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Quando dançam os homens: a questão das masculinidades em estudos sobre dança, gênero e sexualidade
Talitha Couto Moreira Lara; Juliana Gonzaga Jayme
Talitha Couto Moreira Lara; Juliana Gonzaga Jayme
Quando dançam os homens: a questão das masculinidades em estudos sobre dança, gênero e sexualidade
When men dance: the issue of masculinities in studies about dance, gender and sexuality
Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, vol. 10, núm. 28, pp. 76-87, 2018
Universidad Nacional de Córdoba
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Resumo: Os estudos sobre as construções de masculinidades têm se destacado cada vez mais em meio aos estudos de gênero, ao longo das últimas décadas. Se as teorias feministas lançaram questões sobre as construções culturais de gênero em corpos sexuados, sobre a historicidade do sexo, assim como sobre a instabilidade e a eterna repetição e reiteração envolvidos no aprendizado de gênero, os estudos sobre masculinidades vêm lançar questões sobre a diversidade de vozes, experiências, corporalidades e performances de gênero masculinas, apontando para a multiplicidade de masculinidades. O presente artigo tem como objetivo revisitar e problematizar trabalhos realizados sobre os homens que dançam, cuja discussão se volte para a relação entre gênero, sexualidade e masculinidades.

Palavras-chave:MasculinidadesMasculinidades,DançaDança,GêneroGênero,SexualidadeSexualidade.

Abstract: Studies about constructions of masculinities have become increasingly prominent among the gender studies, over the past decades. If feminist theories launched questions about the cultural constructions of gender in sexed bodies, about the historicity of sex, and on the instability and the eternal repetition and reiteration involved in the learning of gender, studies on masculinities came launch issues on the diversity of voices, experiences, corporealities and male performances of gender, pointing to the multiplicity of masculinities. This work aims to revisit and discuss productions about the male dancer, whose discussion turns to the relationship between gender, sexuality and masculinities.

Keywords: Masculinities, Dance, Gender, Sexuality.

Carátula del artículo

Quando dançam os homens: a questão das masculinidades em estudos sobre dança, gênero e sexualidade

When men dance: the issue of masculinities in studies about dance, gender and sexuality

Talitha Couto Moreira Lara
ontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
Juliana Gonzaga Jayme
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, vol. 10, núm. 28, pp. 76-87, 2018
Universidad Nacional de Córdoba

Recepção: 18 Novembro 2016

Aprovação: 13 Novembro 2018

Introdução

Já foram realizados vários estudos sobre a interseção entre dança, gênero e sexualidade. Busca-se, aqui, dialogar com esses estudos, a partir dos dados de uma pesquisa sobre homens que dançam, e do debate sobre gênero e masculinidades.

Diversos autores têm pensado sobre os homens que dançam e suas masculinidades, em abordagens que muitas vezes não se conectam às discussões de gênero. As análises de alguns desses autores apontam mais para binarismos de gênero, para formas unificadas de masculinidade, do que para masculinidades e feminilidades múltiplas, direção das reflexões sob a perspectiva de gênero. Esse campo, além dos estudos feministas, problematizaram os binarismos entre homem e mulher, masculino e feminino, que guiavam as percepções e ideais sobre os sujeitos e suas possibilidades e, assim, abriram caminho para a reflexão sobre a multiplicidade de vozes femininas e masculinas. É preciso revisar conceitos e análises, de forma a sintonizar os estudos já realizados com os novos insights que têm como foco o mesmo objeto, numa compreensão de que os conceitos são sempre provisórios e sujeitos a modificações, já que são elaborados para entender realidades que também se transformam.

O artigo é composto por uma revisão bibliográfica sobre a inserção e consolidação da temática das masculinidades nos estudos de gênero, revisitando autores influentes nessa área, os conceitos por eles desenvolvidos e a crítica a tais conceitos; uma seção de análise sobre como foram discutidas as masculinidades em trabalhos que abordam os homens que dançam, em interseção com as temáticas de gênero e sexualidade, a partir das reflexões dos estudos de gênero; e, finalmente, as principais considerações a que se chegou a partir do exercício de diálogo entre os autores. Na seção dedicada às análises serão trazidas algumas inferências preliminares a partir de um trabalho de campo desenvolvido. em Belo Horizonte e Viçosa.

Os estudos de gênero e as masculinidades

Inserção e consolidação da temática das masculinidades

O debate sobre masculinidade é recente, embora houvesse homens que quisessem refletir sobre as questões discutidas pelos estudos feministas, desde o seu ressurgimento na década de 1960 e antes mesmo do aparecimento do conceito de gênero. Nessa época porém, segundo Giffin (2005), os homens tiveram sua participação vetada nesse debate pelas mulheres que experimentavam cotidianamente a dominação masculina. Para a autora, ao universalizar o poder dos homens e a opressão das mulheres, nesse momento, esses estudos acabaram reproduzindo o binarismo, criticado depois pelos estudos de gênero.

Nos anos 1970, com o desenvolvimento do movimento feminista e dos estudos das mulheres, os homens provenientes dos movimentos feminista e gay reivindicaram que eram passíveis de libertação, assim como as mulheres, com relação à hegemonia das ideologias binárias de dominação masculina. Assim, na universidade e em outros espaços de classe média, formaram-se coletivos de homens que buscavam refletir sobre sua própria condição no sistema patriarcal. Nesse movimento, um modelo unificado de masculinidade, vista como um atributo evidente e inquestionado dos homens, tornou-se cada vez mais alvo de problematizações (Giffin, 2005).

