Reseñas

Corpos, vivencias e emoções atravessados pelo trabalho digital em um capitalismo globalizado

Julio Marinho Ferreira
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Pedro Robertt
Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Corpos, vivencias e emoções atravessados pelo trabalho digital em um capitalismo globalizado

Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, vol. 11, núm. 31, pp. 102-105, 2019

Universidad Nacional de Córdoba

SCRIBANO Adrian, LISDERO Pedro. Digital Labour, Society and the Politics of Sensibilities. 2019. Palgrave Macmillan

Recepção: 15 Novembro 2019

Aprovação: 26 Novembro 2019

Os sociólogos Adrian Scribano e Pedro Lisdero organizaram um debate acerca das consequências de uma Sociedade 4.0 relacionadas ao trabalho (labour) e às sensibilidades. A obra Digital Labour, Society and Politics of Sensibilities, está dividida em dez capítulos, editados por Scribano e Lisdero, os que também participam como autores. O digital e o virtual, enquanto categorias pouco olhadas pela sociologia, colocam-se diante de uma discussão de caráter global, através de um conjunto de artigos que trazem olhares do Chile, dos Estados Unidos, da Argentina, da China e da Turquia. Os autores dos artigos, que na obra estão divididos em dois blocos: Politics of Sensibilities and Society 4.0 . Politics of Sensibilities and Digital Labour, apresentam uma ampla gama de categorias analíticas e métodos de pesquisa, que têm no trabalho e seus desdobramentos – dentro de uma sociedade tecnológica e ultra-avançada (4.0) – um norte frutífero tanto para sociólogos quanto para pensadores sociais interessados nas novas formas de trabalho no mundo digital conectado.

A introdução, Politics of Sensibilities, Society 4.0 and Digital Labour, escrita por Scribano, discute os relevantes conceitos de Sociedade 4.0, trabalho digital e política das sensibilidades, que funcionam como guias de análise da obra. Scribano aponta que tais conceitos estão interligados, em uma lógica presente na chamada Sociologia dos corpos e das emoções. O objetivo desse capítulo introdutório é entender as transformações da sociedade atual, e como os três conceitos de Sociedade 4.0, trabalho digital e políticas das sensibilidades são rearticulados em categorias amplas, apontando questões latentes e relevantes para o entendimento das novas formas de trabalho.

O segundo capítulo, que inaugura a primeira parte da obra, foi escrito por Scribano e Lisdero, e intitulado Digital Gaze and Visual Experience. Busca- se, aqui, fazer uma conexão entre pesquisa social, imagens e internet do ponto de vista de uma Sociologia das sensibilidades. Com a crítica a uma Economia Política do visual na Sociedade 4.0, os autores apresentam, em primeiro lugar, a discussão dos usos da imagem na internet, enquanto uma plataforma de alcance global, que diariamente produz milhões e milhões de assuntos a serem vistos e consumidos. Em segundo lugar, os autores explicitam como as estruturas global/local das práticas de conhecimentos produzem direcionamentos e padrões que precisam ser entendidos em suas raízes. Com isso, as políticas do “olhar” são apresentadas enquanto elementos críticos para a prática de pesquisa, já que a experiencia do visual tenderia a melhorar o entendimento e a percepção de um tipo de “visual on-line”. E por último, surgem as implicações dessa economia política, que emersas dos modos de “olhar” e de consumir impõem uma relação interessante para os estudos sociológicos do ver-sentir-olhar, dentro dos contextos estruturais do digital.

No terceiro capitulo Work and Sensibilities: Commodification and Processes of Expropriation Around Digital Labour, novamente assinados por Scribano e Lisdero, tem-se a noção de trabalho digital, aliada aos estudos críticos de comunicação, pondo em cheque o trabalho (labour). Com isso, apresenta- se uma metamorfose, oriunda das relações sociais alteradas por uma sociedade altamente tecnológica (Sociedade 4.0), que produz uma latência de consumo constante. A associação entre a sociologia dos corpos e das emoções junto com o trabalho digital permite visualizar uma miríade de debates teóricos, que precisam ser redefinidos. É mediante estes argumentos que Scribano e Lisdero apontam para o entendimento da relação entre uma tecnologia de ponta (Internet e computadores) enquanto mediadores sociais e não apenas como um elemento dominador e definidor. A expansão das Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC’s), que o artigo se propõe discutir, teria na reconfiguração da política dos sentidos (olhar, ver, observar, tocar, etc.) um importante aspecto a ser analisado. Com isso, os trabalhadores nessas indústrias de TIC’s apresentam, com base em testemunhos e gravações etnográficas virtuais, uma importante virtualização dos corpos, como um elemento gerador de subjetividades que afetariam a produção e o trabalho em seu sentido emocional.

