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A mudança organizacional sob a ótica do discurso: um caso de ensino de uma comunidade de pessoas com e sem deficiências de aprendizado*
Organizational change in the light of discourse: a teaching case about a community of people with and without learning disabilities
Revista de Administração da Universidade Federal de Santa Maria, vol. 10, núm. 1, pp. 147-162, 2017
Universidade Federal de Santa Maria

Artigos



Recepção: 01 Dezembro 2013

Aprovação: 03 Junho 2015

DOI: https://doi.org/10.5902/19834659

Resumo: Este artigo apresenta um caso de ensino voltado à discussão da mudança organizacional, sob a ótica do paradigma interpretativista e dos estudos dos discursos organizacionais. Descreve-se o processo de mudança pelo qual está passando uma organização não governamental, em que pessoas com e sem deficiências de aprendizado, estes últimos denominados assistentes, vivem em comunidade. A introdução de diretrizes governamentais alterou o sistema de financiamento de tal atividade, dando maior autonomia para as pessoas com deficiências de aprendizado e deixando de prover atividades que eram centrais no sistema de significados da organização. Com o “coração” da Comunidade ameaçado, os assistentes expressam os desafios para vivenciar a mudança organizacional, reportando estarem dançando sobre o sangue. Este estudo visa, assim, contribuir para a discussão de processos de mudança organizacional em cursos de pós-graduação e, eventualmente, de graduação, mediante uma perspectiva ainda pouco empregada, que revela a mudança como um processo não somente deliberado, mas também construído nas interações dos participantes. Além disso, serve para apoiar a discussão entre agentes e recipientes de mudanças nas organizações.

Palavras-chave: Mudança organizacional, paradigma interpretativista, discursos organizacionais.

Abstract: This article presents a teaching case focused on the discussion of organizational change, from the perspective of the interpretive paradigm and of the studies of organizational discourse. It describes a process of change within a non-profit organization, where people with and without learning disabilities, the latter called assistants, live in community. The introduction of new government guidelines changed the system of financing of such activity, giving more autonomy to people with learning difficulties and failing to provide activities that were central to the organization’s system of meanings. With the “heart” of the community threatened, assistants express the challenges to experience organizational change, reporting that they are dancing in blood. The case aims to contribute to the discussion of organizational change processes in postgraduate and possibly undergraduate courses, through an unusual perspective, which states the change not only as deliberate, but mainly as something built in participants’ interactions. It also can be used for supporting the discussion between agents and recipients of change in organizations.

Keywords: Organizational change, interpretative paradigm, organizational discourses.



Ó meu amigo, não penses que a poesia é só a caligrafia num perfeito alinhamento [...] E nos meus versos pode não haver medida Mas o que há sempre são coisas da própria vida

Fonte: (Alberto Janes)

1. Introdução

Desde os anos 1990, o estudo da mudança organizacional ocupa papel central na pesquisa sobre as organizações, sendo crescente o interesse dos pesquisadores no tema (BURNES, 2005; GREENWOOD; HININGS, 1996; VAN DE VEN; POOLE, 1995). Burnes (2005) e Heracleous e Barrett (2001) afirmam que a capacidade para gerir a mudança passa a ser uma das competências centrais para as organizações, evidenciando a relevância do tema não só para a academia, mas também para a prática profissional.

Diante disso, o objetivo deste trabalho reside na apresentação de um caso de ensino que proporcione reflexão e discussão sobre o processo de mudança organizacional pelo qual está passando uma organização não governamental, localizada em Londres. Especificamente, aborda-se a mudança sob a ótica do discurso organizacional, oferecendo a possibilidade de análise do fenômeno da mudança organizacional em um enfoque que não é o mainstream na Administração.

Assim como Vieira, Correia e Lavarda (2013) olham para a formulação emergente da estratégia, ou seja, aquela que os atores organizacionais desenvolvem informalmente a partir da estratégia formal da organização, o presente caso de ensino aborda o fenômeno da mudança organizacional buscando compreender como as pessoas constroem a mudança e alteram suas práticas a partir do significado que dão à mudança, apesar do início do processo ter sido deliberado externamente por órgão governamental e comunicado formalmente pela Direção da Comunidade a seus membros.

Sem deixar de reconhecer que o estudo da mudança organizacional envolve aspectos estruturais, como a dinâmica do campo institucional em que uma organização atua (GREENWOOD; HININGS, 1996; SANTOS, 2013; TUSHMAN; ROMANELLI, 1985), este trabalho atenta para os aspectos psicossociais da mudança organizacional (BARRETT; THOMAS; HOCEVAR, 1995; HERACLEOUS; BARRET, 2001; HERACLEOUS, 2002; ORLIKOWSKI, 1996; TSOUKAS; CHIA, 2002) e, mais especificamente, para o discurso organizacional.

A gestão efetiva da mudança considera não somente aspectos hard (duros, em tradução livre) e estruturais, mas também a compreensão e atuação sobre aspectos humanos e culturais, frequentemente chamados de soft (macios, em tradução livre) (HERACLEOUS, 2002). Nesse sentido, Heracleous explica que o “discurso organizacional é uma maneira útil não só para compreender o mundo conceitual das organizações, mas também para influenciar este mundo” (2002, p. 254), denotando a possibilidade de utilização do discurso na construção da mudança nas organizações.

Dessa forma, este trabalho está alinhado ao crescente interesse dos teóricos organizacionais sobre as questões da linguagem, o que permitiria uma compreensão mais complexa das organizações (HERACLEOUS; BARRETT, 2001). Para elaborar o caso, foram utilizadas diversas fontes de informações, tais como documentos, dados disponíveis no website da entidade, quatro entrevistas por Skype, respostas a perguntas enviadas por e-mail para duas assistentes da entidade e, por fim, resposta a um e-mail enviado para o órgão regulador1, com o intuito de obter informações sobre o setor.