Welzer-Lang (2001) teorizou sobre a forma complexa como se configuram as relações de dominação, não somente entre homens e mulheres, mas também entre os homens, apontando para a existência de masculinidades múltiplas. O autor conecta o estudo da construção do ser homem em sociedade, ao fenômeno da dominação masculina dos homens sobre as mulheres que seria “um sistema dinâmico no qual as desigualdades vividas pelas mulheres são os efeitos das vantagens dadas aos homens” (Welzer-Lang, 2001: 461). Esse fenômeno cria uma assimetria entre a forma como homens e simbologia que divide o conjunto do social, sustentada por uma série de violências. Essa assimetria atribui, individual e coletivamente, poder aos homens em relação às mulheres. mulheres percebem os fenômenos do mundo, e uma

No que se refere à construção da masculinidade, um aspecto que chama atenção, principalmente na relação entre homens, é a ideia inculcada já nos meninos que os verdadeiros homens não têm qualquer característica que os associe às mulheres. A educação masculina se dá por um mimetismo de violências, que envolve o prazer de estar entre homens, distinguir-se das mulheres, mimetizar outros homens e sentir dor através da violência. Essa é a iniciação pela qual se aprende a sexualidade, se aprende que ser homem é diferenciar-se da mulher. Assim, a imagem do masculino é construída a partir de uma hierarquia entre homens e mulheres (Welzer- Lang, 2001).

O autor associa a esse processo de construção de hierarquias, além da dominação masculina dos homens sobre as mulheres, o fenômeno da homofobia. A dominação masculina produziria não só uma divisão entre homens e mulheres, conferindo privilégios aos primeiros, mas também produziria homofobia contra aqueles homens que se recusam a reproduzir esse tipo de divisão.

Para Welzer-Lang, ainda que perdure, a dominação masculina tem passado por um processo de pulverização. O gênero masculino passa por mudanças, integrando outros conteúdos e valores, mesmo assim, a dominação masculina segue recompondo suas forças. A desestabilização da categoria da masculinidade marca uma crise profunda da identidade masculina. Uma mudança de paradigma passaria pela incorporação de análises antissexistas e anti-homofóbicas, revelando percepções não unívocas ou uniformes dos homens e do masculino.

Nessa perspectiva do processo de construção de ser homem, destacou-se nos estudos sobre masculinidades o conceito de masculinidade hegemônica, introduzido na década de 1980 (Carrigan, Connell e Lee, 1985; Connell, 1987), referindo-se à hegemonia de determinado modelo de masculinidade sobre outros, considerados como subordinados em relação ao central. O modelo hegemônico seria o mais exaltado pela sociedade, e os subordinados seriam desprezados. Segundo Connell2 (1987), a masculinidade hegemônica é sempre construída em relação a outros tipos de masculinidades subordinadas, assim como em relação às mulheres, e a relação mútua entre as diferentes masculinidades é uma parte importante do funcionamento da ordem patriarcal. A noção de hegemonia de Connell se refere a uma ascendência social alcançada em um jogo de forças sociais para além de disputas relacionadas à força bruta. A característica mais importante da masculinidade definida por Connell como hegemônica é que ela é heterossexual, intimamente conectada à instituição do casamento e formas chave de masculinidades subordinadas estão ligadas à homossexualidade.

A autora, porém, faz algumas considerações sobre o ideal de masculinidade hegemônica, no sentido de que ele nem sempre corresponde à personalidade da maioria dos homens. Para que determinado modelo de masculinidade sobressaia é necessário muitas vezes a criação de modelos que constituam figuras fantasiosas, ou um modelo ideal, mas que se distancia da realidade cotidiana da maioria dos homens. Mas, mesmo que seja adotado apenas por uma minoria, o modelo hegemônico é normativo, representa a forma mais honrada de ser homem, o que demanda que outros homens se posicionem com relação a tal norma. Nesse sentido, Cecchetto (2004) aponta para uma relação de poder entre os modelos hegemônico e subordinados, a partir da qual a masculinidade de um é garantida ou constituída sobre a emasculação de outro, e é assim que modelos alternativos de masculinidade são negados e transformados em desprezíveis.

Um exemplo de aplicação do conceito de masculinidade hegemônica em pesquisa empírica é o trabalho de Vale de Almeida (2000) em Pardais, uma aldeia no Alentejo em Portugal. O interessava a reprodução da masculinidade no dia-dia, sobretudo o modelo de masculinidade hegemônica, uma vez que as experiências dos homens em campo apontavam para uma multiplicidade de masculinidades. Vale de Almeida trabalhou com a junção entre corpo, performance e normas sociais para compreender a sexualidade masculina, no intuito de teorizá-la não só em termos de normas e percepções compartilhadas socialmente, mas também a partir da experiência subjetiva, emotiva e vivida dos homens.

Para tanto, o autor sugere que o modelo social de masculinidade hegemônica poderia ser pensando a partir do paradigma da corporeidade de Csordas (2008), que propõe uma quebra de dualidades entre estrutura/prática, subjetivo/objetivo, pois, como colocado por Connell (1987), se trata de uma hegemonia cuja ascendência não é assegurada por força bruta unicamente, externa aos indivíduos, mas por forças sociais que incluem a dimensão prática dos próprios sujeitos. Seria uma concepção de masculinidade mais dinâmica, que pressupõe uma estrutura de relações sociais sustentada por significados simbólicos que são corporificados. É dentro dessa concepção de gênero como performatividade, enquanto corporificação de significados, de um corpo socialmente informado, muito mais do que uma separação entre essência e matéria, ou estruturas subjetivas e objetivas, que são tratadas as construções de gênero e sexualidade e as masculinidade dos homens que dançam aqui.

Críticas ao conceito de masculinidade hegemónica

No final dos anos 1980 e início dos 1990, as pesquisas sobre os homens e masculinidades cresceram vertiginosamente, num processo de consolidação de um campo acadêmico e, nesse contexto, se deu a aplicação imediata do conceito de masculinidade hegemônica. Connell repensou, com Messerschmidt, o próprio conceito que formulou, considerando as críticas a ele direcionadas, mas também os avanços nos debates sobre gênero e masculinidade ocorridos desde sua origem. Os autores apontam que eventualmente as aplicações do conceito buscavam expandi-lo, trabalhando com documentações sobre as consequências e os custos da hegemonia, desmistificando os mecanismos dessa mesma hegemonia, demonstrando as multiplicidades de masculinidades e delineando processos de transformação das masculinidades hegemônicas (Connell e Messerschmidt, 2013).3 Se inicialmente o conceito tinha pouca base empírica, gradualmente passou a ser aplicado a diversos contextos e a uma gama extensa de questões.

