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PAMONHA, IDENTITY FOOD AND TERRITORIALITY
Mercator - Revista de Geografia da UFC, vol. 20, no. 1, pp. 1-13, 2021
Universidade Federal do Ceará

Artigos



Received: 23 May 2020

Accepted: 20 October 2020

Abstract: Résumé

PAMONHA, IDENTITY FOOD AND TERRITORIALITY

In this article, we present the pamonha, which is considered as an identity food, valued and demanded in the territory of the metropolis of Goiânia. We aim to analyze the theme of production and consumption of pamonhas as a rooted culture, delimiting a territoriality that, supports on contemporaneity the social and economic representation of family groups in urban centers. As a methodological procedure, we justified our analysis in the theoretical debates about traditional food, at the same time, we ran a field research in open-air markets and sites where food were traded as well as interviews with street vendors. We highlighted several identity foods in Goiás, however, we chose the pamonha because it represents the diversity in the production, marketing, and consume, plus the different selling spots: conducted by family groups in street fairs, managed by traders in stores and also taken ahold by street vendors. This food presents a wide variety of flavors, which points out to the permanence and resignification of the culture; it is required by its consumers who inflate its identity and reassure its territoriality created by family groups. Thus, unveil the meaning of producing and consuming pamonha means to decode the cultural, social and economic value of an identity food.

Keywords: Food, Income, Social Reproduction, Tradition, Cultural asset.

Palavras chave: Alimento, Renda, Reprodução Social, Tradição, Bem Cultural

Mots clés: Nourriture, Revenu, Reproduction Sociale, Tradition, Bien Culturel

INTRODUÇÃO

Embora ocorram transformações nos hábitos alimentares diante da oferta de produtos processadose ultraprocessados, vinculados aos estilos de vida e aos valores comportamentais no mundo moderno, osalimentos tradicionais, culturais, artesanais ou aqui denominados identitários continuam sendodemandados e consumidos em metrópoles. Arraigados na identidade cultural da população, observam-sede forma contraditória o crescimento do consumo e a expansão da transformação tradicional do alimentoimpulsionada pela valorização dos saberes e fazeres. Como assevera Woortmann (2013, p. 6), nas “maisdiferentes sociedades, os alimentos são não apenas comidos, mas também pensados; quer dizer, acomida possui um significado simbólico – ela expressa algo mais que os nutrientes que a compõem”. Osalimentos transformados em comida estão relacionados, para além da dimensão fisiológica, aos motesculturais e sociais, que influenciam o processo de escolha. Conforme enfatiza Claval (1995), é pelacultura ou por meio de atributos culturais que as populações fazem a sua mediação com o mundo econstroem um modo de vida particular, além de se enraizarem no território.

No espaço da metrópole Goiânia, iniciamos uma pesquisa vinculada à Geografia dos alimentos1incutidos na cultura local. Nessa investigação surgiram várias indagações de forma recorrente, como porexemplo: Quais são os alimentos identitários, aqui entendidos como tradicionais/artesanais/culturais,demandados pela população de Goiânia? Como o mercado consumidor legitima e cotiza para manterviva a produção dos alimentos identitários? Em que medida um alimento identitário/tradicional pode serconsiderado como um componente da territorialidade por grupos familiares urbanos para suamanutenção e reprodução social na metrópole?

Na busca das respostas para estas perquisições, utilizamos os seguintes procedimentosmetodológicos: revisão bibliográfica com a leitura de teses, dissertações, artigos; entrevista com técnicosdo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – em Goiânia; concomitantementeprocedemos a incursões pela metrópole, visitando feiras livres, fazendo observações in loco,conversando com feirantes e consumidores. Em paralelo às citadas atividades, foram feitas visitas a umaescola municipal, onde foi desenvolvida uma atividade com os discentes das turmas do EJA noturnovinculada à leitura dos alimentos tradicionais consumidos na cidade de Goiânia. Além dessas atividades,foram realizadas visitas aos diferentes espaços construídos para comercialização de comidastradicionais, com destaque para as pamonharias. Na dinâmica da pesquisa constatamos uma fartura dealimentos identitários/tradicionais na culinária do estado de Goiás: as pamonhas, o empadão goiano, ascomidas elaboradas com o pequi, o arroz maria-isabel, a chica doida, o arroz com suã, as quitandas, osdoces caseiros, o melado, a rapadura, entre outros. Esses alimentos compõem o cardápio variado etraduz a relação rural-urbano nas diferentes estações do ano.

Escolhemos a pamonha para esta discussão dada a sua forte espacialização com a presença daspamonharias nos diferentes bairros e sua comercialização nas feiras livres. Também, há o seu consumopor todas as classes sociais, além da diversidade de sabores, formas de produzir, comercializar,representação material e simbólica. Ademais, ela denota uma contraposição à modernização e ao avançoda massificação de alimentos.

Trazer esta discussão sobre estratégia da elaboração e comercialização de alimentos tradicionaissignifica descortinar o sentido dessa produção para a vida de homens e mulheres, identificando asrelações entre eles, o território e os seus desdobramentos com o surgimento de outras atividades. Como nos lembra Almeida (2005, p. 323), trata-se de “interpretar o valor social a elas agregadas”. Pelo expostoe também pelo seu valor socioeconômico, esse alimento destaca-se para uma análise, pois seu consumoalicerça atualmente uma territorialidade utilizada para geração de renda e postos de trabalho no espaçourbano.