O quarto capítulo, Location and Data Visualisation Culture in Chile, escrito por Francisco Osorio, observa o Chile com base no modelo atual de tecnologia digital, o qual realocou os espaços e apresentou uma nova perspectiva a partir da massificação das ferramentas de geolocalização, principalmente o Google Maps. Os impactos sociais do uso dessas tecnologias, no contexto chileno, afetaram o urbano, no que diz respeito à noção e à percepção do espaço a ser ocupado pelos indivíduos, que fazendo um uso massivo das interfaces de localização, acabariam por ser controlados e vigiados, e aceitariam essas ações com naturalidade. Nesse sentido, Osorio percebe que desde o transporte público até os atos de caminhar, de pescar e acompanhar os filhos até as escolas, com o auxílio do GPS, são todos feitos a partir dos aplicativos de geolocalização e mobilidade. Com isso, o autor busca entender as consequências dessas mudanças espaciais e da noção de espaço urbano, para os chilenos.

No quinto capítulo, Borders and Archives Under the New Condition of Digital Visuality, de Sergio Martínez Luna, dispositivos digitais de vigilância e controle são analisados partindo da metáfora da “fronteira”, que sinaliza barreiras físicas, culturais e econômicas, acabando por ser usada como uma analogia para a divisão entre o espaço físico (real) e o tecnológico (digital). Dessa forma, para Martinez Luna, as identidades são reconfiguradas como interfaces e se tornam fronteiras no digital, promovendo relações entre essas mesmas fronteiras (imaginadas ou não) com a visibilidade, e retomando e fortalecendo as identidades. Para Martinez Luna, os efeitos sobre os corpos (físicos) do compartilhamento de arquivos, que incluem e excluem, poderiam estar relacionados com a questão da vigilância e da mobilidade na Sociedade 4.0, além de promover uma exposição que transformaria os agentes em clientes de tudo, afetando sua relação com o “outro”.

O sexto capítulo, The Society 4.0, Internet, Tourism and The War on Terror, de Maximiliano E. Korstanje aborda o evento do 11/09 nos Estados Unidos, que para muitos teóricos sociais e críticos da modernidade representou o fim de uma era e o início de uma outra, potencializando e alterando a geopolítica global. Korstanje observa a relação entre o terrorismo e a mídia, sua veiculação constante, sua difusão para um público consumidor acrítico, particularmente no governo de George W. Bush, fazendo parte da reconfiguração da tecnologia extrema da Sociedade 4.0. Com Slavoj Žižek, o evento do 9/11 não apenas fundou, mas fez o Ocidente acordar. Os riscos de uma inerente virtualização da vida são, para Korstanje, o que Žižek chamou de “o deserto do real”, e esse deserto é uma maneira pessimista de perceber o mundo tecnológico.

O sétimo capitulo, que inicia a segunda parte da obra, Labour, Body, and Social Conflict: “The Digital Smile” and the Emotional Work in Call Centers, foi escrito por Pedro Lisdero. O artigo apresenta cenários do novo mundo do trabalho, onde o que impera é a busca por produção de empatias (emoções) nos clientes, para potencializar novas formas de trabalho. Com isso, Lisdero traz a sociologia dos corpos e das emoções para entender como os conflitos e os processos de estruturação social envolvem elementos fundantes do trabalho emocional. Os Call Centers na Argentina são analisados a partir de quatro eixos: a) as considerações teóricas, b) os processos de tornar o trabalho “inseguro” e precário, c) a potencialidade de ação coletiva dos corpos que trabalham, e d) o trabalho emocional (escravidão de almas), atores e mecanismos sociais–digitais e trabalho emocional.

No oitavo capítulo, “Sharing Economy, Sharing Emotions” in The Society 4.0: A Study of The Consumption and Sensibilities in The Digital Era in China, de Zhang Jingting, são analisadas as inovações tecnológicas que conectam o mundo, analisando o caso chinês. Para Jingting, a China como o maior investidor e usuário de tecnologias digitais, com o qualificativo de Global Digital Leaders, apresenta o sucesso do trabalho digital e da economia de compartilhamento, enquanto exemplo para o mundo ocidental. A China, com sua população de 1.3 bilhões de habitantes, a partir das noções de He (harmonia) e de Tian Xia (tudo o que está abaixo do paraíso) conseguiu adequar a tecnologia com as emoções. Os produtos compartilhados, como bikes, casas, etc., mostram a necessidade de uma Sociologia das emoções, já que o consumo na Sociedade 4.0 envolve inúmeras características, tais como a questão do virtual e do móvel e da busca por uma harmonia, que para Jingting, é uma herança cultural da China, na qual essa relação com o compartilhar é latente. Com isso, torna-se importante olhar para os trabalhos gerados por essa economia de compartilhamento e de vivencias trocadas via tecnologias.

