Artículos de reflexión

Jogo e Cultura: A sedimentação e a essência do humano

Game and Culture: The sedimentation and the essence of the human

Adailton Alves da Silva [1]
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, Brasil
João Severino Filho [2]
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Brasil

Jogo e Cultura: A sedimentação e a essência do humano

Revista Latinoamericana de Etnomatemática, vol. 10, núm. 3, pp. 201-215, 2017

Universidad de Nariño

Recepção: 23 Março 2017

Aprovação: 07 Julho 2017

Resumo: No presente artigo, buscamos abordar o jogo como elemento de sedimentação cultural dos grupos sociais distintos. Para isso, trazemos situações de dois grupos sociais (Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante), de modo que possamos refletir sobre o seu caráter multidimensional. Acreditamos que, na perspectiva cultural, os jogos assumem uma função dinâmica de controle social, estabelecimento da ordem, além de proporcionar o divertimento, a alegria, o prazer, a beleza e a liberdade para os indivíduos pertencentes aos grupos sociais, e que, tudo isso contribui para a definição e essência do humano. Os dados que aqui discutimos/refletimos foram coletados durante nossa interação com esses povos indígenas in loco, durante a pesquisa de doutoramento, cujos cadernos de campo foram revisitados para a produção desse artigo, nos proporcionando novos olhares e outras indagações. Neste processo de interação, diálogo, e observações a vertente antropológica da Etnomatemática foi a base para o ententendimento/compreenção da maneira como os jogos estão/são sistematizados e difundidos nesse contexto. Palavas-chave: Povo Apyãwa; Povo A’uwẽ; Etnomatemática.

Abstract: In this article, we seek to approach the game as an element of cultural sedimentation of different social groups. For this, we bring situations of two social groups (Apyãwa / Tapirapé and A’uwẽ / Xavante), so that we can reflect on their multidimensional character. We believe that, from a cultural perspective, games assume a dynamic function of social control, establishment of order, besides providing fun, joy, pleasure, beauty and freedom for individuals belonging to social groups, and that everything This contributes to the definition and essence of the human. The data we discuss / reflect on were collected during our interaction with these indigenous peoples in loco during the doctoral research, whose field books were revisited to produce this article, giving us new looks and other inquiries. In this process of interaction, dialogue, and observations the anthropological aspect of Ethnomathematics was the basis for the understanding /understanding of the way games are systematized and diffused in this context.

Keywords: Apyãwa People, A’uwẽ People, Ethnomathematics.

1. INTRODUÇÃO

Buscar entender/compreender como o jogo está sistematizado dentro dos grupos sociais é uma tarefa complexa, tendo em vista a pluralidade de valores, regras, estratégias e crenças próprias dos indivíduos e/ou grupos que se faz presente nesses contextos.

Dentro dessa complexidade, segundo Huizinga (2012), a espécie humana nos seus primórdios e devida suas características recebeu a designação de Homo sapiens. Mas com o passar dos tempos, chegou-se à conclusão que não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor. Com isso nossa espécie passou a ser designada como Homo faber.

Faber, embora seja uma definição do ser humano, talvez, mais adequada que sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada, visto que pode servir para designar um grande número de animais. É dentro dessa incompletude dos termos que este mesmo autor verifica uma terceira definição, o Homo ludens, que se verifica tanto na vida humana como na vida animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos.

Neste artigo, a vertente na qual buscaremos nos pautar se refere a essa última, Homo ludens. Sendo assim, a temática sobre a qual nos propomos a discutir apresenta o jogo como elemento de sedimentação cultural dos grupos sociais. Para isso, trazemos situações dos ritos e cerimônias de dois grupos sociais, os Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante, de modo que possamos refletir à luz da Etnomatemática sobre o seu caráter lúdico, dinâmico e multidimensional, pois entendemos que a ludicidade no contexto social desses dois povos é uma das principais âncoras no processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos (D’Ambrosio, 1990).