Uma das críticas ao conceito de masculinidade hegemônica denuncia sua ligação a uma concepção dualista de gênero, a de macho-fêmea, sem que sejam problematizados os diferentes matizes entre esses dois polos. Fialho (2006) pondera que o modelo proposto por Connell poderia ser reduzido a um modelo binário, no qual haveria, para certos efeitos e sem maiores perdas, masculinidades hegemônicas e masculinidades não hegemônicas. Segundo o autor, embora Connell procurasse diferenciar as várias masculinidades compreendidas sob a noção de não hegemônicas, o fato de classificar determinado ideal como hegemônico excluiria as demais masculinidades da posição de dominância. Para Connell e Messerschmidt (2013), a polarização das relações de poder entre as masculinidades, ou seja, a hegemonia de um determinado significado sobre outros, não implica na homogeneização desses polos. Assim, haveria espaço nessa teoria para a multiplicidade das formas de ser masculinas, e a masculinidade hegemônica não seria normal nem no sentido estatístico, pois seria adotada concretamente por poucos. Mas é normativa ao incorporar o modo mais honrado, mais autorizado de ser homem pela sociedade, exigindo que as demais masculinidades se posicionem em relação a ela.

Connell e Messerschmidt (2013) esclarecem que o conceito de masculinidade hegemônica se distancia do essencialismo e do dualismo, pois ele se aplica também aos estudos dos corpos femininos. Isso sugere que a masculinidade não é um atributo fixo de determinado sexo, e as masculinidades “são configurações de práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular” (Connell e Messerschmidt, 2013: 250).

Segundo Connell e Messerschmidt (2013), uma das primeiras críticas ao conceito se referia ao questionamento em relação a quem concretamente representaria a masculinidade hegemônica, pois o conceito muitas vezes era aplicado de maneira ambígua. Em resposta, os autores chamam atenção para o fato de que a hegemonia é, ela própria, ambígua. Assim, modelos de masculinidade que podem nunca ser realmente concretizados na vida cotidiana, mas que expressam ideais e fantasias muito difundidos, articulam-se com as práticas sociais para se adaptar às circunstâncias locais. Já que os padrões hegemônicos de masculinidade são tanto reiterados quanto contestados na esfera das agências, um grau de sobreposição, de ambiguidade entre um modelo dominante e modelos subordinados é muito provável.

Para Demetriou (2001), a formulação do conceito de masculinidade hegemônica por Connell seria uma forma de teorizar a mudança social no contexto patriarcal. Segundo o autor, a masculinidade hegemônica não se refere a uma configuração de práticas puramente brancas e heterossexuais, mas seria um bloco híbrido que une práticas de diversas masculinidades para assegurar a reprodução do próprio patriarcado. Demetriou afirma que, por meio da formulação do conceito de masculinidade hegemônica, Connell apreende não só a complexidade de feminilidades e masculinidades, e as relações de poder intergêneros e intragêneros, mas também a possibilidade de uma mudança gerada internamente nas próprias relações de gênero. Tais relações de poder na ordem de gênero ocidental, segundo Connell, centram-se em um único fato estrutural, o da dominação global dos homens sobre as mulheres (Demetriou, 2001). Mas, para o autor, o princípio feminista levou Connell a considerar a primazia da função externa da masculinidade hegemônica com relação à função interna. A hegemonia externa diz respeito à dominância da masculinidade hegemônica com relação às mulheres, e a interna se refereà dominância com relação às masculinidades subordinadas. Assim, as relações intragênero são importantes não em si mesmas, mas na medida em que possuem efeitos na reprodução das relações intergêneros.

A masculinidade hegemônica para Connell, segundo Demetriou (2001), seria principalmente uma estratégia para a subordinação das mulheres. Além disso, a relação entre masculinidades subordinadas e hegemônica não seria dialética, ao contrário, as marginais não possuiriam efeito na constituição do modelo central, nunca o penetrando. Isso, para Demetriou, demonstra uma inabilidade na teoria de Connell de apreender o processo formativo da masculinidade hegemônica, que é por sua vez uma dialética entre apropriação e marginalização.

Connell e Messerschmidt (2013), por sua vez, defendem que o conceito de masculinidade hegemônica está ligado a uma visão histórica e dinâmica de gênero, e não a um determinismo cultural. Assim, é impossível desconsiderar a agência do sujeito e considerá-lo como unitário, ao conceber a multidimensionalidade das relações de gênero e a ocorrência de crises e negociações. Nessa perspectiva, as relações de dominação e de subordinação entre homens e mulheres, e mesmo entre os homens, não constituem uma superestrutura autorreprodutora e, segundo os autores, a hegemonia está sempre aberta a contestações, exigindo um esforço real para que seja mantida. Tal esforço envolve não só a exclusão das mulheres e de traços que caracterizam a feminilidade, mas também o policiamento constante de todos os homens.

A característica fundamental do conceito, para Connell e Messerschmidt, é a de que ele combina a pluralidade das masculinidades e a hierarquia entre elas. Ele pressupõe que certas masculinidades estão mais próximas de um modelo central, associadas de maneira desigual com poder social e autoridade do que outras, o que acarreta uma relação de dominação.

Moller (2007) discute a contribuição de Connell e sua teoria sobre a masculinidade, assim como as consequências teórico metodológicas provenientes do modo de pensamento proposto pela autora. Para ele, ao tentar se distanciar de outros quadros teóricos, a autora dá a entender que existe um modo privilegiado de compreensão e interpretação dos padrões de masculinidade, a saber, um modo focado no aspecto político e nas hierarquias de gênero, o que, para Moller, pode obscurecer outros aspectos das experiências de masculinidades, como o campo dos sentimentos e afetos. As consequências disso se alastram para outros trabalhos sobre masculinidades que utilizam do aparato teórico proposto por Connell.