No penúltimo capítulo, The Invisible Face of Digital Labour in Turkey: Working Conditions, Practices and Expectations, de Mustafa Berkay Aydin e Çağdaş Ceyhan, é pesquisada a indústria do software na Turquia levando em consideração sua relevância global, já que movimenta a impressionante soma de 4.5 bilhões ao ano. A mão de obra qualificada turca, nesse setor industrial, envolve aspectos de conhecimento especifico e de domínio de informação especializada, tornando relevante a pesquisa desses profissionais. As novas formas de trabalho com suas jornadas mais flexíveis parecem ter como referência a experiência do Vale do Silício. As perspectivas dos trabalhadores do setor, que Aydin e Ceyhan pesquisaram através de 14 entrevistas, nas cidades de Ancara e Istambul, tendem articular as condições de trabalho com os aspectos emocionais, bem como descortinar os prejuízos de desempenho nessas formas de trabalho.

Por último, o artigo An Approach to Creative Work in the Global Economy of Risk and Uncertainty, de Juan A. Roche Cárcel traz uma reflexão acerca da criatividade, observada como uma nova ferramenta de trabalho, e sobre se esta seria (ou não) um elemento fundante para um novo capitalismo, além de representar uma saída para a crise do trabalho global. Dessa forma, o texto de Roche Cárcel se funda em perceber, nessa busca pelo trabalho criativo, um elemento de coesão social dentro de um modelo de globalização econômica, no qual os riscos e as incertezas se afirmam, a todo momento, como latências. O autor busca traçar, primeiramente, uma definição do que viria a ser o trabalho (clássico), em sua acepção ocidental negativa. Além disso, aprofunda nas suas características atuais, questionando como esse novo modelo globalizado e as novas formas de empregos tiveram no uso da criatividade uma forma de acréscimo de qualidade laboral, que alterou as formas de trabalhar. Com isso, seja a partir de novos modelos industriais ou seja a partir de cidades “inteligentes”, as formas colaborativas de trabalho tenderiam a apresentar soluções para a crise global, além de oferecer uma resposta à altura para uma sociedade tecnológica que reconfigurou as relações sociais em todas as suas formas, principalmente, a laboral.

O desafio dos organizadores e dos autores da obra precisa ser destacado. Trata-se de colocar em jogo, para diferentes situações empíricas e em diversos e distantes contextos empíricos, um conjunto de dispositivos conceituais que permitam captar com maior sutileza os processos pelos quais passam as sociedades contemporâneas, envolvendo o trabalho digital sob a lente de uma política das sensibilidades. Uma realidade global multifacetada é, então, registrada no decorrer dos diversos capítulos em que são analisados, em boa medida a partir de uma sociologia dos corpos e das emoções: os espaços laborais e urbanos, as tecnologias de informação e comunicação, a economia de compartilhamento, as identidades e suas fronteiras no mundo digital, a mídia e o terrorismo e os trabalhadores da indústria de software, entre outros. A produção e o trabalho aparecem impactados em seu sentido emocional; as identidades se reconfiguram e se tornam fronteiras digitais, o terrorismo e a mídia atingem novas configurações, trabalhadores de TICs veem virtualizando seus corpos com impactos emocionais nas suas subjetividades na produção e no trabalho; o espaço urbano surge como um lugar de controle e vigilância; a estruturação e a conflitualidade social estão atravessadas pelo trabalho emocional; bem como indústria do software na Turquia e indústria de compartilhamento na China; a criatividade, por fim, aparece como uma saída possível para a crise do trabalho global.

Múltiplas reflexões podem ser extraídas a partir desta obra, coordenada por Adrian Scribano e Pedro Lisdero. Não obstante, gostaríamos de frisar que um dos seus maiores méritos reside em mostrar a necessidade imperiosa de examinar o capitalismo globalizado e digital, levando em conta a vivência e as emoções dos corpos, que tanto o tornam possível quanto são por ele impactados.

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