Ao analisarem a relevância da produção e consumo dos alimentos identitários como umamanifestação cultural no espaço geográfico, Menezes e Cruz (2017, p. 26) assertam que “essasestratégias ou (re)conversões aliam práticas culturais fundamentadas no saber-fazer difundidolocalmente com o objetivo de gerar renda e permitir que esses grupos ou famílias possam continuar noseu lugar de vida e trabalho”. Trata-se de estratégias que conformam uma territorialidade diante daexpansão do desemprego e das crises econômicas que assolam o país na atualidade. Ao mesmo tempo,ressaltamos que a produção, a comercialização e o consumo da pamonha invertem a crença de que, como domínio dos alimentos industrializados, os produtos tradicionais culturais constituiriam um vestígio de uma sociedade pré-científica e estariam fadados ao desaparecimento.

Constatamos a expansão da produção, as ressignificações e o crescimento nas investidasdirecionadas ao consumo da pamonha. Nessa perspectiva, este artigo baseia-se em uma fundamentaçãocujo referencial é analítico-cultural, mediante a apresentação de elementos que demonstram a vitalidadedesse sistema de produção na contemporaneidade com demanda ascendente no espaço metropolitano.

Além desta introdução, o presente artigo organiza-se em três seções. A segunda seção apresentauma breve revisão da literatura sobre o tema. A terceira traz os principais resultados empíricos dapesquisa realizada em Goiânia. Por fim, a quarta seção coloca em destaque as considerações finais.

CULTURA ALIMENTAR: A APROXIMAÇÃO DOPRODUTOR-CONSUMIDOR

Os alimentos tradicionais persistem no espaço e no tempo e continuam sendo elaborados combase em saberes e fazeres transmitidos por diferentes gerações em determinados territórios. Apesar desuas ressignificações, eles conservam características relacionadas aos sabores, à textura e à cultura local.Assume-se como cultura alimentar “el conjunto de representaciones, de creencias, conocimientos y deprácticas heredadas y/o aprendidas que están asociadas a la alimentación e que son compartidas por losindividuos de una cultura dada o de un grupo social determinado dentro de una cultura” (CONTRERAS;ARNAIZ, 2005, p. 37). Refere-se a alimentos que marcam a geografia e a história dos territórios, postoque se fundamentam na experiência e estão enraizados na tradição familiar. Para Woortmann (2013, p.10), “as práticas culinárias são linguagens dinâmicas, aponta-se que a diferença entre o que éconsiderado culturalmente comível ou não diz respeito também a diferentes épocas, diferentes gerações,numa mesma região e grupo étnico”. Como a cultura tradicional, essa linguagem não é estática, pois elase ressignifica no tempo e no espaço e se revaloriza na modernidade.

Ao avaliar a relação entre o tradicional e o moderno, Delfosse (1995), em análise do contexto francês, pondera que a tradição está vinculada ao consumo de produtos que se mantêm como um fortehábito, pelo fato de ser um produto típico, possuir especialidade local, estar vinculado a uma região deorigem, ser produzido de acordo com técnicas de produção particulares e savoir-faire transmitido degeração em geração. A modernidade estaria associada à tendência de adaptação às novas demandas dosconsumidores, principalmente em relação às mudanças nas práticas alimentares, nas embalagens dosprodutos e inovações técnicas, de modo a produzir novas formas e gostos regulares, facilmentetransportáveis. A autora avalia que a modernização ou a reinvenção é uma necessidade que adapta osprodutos tradicionais, para que eles conquistem novos mercados.

Em consonância com os argumentos de Delfosse (1995), Garcia (2003), analisando os reflexos daglobalização na cultura alimentar no Brasil, considera que, como parte da mundialização da cultura, adefinição da tradição está vinculada a sentidos distintos, tendo em vista que identificamos a tradiçãocomo permanência do passado no presente. Porém, para essa autora existe a tradição da modernidade,com a inserção das reinvenções nos alimentos tradicionais, reciclando os elementos associados àmemória. São alimentos que, revisando objetos, componentes evidenciados no passado, sãoreformulados no presente. Garcia (2003) ainda ressalta que a valorização dos produtos tradicionais estávinculada à dimensão natural, às ruralidades, à pureza e autenticidade.

Nos últimos anos, os estudos vêm mostrando que a alimentação constitui um dos traçosidentitários enraizados de maior solidez. E a preservação dos hábitos de determinados alimentos ébuscada incessantemente pelos migrantes deslocados ou descolados do seu território, que esperam, noconsumo dos produtos, uma forma de aproximação com o seu território.

Alguns migrantes, principalmente do espaço rural, para se tornarem ocupantes dos centrosurbanos, carregam consigo seus hábitos, costumes e necessidades alimentares. Impossibilitados depreparar o seu roçado, criar seus animais e preparar alguns alimentos tradicionais, eles procuram, então,o mercado por esses produtos identitários.