Moller (2007) sugere que Connell se distancia da perspectiva de gênero elaborada por Butler (2004), para quem a performatividade de gênero tem sempre um componente de indecidibilidade, de vulnerabilidade física. Connell insistiria, assim, em uma hierarquia distinta e legível entre as masculinidades, na qual alguns homens exercem poder claramente sobre outros, e todos são dotados de uma coerência de gênero. Para Moller, em sua análise de como a masculinidade é praticada, Connell tende a subestimar a complexidade do fenômeno que investiga, o da masculinidade em si. Além disso, o conceito de masculinidade hegemônica convidaria pesquisadores a procurar sempre pela hierarquia entre as masculinidades numa esfera exterior, sobrevalorizada, não concebendo que a prática de poder poderia estar em práticas mundanas de masculinidade. Pode também criar uma rejeição, por parte de quem pesquisa, com relação a práticas de masculinidade consideradas hegemônicas, vistas como nefastas. O conceito de masculinidade hegemônica de Connell, então, encorajaria uma crítica a certas formas de poder masculino: relações de dominação, de subordinação e de opressão. Assim, o poder seria exercido pelos homens que detêm a masculinidade hegemônica e os outros não teriam nenhuma parcela de participação, sendo totalmente desempoderados e passivos, menos diretamente envolvidos nessa articulação (Moller, 2007).

Ao discutir sobre as hierarquias que estão por trás da definição de masculinidade hegemônica, Connell e Messerschmidt (2013) reconhecem que, ao formular o conceito, Connell se esforçou por localizar todas as masculinidades e todas as feminilidades dentro de um único padrão de poder, traduzido em dominação global dos homens sobre as mulheres, e que tal ideia, apesar de ter sido útil em determinado momento histórico, deve ser descartada tendo em vista as novas relações entre grupos de homens e formas de masculinidades, assim como as relações das mulheres com as várias masculinidades. Isso demanda, na visão dos autores, melhores formas para se compreender as hierarquias de gênero hoje. Apesar de acolherem várias das críticas para a reformulação do conceito, devido, entre outros fatores, à sua aplicação em contextos múltiplos, Connell e Messerschmidt rejeitam qualquer uso relacionado à ideia de que as características ligadas à masculinidade sejam fixas. Em sua perspectiva, novas hegemonias são sempre forjadas e a produção e contestação das hierarquias de gênero demandam um processo constante de elaboração e revisão de ferramentas conceituais.

Os conceitos de masculinidade hegemônica e subordinadas foram discutidos aqui porque são largamente utilizados, além de balizarem muitas vezes as reflexões sobre gênero e masculinidades. Na próxima parte serão revisitados trabalhos sobre a interseção entre dança, gênero e sexualidade, que foram influenciados pelas elaborações conceituais dos estudos de gênero e, no que tangencia a temática das masculinidades, podendo também ser relacionados com as reflexões trazidas por Connell.

Masculinidades dos homens que dançam

A dança nem sempre foi considerada uma atividade de desprestígio para os homens na sociedade ocidental. Na aristocracia europeia dos séculos XVI e XVII, segundo Belmas (2013), forjou-se uma etiqueta para a sociedade de corte, um modelo de distinção fundado na graciosidade e elegância do corpo aristocrático. Nesse contexto, as atividades que deveriam cultivar tal aparência concentravam-se ao redor de artes como a dança, pois se julgava que ela era capaz de ensinar à nobreza o porte e a delicadeza de gestos esperados de um cortesão.

Segundo Hanna (1988), nobres como os reis Louis XIII e Louis XIV da França dançavam e a dança era vista como uma atividade importante e naturalmente masculina. Louis XIV (1643-1715) foi glorificado como o “Deus Sol”, devido a um papel dançado por ele quando tinha quinze anos. A nobreza de então aclamava a dança entre os homens. Quando cessa a participação da nobreza nas performances de dança, esta atividade se torna um gênero teatral profissional. As mulheres, mais do que os homens, eram excluídas desse tipo de atividade, considerada inapropriada a elas por ser pública.

Esse panorama mudou, devido às revoluções francesa e industrial, quando o corpo do homem passou a ser visto como instrumento de produtividade econômica. A dança começou a ser associada a uma frouxidão moral e um impedimento à produção. Com a diminuição da remuneração destinada à prática da dança, também reduziu o interesse da cultura masculina dominante por tal profissão, o que possibilitou um aumento de oportunidades para as mulheres ocuparem esse espaço. Segundo Hanna (1988), somou-se a isso a relação do cristianismo em relação ao corpo, que o negava e o considerava inferior se comparado ao espírito. Como a burguesia francesa atribuiu o colapso da monarquia em parte à sua frouxidão moral, o corpo adquiriu um novo estatuto na ordem política e econômica que se segue à revolução francesa, estando mais ligado à produtividade, algo a ser controlado. O corpo e tudo o que ele implica, no caso dos homens, tornou-se um problema e uma ameaça. Essas novas ansiedades resultaram, no século XIX, em mudanças nas atitudes envolvendo a apresentação do corpo masculino, incluindo a apresentação desse corpo na dança.

Burt (2007) dedicou um estudo ao florescimento do preconceito contra o homem que dança na sociedade ocidental, assim como à análise de várias expressões de masculinidade na dança. Para o autor, esse preconceito não se desenvolve isoladamente, mas está integrado a representações e atitudes da burguesia com relação ao corpo masculino, agora voltado mais para a produção do que para o prazer. Burt lida com a temática da masculinidade indicando que existe uma hierarquia entre as formas de ser masculinas. Desde o século XIX, como aponta, já era desprestigiado um modo de ser delicado ou emocionalmente expressivo para os homens, e aqueles que não se conformassem com tal norma de conduta não eram considerados verdadeiros homens. Os homens que dançavam, diante dessas prescrições, eram vistos como habitando o polo oposto ao da norma. Essa desaprovação social com relação ao homem que dança, para Burt (2007), pode ser explicada como servindo ao propósito de impedir qualquer sinal de interferência à forma de proximidade produtiva, positivamente avaliada, entre os homens −a homossocialidade− em contraposição à homossexualidade, considerada, nesse contexto, prejudicial e nociva. Percebe-se em trechos como esses, que o autor reconhece a existência de relações de poder entre as várias masculinidades, apontando aquelas mais ou menos privilegiadas pela sociedade, apesar de tal multiplicidade ser contradita quando o autor aborda o homem que dança como uma singularidade, como uma identidade fixa e única, compartilhada por todos e não plural. Ao considerar que uma tênue linha separa as relações de homossocialidade das de homossexualidade, porém, o autor dá indícios de uma fragilidade e inconstância das construções de masculinidade, assim como de uma multiplicidade de modos de ser masculinos.