Os Apyãwa/Tapirapé, pertencentes ao tronco linguístico Tupi-Guarani, habitam 10 aldeias que constitui duas Áreas Indígenas: Tapirapé/Karajá, homologada em 1983; e Urubu Branco, homologada em 1998, ambas situadas na Região do Médio Araguaia, nordeste do Estado de Mato Grosso. De acordo com informações obtidas pelos Apyãwa/Tapirapé, a partir de um levantamento efetuado no final do ano de 2013, a população é de aproximadamente 1000 habitantes (Severino-Filho, 2015).

Já os A’uwẽ/Xavante pertencem à família linguística Jê, do tronco Macro-Jê e habitam nove Terras Indígenas em diversos municípios do Estado de Mato Grosso3, mas os dados contidos neste artigo se refere especificamente ao povo A’uwẽ/Xavante pertence à Terra Indígena Pimentel Barbosa constituída pelas aldeias Pimentel Barbosa, Ẽtẽnhiritipa, Wederã, Tanguro, Reata, Atséréré, Caçula, Canoa, Etezai’tipré e Belém - localizadas nos municípios de Canarana-MT e Ribeirão Cascalheira-MT, com uma população de aproximadamente 1600 pessoas (Silva, 2013).

Os procedimentos e métodos utilizados na parte empírica da investigação se deram basicamente através de inserção/interação/convivências sistemática e alternada da dinâmica do está lá na aldeia e está aqui no espaço acadêmico (Geertz, 1989). Dessa maneira, as informações foram coletadas, na maior parte, por meio de observação e participação direta e indireta nos eventos realizados no dia a dia das comunidades, como por exemplo, as expedições de caçadas, reuniões cerimoniais, conversas informais com os anciões, visitas aos núcleos domésticos, coleta de depoimentos etc. Nesse processo, as experiências observadas foram discutidas e refletidas ainda no coletivo dos participantes com o intuito de sanar qualquer dúvida ou equívoco de algum dado ou informação que por ventura persistisse. Enquanto que os registros foram feitas em diário de campo, fotografias e filmagens.

Nesse processo de observação do está lá na aldeia e está aqui na academia, Clifford (2002) vai nos dizer que:

[...] a observação participante serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o interior e o exterior dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos, através da empatia; de outro, dá um passa atrás, para situar esses significados em contextos mais amplos (Clifford, 2002; p. 32 - 34).

Os dados que aqui discutimos/refletimos foram coletados durante a pesquisa de campo de doutoramento4, cujos cadernos de campo foram revisitados para a produção desse artigo, os quais nos proporcionaram novos olhares e outras indagações.

Vale ressaltar que as análises e discussões presentes neste artigo são relativas às novas leituras e interpretações das notas do caderno de campo não discutidas diretamente nos trabalhos de doutoramento, mas que se mostraram relevantes para a comunidade acadêmica interessada em pesquisas no âmbito da etnomatemática, tendo em vista que o jogo é um elemento cultural especifico de cada povo e, consequentemente, um importante mecanismo de difusão de saberes daquele povo e que julgamos importante e oportuno serem aqui compartilhadas.

Sendo assim, nas reflexões que propomos, optamos por não restringir a definição de jogo apenas às atividades em que há algum tipo de disputa ou embate quando, geralmente, busca-se a diferenciação quanto à força, velocidade, agilidade, destreza, criatividade, unidade e outros aspectos, entre os indivíduos ou grupos participantes.

Nesse sentido, buscamos abordar o tema numa perspectiva que, no nosso entendimento, tem sido secundarizada durante o processo histórico da prática dos jogos pelas sociedades ocidentais, ou seja, o jogo como elemento de sedimentação da cultura dos grupos sociais. Contudo, não é nosso objetivo, aqui neste artigo, discutir todas as nuances da relação Jogo e Cultura, mas sim, colocar em discussão algumas questões concebidas a partir de uma lógica diferente da visão ocidental sobre essa relação, e que são tidas como fios condutores na tecelagem da malha cultural dos povos Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante.

