto “ideias fora do lugar” (Schwarz, 1973), já que tal leitura subordinava a lógica do seu pensamento modernizante para o país à lógica do favor. A moral clientelista, desta forma, recompõe as ideias liberais a uma lógica própria, e a reduz “a penhor intencional duma variedade de prestígios com que nada tem a ver”. (Schwarz, 1973: 154). O que compõe destarte o nó górdio do pensamento modernizante brasileiro no interior de uma estrutura oligárquica: o de prover uma modernização conservadora, ou melhor, uma modernização sem modernidade. (Koury, 1984: 147). Realizado como hiato, o pensamento modernizador brasileiro, por conseguinte, se subtraía ao poder oligárquico e se fechava a qualquer movimento popular de então, até por ele mesmo às vezes inspirado, - como a revolta da vacina, por exemplo, - como fonte de sustentação e re-inspiração, ao contrário do que acontecia em toda a Europa. E, nesse sentido, as ideias e as razões modernizantes, deslocadas do processo social que as impulsionava na Europa, “serviam de justificação, nominalmente objetiva, para o momento de arbítrio que é a natureza do favor”. (Schwarz, 1973: 154).
A cultura do favor joga em cena, portanto, uma rede de cumplicidade permanente. Desta rede não escapa ninguém. Através dela, desse modo, se forjou e se consolidou o modo de ser brasileiro, tão sutilmente trabalhado por Roberto DaMatta (1984). Esse modo de ser brasileiro, segundo DaMatta, foi tecido por dentro de e através de uma política de ampliação da exclusão social. Exclusão social imposta, mas que é possível de ser trocada, através da política do favor, em cidadania, em uma forma de cidadania ao inverso. O que Teresa Sales (1994) chama de “cidadania concedida”.8
Esta cidadania invertida é tonalizada pela ideologia do jeitinho e da esperteza, o que a faz singular, com certeza, porém, arbitrária e violenta (Koury et al, 1988). A política e a prática do favor mascaram, assim, as bases da exclusão social, a legitimando, consequentemente, enquanto um ornamento liberal que encontra em uma leitura própria do individualismo e da cidadania os seus princípios morais verticalizados e sedimentados.
Este conceito de cidadania, ao inverso, é entendido aqui não como a expressão dos direitos civis, integrativos à sociedade; mas, como um conceito moral e moralizador. Como um conceito disciplinador por onde e através do qual se poderia arguir e praticar o controle social oligárquico e oligocêntrico sobre a pobreza e sobre os pares (em aliança sempre tensa e conflituosa), apenas extirpando a política de sua formulação.
Carvalho (1984: 10), radicalizando a formulação acima, afirma que o pensamento liberal brasileiro não fundou sequer a cidadania enquanto uma extensão dos direitos integrativos. Pior, segundo ele, o pensamento liberal no Brasil fundamentou uma estadania9por onde, através da proximidade dos indivíduos ou grupos ao Estado, se possibilitava o grau de integração hierarquizada, como níveis de cidadania outorgada. Vera Telles (1994), ampliando a radicalização realizada por Carvalho (1984), afirma, por seu turno, que a cultura do favor ou da dádiva é o avesso da cidadania.
Esta lógica de inversão, baseada na exclusão social dos homens comuns pobres e outros segmentos da população como as mulheres, os menores de idade, os sem alfabetização, os sem renda, os sem moradia fixa, entre tantos outros, como uma lógica outorgante de cidadania, condicionava estes segmentos de então a vivenciarem uma ideia de cidadania como uma cidadania outorgada através de uma disciplina constante e pela afirmação cotidiana de passividade e de não-direitos. Isto é, pela demonstração diária e permanente de que são segmentos morais de pessoas definidas como honestas, trabalhadoras, disciplinadas, amoldadas, ou seja, pessoas de bem.
Por conseguinte, os não-direitos dissimulam uma transversão e se apresentam em direitos como concessão, o que gera apatia, e reforça a lógica perversa de cumplicidade permanente e de conivência que a prática do favor tende a garantir. Ao mesmo tempo em que afiança a eterna vigilância e a disciplina como bases do controle e da regulação do mercado possessivo, após a abolição, por um lado. E despreza, por outro lado, qualquer prática sentida como autônoma, as interpretando apenas como práticas desviantes a serem disciplinadas e punidas.10
Convém notar, para finalizar este ensaio, que até a cidadania invertida, até agora trabalhada, e que faz parte da herança autoritária brasileira, não foi sequer inteiramente produzida pelos “republicanos”, mas sim, pelo liberalismo imperial. A releitura feita pelo advento da República, primeiramente, apenas serviu para consolidar a estrutura do poder, de forma mais direta, aos grupos dominantes da oligarquia brasileira rural e urbana. E, a seguir, ajustar os contornos da política de contorno e organização do mercado de trabalho, pós-abolição à lógica do sistema de favor, como via de orientação à compulsoriedade do trabalho e de contenção do trabalhador e da pobreza rural e urbana em geral.
A imensa dissonância entre sociedade e social no Brasil remete à questão da cultura como ligação ou re-ligação imediata à vida (Simmel, 1998). É através dela que se pode visualizar ou perseguir uma sociabilidade política para o país. Sociabilidade esta que pulsa por dentro, que esquenta o sangue do homem comum, mas que não ultrapassa os contornos rígidos da herança do favor que constitui a herança outorgada da sociedade brasileira.
Qualquer pesquisa que tenha interesse em desvendar as raízes do desterro da nacionalidade brasileira do homem comum, tem que emergir, por conseguinte, dos poros do favor. Seja no esforço de conhecer o como e o porquê os homens comuns se submetem; ou, pela busca do entendimento dos processos e movimentos que o leva a se organizar ou a se rebelar (Moore JR, 1987). Movimentos estes que se intercadeiam em uma trama moral, que perpetra os homens comuns e os torna sempre sob suspeição em relação à razão dominante que satisfaz a oligarquia e o conservadorismo nacional, desde a configuração da colônia em nação, e que, assombrosamente reaparece como fantasma e como repetição grotesca no país de hoje.