Mesmo não fazendo referência aos conceitos de masculinidade hegemônica e de masculinidades subordinadas, e não haver citações do trabalho de Connell, Burt (2007) indica que haveria uma hierarquia de poder entre as masculinidades. Isso fica claro quando afirma que o homem que dança falha em representar o poder e o status masculinos dominantes na sociedade burguesa; e também quando discute sobre ideologias conservadoras de gênero. Ao narrar, ao longo da história do ocidente, a reemergência dos homens na dança e a diminuição da preferência das audiências pelas bailarinas, Burt destaca o papel do bailarino Vaslav Nijinsky, no início do século XX. Eleteria sido uma figura chave no desenvolvimento do que o autor chama de representações de masculinidade que desafiaram ideologias conservadoras de gênero presentes no século XIX. Assim, esse artista teria interpretado um papel chave na transformação das representações sobre os homens que dançam.

Várias são as referências a uma concepção unívoca, cristalizada, de masculinidade encontrada na obra desse autor, pois ele acaba por trazer a figura do dançarino homem como algo estático e generalizado, além de pensar a natureza da identidade masculina de maneira essencialista. Um exemplo disso é quando ele destaca, dentre as performances de Nijinsky, aquela de O Espectro da Rosa, na qual um dançarino homem era claramente a figura central, enquanto a bailarina interpretava um papel de espectadora. Como o próprio Burt aponta, as bailarinas no século XIX dominavam a cena do balé no ocidente. Nesse ponto de seu livro, o autor escreve sobre como um papel como este, corporificado por Nijinsky, estendeu ideias sobre a dança masculina de maneiras ousadas, e também sobre como a reintrodução do homem que dança no teatro de palco europeu, em novos e não ortodoxos modos como em O Espectro da Rosa, se deu em um momento de intensa discussão e insegurança generalizada sobre a natureza da identidade masculina (Burt, 2007). Percebe-se como o autor trata o homem que dança, no singular, não atentando para a multiplicidade de masculinidades dançantes, utilizando-se de uma figura que simbolizaria a todos. Além disso, a concepção de uma natureza da identidade masculina é algo questionado na perspectiva de gênero, considerando-se que não há uma natureza por trás das expressões de gênero e, nesse caso, de masculinidade, mas gênero se constitui através das próprias expressões, tidas por uma visão essencialista como os resultados ou emanações de uma identidade interior.

Um argumento que refuta essa concepção unívoca e cristalizada do homem que dança vem da pesquisa de campo realizada por nós em Belo Horizonte e Viçosa, em Minas Gerais. Dentre as observações a ensaios e apresentações, assim como entrevistas realizadas com bailarinos, algo que se mostra evidente é a multiplicidade de modos de ser e de dançar masculinos. As trajetórias desses bailarinos, alguns tendo iniciado no balé clássico, outros no jazz, e outros nas danças urbanas, vão configurando percepções diferentes sobre dança e masculinidade, assim como são diversas as corporalidades e as performances de gênero desenvolvidas. Marcos, que é um dos interlocutores da pesquisa, tem vinte anos de idade, se declara de cor parda, é morador da cidade de Contagem, no estado de Minas Gerais e narra o surgimento de seu interesse pelo balé clássico desde os cinco anos, quando levava a prima para as aulas:

Ah, eu amava! (falando sobre o balé) Eu escutava a música e até arrepiava! Eu sabia mais a coreografia do que ela! (risos) Aí eu ficava lá vendo as coisas, sorria, ela ensaiando e eu assim. Só assistindo. Mas no início eu tinha vergonha, porque eu era o único menino... (Marcos)4

Thiago, que se declara negro, é morador da região periférica da cidade de Viçosa, no estado de Minas Gerais e, diferentemente de Marcos, começou sua trajetória na dança aos doze anos de idade através das danças urbanas, iniciando no balé posteriormente, aos vinte e dois anos, conta como a princípio não se interessava pelo balé, mas depois mudou de opinião:

Falei nó, balé é massa e tal mas... não curtia não... Mas não porque sabe? Aquela coisa de discriminação. Não é por causa disso, é porque... meu corpo não era de balé! Eu todo duro, travado... Cheguei a fazer umas aulas de balé também, e não dava, mas... Achava que meu corpo não era de balé, um corpo duro, travado, de danças urbanas...

Aí eu passei o que, quase um ano não gostando (de fazer balé). Mas aí eu falei ah, aí chegou um tempo que eu falei ó, já tô aqui, né, o balé é obrigatório fazer, se eu continuar nisso vai ficar ruim o resto da vida, não vai ser legal, então a única coisa que eu tenho pra fazer é fazer! Gostar e fazer! Que aí, daí começou a ficar interessante! Aí eu gostei, aí ficou legal, divertido, ficou engraçado né? Que antes, nó!

Nota-se, em trechos como esses que, embora na negativa, Thiago inicia sua fala em relação à dificuldade que sentiu inicialmente em fazer balé clássico apontando para a discriminação. Tal discriminação, baseado em outros trechos de entrevistas que também abordam essa questão, se refere à masculinidade e à sexualidade desses bailarinos. “Balé não é coisa de homem” é uma expressão que se ouve corriqueiramente nas falas dos entrevistados quando se referem à percepção do senso comum. Tal discriminação é expressa numa associação imediata entre o homem que dança, principalmente o balé clássico, e a homossexualidade, como se a dança tivesse a potência de transformar os homens em homossexuais ou mesmo de aproximar discriminação que vários bailarinos vão se posicionar e definir suas performances, tanto de gênero quanto na dança.