1.1 Jogo e Cultura – um caminho entrecruzado

Viver socialmente em um determinado grupo é passar, passar é ritualizar (Gennep, 1977) e ritualizar é jogar, ou seja, é essa dinâmica da passagem que constitui os jogos responsáveis pela pulsão da vida, que, segundo D’Ambrosio (2001),

[...] todas as espécies vivas, a questão da sobrevivência é resolvida por comportamentos de respostas imediatas, aqui e agora, elaborada sobre o real e recorrendo a experiências prévias [conhecimento] do indivíduo e da espécie [incorporada no código genético]. Na espécie humana, a questão da sobrevivência é acompanhada da transcendência: o “aqui e agora” é ampliado para o “onde e quando”. A espécie humana transcende espaço e tempo para além do imediato e do sensível. O presente se prolonga para o passado e o futuro, e o sensível se ampliam para o remoto. O ser humano age em função de sua capacidade sensorial, que responde ao material (artefatos), e de sua imaginação, muitas vezes chamada criatividade, que responde ao abstrato (mentefatos) (D’Ambrosio, 2001; p. 27-28).

É nessa dinâmica que os grupos sociais também sistematizam e difundem seus saberes e saberes. Saberes estes que, segundo D’Ambrósio (1999, p. 99), “possibilita cada indivíduo do grupo a atingir seu potencial criativo, assim como estimular e facilitar o seu bem comum, com a finalidade de viver em sociedade e de exercer a cidadania”.

Nessa perspectiva podemos dizer que o jogo é um fenômeno extremamente cultural, pois, é no jogo, e através dele, que os grupos sociais surgem, desenvolvem e se estabelecem. Nessa perspectiva podemos dizer que o jogo faz parte das atividades mais antigas do ser humano, assim como a linguagem e o mito. Com a linguagem, pode-se circular entre o que é material ou imaterial e o pensado, enquanto que o jogo se encontra entre um e outro e reveste a vida de um caráter lúdico. Assim também ocorre com o mito e suas “invenções”, em que a fantasia passeia entre os limites da brincadeira e da seriedade (Huizinga, 2012).

Podemos dizer ainda que o jogo possui um caráter multidimensional e sendo assim, ele assume uma função dinâmica de controle social, estabelecimento da ordem, além de proporcionar o divertimento, a alegria, o prazer, a beleza e a liberdade para os indivíduos pertencentes aos grupos sociais, e que, tudo isso contribui para a definição e essência do humano. Nele não se pode encontrar um fundamento racional, e sua existência “[...] não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou qualquer concepção de universo” (Huizinga, 2012; p. 06).

Todos os jogos ocupam um tempo e um espaço próprio. Isso quer dizer que eles exigem isolamento e limitação. Eles se iniciam e, em um determinado momento, acabam. Enquanto ocorre, “[...] tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação” (Huizinga, 2012; p. 12). Esse mesmo autor considera ainda que esses espaços e tempos revela que o lugar do jogo é sagrado, pois aí as pessoas se dedicam a uma atividade especial, como por exemplo, os ritos e cerimônias.

Desse modo, podemos dizer que o ato de jogar faz parte de uma esfera que não é a mesma que chamamos de realidade. Entretanto, não se pode afirmar que sejam atividades desprovidas de características importantes para a vida dita real. O ato de jogar não é apenas uma utilidade social, justamente porque envolve características como a liberdade, a ordem e a estética e esses elementos se entrecruzam, formando uma tecelagem cultural e criando condições favoráveis para que seja possível a pulsão cultural humana. Nesse entrecruzamento é notório que tanto a liberdade como a ordem encontram-se juntas nos jogos. A princípio, pode-se pensar que uma não é compatível com a outra.

No entanto, poderíamos fazer o seguinte questionamento: existe liberdade na ausência de ordem? Poderíamos dizer que sim, pois a ordem nos jogos é consentida e não imposta. Sendo assim, a disciplina que se encontra presente entre os que jogam é por eles mesmos instituída, porque é aceita e exercida por todos. Nessa medida, a liberdade, quando é imaginada ingenuamente como possibilidade de realizar tudo, não é liberdade, pois deve ser pensada como um atributo vivido socialmente. Verifica-se, então, que a ordem e a liberdade podem não se encontrar em campos opostos ou contraditórios.