No presente, a compra desses alimentos predomina, visto que esses migrantes não produzem maiso seu próprio alimento. Ao tornarem-se históricos, permanece o significado dos alimentos produzidosem seu cotidiano, o que concorre para seu reconhecimento e a demanda por produtos similares e de procedência. Desterritorializados do seu ambiente rural, os migrantes buscam conservar o consumo dosalimentos tradicionais calcados sobre as formas originais, mas adquirindo-os de terceiros. Assim, comtraços novos produzidos no interior das residências por mãos femininas e/ou masculinas, constituem umproduto com valor simbólico semelhante ao que era consumido outrora.

Ao consumirem os alimentos tradicionais, é comum reportarem-se às lembranças do passado, aosmomentos em que degustavam esses alimentos juntamente com os familiares, em festas rurais nosterritórios em diferentes temporalidades. Raffestin (2003) denominará esse território recordado pelosmigrantes de “território de referência”, referindo-se àquele espaço que está distante atualmente doespaço em que o indivíduo viveu, de modo que, ao adquirir produtos desse território, a sua identidadeestará nutrida, fortalecida.

Menezes (2013) afirma que o registro familiar da comida é memória de aromas e gostos dainfância, transmitido por diferentes gerações. Conforme Mintz (2001), os alimentos estão associados aopassado daqueles que os consomem, e as técnicas utilizadas para elaborar, servir e consumir osalimentos são variadas, indicadoras de suas próprias histórias. Menezes e Cruz (2017, p. 25) corroboram com as discussões do autor e aludem que o preparo e os modos de servir os alimentos desvelamhistórias, expressões culturais tradicionais “características de cada comunidade ou sociedade e tambémrevelam inter-relações não apenas entre os indivíduos, mas também entre eles e o espaço onde estãoinseridos nas diferentes sociedades e temporalidades”. Nessas histórias, as representações em torno daspráticas de obtenção, preparo e consumo de alimentos auxiliam na construção e na manutenção deidentidade dos grupos sociais e são essenciais em um contexto de mundialização de alimentos e depráticas culturais. Muchnick (2004) considera que o valor simbólico dos alimentos está relacionado àconstrução de identidades coletivas e individuais.

As pesquisas associadas ao processo de revalorização da produção tradicional evidenciam aaproximação entre produtores e consumidores. Há um movimento crescente dos consumidores em buscade alimentos produzidos na escala local, vinculados à tradição. Isto posto, observa-se que nos espaçosurbanos a construção da comercialização desses alimentos ditos tradicionais, nos circuitos curtos,estreita a produção e o consumo, constituindo uma alternativa fundamental para fortalecer os gruposfamiliares nos territórios rural e urbano. Dessa forma, expandem-se nos espaços urbanos práticasalimentares tradicionais que se fundamentam nos saberes e fazeres criados por grupos familiares comoalternativas de sobrevivência.

Não obstante, nos momentos de crise econômica e financeira o desemprego assola. Diante disso,uma das atividades evidenciadas em expansão é a produção de alimentos, inseridos no mercado informalcom a comercialização de produtos in natura e a elaboração daqueles vinculados à tradição e identidadeterritorial.

Essa elaboração transcorre nos circuitos curtos, como as feiras, por meio da produção in loco ouda comercialização do alimento feito nas residências. Para Peiss e Schneider (2020, p. 178), as feiras, osgrupos de consumo, a aquisição direta na propriedade e a venda de alimentos em barracas na beira daestrada pelos agricultores constituem mercados de proximidade, que são alicerçados em “uma relaçãoface a face entre produtores e consumidores que interagem em um espaço físico geograficamentelimitado [...], de forma que há um fluxo direto do alimento entre o espaço de produção e o consumo”.Esses mercados de proximidade são legitimados pela demanda dos consumidores urbanos pelosalimentos tradicionais e estimulam a busca e a criação de alternativas de trabalho diante das dificuldadesde inserção no mercado formal, como afiançaram Menezes (2009) e Cruz (2012).

As estratégias de elaboração e comercialização dos alimentos tradicionais nos remetem àsdiscussões feitas por Certeau (1994), ao abordar acerca das artes de fazer, das táticas e estratégiascriadas pelos habitantes que produzem suas marcas nas cidades, instituindo práticas cotidianas no uso doespaço público. Não obstante, a produção dos alimentos identitários/tradicionais, fortemente alicerçadapela demanda urbana, pressupõe a busca e a criação de alternativas de trabalho perante as dificuldadesde inserção no mercado formal, apoiando-se nas artes de fazer.

A configuração do espaço de comercialização nas feiras, conforme Schneider (2016), tem umpapel importante nas transações econômicas no mercado informal. Vale assinalar que as relações nesseespaço estão fundamentadas, principalmente, no uso do dinheiro líquido, o que é indispensável para areprodução social dos grupos familiares no circuito inferior da economia urbana, como discutido por Santos (2004). Entretanto, observa-se o avanço do uso do cartão de crédito, a despeito das rejeiçõesrelatadas nas discussões elaboradas pelo autor.

A cultura alimentar espraiada no espaço urbano, com suas histórias, simbolismos, tradição eressignificação, vem sendo reapropriada e legitimada pelos consumidores. Examinar a territorialidade daprodução de alimentos identitários, como o caso da pamonha, permite refletir a relevância daconformação de uma estratégia com vistas à reprodução social de grupos familiares.