Outra fala de Thiago também aborda o preconceito em relação ao homem que dança balé clássico, revelando uma resistência a certos tipos de dança:

E com o balé, eu já entrando no balé eu já quebrei esse tabu já. (fala bem baixo) É só menina que faz balé, homem não pode fazer balé. Não dá pra fazer balé, sabe? Que aí que cê vai conhecendo, homens que fazem balé. Aí cê fala ah! Eu não sabia que tinha! Porque normalmente né? Quem começa ou sabe e faz descaso né? Ah... ah... faz balé, menininha, ou conhece e não sabe que faz. Né? Porque vê balé tudo é tutu,5 é bailarina girando na sapatilha de ponta, aí acha que é só de menina e não é! Tem muito maluco aí que nó! Cê vê dançando e fala porra! O cara arrebenta qualquer um, o cara é foda! O cara é muito bom! Então assim, já arrebentei o tabu, já entrei no balé, tô aí...

Ao longo da carreira, muitos desses bailarinos chegam a transitar entre os diversos estilos de dança, e os praticam até simultaneamente, como nos casos daqueles que dançam balé, dança contemporânea e danças urbanas, o que aponta ainda mais para a multiplicidade e para a plasticidade de seus corpos, para a efemeridade de suas performances, que não podem ser vistas como lineares, fixas ou acabadas. Cláudio, de vinte e seis anos, que se declara de cor parda e residente da região periférica da cidade de Viçosa, atualmente dança essas três modalidades e conta sobre como é a transição de um estilo para o outro:

É, tinha dia, igual tem dia que eu acabo de fazer o balé clássico e já vou pras danças urbanas. Então é um corpo todo, todo alongado, todo de linha (se refere ao balé clássico), pras danças urbanas que é mais solto, que é mais da rua... Tinha dias que a gente apresentava primeiro o Êxtase (grupo de dança contemporânea) depois o Impacto (grupo de danças urbanas) né? Tipo assim, mesmo dia e mesma hora, aí de repente eu tinha que trocar de roupa e ao mesmo tempo que eu trocava de roupa tinha que trocar de corpo! De expressão corporal né?

A partir da fala de Cláudio, pode-se pensar sobre o processo de corporificação. Segundo Thomas Csordas (2008), o corpo não seria um mero receptáculo da cultura, mas seria o seu próprio sujeito. Analisando as teorias de Merleau-Ponty (1962) e Bourdieu (1977, 1984), Csordas aponta para o fato de que ambas trabalham para colapsar dualidades incômodas como sujeito/objeto e estrutura/prática, a partir do princípio metodológico da corporeidade. Para tanto, o próprio corpo necessitaria ser compreendido em uma perspectiva não dualista, não distinto de um princípio antagônico da mente. Assim, quando Cláudio diz que tinha que trocar de roupa e também de corpo, se concordarmos com a discussão de uma não dissociação entre mente e corpo, podemos dizer que são pessoas diferentes, ou seja, homens diferentes, que dançam danças diferentes. Não seria apenas uma representação ou um modo de dizer, mas uma verdadeira transformação que ocorre na experiência narrada por esse bailarino.

Além disso, as interseções de raça, de classe e mesmo de nacionalidade vão imprimindo singularidades em suas vidas e nas características de suas práticas dançantes, como também em suas experiências com relação ao preconceito contra os homens que dançam em seus contextos. Um dos bailarinos entrevistados, Elisson, natural de Cuba e que atualmente reside no Brasil, onde trabalha como bailarino na companhia de dança contemporânea Grupo Corpo, esclarece que em seu país de origem a profissão de bailarino é reconhecida, o que não acontece no Brasil. Afirma também que o preconceito contra o homem que dança no Brasil acaba levando muitos meninos a ingressarem tarde na dança, principalmente em estilos como o balé clássico. Para ele, essa situação tem consequências negativas para a formação do bailarino.

[...] é fatal né? Tem gente que é talentoso e consegue, mas é fatal, porque você é criança, cê começa a falar porque sua mãe fala pra você. Cê tá escutando sua mãe e seu pai falando pra você, desde pequeno. Então aí, eles vão te corrigindo, eles vão fazendo seu vocabulário. É igual o balé! Quando você tá apto pra cantar é quando você é criança, você vai cantar qualquer coisa, aí depois já fica mais fácil, fica mais produtivo, fica mais viável. Aí quando você começa com 12, 13 anos, cê já vai tarde. Cê tem que correr. Aí tem gente que começa com 15, 16, já vai muito tarde! Sabe? Tem que ser desde o começo, tem que ser desde pequenininho!(Elisson)

Esses trechos de entrevistas indicam o quanto a rubrica o homem que dança pode simplificar e não expressar a riqueza de realidades vividas por tais bailarinos. São muitas as singularidades e as perspectivas, o que torna ainda mais complicada a utilização de máximas e generalizações a respeito desses sujeitos e de suas visões de mundo.

Pode-se pensar também nas hierarquias que envolvem a noção de masculinidade hegemônica e masculinidades subordinadas, quando Burt (2007) escreve sobre representações ortodoxas e não ortodoxas de masculinidade que são trabalhadas dentro do balé com o renascimento da figura masculina na dança cênica de tradição ocidental. Como exemplo, o autor cita mais uma vez o caso de Nijinsky, membro da companhia Ballet Russes, de origem russa, considerada uma das maiores companhias de todo o mundo. Não havia precedentes na dança cênica de tradição ocidental para peças desenvolvidas por essa companhia, e, segundo Burt, uma razão que permitiu a criação de representações desafiadoras de masculinidade pelo Ballet Russes foi a crença, por parte da sociedade da época, de que os russos semi-asiáticos e semi-europeus estariam mais próximos de uma virilidade primitiva do que os homens ingleses, que devido à supercivilização estariam se afastando de uma masculinidade essencial ou natural. Isso fez com que, ao menos aos olhos ocidentais europeus, os dançarinos russos estivessem isentos das normas que então vigoravam em torno da masculinidade. Tais referências do autor a representações desafiadoras de masculinidades, trazidas por muitos artistas na história da dança, podem ser relacionadas à concepção de masculinidades subordinadas ou mesmo subversivas.