2. O caso

social não é algo objetivo, acessado da mesma maneira por todos, mas algo construído pel

2.1. A Comunidade

Até a década de 1960, pessoas com deficiências de aprendizado viviam, na Inglaterra, em grandes hospitais. Suas vidas eram institucionalizadas, e sua individualidade, portanto, não era reconhecida. Naquela década, o governo reconheceu o direito à individualidade dessas pessoais e decidiu que tais hospitais deveriam ser paulatinamente fechados. É nesse contexto que a Comunidade surge, em Londres, na década de 1970.

A Comunidade faz parte de uma rede de mais de 130 entidades que compartilham a mesma missão e os mesmos valores, presentes em mais de 40 países, incluindo o Brasil. Este caso de ensino aborda a Comunidade em Londres, e não no Brasil, porque a introdução de diretrizes pelo governo da Inglaterra levou a mudanças na Comunidade em tal país.

A Comunidade diferencia-se das demais instituições que oferecem serviços de suporte a pessoas com deficiência de aprendizado por sua proposta de vida comunitária com orientação religiosa permeando as atividades cotidianas lá desenvolvidas. Há, por exemplo, uma oração própria que é rezada diariamente antes da refeição principal.

Embora tenha sido fundada na tradição cristã, a Comunidade acolhe pessoas de diversas tradições religiosas ou mesmo de nenhuma, definindo-se como um lugar onde as pessoas podem fazer seu lar, fazer amigos, rezar e se divertir. As relações mútuas – definidas na Comunidade como o reconhecimento do valor de cada indivíduo e como a necessidade que uns têm dos outros (independentemente de diferenças em termos de capacidade de aprendizado, religião, formação acadêmica, país de origem, orientação sexual etc.) – fazem referência à “mesa da comunhão” e constituem o “coração” da Comunidade.

As pessoas sem deficiência, com exceção dos líderes e das pessoas que trabalham no escritório, são chamadas de assistentes. Considerando que a remuneração paga para os assistentes pela Comunidade é muito abaixo da que é paga pelas organizações que prestam o mesmo tipo de serviço na região, pode-se afirmar que as pessoas que optam por viver e trabalhar na Comunidade são atraídas por aquilo que ela tem de diferente, que é a proposta de vida comunitária.

A Comunidade é formada por 70 pessoas, sendo 25 com deficiência de aprendizado e 55 sem deficiência. Dentre as 25 pessoas com deficiência, 22 vivem em cinco casas comunitárias com 18 assistentes. As outras três pessoas com deficiência vivem em seus próprios apartamentos, e as demais 27 sem deficiência vivem em outras casas, que também fazem parte da Comunidade.

A Comunidade também desenvolve oficinas, nas quais os seus membros trabalham com tapeçaria e velas artesanais ou no jardim, onde plantam flores, verduras e legumes. Os produtos de artesanato (tapeçaria e velas artesanais) são vendidos em uma loja que a Comunidade mantém no mesmo endereço das oficinas, e os produtos do jardim (flores, verduras e legumes) são vendidos diretamente em uma das casas comunitárias. Os consumidores desses produtos são pessoas físicas que vivem na região.

Os assistentes são divididos em home assistants (assistentes de casa, em tradução livre) e em wokshop assistants (assistentes de oficina, em tradução livre), que oferecem suporte para as pessoas com deficiência de aprendizado quando estão em casa e nas oficinas, respectivamente. Enquanto home assistants têm escalas de trabalho que variam semanalmente conforme as necessidades das pessoas com deficiência, os workshop assistants trabalham de segunda a sexta-feira, das 9 às 16 horas, o que lhes permite, inclusive, conciliar essa jornada com outro trabalho.

Festas e celebrações, que oferecem oportunidades de encontro entre todos os membros, constituem um aspecto muito importante no cotidiano da Comunidade. Comemoram-se os aniversários, o Natal e a Páscoa, dentre outras festas anuais. Criam-se espaços de celebração da vida, o que é considerado muito relevante na Comunidade. Não se coloca a importância na deficiência, mas no valor de cada pessoa, cuja vida merece ser celebrada. Toda a Comunidade se reúne em algumas ocasiões, como nos Encontros da Comunidade, realizados para acolher novos membros; nas noites em que a Comunidade promove uma discoteca no salão de uma das igrejas locais; na peregrinação anual até a sede da Igreja Anglicana, na Cantuária; e no retorno das férias de verão, quando se promove uma festa para as pessoas se reencontrarem. Além disso, os membros costumam frequentar as casas uns dos outros, de acordo com suas relações de amizade, principalmente para jantar e para festejar aniversários.

De acordo com informações do órgão regulador, existem na região onde a Comunidade está, aproximadamente, 145 instituições voltadas ao cuidado de pessoas com deficiência de aprendizado. No entanto, nesse número estão incluídos hospitais, postos de saúde, consultórios de dentistas, e não somente casas onde as pessoas vivem e recebem suporte para suas atividades cotidianas.

2.2. A mudança na Comunidade

Em 2001, o governo da Inglaterra havia publicado as diretrizes Valuing People (Valorizando as Pessoas, em português), segundo as quais as pessoas com deficiência de aprendizado deveriam fazer escolhas informadas sobre como queriam viver e que tipo de suporte queriam receber. Em outras palavras, as pessoas com deficiência de aprendizado não deveriam se adaptar às necessidades das entidades que lhes prestam suporte, mas não o contrário.

Em outubro de 2009, visando a aumentar o reconhecimento da individualidade e a autonomia das pessoas com deficiência de aprendizado, o governo da Inglaterra publicou novas diretrizes, conhecidas como Valuing People Now (Valorizando as Pessoas Agora). A partir dessas diretrizes, o sistema de financiamento de tal atividade mudou fundamentalmente: as organizações que cuidavam de pessoas com deficiência de aprendizado deixaram de receber recursos para suas atividades; ao invés disso, cada uma dessas pessoas passou a ter o seu orçamento pessoal e a decidir em que local queria morar, com suporte de quem e onde realizaria suas atividades diárias.

Ainda, as organizações deveriam passar a oferecer duas opções de moradia para as pessoas com deficiência de aprendizado: viver em casa comunitária, o que passou a ser chamado de Supported Living Service (Serviço de Vida com Ajuda, em português), ou viver em seu próprio apartamento, o Independent Supported Living (Vida Independente com Ajuda), sendo esta segunda opção a preferida pelo governo, porque implicava maior autonomia para a pessoa com deficiência de aprendizado.