DA TRADIÇÃO À RESSIGNIFICAÇÃO: DEMANDADOS ALIMENTOS IDENTITÁRIOS NOS ESPAÇOS DAMETRÓPOLE

Arrais (2013, p. 20) assevera que “Goiânia nasceu da conjunção de fatores regionais e nacionaisdo segundo quartel do século XX, fatores esses ligados à disputa das elites regionais, apropriada por umdiscurso de ocupação das áreas ‘vazias’ do Oeste brasileiro”. O processo de modernização agrícola apartir da década de 1960 contribuiu para a aceleração da migração e consequentemente da urbanização,transformando a cidade em uma metrópole populosa, centralizadora de renda e oportunidade de emprego (ARRAIS, 2013).

No último censo populacional (IBGE, 2010) foram contabilizados em Goiânia 1.302.001habitantes. Com uma densidade demográfica de 1.776,74 hab./km², de acordo com o IBGE, a populaçãoestimada de 2019 corresponde a 1.516.113 habitantes, o que denota o espraiamento da metrópole. Nosestudos sobre a cidade de Goiânia, Chaveiro (2001, p. 239) esclarece que a “cidade pertence ao ‘nó’ darede dos negócios do país”, porém assevera que a tradição rural não foi eliminada. As transformaçõesafetaram os valores tradicionais presentificados nas práticas socioculturais da população de Goiânia,todavia, os costumes tradicionais ainda são detectados. Borges (2013, p. 32) ressalta:

[..] a cidade se expandiu, adquiriu características e problemas de uma metrópole, mas alguns hábitosconsiderados tradicionais surgidos no início da cidade permaneceram nas práticas dos goianienses e foram seadaptando às mudanças econômicas, sociais e culturais trazidas pela modernidade.

Segundo o autor, foram sendo incorporados novos valores, que refletiram nas modificações dealguns costumes. Contudo, tais costumes considerados tradicionais não foram totalmente erodidos oueliminados.

Dentre os diferentes costumes preservados, desponta o consumo dos alimentos tradicionais quenão se prende exclusivamente à necessidade, mas à sociabilidade, à cultura, às crenças e aos hábitosarraigados nos grupos sociais. Ao analisarmos a relação entre os alimentos tradicionais e o território, épertinente abordá-los como expressão da cultura, evidenciada nas práticas sociais e no saber fazerherdado pelos homens e mulheres.

É o caso da pamonha. Considerada como um alimento tradicional nas regiões brasileiras, apamonha remete às festas da colheita na região Nordeste, consumida prioritariamente nas festas juninas.Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, esse alimento está atrelado igualmente às festividades da colheita,porém no Centro-Oeste seu consumo já espraiou para além do período das festas juninas.

No estado de Goiás, havia uma data especial para a produção da pamonha. Trata das pamonhadas,que consistiam em encontro ou reunião que envolvia/envolve membros familiares, amigos, vizinhos,permeado por laços de amizade, sociabilidade. Todos compartilhavam a elaboração do alimento. Esseseventos eram, e ainda são, um momento especial, festivo, desejado e esperado no ano, de regozijo epartilha, que acontece em uma casa predefinida, na roça ou nas fazendas. Barbosa (2015, p. 133) assimdefine esse momento:

Pamonhadas são uma espécie de comunhão ritual familiar (e para amigos e vizinhos mais íntimos), em quetodo o processo de produção da pamonha (massa cozida à base de milho verde, enformada numa trouxa feitada própria palha do milho [...]) tem suas funções divididas segundo o gênero, idade e hierarquia dentro deuma família.

O autor relata os diversos tipos de recheios e a incrementação da pamonha com a ressignificaçãoda receita: o alimento é encontrado na versão doce e salgada, assada e frita.

Esse alimento era e ainda é produzido no espaço rural, nos momentos de congratulaçõesfamiliares, sobretudo no início da colheita do milho. Embora os homens participassem das pamonhadas,as mulheres foram protagonistas e extremamente importantes no sentido da preservação de gostos,paladares e costumes culinários. Conta-nos Ortêncio (1967, p. 3):

Esse alimento era e ainda é produzido no espaço rural, nos momentos de congratulaçõesfamiliares, sobretudo no início da colheita do milho. Embora os homens participassem das pamonhadas,as mulheres foram protagonistas e extremamente importantes no sentido da preservação de gostos,paladares e costumes culinários. Conta-nos Ortêncio (1967, p. 3):

O processo de modernização do campo, sobretudo com o agronegócio, que resultou nas migraçõese impulsionou o crescimento das cidades, particularmente da metrópole goiana, desencadeou osurgimento dessa estratégia de reprodução no espaço urbano. Entretanto, na cidade as dificuldades paraelaborar as diversas etapas de produção, relacionadas por Ortêncio (1967), em decorrência da escassezdo tempo, estimulam a demanda pelo alimento tradicional e impulsionam grupos familiares a produzir ecomercializar essa iguaria.

