LAHIRE B.. L’interprétation sociologique des rêves.. 2018. Paris. La Découverte. 1578-2824 |
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Recepção: 21 Agosto 2018
Aprovação: 13 Novembro 2018
Bernard Lahire termina sua L’interprétation sociologique des rêves (A interpretação sociológica dos sonhos, ainda sem tradução para o português ou espanhol), indagando-se: qual é a função do sonho? Escolhi sua derradeira questão não para tomar a obra pelo avesso, mas sim para demarcar os pontos principais que levaram o sociólogo francês a elaborar uma teoria geral de interpretação dos sonhos que tem a pretensão de integrar, sintetizar e ultrapassar tudo o que já foi escrito a respeito desse fenômeno mais ou menos consciente da atividade humana. Em sua tarefa ambiciosa, nas 487 páginas do livro, lançado pela Editora Découverte, em 2018, o autor apresenta o estado da arte das pesquisas acerca do sonho nos mais diversos domínios, reivindica para o campo da sociologia sua explicação e ataca os postulados da psicanálise, terminando com a proposição de um esquema metodológico de interpretação da atividade onírica. Trata-se, enfim, e fica-se sabendo disso desde as primeiras linhas, de um denso prelúdio epistemológico-teórico-metodológico, que antecede um estudo empírico a ser publicado futuramente, tendo como base relatos de sonho minuciosamente recolhidos.
De acordo com Lahire, reivindicar ao sonho uma função única não abre caminhos para sua compreensão. Tal como a linguagem, o sonho presta-se a múltiplas formas expressivas do potencial humano de simbolizar o mundo. Por isso, não se pode atribuir ao sonho a ruptura de todas nossas capacidades cognitivas marcada pela passagem de um estado de vigília ao de dormência. A atividade onírica faz parte de um continuum que tem como elementos as incessantes atividades de representação e expressão de nosso cérebro. Para compreender esse fenômeno, consequentemente, é melhor perguntar por que sonhamos isso e não aquilo, e de que maneira o fazemos, o que leva o autor a propor uma fórmula geral de interpretação que compreende três dimensões: o passado incorporado do sonhador, as circunstâncias recentes de sua vida e o quadro de sono no qual o sonho acontece.
Mas por que propor uma fórmula geral de interpretação dos sonhos? As pretensões de Lahire vão além da fabricação dos sonhos. Seu objetivo é mostrar que a atividade onírica é um fenômeno social, apesar de ser uma linguagem do indivíduo de si para si. Trata-se de um acontecimento que pode ser cientificamente interpretado desde que esteja articulado a um fora do sonho, a vida em vigília, que lhe serve como pano de fundo existencial. No livro, o autor costura diferentes teorias do sonho, tendo como marco as conquistas de Freud e da psicanálise, acompanhadas dos atuais estudos em sociologia, linguística, psicologia cognitiva e neurobiologia. Dentro desse quadro integrador, busca-se ampliar o domínio do campo de estudos das ciências sociais, em geral, e da sociologia, em particular, numa área ainda pouco explorada, dando-lhe ambições legítimas que, nas palavras do autor, “a especialização e a forma padronizada de profissionalização têm a tendência de desmerecer” (2018: 11).
Em L’interprétation sociologique des rêves, Lahire desenvolve o que chama de sociologia disposicionalista-contextualista, projeto intelectual iniciado desde que publicou L’Homme pluriel. Les ressorts de l’action (1998). Trata-se de uma sociologia, em escala individual, interessada nos determinantes sociais passados e presentes, que se conjugam em diferentes domínios da vida (família, escola, trabalho, bairro, igreja, etc.), tanto em suas formas interiores, isto é, inculcadas sob a forma de disposições ou hábitos, quanto exteriores ou contextuais. É importante frisar que, no caso dos sonhos, o substrato de toda a atividade onírica é o cérebro que, para o autor, opera como um órgão capaz de se moldar às regularidades e estruturas do mundo graças à sua capacidade estatística, num sentido bayesiano, de antecipar fenômenos físicos e sociais. Em particular, o modo de acesso a esse espaço íntimo que ecoa toda a vida social só pode acontecer por meio do relato de sonho, recolhido de forma específica, tendo como chave principal de interpretação o próprio sonhador ou sonhadora, figura cujas características não podem ser apartadas da história fantástica ou ordinária havida durante o sono.