Nesse cenário, entendemos que o conjunto de ritos e cerimônias dos povos indígenas, especificamente os Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante, se constituem num jogo e aqui nos propomos a fazer uma verticalização a partir de aspectos culturais desses dois povos.

2. OS APYÃWA/TAPIRAPÉ E O ATO DE RITUALIZAR/JOGAR

O povo Apyãwa/Tapirapé se organiza socialmente dividido em duas metades, Araxã e Wyraxiga, denominadas por eles de Wyrã (aves). Essas metades são compostas de três subgrupos aos quais pertencem os homens, segundo a fase de vida em que se encontra. Os grupos das duas metades se rivalizam e competem entre si em quase todas as atividades, ritualísticas ou laborais, das quais pudemos participar.

No ritual Tawã (Cara Grande), por exemplo, realizado como forma de agradar os espíritos dos guerreiros inimigos, mortos em batalhas históricas contra os Apyãwa/Tapirapé, é realizada uma grande caçada de porco selvagem.

A caçada ao porcão é uma atividade que reúne um grande número de homens, em diferentes fases de vida, os quais saem em jornada pelo Território Apyãwa, em busca dessa espécie de porco selvagem, para obtenção da carne, que será oferecida aos espíritos, em cerimônia ritualística e, posteriormente, consumida pela comunidade.

As equipes de caça são organizadas entre membros das duas metades Wyrã. Durante toda a jornada, a carne obtida nas incursões diárias das equipes de caçadores é preparada e preservada, separadamente pelo ancião “chefe do ritual”, pertencente a cada uma das metades. Ao final de cada dia, bem como, ao retornarem à aldeia, a diferença entre quantidade de animais abatidos é sempre enfatizada e festejada pelos vencedores.

Essa característica de competição pôde ser percebida, também, fortemente, durante as atividades de construção da Takãra (Casa ritualística dos homens), nas disputas entre os entoadores dos cantos ritualísticos, na comparação entre as indumentárias e pinturas corpóreas. Em todas as disputas, há o predomínio do respeito, da nobreza entre os adversários, na solidariedade prestada aos grupos opostos, na ênfase dada a instrução dos mais jovens e à sua importância para a sociedade.

Nesse sentido, não há inimizade nas disputas. A rivalidade, acreditamos, tem a importante função de incentivar os grupos a manter vivas as práticas culturais e melhorar suas atuações nas atividades produtivas. Os jogos, assim como a reciprocidade das oferendas de alimentos entre os grupos, são atividades intrínsecas dos rituais Apyãwa/Tapirapé.

Há, também, as atividades que simulam e remontam suas batalhas com os povos inimigos do passado. O Ritual Xaapiãwa (Ver Figura 01), por exemplo, tem como principal atividade, a simulação de uma guerra, em que cada participante usa sua flecha com as pontas cuidadosamente protegidas por uma esfera de cera de abelha, para que não ocorram acidentes durante a disputa.

A atividade consiste em arremessar as flechas sem a ajuda do arco, apenas com a força dos braços, e tentar acertar um elemento do grupo adversário.

 Simulação de uma Batalha no Ritual Xaapiãwa.
Figura 1.
Simulação de uma Batalha no Ritual Xaapiãwa.
Arquivo pessoal de Kamajrao - Agosto/2008.

De acordo com as regras dessa batalha, os pares se desafiam e lançam alternadamente as flechas. Se ambos acertarem o alvo, a disputa continua até que apenas um acerte. Quando ambos erram, a disputa da dupla se encerra com empate. Outra disputa que ocorre como diversão, logo após a realização do Xaapiãwa, é a luta entre os jovens de grupos opostos, em que vence quem derrubar o adversário.

A organização da sociedade dividida nas metades Wyrã, bem como a subdivisão dessas metades em grupos menores tem o papel fundamental na cultura Apyãwa/Tapirapé, pois permite a existência dos jogos.

Os jogos, além de propiciar o aperfeiçoamento das ações, por conta do estímulo à superação de si e do outro, atua na instrução dos mais jovens e na difusão dos mitos. Mediatizados pela visão de mundo expressa nos rituais, representam um elemento crucial na sobrevivência e atualização de uma cultura. Sua prática é, evidentemente, pública, espontânea e inclusiva, e sua contemplação, gratuita.