De modo semelhante às farinhadas estudadas por Menezes (2013), realizadas no espaço ruralsergipano para elaboração dos beijus, a pamonha era programada pela família como um momentoespecial, tendo o alimento valor de uso. Na cidade, os beijus tradicionais ressaltados nas pesquisascitadas anteriormente e, nesse caso, a pamonha passam a ser produzidos por grupos familiares, comovalor de troca comercializada sob diferentes formas.

A tradição das pamonhadas ainda ocorre no rural. No espaço metropolitano, elas tornam-seescassas, conforme já explicado. Contudo, nas feiras livres urbanas de Goiânia tornou-se uma prática ocomércio da massa e palha do milho para os que desejam fazer uma pamonhada na sua própriaresidência. Contrapondo-se à lógica da redução do milho nas cercanias metropolitanas, o consumo dapamonha permanece e mesmo aumenta com a compra desse produto nos estabelecimentos comerciais,nas feiras, ou ao se adquirir o produto em veículos que cruzam os bairros, setores e logradouros públicosrecorrendo a alto-falantes para divulgar e comercializar a iguaria.

As pamonharias estão assentadas nos diferentes tipos de bairros e são frequentadas pelas distintasclasses sociais. Nos bairros de classe média e alta, os estabelecimentos são sofisticados e o alimentoapresenta um valor diferenciado, mais elevado; já nos bairros populares, simplifica-se o recheio e opreço das (Figura 1). Logo, as reuniões para a produção da pamonha são substituídas pelos encontrosnesses espaços especializados para o consumo do alimento.


Figura 1
Espacialização Das Pamonharias Em Goiânia - 2020

Foram identificados 130 estabelecimentos comerciais no espaço urbano de Goiânia. Entretanto,esses números alteram-se diante das circunstâncias. Além desses pontos de vendas identificados nasredes sociais, dos quais cerca de 15% do total foram visitados, foi constatado que inúmeras lanchonetescomercializam esse alimento. A tabela 1 indica as pamonharias nos bairros e setores. Também ficounotório que vários pontos comerciais dispõem de estabelecimentos comerciais conformando pequenasredes com até três pamonharias localizadas em diferentes espaços da cidade. Esta característica estárelacionada aos estabelecimentos cujos alimentos alcançam uma elevada reputação e procura pelosconsumidores.


Tabela 1
Pamonharias Em Goiânia 2020
Google Earth (2020)

Nesses estabelecimentos comerciais, evidencia-se a ressignificação da pamonha no que dizrespeito à diversidade de sabores – pamonhas salgadas recheadas com queijo – e as pamonhas que formaressignificadas ou reinventadas, como pamonha à moda, de frango, frango com catupiry, com linguiça epimenta. As pamonhas tradicionais são recheadas com carne de sol desfiada, queijo, pimenta-bode echeiro-verde, além do tipo recheada com jiló e linguiça, entre outras variações. Encontram-se também apamonha doce, a pamonha assada de sal e a doce, chica-bacana, que não é enrolada na palha e éelaborada com a massa de milho verde, carne de sol desfiada, queijo de minas em cubos, azeitona emolho de tomate.

Essas alterações nos remetem às discussões feitas por Giard (2003, p. 212), ao referir que “oshábitos alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância,em que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegriade um instante e convir às circunstâncias”. Enfim, essa cultura alimentar não está engessada, uma vezque constatamos alterações com a inserção de novos ingredientes, impulsionados pela demanda domercado consumidor que estimula, assim como pelos grupos familiares, que criam novos produtos paraatrair a clientela.

Para Certeau (1994), a materialização da realidade se concretiza na invenção do cotidiano porconjuntos de reinterpretações, criações, reações, conformismos que regem o acontecer diário da vida emsociedade. No caso da sociedade goiana, constatamos nesses estabelecimentos comerciais a composiçãoe a recriação dos alimentos tradicionais, onde, além da pamonha, são vendidos a chica doida, o curau, obolinho de milho frito com linguiça de porco, caldos e sopa de milho com frango e queijo catupiry, entreoutros derivados do milho.

O valor das pamonhas é variado. O preço da pamonha doce e da de sal, consideradas tradicionais,por utilizarem uma pequena quantidade de ingredientes – milho, sal ou açúcar, óleo ou banha, queijo – émais baixo, variando de R$ 4,00 a R$ 8,00. Também tem a ver com o bairro, o porte do estabelecimentocomercial e a clientela que frequenta o espaço. Ou seja, quando o estabelecimento comercial estálocalizado em bairro de classe média, ou esteja localizado em bairro mais afastado, mas tenha umaelevada reputação e atraí uma clientela fixa, o valor da pamonha é mais elevado. Enquanto isso, nosbairros periféricos e nas pamonharias de estrutura mais simples, o tamanho da pamonha é menor e ovalor é inferior ao cobrado pelos estabelecimentos afamados e situados nos bairros de classe média. Àmedida que são acrescentados outros ingredientes como a carne do sol, linguiça, entre outros, o valor dapamonha eleva-se.

Nesses estabelecimentos comerciais, a produção desse derivado do milho é semelhante à de outrora vivenciada nos espaços rurais. Observa-se a divisão de trabalho, cujas tarefas são distintas. Cabeaos homens o corte do milho, a limpeza e ralação das espigas nos raladores elétricos. De sua parte, asmulheres são encarregadas de preparar a massa e enformar a pamonha. Por vezes, também foramencontrados homens atuando na preparação da massa.