A pessoa com deficiência poderia agora escolher, inclusive, entre receber ou não suporte de um assistente em particular. Com o aumento do poder atribuído às pessoas com deficiência de aprendizado, os assistentes, sem deixarem de serem chamados de membros da Comunidade, passaram a ser considerados mais claramente como profissionais, estando ali para prestar serviços de cuidados pessoais, em detrimento da proposta inicial de compartilhamento de vida com os demais membros com deficiência de aprendizado. Uma vez que as pessoas com deficiência de aprendizado não estavam mais em casas comunitárias nas quais os assistentes também eram moradores, mas em seus próprios apartamentos, os assistentes passaram a ter de perguntar para a pessoa com deficiência de aprendizado se podiam, por exemplo, tomar uma xícara de chá.

Além disso, com as novas regras, a Comunidade deixava de ter recursos para atividades tradicionais como os Encontros da Comunidade, as discotecas, as celebrações de aniversários e a peregrinação anual – eventos que promoviam a reunião de todos os membros da Comunidade, sendo centrais para seu significado.

Em dezembro de 2010, a Direção da Comunidade enviou uma carta para os assistentes apresentando o plano para implementação das mudanças e informando que tal plano já havia sido aprovado pelo governo e teria de ser implantado para que a Comunidade pudesse continuar em funcionamento. É válido notar que praticamente todo o recurso financeiro da Comunidade era repassado pelo governo, uma vez que o valor arrecadado pela venda dos produtos desenvolvidos nas oficinas era insignificante. Antes da mudança nas diretrizes, a Comunidade recebia um montante de recursos para pagar todos os seus funcionários, bem como aluguéis, alimentação e demais contas. Com a mudança, apenas as pessoas com deficiência de aprendizado receberiam recursos e, com tais recursos, decidiriam contratar os serviços da Comunidade e/ou de outra organização (poderiam, por exemplo, escolher morar em uma casa da Comunidade, mas receber suporte de assistentes de outra organização).

Essa primeira comunicação fora assinada por duas pessoas: a primeira estava na Comunidade desde a sua fundação e era sua Diretora até então, passando agora a ser responsável por acompanhar a “espiritualidade” da Comunidade; a segunda acabara de ser contratada e passava a assumir o cargo de Diretora da Comunidade, sendo responsável por sua gestão como um todo. A comunicação destacava que ela havia sido selecionada por sua destacada experiência em conduzir processos de mudança em uma grande consultoria.

Nessa ocasião, a Direção da Comunidade afirmava que, embora funcionasse de acordo com um modelo testado e acreditado, cujas raízes eram muito profundas, não poderia ficar parada enquanto as necessidades mudavam. Advertia que essa seria uma “grande mudança”, que deveria ser abordada com um “equilíbrio de profissionalismo e fé”. De forma não usual na Comunidade, afirmava que “a fé sozinha não encontraria acomodações, não conseguiria o acordo do governo sobre os orçamentos e não colocaria as contas no equilíbrio”. Entretanto, fazendo referência à espiritualidade, a Direção mencionava: “continuamos uma comunidade intencional, não estamos tentando ser apenas outro provedor de apoio, seremos sempre mais do que isso porque podemos oferecer um convite: para pertencer a uma comunidade.”

Acreditava-se que as mudanças seriam implementadas até setembro de 2011, para que as pessoas não precisassem lidar com a incerteza e com a ansiedade por muitos meses, o que não seria bom para ninguém. No entanto, o plano de trabalho era complexo, e o progresso dependeria também de fatores externos à Comunidade, como a aprovação de orçamentos por funcionários do governo e a disponibilidade de apartamentos para alugar na região. Para fechar a mensagem enviada em dezembro de 2010, a Direção da Comunidade pedia orações e a ajuda de todos para “esse período doloroso e desafiador”.

A partir de fevereiro de 2011, realizaram-se reuniões com cada pessoa com deficiência de aprendizado para explicar as mudanças e conhecer suas escolhas, o que permitiu elaborar um orçamento para os seus cuidados. Um funcionário do governo, equivalente ao assistente social no Brasil, avaliou a capacidade de cada pessoa para decidir por si. Para quem não tinha tal capacidade, foram realizadas reuniões envolvendo representantes do seu círculo social (familiares, amigos e profissionais) para decidir o que era melhor para cada pessoa.

Das 22 pessoas com deficiência que moravam nas casas comunitárias, 11 decidiram morar em seus próprios apartamentos – alguns decidiram morar sozinhos, e outros, dividir o apartamento com um amigo (outro membro da Comunidade também com deficiência de aprendizado). Das três que moravam sozinhas em seus apartamentos, uma decidiu que queria voltar a morar em uma casa comunitária. Com isso, foi decidido que duas das cinco casas da Comunidade seriam fechadas. Em abril de 2011, a Direção enviou uma nova mensagem para todos os membros referindo-se à mudança como “um tempo que nos testa”.

Em maio de 2011, os assistentes foram convidados para um encontro visando compartilhar suas reflexões sobre como estavam vivendo a mudança na Comunidade. Tal reunião foi conduzida pela pessoa que anteriormente era a Diretora da Comunidade, que sugeriu que os assistentes comparecessem com materiais que os ajudassem a expressar o que pensavam e sentiam. Compareceram ao encontro 15 assistentes. Um deles compartilhou um poema que dizia: “dance quando estiver destroçado; dance quando estiver no meio da luta; dance sobre o seu sangue”.

Outro assistente compartilhou a oração de Saint Brendan, mediante a qual se pede ajuda na viagem para além do que é familiar e fé para abandonar os velhos hábitos:

Ajuda-me na jornada além do familiar e para o desconhecido.

Dá-me a fé para deixar velhos hábitos e encontrar terra fresca.

Cristo dos mistérios, eu confio em Vós

para ser mais forte do que cada tempestade dentro de mim.

Vou confiar na escuridão e saber que os meus momentos,

mesmo agora, estão em suas mãos.