3. OS A’UWẼ/XAVANTE E O ATO DE RITUALIZAR/JOGAR

O indivíduo A’uwẽ/Xavante, no curso de sua vida passa por sucessivas etapas e, consequentemente, sucessivos graus de ocupação e responsabilidades. Todo esse processo de abrangência e mutação cultural é acompanhado de atos especiais, como os ritos e as cerimônias, que por sua vez, são/estão sedimentadas e interligadas aos mitos, ao sagrado.

São ritos e cerimônias que constituem uma sequência rigorosa de atividades, envolvendo gestos, movimentos, palavras e artefatos, desempenhados em local segregado, e destinados a influenciar entidades ou forças espirituais em favor dos objetivos ou interesses dos atores. Para isso, dentro da organização social A’uwẽ/Xavante o povo dispõe de pelo menos dois grandes eventos cerimoniais com estas finalidades, o Darini e Danhono.

O Darini (o poder de sonhar) é um ritual em que são celebrados e difundidos saberes relacionados aos segredos, os mistérios, o sagrado que constituem a religião A’uwẽ/Xavante, que pelo caminho dos sonhos e da emoção, cada cerimônia difunde os valores da e para a vida. De maneira geral podemos dizer que esse ritual tem como finalidade maior difundir poderes a serem apropriados de modo imediato, vindos diretamente de outro mundo, e que proporcionam aos indivíduos o poder de sonhar, de acesso ao outro mundo e apropriar-se diretamente de outros poderes. Enquanto que o Danhono (dormir) é um ritual constituído de um conjunto de celebrações, ritos menores, provas de vários gêneros que tem como objetivo maior introduzir os adolescentes (Wapté) e as moças (Azarudu) A’uwẽ/Xavante na vida adulta, na vida social e os preparar para novas responsabilidades. Esse ritual busca difundir conhecimentos já substanciados, mediados e apropriados pelos A’uwẽ/Xavante, exceto os cantos que se sonham, pois são apropriados por um grupo de idade que os transmite a outro (Maybury-Lewis, 1984; Lopes da Silva, 1986; Giaccaria e Salvatore, 2001).

Todo esse processo de formação e autoformação do indivíduo são regulados e vigiados pela comunidade, observada as regras do jogo estabelecido entre os dois clãs, Öwawwẽ e Poreza’õno e dos 08 (oito) grupos de idades, que são: Ẽtẽpá (pedra grande), Tirówa (flecha de taquara, carrapato), Nozö’u (milho), Abare’u (pequi), Sadaró (mormaço), Anhanarówa (fezes), Hötörã (peixe pequeno) e Ai’rere (gabiroba). Estes grupos etários são formados a partir da passagem cíclica e alternada dos Wapté (adolescentes) pelo Hö (casa dos homens). É a própria pulsão da vida que exige e proporciona o jogo das passagens sucessivas de uma situação social à outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas que inicia com o nascimento e segue. A cada momento desse percurso acontecem os jogos/cerimônias que marcam os ritos que fazem o indivíduo passar de uma situação determinada à outra situação igualmente determinada (Gennep, 1977).

Vale ressaltar aqui, segundo Gennep (1977), que essas mudanças podem ser classificadas em três categorias: ritos de passagem, ritos de agregação e ritos de separação.

Mas nesse trabalho, apesar de enxergar essas categorias, não vamos classificar tais ritos, pois entendemos que essas categorias não possuem uma separação nítida, ou seja, o que pode ser considerado num determinado momento como rito de passagem, em outro, pode ser considerado como rito de separação ou de agregação e sendo assim, um rito pode pertencer a mais de uma categoria, podendo variar somente na sua intensidade e no tempo e espaço da sua celebração.

Na cultura do povo A’uwẽ/Xavante o período de passagem da fase de adolescente para a fase adulta pode ser considerado o mais intenso, pois o ainda adolescente passa por vários ritos e, consequentemente, as respectivas cerimônias, num período de tempo de aproximadamente cinco anos. Mas é no final desse período, com aproximadamente seis meses de intensas atividades, que acontecem as celebrações dos ritos e cerimônias que constitui o Danhono.