Além dos locais de venda fixos, os estabelecimentos comerciais, conforme já assinalamos,vendem a iguaria pronta para o consumo. Este comércio foi identificado em 80% das feiras livres dosbairros e setores da metrópole, assim como nas feiras especiais. Estão registradas, na PrefeituraMunicipal de Goiânia, cerca de 122 feiras livres e 35 feiras especiais (PMG, 2020). Esses espaços, maisque um território de compra e venda, constituem um lugar de encontros e burburinho. Borges (2013, p.10), em sua pesquisa sobre as feiras de Goiânia, assinala: “Espalhadas por quase todos os bairros deGoiânia, as feiras revezam todos os dias da semana, comercializam diversos produtos [...], recebemfrequentadores de todas as classes sociais, são espaços democráticos, cheios de aromas, cores e saborestípicos da cultura popular”.

Ademais, fora a comercialização da pamonha pronta e a do milho ralado, também nos chamouatenção nas andanças pelas feiras livres o aroma exalado na preparação dessa iguaria derivada do milho.É preparada em dez feiras por três grupos familiares, sendo que dois destes são da mesma família – tia esobrinhos. As artes de fazer as pamonhas e comercializar no recinto das feiras se dão há mais de 25 anos.

Nas barracas montadas, geralmente uma família coordena os trabalhos e envolve o casal, irmãos,filhos, sobrinhos, além de outros prestadores de serviço. O número de pessoas que trabalha naelaboração da pamonha varia de uma feira a outra. Observa-se o predomínio das mulheres, de formasemelhante às pamonhadas, sobretudo no tocante à elaboração da massa. Porém, igualmente àspamonharias, se dá a inserção de homens e, em alguns casos, responsabilizando-se pelo controle da partefinanceira.

Inicia-se o trabalho de produção do alimento no dia anterior ao da feira, com a organização domilho, dos inúmeros vasilhames, instrumentos de trabalho, tendo em vista a montagem de uma cozinhano espaço público, além de mesas e cadeiras para os consumidores se servirem do alimento no local.Evidencia-se também o papel das redes informais na distribuição do milho a esses grupos familiares,diretamente dos agricultores, majoritariamente dos municípios de Inhumas, Catalão, entre outros que otransportam até a metrópole. No processo de produção desse alimento, há uma divisão do trabalhoenvolvendo os homens e mulheres: “Cada um tem sua função e não pode parar, porque a procura dapamonha é grande, fazemos várias tachadas de pamonha por dia” (M.J., feira no Setor Oeste, set. 2019).

Os homens são responsáveis pelo corte do milho, pela separação da palha para a embalagem daspamonhas, bem como pela seleção das espigas que estejam em bom estado para a produção. Além disso,são eles que ralam, de forma manual, o milho já limpo, sem palha e o cabelo. Para tanto, utilizamraladores elétricos, diferentemente das pamonhadas tradicionais no espaço rural, nas quais seempregavam ralos artesanais.

O trabalho é contínuo. Ele tem início às 6 ou 7 horas da manhã e em algumas feiras se encerra nocomeço da noite. As mulheres atuam na elaboração da iguaria, com o preparo da massa e dos diferentesrecheios, desde as tradicionais pamonhas doce e a de sal, a pamonha à moda recheada com diversosprodutos mencionados como cebola, cheiro-verde, alho, linguiça, lombo de porco. Esses também sãofeitos semelhantemente aos demais sabores produzidos nas pamonharias. Refere-se a produtos que sãoelaborados levando-se em conta o saber-fazer e a preferência dos consumidores por questões subjetivas,expressas no sabor e no aroma exalados pelas iguarias. A quantidade de panelas/tachos nos fogõesindustriais revela a diversidade de sabores elaborados em determinado local de venda (Figura 2).

O processo de elaboração da pamonha pode ser acompanhado pelos consumidores. Estes, aochegarem à barraca, por vezes ficam à espera do cozimento do alimento, preparado assim que éadquirido, feito no lugar. Como a demanda é elevada, os consumidores, comumente aguardam oscomerciantes, que anotam a ordem dos pedidos de acordo com a hora da chegada do cliente emcadernos, até que a tachada seja cozida.


Figura 2
Produção de pamonhas na feira do Setor Coimbra, Goiânia, 2019. Foto: S. S. M. Menezes.Pesquisa de campo. Feira do Setor Coimbra , out. 2019.

As palhas são previamente aferventadas em caldeirões, para não quebrarem no momento dacolocação da massa no “copo” feito com a palha do milho pelas mulheres. Essa embalagem tradicional éencontrada em diversos estados brasileiros na região Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

De modo sequenciado, as mulheres incluem a fatia de queijo cortado e a massa pronta no copofeito com a palha, amarram a embalagem com elásticos de borracha, para diferenciar pelas cores assalgadas e as doces. Os elásticos são fervidos, para não alterarem o sabor. Em seguida, as pamonhas sãopostas nas panelas de alumínio com água fervente para cozinhar durante 40 a 60 minutos (Figura 3).