Afine meu espírito à música do céu,

e, de alguma forma, valorize minha obediência.

Uma terceira pessoa apresentou a oração do pescador de Breton, que pede que Deus o proteja, já que seu barco é muito pequeno ante o tamanho do mar. Essa oração, na íntegra, afirma:

Querido Deus, seja bom para mim,

O mar é tão grande

E meu bote é tão pequeno.

Uma quarta pessoa apresentou uma oração que falava sobre ossos curvados e mentes fraturadas, e, uma quinta, uma canção sobre uma grande perda e sobre o chamado para estarem presentes por inteiro. Por fim, diversas pessoas fizeram referência ao “coração da Comunidade”, segundo o qual todas as pessoas são valorizadas igualmente a despeito de qualquer diferença, bem como precisam umas das outras.

Em julho de 2011, os planos de suporte e respectivos orçamentos já tinham sido entregues para aprovação do governo, e a diretora enviou um comunicado agradecendo a todos pelos esforços em manter a Comunidade lutando nesse “tempo travesso de mudança”. No mesmo mês de julho, foi realizado um novo encontro para que os assistentes pudessem compartilhar suas expectativas sobre o futuro da Comunidade, também conduzido pela ex-Diretora da Comunidade. Nesse dia, 16 assistentes estiveram presentes, os quais foram estimulados a participar com a seguinte pergunta: quais valores da comunidade devem ser mantidos no futuro? Os seguintes temas foram, então, destacados: a mesa da comunhão, as relações mútuas, o espírito de acolhida e a aceitação de cada um como é, o incentivo para a vida espiritual, o respeito pelas pessoas e o desenvolvimento de habilidades pelas pessoas com deficiência de aprendizado.

Em tal evento, também foi relembrada por um dos assistentes a passagem bíblica de quando Jesus Cristo entrou no Templo e, em um lugar que deveria servir para encontro com Deus, encontrou um mercado. Assim, os presentes discutiram sobre o fato de a Comunidade se sentir pressionada a figurar como um prestador de serviços conforme as regras de mercado.

Nesse período, um consultor externo foi contratado para desenhar uma nova estrutura organizacional, tendo em vista a eficiência na utilização de recursos. Definiu-se que os assistentes seriam divididos em três grupos e que o mesmo assistente daria suporte à pessoa com deficiência tanto em casa quanto nas oficinas, deixando de existir os papéis de house assistants e workshop assistants. Como três das cinco casas comunitárias permaneceram em funcionamento, cada um dos três grupos era composto por uma casa (onde viviam pessoas com deficiência que haviam escolhido o Supported Living Service) e um conjunto de apartamentos (onde viviam pessoas com deficiência que haviam escolhido o Independent Supported Living).

Em outubro de 2011, realizou-se um terceiro encontro para que os assistentes apresentassem suas reflexões sobre as mudanças na Comunidade. Esse encontro tinha como tema uma leitura bíblica, de Êxodo, sobre o “estar no deserto”. No entanto, não foram disponibilizadas mais informações sobre o que foi dito em tal ocasião.

Embora a mudança devesse estar implementada até setembro de 2011, somente em dezembro daquele ano os primeiros planos de suporte foram aprovados. Acreditava-se que a principal razão para tal demora tinha sido o corte do orçamento público para despesas com pessoas com deficiência de aprendizado, ocorrido como consequência da crise financeira mundial que atingira a Europa a partir de 2008, incluindo a demissão de funcionários do governo responsáveis pela aprovação dos planos. Além disso, o governo pedia para que a Comunidade reduzisse os valores orçados, mas esta argumentava não ser possível executar os planos individuais com menor orçamento.

Ainda em dezembro de 2011, a Direção da Comunidade reconhecia que o atraso era muito frustrante para todos, além de prolongar o período de incerteza e a ansiedade. Tal mensagem assinada pela diretora da Comunidade era encerrada com as seguintes palavras:

Eu sei que é duro, mas eu acredito que nós só precisamos continuar juntos e nos concentrarmos em sermos uma comunidade. Não podemos deixar as mudanças dominarem todos os aspectos da vida comunitária por outros três ou seis meses. Os planos estão feitos e escritos e nós estamos preparados [para iniciar o processo já].

No final do mês de julho de 2012, praticamente todos os planos estavam aprovados, e os três grupos entraram, enfim, em funcionamento. Algumas pessoas começaram a se mudar para suas novas casas, e buscavam-se apartamentos para alugar para as demais. Embora os planos de cuidados individuais estivessem aprovados, eles não envolviam recursos para as atividades comunitárias, como encontros, celebrações e viagens.

Com o fim da possibilidade de utilizar recursos públicos para a realização das atividades comunitárias anteriormente mencionadas, os assistentes começaram a desenvolver ações de captação de recursos para que pudessem mantê-las. Assim, passaram a promover aulas de mosaico em cerâmica (cobrando inscrição) e a participar de maratonas patrocinadas, por exemplo. Essas práticas foram efetuadas inicialmente pelos assistentes, mas não ficaram limitadas a eles, pois líderes e funcionários do escritório também procuraram fazer o mesmo.

No primeiro semestre de 2013, a Comunidade enfrentava não só a saída de assistentes, mas também a dificuldade para novas contratações. Em entrevista realizada com duas assistentes entre os meses de março a maio de 2013, estas relataram que tal dificuldade residiria no fato de que a Comunidade ainda não havia conseguido encontrar o equilíbrio entre a prestação de serviços mais profissionalizada, exigida pelas novas diretrizes, e a vida comunitária, tendo em vista que os assistentes, quando iniciaram suas atividades na Comunidade, foram atraídos justamente pela vida comunitária, e não pela ideia dea serem funcionários em um sentido mais comum.

Nas palavras de uma das entrevistadas, “posso dizer que, quando se fala nos valores da comunidade, a questão sempre vem acompanhada de uma queixa: assistentes continuam experimentando situações que os fazem se sentir menos importantes”. Nesse mesmo sentido, tem-se a seguinte fala: “A pessoa com dificuldade de aprendizado não pode se sentir um incômodo, algo pesado; as pessoas sem dificuldade de aprendizado, sim”.