Nessa perspectiva, podemos dizer que o Danhono é o principal balizador do processo de formação e autoformação dos adolescentes na cultura do povo A’uwẽ/Xavante, principalmente na passagem de Wapté para Ritéiwa (para os meninos) e Azarudu para Adabá (para as meninas). É um rito constituído de várias cerimônias que são preparadas e executadas por etapas. Ao vivenciar cada uma dessas cerimônias o/a adolescente assume conscientemente sua essencial condição de ser A’uwẽ entre os A’uwẽ. Cada uma dessas cerimônias é cuidadosamente elaborada e planejada pelos anciãos. A elaboração dos artefatos especialmente confeccionados para as cerimônias tem a marca dos detentores daquela técnica e, cada detalhe do instrumento possui e ressalta o seu significado quando está sendo usado nas cerimônias que constituem o Danhono.

Mas, para que possamos entender e compreender a função de cada rito e cada cerimônia que constitui o Danhono faz-se necessário olhar para o seu conjunto e a sequência das celebrações das cerimônias que, sistematicamente, produzem outros momentos significativos, pois a descrição e a interpretação/análises das cerimônias separadamente são sempre parciais e, por vezes, enganadoras.

A observação sistemática do momento anterior e do momento posterior ao da sua celebração é fundamental para o entendimento da cerimônia e do ritual. Sendo assim, a seguir descreveremos, na ordem de sua realização, as principais cerimônias A’uwẽ/Xavante que constituem o processo de formação e autoformação dos rapazes e das moças pertencentes ao grupo de idade Nozö’u, que são: Ó’ió - luta dos adolescentes; a entrada dos Wapté no Hö; Wate’wa – bateção de água dos adolescentes; Daporedzapi - furação de orelha dos adolescentes; cerimônia do Uiwedezadarã (pau do lábio preto – Ver figura 02); Ubdöwarã – a grande corrida de tora de buriti (Ver figura 02) realizada depois da furação de orelha; Wa’í – luta dos Wapté; Noni – corrida dos Wapté; Du – a grande caçada de fogo; Wamnhoro – as máscaras cerimoniais; os Tebe – os adoradores da lua; os Pahöri’wa – os adoradores do sol; Wanorῖdobê – a dança dos padrinhos e madrinhas; Sa’uri; Ĩsirãrĩ – revelação das meninas prometidas aos Wapté; e a apresentação do novo grupo de idade.

Adolescentes A’uwẽ/Xavante durante as cerimônias Uiwedezadarã (pau da ponta preta) e Ubdöwarã – corrida de tora de buriti.
Figura 2.
Adolescentes A’uwẽ/Xavante durante as cerimônias Uiwedezadarã (pau da ponta preta) e Ubdöwarã – corrida de tora de buriti.
Arquivo Pessoal de Adailton Alves da Silva (Julho, 2010).

Esses jogos/cerimônias, além de propiciar o aperfeiçoamento das ações, por conta do estímulo à superação de si e do outro, proporciona também a capacidade de agir dentro de um sistema social altamente elaborado, possuidor de delicadas percepções associadas aos sonhos, aos cantos, à dança, ao ritual, as cerimônias, à arte, à pintura corporal e, principalmente, a uma postura aguerrida diante dos obstáculos, que responda às sutis incitações do mítico que reside na estabilidade de consciência de cada indivíduo, tudo isso torna o indivíduo um A’uwẽ Uptabi – povo verdadeiro (Silva, 2013).

Vale ressaltar que esse conjunto de ritos e cerimônias são apenas aquelas que nos tornaram explícitas e permitidas de registrar e socializar durante o trabalho de campo, mas isso não significa que são somente estas que constituem o rito de passagem da fase de adolescente para a fase adulta do rapaz e da moça A’uwẽ/Xavante, pois, temos convicção da existência de outras cerimônias, que por questão de ética não serão apresentadas neste trabalho.