Freud incontornável
A interpretação dos sonhos, publicada em 1899, datada de 1900, é a obra magna de Sigmund Freud que Lahire enfrenta sem pudores. O sociólogo faz dela um corredor sinuoso no qual fixa as indicações que mostram, num ir e vir histórico, os estudos que inspiraram Freud e aqueles que o sucederam na busca de respostas acerca do porquê sonhamos. Não se poupam elogios tampouco críticas ao trabalho de Freud, se bem que estas últimas são mais abundantes. Não se espantem leitoras e leitores, conhecedores ou não do clássico freudiano, ao encontrarem no texto de Lahire afirmações do tipo “Freud “tinha razão”, “Freud não se deu conta de que”, “Freud deixou de observar isso”, “Freud errou”, “Freud passou ao lado do problema”, etc.
Para Lahire, foi Freud quem propôs o primeiro grande modelo teórico sintético e integrador para a análise dos sonhos, rendendo-lhe o devido reconhecimento. A verdade é que Freud, logo nas primeiras páginas de A interpretação dos sonhos, ao rejeitar explicações mitológicas em torno do sonho, isto é, suas qualidades divinatórias ou espirituais, coloca-se uma série de questões que se tornaram a agenda científica daqueles, que depois dele, debruçaram-se sobre o fenômeno. Por isso, não se pode deixar de citá-las:
Em que condições se produzem os sonhos? Quais são as suas relações com a vida psíquica no estadode vigília? Como as excitações vindas de fora podem influenciar quem dorme? Por que esses detalhes, que muitas vezes são repugnantes para o pensamento do homem desperto, e essa discordância entre os meios de expressão do sonho e os estados afetivos que lhe acompanha? De onde vem, enfim, a instabilidade dos sonhos? Por que, a partir do momento do despertar, ele é rejeitado pelo pensamento como um elemento estranho e desaparece, no todo ou em parte, da memória? (FREUD [1899] 1925: 7-8, tradução minha).
São essas questões principais que Lahire procura responder a partir de sua perspectiva sociológica disposicionalista-contextualista. Contudo, assim o faz, tendo como baliza os limites que atribui à teoria freudiana nos 13 capítulos do livro. Suas principais objeções à Freud compreendem: “a ideia de que o sonho seria a realização de uma necessidade ou desejo insatisfeito”; “a natureza do inconsciente”; “as ideias acerca da supressão dos impulsos, da censura e do contorno da censura no sonho”; “a redução do sonho a um evento ocorrido na infância e de ordem sexual”; “as ambiguidades e ambivalências a propósito da natureza (universal ou pessoal) da simbologia dos sonhos”; “um naturalismo ou biologicismo e a falta de consideração pelo caracter histórico e social dos sonhos”; e “a ideia de que o sonho tem a função de guardião do sono” (2018: 46-47).
Um esquema para a interpretação dos sonhos
Ao longo de L’interprétation sociologique des rêves, encontram-se várias definições do que é sonho. Trata-se de uma “atividade mental universal, individual e involuntária por excelência” (2018: 9); “uma forma de expressão específica situada num continuum expressivo em função das condições nas quais a atividade psíquica é levada a se desenvolver” (2018: 11-12); “relato imagético não intencionalmente concretizado durante o sono” (2018: 98); “uma modalidade da consciência” (2018: 202); “a mais ‘pura’ expressão de si […] uma expressão de si para si que pode se liberar de uma vez das necessidades linguísticas ou formais da comunicação (oral como escrita) em relação a outrem, e das necessidades morais de expressão ordinariamente censuradas por não chocar com ou provocar a reprovação” (2018: 234); “uma verdade trans-histórica” (2018: 380).
