Resumo: O programa etnomatemática possui várias características comuns com a metodologia científica dos programas de pesquisa Lakatosiano. Os principais componentes desses programas de pesquisa são o núcleo firme3, as heurísticas e o cinturão protetor de hipóteses auxiliares que buscam facilitar a análise de fenômenos empíricos que ocorrem no cotidiano. Nesse direcionamento, um dos principais objetivos do programa etnomatemática é o desenvolvimento e o fortalecimento de teorias que compõem o seu cinturão protetor, ampliando-o e tornando-o mais preciso com relação às predições4 empíricas que são realizadas em relação ao seu núcleo firme, que pode ser considerado como um conjunto de teorias irrefutáveis que possibilita a tomada de decisões metodológicas. Nesse contexto, o principal objetivo deste artigo teórico é provocar discussões sobre a etnomatemática como um programa de pesquisa Lakatosiano. Assim, os resultados desse estudo teórico mostram que existem aproximações entre os programas de pesquisas científicas lakatosianos com o programa etnomatemática.
Palavras-chave:EtnomatemáticaEtnomatemática,Programa de PesquisaPrograma de Pesquisa,LakatosLakatos,Núcleo FirmeNúcleo Firme,Cinturão ProtetorCinturão Protetor,HeurísticasHeurísticas.
Abstract: Ethnomathematics has several features in common with scientific methodologies found in Lakatosian research programs. The main components of these research programs are the hard core, heuristics, and the protective belt composed by auxiliary hypothesis, which seeks to facilitate the use of empirical phenomena. In this context, the main goal of an ethnomathematics program is the development and strengthening of theories that make up its belt, expanding it and making it more accurate in respect to empirical predictions that are made from its hard core. At the same time, the core of an ethnomathematics program is a set of irrefutable theories enabling methodological decisions making. The main objective of this theoretical article is to provoke further discussions in relation to ethnomathematics as a Lakatosian research program. The results of this theoretical study show that there are approximations between lakatosian scientific research programs with ethnomathematics program.
Keywords: Ethnomathematics, Research Program, Lakatos, Hard Core, Protective Belt, Heuristics.
Título Artículos de investigación
Deconstrucción del diseño, un análisis a la base del diseño de las artesanías de Usiacurí
Ethnomathematics as a Lakatosian Scientific Research Program
Recepção: 13 Julho 2017
Aprovação: 03 Setembro 2018
O caráter dinâmico expresso na ideia de ciclo de conhecimento e na noção de dinamismo cultural sugere a denominação do Programa Etnomatemática, que se originou na busca de entender o conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de grupos culturais distintos, como, por exemplo, as culturas colonizadas e as minorias marginalizadas (D’Ambrosio, 1985). Essa abordagem possibilitou que as pesquisas em etnomatemática investigassem o fazer/saber matemático desenvolvido por esses membros, sem estarem condicionadas aos construtos da matemática acadêmica.
Nessa dinâmica cultural, as manifestações matemáticas são contextualizadas por meio da compreensão dos saberes e fazeres matemáticos que constituem o conhecimento culturalmente construído pelos membros de um determinado grupo cultural (Rosa & Orey, 2006). Dessa maneira, a etnomatemática pode ser considerada como um programa de pesquisa que busca as interpretações dialógicas das ideias, dos procedimentos e das práticas matemáticas desenvolvidas localmente em distintas realidades culturais.
Nesse direcionamento, C (2005) argumenta que, para Lakatos (1970), os programas de pesquisa articulam uma perspectiva histórica sobre as comunidades que compartilham a produção de conhecimento, podendo ser considerados como articuladores de uma epistemologia local.
Esse contexto propiciou o entendimento da etnomatemática como um programa de pesquisa científica direcionado para o estudo das ideias matemáticas que foram desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos (etno) através da história, com a utilização de técnicas e procedimentos apropriados (ticas) para resolver os problemas relacionados com um determinado contexto cultural (matema) visando entender, compreender e explicar a própria realidade (D’Ambrosio, 1990).
Por exemplo, ao trabalharem com medidas, cálculos, classificações, inferências, comparações e modelagem, os membros de culturais distintos desenvolvem uma linguagem própria (jargões específicos) para matematizarem as próprias ideias, procedimentos e práticas.
Consequentemente, os membros desses grupos desenvolvem habilidades e competências matemáticas para traduzirem, por meio de técnicas, os acontecimentos dos meios natural, social, ambiental, político e econômico, diante das próprias necessidades, para que possam entender e explicar os fenômenos que ocorrem nesses ambientes (Rosa & Orey, 2003).
Assim, o programa etnomatemática é uma teoria do conhecimento que incorpora as concepções de ciência e matemática dos membros dos grupos culturais que foram marginalizados e excluídos no decorrer da história (D’Ambrosio, 1993). De uma maneira geral, de acordo com a tradição epistemológica racionalista, a cultura apenas desempenhou um papel externo na formação do conhecimento matemático (Lakatos, 1978a).
Desse modo, a discussão teórica proposta neste artigo inicia-se com a tentativa de entender a utilização da expressão Programa Etnomatemática ao invés de Etnomatemática. Primeiramente, D’Ambrosio (1990) argumenta que a concepção do programa etnomatemática emergiu do entendimento e da compreensão das ideias, procedimentos e práticas matemáticas relacionadas com as situações-problema enfrentadas no cotidiano dos membros de grupos culturais distintos.