Figura 3
Inserção da massa no copo de palha da pamonha, Goiânia, 2019.
S. S. M. Menezes.Pesquisa de campo. Feira do Setor Coimbra, out. 2019.

Os saberes e fazeres elaborados e reelaborados pelos grupos familiares responsáveis pelaprodução da pamonha recordam-nos a assertiva de Almeida (2017, p. 8), ao ressaltar que “os modoscomo preparam e como servem os alimentos – além das maneiras como nunca seriam preparados –revelam os modos mediante os quais os indivíduos de diferentes sociedades projetam suas identidades”.Embora a autora não tenha direcionada a discussão à produção desse alimento, constatamos essa afirmativa nas formas de preparar e servir e nas relações com as demandas dos consumidores.

Igualmente às pamonharias, nos pontos de vendas nas feiras são comercializados outros produtosderivados, além da massa e a palha do milho verde ralado. Vários consumidores consomem a pamonhano local e outros adquirem a massa e a palha para elaborarem a iguaria na residência. Assim narrou umaconsumidora: “Eu gosto de comer a pamonha aqui, mas levo a massa para casa porque as feirasacontecem a cada oito dias, assim eu tenho como fazer a minha pamonha, e nesse tempo frio, dá maisvontade de comer pamonha. Choveu, comemos pamonha” (J.V., feira no Setor Oeste, out. 2019).

Esses espaços da pamonha na feira, também, se constituem em ponto de encontro. Nelesreúnem-se homens, mulheres, jovens, adolescentes. Muitos dos consumidores têm sua origem no rural ebuscam manter as tradições dos seus lugares. Essas pessoas demonstram que retêm fortes vínculos eprocuram conservar os traços das culturas, das tradições e das histórias particulares da infância,adolescência. Em conversas, eles ressaltam o passado arraigado na memória, porém não se iludem como retorno.

Os consumidores desses produtos derivados do milho pertencem às mais diferentes classessociais. Constatamos, outrossim, que muitos consumidores, ao provarem os alimentos, revelam alembrança com fatos passados, revelando traços da sua identidade.

Nas narrativas dos consumidores nas feiras livres, eles valorizam o alimento e sua origem rural,revitalizando, desse modo, fatos marcantes. E ao consumirem o produto, reportam-se ao território dereferência:

Todos os domingos venho comer minha pamonha aqui. Às vezes venho com familiares e ficamos recordandoas pamonhadas na roça com os meus parentes. Quando estou com pressa, compro e levo para casa, mas achomelhor comer aqui, porque fico lembrando das pamonhadas que fazíamos junto com a minha família. Esse éum tempo que não volta, porque todos moram hoje aqui na cidade e não tem mais roça. (A.S., feira do SetorPedro Ludovico, Goiânia, jul. 2019).

Esses locais são emblemáticos e as dinâmicas que neles se processam exprimem resistências queexpressam formas próprias de territorialidades, estratégias de reprodução no espaço urbanofundamentadas na potencialidade dos saberes, fazeres e na cultura local. Embora se trate de lugaresmarcados por relações econômicas, são perceptíveis as relações de confiança, entre os feirantes e osconsumidores, que legitimam o consumo de alimentos identitários/tradicionais, artesanais, uma vez queesses alimentos são comercializados sem certificação, sem rótulos, sem selos de identificação, semmarcas reconhecidas (Figura 4).


Figura 4
Pamonhas prontas para a venda e consumo.
S. S. M. Menezes. Pesquisa de campo. Feirado setor Pedro Ludovico, mar. 2020.

Ainda na metrópole é possível encontrar outra situação inusitada: “Está passando o carro dapamonha! Olha a pamonha!!...”. Afora o comércio ambulante realizado em carros e motocicletas, hátambém o comércio que se utiliza de bicicletas na venda desse alimento.

Os vendedores ambulantes geralmente residem nos municípios que conformam a regiãometropolitana de Goiânia. Eles deslocam-se diariamente para os bairros da capital com o objetivo decomercializar esse alimento. Esse comércio, inserido na economia informal, apresenta característicastípicas dos circuitos curtos de comercialização (SABOURIN, 2009) e proporciona os principaisrendimentos da família.

Os homens comerciantes nos veículos móveis ressaltam que as crises e o desemprego incitaram acriação dessa alternativa de trabalho com vistas à reprodução social na cidade. Para tanto, juntamentecom suas esposas rememoram o saber-fazer transmitido pelos membros familiares, aprendido nainfância e adolescência, e buscam nessa atividade a renda para o sustento familiar.

Eles narram o estabelecimento de laços de amizade com os consumidores, a formação da clientelanos bairros, e alegam que consumidores de todas as idades demandam a iguaria. Todavia, são os idososos fregueses mais regulares, por conta das dificuldades de deslocamento e das condições de saúde. Umidoso ressaltou: “Eu gosto de comprar a pamonha no carro, porque facilita pra nós, que não tenho comoir à feira comprar. Além disso, é nova, quentinha. Eu já compro há muito tempo desse vendedor” (G.S.,nov. 2019). Essa narrativa remete-nos às discussões elaboradas por Cruz, Krone e Menasche (2014), ao enfatizarem que a confiança está embasada nas relações sociais locais e nas redes de interconhecimento,quando há essa relação entre quem produz e quem consome, por meio do contato direto. Como podemosnotar, essas práticas estão fundamentadas nas relações de solidariedade e confiança existentes entrecomerciantes e consumidores.