Embora ambas as entrevistadas concordassem que a mudança visava tornar a Comunidade mais profissional, havia divergência sobre a mudança ser boa ou não para a Comunidade. Enquanto uma delas afirmou que a Comunidade “está acordando para a necessidade de ser profissional”, a outra observou que ainda não se encontrou o equilíbrio entre o profissionalismo e a vida em comunidade, pois entende que, “Nessa busca de profissionalismo, a Comunidade perdeu o sentido que tinha de vida em comunidade [...]. Afetou o espírito da comunidade, porque é uma comunidade, não é só um serviço”.

3. Notas de ensino

3.1 Objetivos deste caso de ensino

Os objetivos deste caso de ensino são:

· possibilitar a discussão da mudança organizacional a partir da perspectiva interpretativa, focalizando os discursos daqueles que participam dessa mudança.

· promover a reflexão sobre mudança deliberada e emergente.

3.2 Público a que se destina

Este caso de ensino pode ser utilizado em cursos que abordem o tema da Mudança Organizacional, como nas especializações lato sensu em Gestão em geral e em Gestão de Pessoas, em cursos stricto sensu nas áreas de Administração e Psicologia Social e do Trabalho, bem como, eventualmente, em cursos de graduação em Administração. Ainda, pode ser utilizado para formação de agentes de mudança em organizações públicas, privadas e não governamentais.

3.3 Questões sugeridas para o caso de ensino

As questões propostas a seguir podem ser abordadas com base nas informações fornecidas sobre o caso, bem como utilizando o referencial teórico dialogado que é apresentado em seguida:

1. A mudança organizacional vivenciada pela Comunidade pode ser entendida como episódica ou emergente? Seria possível fazer alguma conexão entre os enfoques e os versos de Alberto Janes, apresentados no início deste artigo?

2. A partir dos discursos dos membros da Comunidade, como estes interpretam a mudança que foi proposta pela Direção a partir da demanda governamental?

3. Quais são as metáforas apresentadas no caso, bem como suas funções no processo de mudança organizacional?

3.4 Referencial teórico dialogado com o caso de ensino

Este caso de ensino tem como pano de fundo o paradigma interpretativista, segundo o qual o mundo social não é algo objetivo, acessado da mesma maneira por todos, mas algo construído pelos atores de acordo com cada situação, à medida que juntos atuam dentro de um contexto (HATCH; IANOW, 2005). Dessa forma, um fenômeno, como a mudança em uma organização, não pode ser compreendido somente a partir de uma perspectiva objetiva.

Um fenômeno ou realidade tem significado para aqueles nela envolvidos, sendo possível que diferentes pessoas atribuam significados distintos ao mesmo fenômeno, uma vez que a produção de sentido é algo reflexivo, que depende de vivências anteriores (WEICK, SUTCLIFFE; OBSTFELD, 2005). Como entendem Tsoukas e Chia (2002, p. 567), “os atores organizacionais tentam dar sentido à sua realidade e agir coerentemente em seu mundo”. Quando a realidade não é vista como algo objetivo, que pode ser acessado da mesma forma por qualquer pessoa, mas como algo interpretado por cada indivíduo (MERRIAM, 2002), o processo de mudança organizacional vai incorporar a contribuição de cada um que dele participa.

Na abordagem interpretativa, busca-se compreender os significados dados pelos atores sociais ao fenômeno em foco (DENZIN; LINCOLN, 2011, GEPHART, 2004), provendo uma narrativa das interpretações das pessoas sobre a sua realidade, que incluem os “conceitos em uso” (GEPHART, 2004) pelos membros da organização. Assim, têm-se, por exemplo, o que seria o “coração” da Comunidade: a valorização de cada indivíduo independentemente das diferenças e o reconhecimento da necessidade que uns têm dos outros.

Sendo a organização um sistema de significados (BARRETT et al., 1995), discursos são vistos como meios pelos quais a organização é criada, mantida e transformada, apresentando-se como o centro da mudança organizacional. Na perspectiva interpretativa, o discurso é entendido não como um meio de transmitir informações e de atingir um resultado, mas como uma forma de compreender de que modo os atores constroem sua realidade social, pensam, interpretam e agem sobre essa realidade (HERACLEOUS; BARRETT, 2001).

A partir disso, a tão propalada “resistência organizacional” nada mais é que uma construção efetuada não só pelos e entre os “agentes de mudança” – termo utilizado para designar os responsáveis pelo planejamento e pela execução do processo de mudança –, mas também por aqueles que são impactados pelo processo, também chamados de receptores da mudança (FORD, FORD, D’AMELIO, 2008). Segundo esses autores, tanto os primeiros quanto os segundos agentes dão sentido à mudança em função das interpretações das ações mútuas. Ao invés de pensar a resistência como algo que está somente nos receptores da mudança (os assistentes e as pessoas com deficiência de aprendizado, no caso descrito) contra aqueles que querem implantá-la (a Direção da comunidade), tal mudança passa a ser o resultado da interação entre todos os membros, podendo a reação dos receptores servir de alerta e reflexão para os agentes se estes perceberem que influenciam o que costumam chamar de “resistência”. Assim, nessa perspectiva2, todos são agentes no processo de mudança, já que este é o resultado de uma construção conjunta, que pode levar, inclusive, à manutenção do que já existia.

Mesmo quando existe um disparador da mudança, que, no caso descrito, consiste em um fator externo expresso por uma determinação governamental, ou seja, um princípio deliberado e episódico, há diversas consequências não antecipadas, requerendo ações não planejadas, tais como captar recursos criados pelos assistentes, caracterizando a mudança organizacional como um fenômeno também emergente, como defendido por Orlikowski (1996).