Mas do que é composto o sonho e como analisá-lo sociologicamente? Segundo Lahire, o processo de fabricação dos sonhos comporta três dimensões da vida do sonhador ou sonhadora: 1) passado incorporado ou disposições; 2) contexto da ação presente ou problemática existencial e 3) quadro do sono ou condições nas quais ele é possível. As disposições dizem respeito a um passado incorporado de natureza estruturante das ações dos indivíduos durante a vida. Elas são moldadas pela família, escola, trabalho, ou seja, nos diversos espaços sociais dos quais alguém participa. Aqui, Lahire aproxima a noção de disposição a do inconsciente psicanalítico no sentido de que se trata de um repertório individual manifesto em ocasiões ou circunstâncias dadas, o qual “informa e dirige a consciência a uma determinada direção e agencia de certa maneira as imagens sonhadas” (2018: 180). Também é preciso levar em conta o presente da sonhadora ou sonhador, quais são suas problemáticas existenciais, isto é, os problemas que enfrenta no seu dia a dia, o meio em que vive, as atividades que realizou no dia que antecedeu o sono, enfim, o contexto do qual emergem os “elementos disparadores” que alimentam o imaginário onírico. Por último, o quadro do sono é o espaço que compreende a supressão das interações sociais, uma diminuição da percepção de si em relação ao ambiente externo, embora este exerça suas influências, perda do controle reflexivo e enfraquecimento da vigilância em torno do que é sonhado, uma comunicação de si para si e atenuação das censuras de ordem formal ou moral. Esses processos têm como elementos as operações cognitivas de associações, principalmente as de analogia e contiguidade (visualização, dramatização, exagero, simbolização, metáfora, condensação, inversões, oposições e contradições).
No último capítulo do livro, Lahire trata dos aspectos metodológicos concernentes à interpretação sociológica dos sonhos, descrevendo passo a passo o que deve ser seguido. Para ele, é impossível analisar o sonho caso não se conheça a vida do sonhador, pessoa a quem a interpretação daquilo que foi sonhado deve ser atribuída em primeiro lugar. A chave de acesso para esse mundo é o relato ou anotação do sonho, feito pela pessoa que sonhou ou informado a outrem, que deve seguir um protocolo de registro que será tomado pelo sociólogo. A partir desse material, elabora-se uma enquete biográfica na qual se demanda ao sujeito da pesquisa a elaboração de associações da narrativa onírica com seus contextos de vida passados e presentes. Segundo a hipótese de Lahire, “o sonho é o lugar de tratamento dos problemas em curso não resolvidos, mas que fazem eco a situações problemáticas do passado: preocupações conflitos ou tensões intrapsíquicas ou interpessoais” (2018: 246).
À espera dos sonhos interpretados
As cores e tons do sonho esmaecem, figuras conhecidas do presente e do passado ocupam os mesmos espaços, visitados ou nunca antes vistos, personagens desconhecidas invadem nossas noites de sono, criando uma história fantástica que mal podemos narrar assim que acordamos. Finalmente, os sonhos se apagam. Eis o principal obstáculo para a sociologia, ou qualquer outro saber, interpretá-los. A natureza fugaz desse fenômeno só pode ser apreendida a partir de relatos fiáveis disponíveis para análise, os quais não podem ser obtidos independentemente das qualidades intelectuais, cognitivas e sociais dos indivíduos dispostos a partilhar um momento íntimo de suas vidas com sociólogas e sociólogos.
Lahire está ciente dessa fronteira, destacando que é raro encontrar um corpus empírico completo através do qual todos os pontos do problema, tal qual ele formulou, permitam uma demonstração teórica global e completa. Em diferentes capítulos, o autor ensaia interpretar sonhos de segunda-mão, aqueles relatados por outros autores. Mas essa tentativa está longe do modelo de análise que ele propõe, seja por razões teóricas ou empíricas. Resta-nos aguardar seu prometido segundo livro para aprendermos as minúcias da interpretação sociológica dos sonhos, seus alcances e limites.
As leitoras e leitores que nunca leram a Interpretação dos Sonhos, de Freud, e que desconhecem as obras precedentes de Lahire, não irão encontrar dificuldades em acompanhar os argumentos do autor. Assim, poderão dormir e sonhar com novas expectativas de interpretação acerca daquilo que lhes ocorre durante o sono. Um alento, talvez, para um mundo em que menos se dorme, onde os sonhos vão perdendo seu espaço de realização, fazendo com que, cada vez mais, um pedaço da sociedade, incorporado em cada indivíduo, deixe de existir, nas suas formas fluídas, ilógicas e incoerentes, mas, sobretudo, reveladoras daquilo que somos.
Bibliografia
FREUD, S. (1925) Le rêve et son interprétation. Paris: Gallimard.
LAHIRE, B. (1998) L’Homme pluriel. Les ressorts de l’action. Paris: Nathan.
LAHIRE, B. (2018) L’interprétationsociologique des rêves. Paris: La Découverte.
Notas