Enfim, as atitudes de interações, as teias, as tramas e os nexos do jogo no interior da cultura de um povo produzem em esforço e processos reflexivos uma vertente muito importante na perspectiva da sedimentação cultural dos grupos sociais, que é a difusão dos seus saberes e fazeres. É através dos jogos, mas não somente, que os princípios, valores, concepção de mundo etc. são difundido aos mais jovens (D’Ambrosio, 2001). Ou seja, através dos jogos os mais velhos se comunicam com os jovens, crianças e adultos, desenvolvem suas múltiplas linguagens, organizam seus pensamentos, estabelece/restabelece regras, tomam decisões, compreendem limites e desenvolvem a socialização e a interação com o grupo. Consequentemente, também é através dos jogos que as crianças e jovens ampliam os conhecimentos sobre si, sobre o mundo e sobre tudo que está ao seu redor e todo esse aprendizado prepara as crianças para o futuro, onde terão de enfrentar desafios semelhantes aos enfrentados nos jogos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revisitar os cadernos de campo da pesquisa de doutoramento nos proporcionou apurar um novo olhar para reconhecer os saberes e fazeres diversos que constituem os ritos e cerimônias dos Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante, como elementos determinantes do jogo que sedimenta a essência do humano. Ao mesmo tempo em que apuramos nossos olhares, constituímos, ainda, uma evidência de que o conhecimento é essencialmente deflagrado a partir da realidade e da pulsão de vivência e sobrevivência do humano (D’Ambrósio, 2004). Durante esse processo, tivemos a oportunidade de vivenciar e reconhecer diversos saberes e fazeres construídos a partir da realidade, nas experiências individuais e coletivas, repletas de interferências sociais, culturais e econômicas, resultantes da visão de mundo do grupo social onde estão inseridos os sujeitos.

Diante de tudo que vimos até aqui, principalmente no que diz respeito à maneira como o jogo está imbricado nos ritos e cerimônias, não podemos olhar para esse processo como sendo apenas uma passagem de uma fase da vida para outra, ou seja, a passagem da fase de adolescente para a fase adulto. Se olhássemos dessa forma estariamos imprimindo um sentido e uma notação apenas temporal e não processual.

Apesar desse processo ter sido caracterizado como “rito de passagem” pela antropologia, ele não pode ser entendido como sinônimo de algo semelhante ao recebimento de uma credencial em um determinado momento da vida lhe autorizando a passar para outra fase da vida. No contexto sociocultural desses povos, Apyãwa/Tapirapé A’uwẽ/Xavante, passar para uma nova fase da vida é um processo em que a preocupação principal é fazer com que os jovens se tornemA’uwẽ entre os A’uwẽ,dentro desse jogo da vida. Dessa forma, podemos dizer que esse jogo é um processo dinâmico e constante.

Portanto, a compreensão que temos é que toda essa complexidade e o dinâmico jogo cultural desses povos é o que constitui a sua pedagogia, pois, apesar de serem intensificadas somente no final do período da adolescencia dos jovens, há também as etapas que antecedem e as que sucedem esse período, especificamente, e tudo isso é o que proporciona a ideia de ciclicidade espiralada do jogo, enquanto elemento de sidementação desse processo.

Sendo assim, e diante de todas essas práticas socioeducativas desses povos, um ser Apyãwa/Tapirapé ou A’uwẽ/Xavante não pode ser definido apenas por suas habilidades inatas, nem apenas por seu comportamento no interior da comunidade, mas sim, pelo elo entre o individual e o social, na forma em que o primeiro é transformado no segundo e suas potencialidades genéticas, focalizadas em suas atuações específicas (Geertz, 1989).

Trata-se de uma dinâmica em que buscam inserir todos/todas as pessoas no processo socioeducativo. A idade, o gênero e as condições físicas dos indivíduos, não são fatores que limitam e/ou impossibilitam a inserção das pessoas nesse processo, ou que os impossibilitem de exercer suas funções e responsabilidades inerentes à sua faixa etária.

Os jogos praticados pelas sociedades indígenas com as quais estudamos não atribuem lugares muito diferentes para os jogadores e a comunidade que os assiste e com eles contribuem de diferentes formas. Em diversos momentos, durante o processo, esses papéis se confundem, quando a comunidade também se sente parte do jogo e o jogador, por sua vez, contempla os cenários que se formam. Não há, dentre eles, quem não possa ser jogador ou plateia. Todos estão em campo, espontâneo e gratuito.