Orlikowski (1996) traz as ideias de Mintzberg (1979, 1987) para o âmbito da mudança organizacional. Em seus estudos, este autor já havia defendido o pressuposto de que as estratégias podem não ser somente deliberadas, mas também emergentes, afirmando que “ações simplesmente convergem em padrões. Eles podem se tornar deliberados, claro, se forem reconhecidos e legitimados pela alta gestão. Mas isso acontece depois do fato” (MINTZBERG, 1987, p. 68). Nele inspirada, Orlikowski (1996, p. 65) define mudança deliberada como “a realização de um novo padrão de organização precisamente como pretendido originalmente, [já a] mudança emergente é a realização de um novo padrão, na ausência de intenções explícitas, definidas a priori”. Baseando-se nas ideias de Weick (1993), essa autora propõe que a mudança organizacional é resultado da improvisação contínua dos atores organizacionais, na tentativa de fazer com que sua realidade tenha sentido e de agir de forma coerente (ORLIKOWKSI, 1996).

É importante notar que Orlikowski (1996) não propõe a exclusividade de um ou outro tipo de mudança. Ao contrário, a autora defende que elas são complementares, de modo que, embora as organizações possam deliberar sobre a mudança, esta será também emergente – ou seja, as pessoas ajustarão aquilo que foi deliberado em suas ações, o que não pode ser antecipado.

No caso da Comunidade, uma vez deliberado que o orçamento recebido pelo governo não poderia mais ser utilizado para atividades que são tradicionais na Comunidade e que proporcionam a “mesa de Comunhão”, como a peregrinação anual para a Cantuária e as noites de discoteca, por exemplo, os membros são capazes de introduzir novas práticas para fazerem ajustes ou não nos significados construídos em sua interação social. Assim, os assistentes desenvolvem meios de captar recursos, como aulas de artesanato (mosaico em cerâmica) e corridas de maratonas patrocinadas.

Logo, os assistentes têm encontrado uma nova forma de organização, ainda que para não mudar os significados que têm de Comunidade e sustentar a Comunidade que querem ter. Mudam-se as práticas para preservar os significados. Essa introdução de práticas, que não havia sido planejada, se “repetida, compartilhada, ampliada e sustentada pode, no tempo, produzir mudanças organizacionais perceptíveis e impressionantes” (ORLIKOWSKI, 1996, p. 89). Dessa forma, como propõe Orlikowski (1996), observa-se que a mudança deliberada pelo governo e pela Direção da Comunidade é complementada com a mudança emergente; em outras palavras, a partir da deliberação da mudança por um agente externo, têm-se a emergência de ações não planejadas entre os assistentes, de forma a sustentarem as interpretações que dão sentido à sua realidade.

Para finalizar a discussão sobre os enfoques episódico e emergentes de mudança organizacional, propõe-se uma analogia com os versos de Janes (2011). O compositor entende que a poesia transcende os aspectos da métrica, sem negá-la. Quando ele afirma que a poesia não “é só a caligrafia num perfeito alinhamento”, remete à existência de elementos que vão além dos aspectos hard e que ele chama de “coisas da própria vida”. Assim como faz o compositor em relação à poesia, não se quer aqui negar o valor das pesquisas acerca da mudança organizacional sob a ótica episódica, que é a mais presente nos estudos brasileiros, conforme estudos bibliométricos recentes (CERETTO; TEIXEIRA, 2010; CRUZ; CECCHI; SOUZA, 2009; CRUZ; FREITAS, 2010). O que se pretende ao explorar este caso de ensino é convidar os alunos a olharem para os aspectos psicossociais da gestão, em geral, e da mudança organizacional, em particular – aspectos chamados de soft.

Dessa forma, para a melhor compreensão do fenômeno da mudança nas organizações, faz-se importante atentar para as diferentes interpretações construídas pelos distintos atores sociais envolvidos na mudança, o que pode ser feito por meio de seus discursos. Heracleous e Barrett (2001) definem discurso como uma coleção de ações comunicativas – verbais ou textuais –, padronizadas por certas características estruturais subjacentes e que constroem a realidade organizacional e social. No caso do processo de mudança da Comunidade descrito, há diferentes discursos em interação, pois há diferentes interpretações quanto ao conteúdo do processo.

Assim, apresenta-se o discurso do governo de oferecer maior autonomia às pessoas com deficiência de aprendizado. Embora as políticas Valuing People Now não representem a ruptura, mas a continuidade das diretrizes em vigor desde 2001 (Valuing People), estas alteram fundamentalmente o modo de financiamento de tal atividade.

Foca-se também os discursos dos assistentes, que não só demonstram dificuldade por deixarem de ser vistos como membros na Comunidade, passando a ser vistos como profissionais, mas também pela ameaça da descontinuidade das celebrações e dos outros eventos que promoviam a interação entre as pessoas e, logo, a vida comunitária.

A ex-Diretora, que estava na Comunidade desde a sua fundação e passou a ser responsável por cuidar do que eles chamaram de “espiritualidade”, começou a conduzir as reuniões que serviam de espaço para que os assistentes expressassem o que estavam sentindo e o que esperavam do futuro da Comunidade. Tais reuniões, que tinham como pano de fundo aspectos religiosos, representavam, assim, a tentativa de continuação da proposta da Comunidade, apesar da mudança para uma prestação de serviços mais profissionalizada.

É interessante notar que, a partir desse espaço aberto para acolher os sentimentos e as opiniões dos assistentes, não desconsiderando esse discurso, surgem espontaneamente iniciativas para a busca de recursos e a continuidade de aspectos da vida comunitária. De acordo com Tsoukas e Chia (2002), pode-se inferir que uma intervenção externa, nomeadamente a introdução de novas diretrizes pelo órgão regulador da atividade, colocou em cheque os significados construídos pelos membros da Comunidade. No entanto, seguindo o raciocínio desses autores, defende-se que apenas os membros envolvidos no fenômeno poderão ou não fazer adaptações em tais significados (TSOUKAS; CHIA, 2002), não sendo a intervenção externa suficiente para gerar a mudança no cotidiano organizacional.

Já a Direção que assumiu a gestão da Comunidade no início do processo de mudança utiliza o discurso de diferentes maneiras. Uma delas é a transmissão de informações sobre a mudança. Assim, já nas primeiras mensagens enviadas a esse respeito, em dezembro de 2010 e em janeiro de 2011, comunicava que a mudança tinha plano de implementação aprovado e que este teria de ser implementado. A partir daí, relatórios de progresso foram enviados periodicamente, atualizando as informações sobre a implementação do plano.