Apesar de não dialogar com as teorias em torno da masculinidade desenvolvidas por Connell (1987), Burt (2007) revela alguma sintonia com outras autoras dos estudos de gênero, como Butler (1990), como nos trechos em que aponta para a existência de normas que cerceiam a masculinidade. O autor faz referência também à percepção de gênero como performatividade, trabalhada por Butler (1990), relacionando convenções de gênero que são sedimentadas nos corpos através do tempo com as convenções por meio das quais gênero é representado na dança. Mesmo assim, ainda encontra-se em alguns trechos, a utilização da noção de identidade de gênero de forma não problematizada, como quando Burt aborda a influência de representações não ortodoxas de masculinidade presentes no balé, no desenvolvimento do que ele chama de identidade homossexual nos anos iniciais do século XX. Essa noção de identidade pode ser negativamente interpretada como algo estático, como uma característica compartilhada por todos os homossexuais nesse caso, o que vai de encontro à própria noção de gênero como ato constantemente reproduzido e atualizado pelos sujeitos.

Discussões posteriores, como as de Freire (2015) e Ferrari e Barbosa (2014), apontaram para a multiplicidade não só de masculinidades, mas também de homossexualidades, o que corrobora para a ideia de que o gênero é mais uma ação do que uma identidade. Acredita-se ser importante o exercício de repensar a forma como foram aplicados conceitos e noções chave para os estudos de gênero nesses trabalhos. O que se tenta evitar é que os referenciais teóricos sejam revisitados sem nenhum tipo de problematização, e que sejam reproduzidas concepções já ultrapassadas com o desenvolvimento dos conhecimentos.

Ao referir-se ao homem que dança no singular, também faz parecer que Burt (2007) trata a masculinidade e o masculino como instâncias homogêneas, assim como a dança masculina, como se houvesse uma única forma masculina de dançar. O mais intrigante é que o autor realiza uma pesquisa sobre diferentes masculinidades engendradas pelos homens que dançam sem refletir sobre alguns conceitos e expressões essencialistas.

Em sua pesquisa sobre as diferentes masculinidades dos homens que dançam, Burt (2007) aponta, por exemplo, para transformações no campo da dança no contexto norte-americano no início do século XX, quando homens americanos desempenharam um papel importante no desenvolvimento da dança moderna americana. Ted Shawn e José Limón, como retrata Burt, desenvolveram, em menor ou maior extensão, a imagem de uma masculinidade heroica, com referência à natureza, à heterossexualidade, à branquitude e ao ideal cristão, utilizando para isso de um estilo e de um vocabulário aparentemente muscular e difícil. Tais representações de masculinidade, na visão do autor, ligavam-se diretamente ao ideal hegemônico no ocidente, que dependia, por sua vez, de uma distorção do ideal de masculinidades não ocidentais (Burt, 2007).

Outro exemplo trazido pelo autor são coreógrafos como Alvin Ailey e Pomare, que buscaram por meio de sua dança afirmar a especificidade da experiência negra, a partir do desenvolvimento de um repertório de movimentos e de formas coreográficas contrastantes com o que Ted Shawn, por exemplo, acreditava. Os corpos masculinos em seus trabalhos iam de encontro aos estereótipos dominantes de masculinidade, que serviram de referência para outros artistas no contexto norte americano.

O trabalho de Merce Cunningham, outro nome expoente na dança moderna americana, é visto, por sua vez, com um foco em aspectos formais da dança, o que lhe possibilitou desviar questionamentos sobre sua homossexualidade. O artista foi criticado, segundo Burt, por falhar em reconhecer a necessidade de um desafio a ideais normativos de gênero, raça e sexualidade. Seus gestos foram interpretados como indiferentes, passivos, com uma necessidade não afirmativa, sem mensagens, sentimentos ou ideias. Essa presença neutra de Cunningham, porém, inspirou uma interpretação distinta por parte de Burt, para quem tal posicionamento passivo sugeria diferentes modos de se significar a masculinidade. Dentro de tal interpretação, esse artista não impôs sua presença no palco de maneira enérgica, dinâmica ou forte, modos como a masculinidade era convencionalmente representada nos palcos de dança norte-americanos. Atraía a atenção para a qualidade e absoluta absorção em suas ações, rompendo com papéis habituais dos próprios espectadores, que se tornavam conscientes de sua própria atividade de observadores. Essa maneira pioneira de exploração de estruturas abertas e não hierárquicas foi incorporada por outros coreógrafos e a maneira anônima, neutra, da presença de Cunningam no palco, se tornou uma forma deliberada de subverter valores normativos (Burt, 2007).

Hanna (1988), que escreveu sobre a interseção entre dança, sexo e gênero, não utiliza o conceito de masculinidade hegemônica, o que é compreensível, haja vista a contemporaneidade da escrita dessa autora (1988), e da introdução do conceito pela primeira vez em Carrigan, Connell e Lee (1985) e depois em Connell (1987). Para Hanna existem normas que privilegiam a heterossexualidade em detrimento da homossexualidade, e o preconceito contra o homem que dança vincular-se-ia à associação entre o dançarino e a homossexualidade. Isso faria com que vários dançarinos buscassem estratégias para se desvencilhar do estereótipo que associa o homem que dança à homossexualidade, em busca de afirmar uma heterossexualidade dentro das normas vigentes na sociedade ocidental. Como exemplo de tais estratégias estariam dançarinos que, ao mesmo tempo em que reconhecem o estereótipo que envolve o homem que dança, se estabelecem como uma exceção, ou revelam ter namoradas, ou mesmo que afirmam sentirem-se enojados pelos gays (Hanna, 1988). Tais hipóteses podem ser observadas em alguns trechos de entrevistas com bailarinos, na pesquisa conduzida pelas autoras do presente artigo. Um dos entrevistados, Wander, que se declara pardo, mora na periferia de Viçosa e que iniciou sua história na dança aos onze anos, interessado pelas danças urbanas, ao ser indagado se havia sofrido imposições da família com relação à prática da dança respondeu:

Não, lá todo mundo já sabia minha opção sexual (risos). Lá em casa então eu não tive problema, eu acho que os que mais sofrem, na minha opinião, são os que às vezes tentam esconder uma opção sexual, e, buscam na dança uma forma mais... um caminho mais rápido pra dizer né? Que é ou não é, ou que quer ser ou que não quer ser. Eu acredito nisso (Wander).