Muitos desses comerciantes estão conectados com as tecnologias de informação. Por exemplo,utilizam as redes sociais, o whatsapp, o sistema delivery, para facilitarem as vendas. “Os clientestelefonam, enviam mensagens com os pedidos e eu já levo separadamente cada encomenda” (J.S., dez.2019). Tal feito denota a capacidade de adaptação e a busca de estratégias para manter os vínculos eestreitar os laços com os consumidores, tendo em vista sua dependência a essa alternativa para asobrevivência.

Ainda em atividade realizada em uma escola municipal de Goiânia com os alunos da Educação deJovens e Adultos – EJA –, no período noturno, refletimos com eles sobre a produção, consumo emudança dos hábitos alimentares. Retornamos à escola em um segundo momento, para que elesapresentassem uma atividade vinculada a um alimento identitário que os representasse. A pamonhaapareceu dentre os alimentos citados, com os diferentes sabores, o saber-fazer da produção, a relaçãocultural com o alimento, as formas de comercialização e de consumo.

Atualmente, é comum a realização de pamonhadas nas igrejas, por exemplo, aos sábados à tarde.Os fundos arrecadados com as vendas aos fiéis são utilizados para obras na estrutura da igreja ou paraoutros fins.

Diante da dinâmica e representatividade cultural desse alimento tradicional em Goiânia,realizamos uma consulta ao IPHAN-Goiânia para verificar a existência de algum processo de registo emcurso do conhecimento e do modo de fazer da pamonha, por se tratar de um elemento da identidadecultural. Vale o registro de que o Decreto nº 3.551, de agosto de 2000, instituiu o Registro de BensCulturais de Natureza Imaterial (BRASIL, 2000). Com isso, por exemplo, os saberes, o conhecimento eo modo de fazer o queijo minas artesanal e o acarajé das baianas foram registrados como PatrimônioCultural Imaterial do Brasil.

Em entrevista com técnicos do IPHAN, foi asseverada a não existência de processo paralevantamento histórico dos conhecimentos e modo de fazer do alimento ou o denominado InventárioNacional de Referências Culturais – INRC. Até o momento não foi feita nenhuma solicitação por algumgrupo proponente do registro do conhecimento, do modo de fazer do alimento. Também foi ressaltadopor uma técnica que, embora seja realmente uma manifestação cultural da cidade e do estado, essealimento é produzido, comercializado e consumido sem restrições. Em face disso, os produtores nãoperceberam, até o momento, a necessidade de lutar para o registro da iguaria.

CONCLUSÃO

O objetivo deste estudo foi analisar a temática da produção e o consumo de pamonhas como umacultura enraizada que criou uma territorialidade alicerçada, contemporaneamente, na reprodução social eeconômica de grupos familiares no espaço urbano. Assim, este artigo descreveu a produção depamonhas, os espaços formais e as barracas nas feiras, além do comércio ambulante. Enfatizou aimportância que o fazer pamonha tem quando as pamonhadas, na contemporaneidade, são realizadas nasigrejas com o objetivo de angariar recursos para obras assistenciais e estruturais. Ao apresentarmos asentrevistas com os consumidores, evidenciamos que a pamonha constitui um dos alimentos de suaidentidade, por se tratar de uma iguaria que é enraizada no seu modo de vida.

Os consumidores fazem parte das diversas classes sociais. Eles frequentam estabelecimentoscomerciais, as feiras livres, mas também adquirem a pamonha comercializada pelos ambulantes queresidem nas regiões limítrofes da cidade ou mesmo de cidades da região metropolitana. Existe aconformação de relações de proximidade e laços e amizades entre os produtores e consumidores. Emsíntese, os consumidores buscam no consumo da pamonha, considerada um alimento identitário, arelação saudosista que conduz parte dos consumidores à valorização de produtos impregnados deruralidade e associados à imagem do território.

Estudar os alimentos torna-se um meio eficaz para o entendimento da identidade, modos de vida eda cultura de determinados grupos sociais. Investigar a respeito dessa temática permite apontar arelevância dos alimentos identitários/tradicionais como produtores de uma territorialidade na geração depostos de trabalho e renda no território da metrópole. Diante do avanço dos produtos massificados,ultraprocessados, ratificar a dinâmica da produção de pamonhas de forma artesanal na metrópoleconfirma uma contracorrente alicerçada na demanda do mercado consumidor que a legitima. Este éfundamentado na confiança e nas relações de proximidade e que contribui para a reprodução de gruposfamiliares. Portanto, a biocultura da pamonha constitui um alimento identitário eivado de valor cultural,social e econômico.

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Notes

1 Pesquisa desenvolvida como Estágio de Pós-Doutorado no Laboter / IESA / UFG, bolsaPNPD-CAPES 2019, no período de junho de 2019 a maio de 2020, sob orientação professora Dra. MariaGeralda de Almeida.
2 Os consumidores denominam essa feira de Feira do Moreira, pelo fato de estar próxima aoHipermercado Moreira, localizado nas imediações da avenida Perimetral.


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