No entanto, o discurso presente em tais relatórios não tinha a função única de informar, mas também de indicar que a Direção da entidade estava ciente das dificuldades emocionais relacionadas à mudança, espelhando as interpretações dos membros sobre a sua realidade social (HERACLEOUS, 2002). Nesse sentido, a Direção comunicava a mudança como um “período doloroso e desafiador”, que deveria ser superado o mais rápido possível, para que as pessoas não precisassem lidar com a incerteza e a ansiedade por muitos meses. Adicionalmente, a Direção reforçava, na mensagem enviada em dezembro de 2011, o desejo de ser comunidade, demonstrando que reconhecia que os aspectos da vida comunitária estavam sendo deixados de lado durante a implementação da mudança.

Assim, o discurso da Direção da Comunidade é, por vezes, ambíguo. Por exemplo, ao mesmo tempo que comunica o desejo de implementar a mudança, transmite a mensagem de que a vê como negativa e, além disso, passageira. Assim, há um texto que afirma que, embora a Comunidade funcionasse de acordo com um modelo testado e acreditado, cujas raízes eram muito profundas, não poderia ficar parada enquanto as necessidades mudavam. A Direção comunicava, assim, que essa era “uma grande mudança”, mas também que a percebia como dolorosa e geradora de ansiedade e que deveria ser vista como algo passageiro – utilizando, para isso, expressões que transmitem a ideia de que há uma duração, como “período doloroso e desafiador” e “tempo que nos testa”. Entende-se que é como se a Direção quisesse dizer: mantenham-se firmes, não desistam, pois estamos todos juntos, e as coisas vão melhorar.

Outro exemplo de ambiguidade no discurso da Direção é evidenciado quando esta afirma que a organização deve encontrar o equilíbrio entre profissionalismo e fé. Considerando, como destacado na apresentação do caso, que os assistentes passam a precisar perguntar para a pessoa com deficiência de aprendizado se podem tomar uma xícara de chá, por exemplo, uma vez que agora estão prestando suporte em sua casa e não mais em uma casa comunitária, pode-se pensar no assistente como um profissional que presta serviços de suporte, e não mais como um membro da comunidade igual à pessoa com deficiência. Entretanto, ao mesmo tempo, a Direção afirma que “continuamos uma comunidade intencional, não estamos tentando ser apenas outro provedor de apoio, seremos sempre mais do que isso porque podemos oferecer um convite para pertencer a uma comunidade”.

Sonenshein (2010, p. 500) explica que os gestores podem utilizar a ambiguidade em seu discurso de forma estratégica, “condição que permite que os empregados e gestores tenham interpretações múltiplas da mudança enquanto acreditam que concordam nos significados”. Uma forma do agente de mudança alcançar os fins desejados mediante o discurso é a proposta por Conger (1991), que explica que os líderes devem usar retóricas que inspirem, persuadam e energizem os membros da organização. O autor defende que os líderes devem superar discursos baseados somente na razão e na lógica, para incluir aspectos emocionais por meio do uso de linguagem simbólica, como as metáforas. Assim, eles podem articular e comunicar a missão da organização, explicando sua racionalidade, construindo uma imagem de antagonista – que deve ser combatida sem economia de esforços – assim como uma imagem de organização que pode ter sucesso apesar de todos os obstáculos. Conger (1991) defende que essa retórica conquistaria o comprometimento e a coesão dos membros.

No caso da Comunidade, encontram-se os elementos propostos por Conger (1991). Em um primeiro comunicado escrito pela Diretoria, o discurso transmite a necessidade de mudança, explicando sua racionalidade. Desde então, o discurso oficial constrói a imagem da mudança como antagonista, reforçando seu caráter “doloroso e desafiador” e utilizando, para isso, palavras como teste, dor, ansiedade e incerteza. Para atravessar a “grande mudança”, esse discurso pedia que as pessoas contribuíssem com seu profissionalismo e sua fé, inspirando-as ao dizer que elas conseguiriam superar essa etapa: “Eu sei que é duro, mas eu acredito que nós só precisamos continuar juntos e nos concentrarmos em sermos uma comunidade”.

Os assistentes, por sua vez, fazem uso de metáforas para expressar seu entendimento em relação ao processo de mudança, uma vez que esse recurso de linguagem integra emoções, intelecto, imaginação e valores (CONGER, 1991). Heracleous (2002, p. 258) defende que metáforas também podem servir como “pontes de um estado familiar para um novo”, sendo um importante recurso na facilitação do processo de mudança. Nesse sentido, para conhecer os reflexos da mudança sobre os assistentes, a Diretoria da Comunidade organizou reuniões, abrindo um espaço para que pudessem expressar suas percepções, suas opiniões e seus sentimentos. Nessas reuniões, os assistentes falaram em dançar sobre o sangue; em um barco que é muito pequeno; em precisar de ajuda para a viagem para além do que é familiar e de fé para abandonar os velhos dias; em tempestade; em escuridão; e em ossos curvados e mentes fraturadas.

Quando um assistente falou em dançar sobre o sangue, não é possível afirmar se queria transmitir vontade de cooperar e de continuar lutando em direção à mudança; se, ao contrário, queria transmitir que se sentia cobrada para “dançar” mesmo “estando sangrando”, ou seja, para cooperar com a mudança, mesmo sofrendo; ou, ainda, se queria transmitir ambas as coisas. Se houvesse necessidade de optar entre uma das alternativas, inferir-se-ia que a segunda é a que mais expressa os sentimentos dos assistentes, tendo em vista a seguinte fala da entrevistada: “A pessoa com dificuldade de aprendizado não pode se sentir um incômodo, algo pesado; as pessoas sem dificuldade de aprendizado, sim”. Além dessa fala, os assistentes pediam a permanência das atividades comunitárias, que refletem o “coração” da Comunidade e que os atraíram para irem viver nela. Assim, pode-se pensar que estavam sentindo falta de algo, de modo que tinham de “dançar” mesmo carentes de algo, isto é, mesmo sem recursos. De qualquer forma, é possível presumir que o “coração” da Comunidade estava sangrando.