5. REFERÊNCIAS

Clifford, J. L. (2002). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.

D’Ambrosio, U. (2004). Um enfoque transdisciplinar à educação e à História da Matemática. In M. V. Bicudo, M Borba, (1ª Ed.). Educação matemática: pesquisa em movimento (pp. 13-29). São Paulo: Cortez.

D’Ambrosio, U. (2001). Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Editora Autêntica.

D’Ambrosio, U. (1999). A História da Matemática: questões historiográficas e políticas e reflexões na educação matemática. In M. V. Bicudo, (Org.). Pesquisa em Educação Matemática: concepções & perspectivas (pp. 97-115). (Seminários & debates). São Paulo: Editora Unesp.

D’Ambrosio, U. (1990). Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. Série Fundamentos. Vol. 74: São Paulo-SP. Editora Ática.

Geertz, Clifford. (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro-RJ. Editora LTC.

Gennep, A. V. (1977). Os Ritos de Passagem – estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, ordenação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc.. Tradução de Ferreira, Mariano. Coleção Antropologia Vol. 11 - Petrópolis, Editora Vozes.

Giaccaria e Salvatore (2001). A iniciação Xavante à vida adulta (Danhono). Universidade Católica DOM BOSCO, Campo grande. Editora UCDB.

Huizinga, J. (2012). Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva.

Lopes Da Silva, A. (1986). Nomes e Amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. São Paulo: FFLCH – USP.

Maybury – Lewis, D. (1984). A Sociedade Xavante. – Rio de Janeiro – RJ. Livraria Francisco Alves Editora.

Severino-Filho, J. (2015). Marcadores de Tempo Apyãwa: a solidariedade entre os povos e o ambiente que habitam. (Tese de Doutorado). UNESP/Instituto de Geociência e Ciências Exata / Educação Matemática. Rio Claro – SP.

Silva, A. A. (2013). Os Artefatos e Mentefatos nos Ritos e Cerimônias do Danhono: por dentro do octógono sociocultural A’uwẽ/Xavante. (Tese de Doutorado). UNESP/Instituto de Geociência e Ciências Exata / Educação Matemática. Rio Claro

Notas

[3] Terras Indígenas Xavante: Areões (Areões I e Areões II) - Nova Nazaré-MT; Chão Preto – Campinápolis- MT; Maraiwatsede - São Félix do Araguaia-MT, Bom Jesus do Araguaia-MT e Alto da Boa Vista-MT; Marechal Rondon – Paranatinga-MT; Parabubure – Nova Xavantina-MT e Campinápolis-MT; Pimentel Barbosa – Ribeirão Cascalheira-MT e Canarana-MT; Sangradouro/Volta Grande – Poxoréu-MT, Novo São Joaquim-MT e General Carneiro-MT; São Marcos – Barra do Garças-MT; e Ubawawe – Santo Antônia do Leste-MT e vivem em mais de 190 aldeias, somando aproximadamente 15.315 pessoas (Silva, 2013).
[4] SILVA, Adailton Alves da. Os Artefatos e Mentefatos nos Ritos e Cerimônias do Danhono: por dentro do octógono sociocultural A’uwẽ/Xavante. Rio Claro – SP. IGCE – Educação Matemática, 2013 (Tese de Doutorado). SEVERINO-FILHO, João. Marcadores de Tempo Apyãwa:a solidariedade entre os povos e o ambiente que habitam. Rio Claro – SP. IGCE – Educação Matemática, 2015 (Tese de Doutorado). Ambas orientadas por Ubiratan D’Ambrosio.

Autor notes

[1] Doutor em Educação Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Rio Claro, Professor do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECM), Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, Campus Universitário Dep. Estadual Renè Barbour – Barra do Bugres-MT. E-mail: adailtonbbg@unemat.br
[2] Doutor em Educação Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Rio Claro. Docente da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Barra do Bugres-MT, Mato Grosso, Brasil. E-mail: joaofilho@unemat.br
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