Percebe-se como Wander faz questão de enfatizar sua orientação heterossexual, mesmo reconhecendo que existem dançarinos gays, o que teria facilitado com que a família aceitasse sua prática da dança.

Hanna (1988) escreve também sobre o contexto norte-americano de coreógrafos no início do século XX, analisando o trabalho de Ted Shawn e o de Martha Graham. Segundo a autora, o ideal de homem atlético trabalhado nas danças de Shawn parece ter sido uma reação defensiva a atitudes negativas da sociedade de sua época com relação aos homens que dançam, associando-os à homossexualidade e à delicadeza e feminilidade. Posteriormente, José Limón, outro coreógrafo por ela citado, também criou danças para um elenco totalmente masculino, mas focalizando as qualidades particulares dos homens que contrastassem ou complementassem qualidades vistas como femininas. Tal aspecto atlético das coreografias corporificadas por homens apareceu nas observações de ensaios e apresentações na pesquisa por nós desenvolvida. Foi comum observarmos entre os sujeitos da pesquisa a realização do que parecem ser proezas físicas, aparentemente envolvendo maior risco e perigo. Esses bailarinos sempre saltam, podendo cair, além de girar e levantar bailarinas, como é comum no balé clássico, e, no caso das danças urbanas esse limiar do perigo é ainda mais desafiado, quando os bailarinos dão os chamados saltos mortais, e se equilibram apenas em uma das mãos para darem piruetas no chão. Parece haver uma tentativa de associação dos homens na dança com a utilização de intensa força física, em um contraste com a leveza e delicadeza corporificadas pelas bailarinas.

Mesmo nos trabalhos de coreógrafas como Martha Graham, o ideal de masculinidade que permeava era ligado àquele dominante, representado pelo “homem americano”, que envolvia o uso de muito esforço, resistência, força física, ginástica e movimentos de padrão angular. Coreógrafos de décadas posteriores, de 1950 e 1960, também no contexto norte americano, buscaram questionar estereótipos polarizados de masculinidade e feminilidade, em favor de movimentos considerados unissex e andróginos, usando a dança como um campo aberto para desenvolvimentos de vários gêneros, nos quais estigmas podem se transformar em espetáculos, e figuras desviantes no fio da navalha da criatividade podem se tornar atrações carismáticas (Hanna, 1988). Um dos pontos apontados por Hanna, no entanto, é que seria um erro pensar que a dança, mesmo quando performatizada por homens, é sempre subversiva e desafia ideais vigentes de masculinidade.

Considerações Finais

Ao revisitar os estudos sobre a interseção entre dança, gênero e sexualidade, à luz dos debates sobre masculinidades, se pode inferir que tal temática foi tratada a partir de uma abordagem mais próxima de binarismos do que de uma perspectiva que apontasse para a multiplicidade de matizes que são corporificados nos modos de ser masculinos. Os estudos sobre homens que dançam aqui trazidos, mesmo abordando a perspectiva das masculinidades, não fizeram referência às reflexões de Connell (1987), que foram largamente aplicadas nos estudos de gênero. Trouxeram, no entanto, indicações da existência de hierarquias de gênero, de relações de poder intragênero entre os próprios modos de ser masculinos, e da existência de masculinidades múltiplas, pontos esses presentes nas contribuições de Connell. A partir disso, pode-se inferir que mesmo não citando diretamente a autora, os estudos sobre homens que dançam trabalharam com questões fundamentais que balizaram os escritos de Connell e de outros autores dos estudos de gênero.

Alguns conceitos, no entanto, não foram problematizados pelos autores que abordaram os homens que dançam. Por exemplo a utilização da rubrica o homem que dança, no singular, para dar conta de uma realidade complexa e diversificada de masculinidades na dança, assim como da noção de identidade de gênero, dando a entender que gênero seria uma característica fixa e acabada, carregada por todos os seres, e não uma performance, em constante elaboração, rompimento e reiteração.

Os autores revisitados da área da dança, porém, exploraram em suas obras várias masculinidades engendradas por artistas ao longo da história da dança, dando exemplos de múltiplas expressões que a um só tempo afirmaram e desafiaram ideais de masculinidades dominantes em suas sociedades. Acredita-se que tais obras são contribuições relevantes para os estudos de masculinidades.

Considera-se necessário rever os estudos já realizados, refletindo sobre questões, conceitos e categorias antes tidas como dadas ou acabadas, atentando para o perigo de sua unificação ou homogeneização. Corre-se o risco de reificar conceitos muito utilizados, de forma irrefletida, como se eles existissem independentemente das performatividades dos sujeitos reais, que por sua vez trazem complexidades, negociações e possibilidades que não podem ser expressas por meio de binarismos. O caráter das categorias criadas é transitório, sendo fundamental sua constante reflexão. Foi nesse sentido que se buscou criticar alguns trabalhos, na tentativa de não utilizar os referenciais teóricos de forma não problematizada, longe de exigir desses autores que previssem os desenvolvimentos teóricos que ainda estariam por vir em suas respectivas áreas do conhecimento.

Material suplementar
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Notas
Notas
1 Trabalho de campo desenvolvido como parte da pesquisa de doutorado de Talitha Couto Moreira Lara, defendido em 2018. LARA (2018).
2 Todas as traduções são das autoras.
3 Este artigo foi publicado originalmente em Gender & Society, v. 19, n. 6, p. 829-859. Dec. 2005. Traduzido por: Felipe Bruno Martins Fernandes.
4 Nome fictício.Todos os nomes são fictícios e foram atribuídos aos entrevistados pelas pesquisadoras.
5 Se refere à saia de tule que é comumente usada pelas bailarinas no balé clássico.
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