Essa ideia é reforçada pela partilha, por outro assistente, da oração do pescador de Breton, que pede que Deus o proteja porque o seu barco é muito pequeno. Mais uma vez, relata-se o sentimento de que algo está faltando para enfrentar uma situação difícil, como um temporal no mar.

Outra pessoa apresentou uma oração que falava sobre ossos curvados e mentes fraturadas, enquanto outra citou uma canção sobre uma grande perda e sobre o chamado para estarem presentes por inteiro. Tais discursos expressam o que os assistentes sentem: cobrados para além do que podem oferecer, cansados (ossos curvados) e com a mente fraturada, talvez pela ruptura entre a proposta que abraçaram, de vida em comunidade, e o que estão vivendo, de ênfase nos serviços profissionais. Ao mesmo tempo, expressam que, ainda assim, devem estar presentes por inteiro – o que não se sabe se é algo que advém de uma cobrança externa ou pessoal.

Perguntados sobre quais valores da Comunidade deveriam ser preservados com a mudança, os assistentes destacaram a mesa da comunhão, as relações mútuas, o espírito de acolhida, a aceitação de cada um como é e o desenvolvimento de habilidades pelas pessoas com deficiência de aprendizado. Mais uma vez, enfatizaram o desejo de continuidade da vida comunitária, e não de uma entidade prestadora de serviços, como são as demais organizações que atuam no setor da Comunidade. Nesse sentido, mencionaram a passagem bíblica de quando Jesus Cristo entra no Templo e se depara com um mercado, ao invés de um lugar voltado para a espiritualidade, fazendo referência à Comunidade como empresa prestadora de serviços.

Heracleous (2002) observa que a organização pode utilizar metáforas ou analogias como ferramenta de diagnóstico para levantar informações sobre o que os atores estão pensando sobre a organização e sobre a mudança, bem como para alinhar as interpretações e ações dos atores organizacionais para a direção desejada. Assim, a metáfora pode “facilitar a mudança organizacional ao redefinir criativamente a realidade para os atores organizacionais” (HERACLEOUS, 2002, p. 258), capacitando-os a enxergar as situações de uma nova maneira, além de suportar as ações por meio de suas imagens favoráveis.

Simultaneamente, a Direção pede a cooperação das pessoas para que continuem lutando nesse “tempo travesso de mudança”. Assim, como coloca Heracleous (2002), o discurso organizacional cumpre o papel de espelho, ou seja, de refletir o mundo conceitual da organização, bem como de meio ou de via pela qual a mudança é influenciada.

Nesse sentido, a Direção da Comunidade propõe o terceiro encontro com os assistentes com o tema do êxodo, o “estar no deserto”. A referência ao período do êxodo, relatado na bíblia como uma fase de dificuldades, transmitiu uma ideia de continuidade ou de não ruptura em relação à proposta da Comunidade, inspirando os assistentes a continuar cooperando.

4. Considerações finais

É oportuno, nesse momento, trazer a afirmação de Barrett et al. (1995) de que o locus do conhecimento e, portanto, da formação de significados e da mudança reside nas relações sociais, ao invés de estar dentro das cabeças de uma ou outra pessoa. Assim, embora haja uma demanda externa forçando uma mudança na Comunidade, esta só acontecerá, de fato, quando as pessoas formarem novos significados por meio de suas práticas, em um processo recursivo.

É por intermédio de padrões de discursos que valores e ações são mantidos ou transformados, reforçados ou desafiados (BARRETT et al., 1995). Nesse sentido, a mudança não é algo que vem de fora para dentro da Comunidade. Embora a Direção tenha comunicado a mudança com base em pressupostos mecanicistas, utilizando a palavra “sobrevivência” e demonstrando subordinação da organização ao governo – seu financiador principal –, o significado da mudança para os membros da Comunidade não reside nas mensagens transmitidas pela Direção e não pode ser produzido como fruto dessas mensagens, mas é cocriado (BARRETT et al., 1995) nas atividades cotidianas e nas interações entre os membros. Por isso, a Comunidade, até o momento de finalização da descrição do caso, estava tentando encontrar o caminho entre o que era exigido pelo governo e o que queria ser em seu cotidiano.

Dessa forma, os assistentes introduziram novas práticas para conseguir manter os significados que atribuíam à Comunidade, ao mesmo tempo que introduziram o novo. Tal feito suporta a proposta de Orlikowski (1996) no que se refere à complementaridade entre a mudança deliberada e a emergente. No caso estudado, de acordo com o entendimento de Orlikowski (1996), mudanças deliberadas na prática de gestão levaram a mudanças emergentes nas práticas dos assistentes – mas não só, pois líderes e funcionários do escritório também já começaram a desenvolver e a participar de tais atividades de arrecadação de recursos –, que poderão levar a resultados não antecipados.

Este trabalho contribui, assim, para demonstrar o potencial do estudo dos discursos organizacionais para a compreensão da realidade organizacional, evidenciando os pontos de vista dos atores em seu ambiente natural. Quanto à sua contribuição prática, considerar essa abordagem durante a decisão e a implementação de processos de mudança é importante tanto para a prática dos agentes de mudanças nas organizações quanto para os estudiosos desse tema.

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Notas

* Pessoas com deficiência de aprendizado têm suas capacidades de aprender, de se comunicar e de fazer as atividades cotidianas prejdicadas, seja por consequência de questoes neurológicas e/ou psicológicas.
1 Tal órgão, na Inglaterra, é chamado de Care Quality Comission (Comissão de Qualidade de Cuidados, em tradução livre).
2 Para o estudo da resistência organizacional a partir de outra perspectiva, sugere-se a leitura do caso apresentado por Paiva e Andrade (2013).

Autor notes

1 Possui graduação em Psicologia pela Universidade São Marcos, mestrado em Psicologia do Trabalho, das Organizações e dos Recursos Humanos pela Universidade de Coimbra e pela Universidade de Valência e doutorado em Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo. São Paulo. Brasil. E-mail: leonardoblanco.80@gmail.com


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