Por conseguinte, de acordo com D’Ambrosio (2005), o programa etnomatemática se originou em um contexto propício para o entendimento do fazer e do saber matemático de grupos culturais marginalizados, que remete à dinâmica da evolução desses saberes e fazeres em contato com os membros de outras culturas. Então, D’Ambrosio (1993) utiliza o termo programa para discutir a proposição de uma base teórica para a etnomatemática, pois a principal razão para essa utilização resulta de sua preocupação com as:
(...) tentativas de se propor uma epistemologia, e, como tal, uma explicação final da Etnomatemática. Ao insistir na denominação Programa Etnomatemática, procuro evidenciar que não se trata de propor uma outra epistemologia, mas sim entender a aventura da espécie humana na busca de conhecimento e na adoção de comportamentos (D’Ambrosio, 2005, p. 17).
Em concordância com essa asserção, a partir da leitura de Lakatos, D’Ambrosio (1990) compreendeu que a base teórica da etnomatemática estava relacionada com os programas científicos que se desenvolviam em meio às diferentes correntes filosóficas para a matemática utilizadas nas duas últimas décadas.
Por exemplo, Lakatos (1989) evitava a utilização de critérios epistemológicos rígidos por meio da adoção de uma única teoria, pois empregava a dinâmica da metodologia de programas de pesquisas científicas para que pudesse desenvolver uma explicação lógica para compreender o fazer científico.
Dessa maneira, Lakatos (1989) trabalhava com a matemática, que era considerada, tradicionalmente, como um campo de conhecimento estático, propondo a heurística de seu programa de pesquisa científica para compreender o movimento dinâmico do desenvolvimento dos conceitos matemáticos.
Então, D’Ambrosio “encontrou inspiração para o conceito de Programa Etnomatemática no que se refere à dinamicidade do conceito de programa de Lakatos” (Miarka, 2011, p. 92-93) para mostrar que os membros de diferentes grupos culturais produzem matemática, o enunciado da etnomatemática como um programa de pesquisa lakatosiano era necessário para suprir as demandas científicas daquela época.
É importante ressaltar que desde a década de 1990, a etnomatemática é entendida como um programa de pesquisa lakatosiano, no entanto, sem que maiores explicações sobre essa consideração fossem elaboradas. Nesse sentido, é necessário discutir sobre a compreensão desenvolvida por Lakatos (1970) com relação aos programas de pesquisas científicas, bem como as suas ressonâncias com o programa etnomatemática.
Dessa maneira, as discussões sobre essas ressonâncias podem contribuir com o debate teórico contemporâneo em torno da etnomatemática, principalmente, como um programa de pesquisa científica.
Contudo, esse debate vincula-se a uma questão de maior do que um simples debate sobre a epistemologia do programa etnomatemática, pois as “críticas às propostas epistemológicas que polarizaram a filosofia da ciência dos anos 70 em torno de Popper e Kuhn e que colocaram em campos estranhamente opostos a Lakatos e Feyerabend tiveram influência em meu interesse pela etnomatemática” (D’Ambrosio, 2001, p. 17).
Historicamente, a relatividade dos conceitos matemáticos e científicos foi debatida de maneiras diferentes. Por exemplo, Popper entendia o desenvolvimento da ciência como um processo que se aproxima da realidade platônica, pois as ideias científicas deveriam ser criticadas e, assim, melhoradas. Esse processo denominado de falibilidade crítica foi retomado, posteriormente, por Lakatos. Ernest (1991) argumenta sobre a posição que fusão das filosofias construtivistas sociais com o falibilismo crítico de Lakatos.
A contribuição de Lakatos (1978b) para a filosofia foi mostrar que a matemática é considerada como uma ciência na medida em que as suas afirmações são elaboradas para serem refutadas. Nesse sentido, no falibilismo, a matemática pode ser descrita como quasi- empírica, pois esse processo está relacionado com a maneira como as afirmações matemáticas são criticadas. De acordo com Lakatos, o entendimento da matemática como uma ciência quasi-empírica se desenvolve a partir da resolução de problemas.
Assim, as “soluções (provisórias) para os problemas passam por testes (refutações) e reformulações. O veículo para o crescimento é a crítica, concorrência entre teorias, troca de problemas. Não há acumulação de verdades eternas” (Cardoso, 1997, p. 83). No quasi- empirismo, Lakatos (1976) estabeleceu uma conexão entre o conhecimento e os indivíduos, propondo o desenvolvimento de uma teoria do conhecimento com base na atuação deses indivíduos.
Em concordância com D’Ambrosio (2011), o desenvolvimento do programa etnomatemática está relacionado com o pensamento de Lakatos, que criticou as propostas epistemológicas que polarizaram a filosofia da ciência da década de 1970 com relação à Popper e Khun. Por exemplo, em uma entrevista conduzida por Miarka (2011), D’Ambrosio argumenta que:
(...) essa angústia de dizer o que é etnomatemática, ficar preso a isso começou a me incomodar e aí eu vi o Lakatos que também tentou se livrar desse negócio do Kuhn e do Popper (...). A gente tá mudando sempre, como eu mudei. Comecei pensando, não posso negar que um ponto de partida foi a matemática comparada com outras culturas. Bom, aí eu quero me livrar disso. Bom, tô tentando me livrar e provavelmente acabo a minha vida sem conseguir me livrar totalmente disso. Por isso eu chamo um programa, e nesse programa eu me inspirei no Lakatos porque o programa carrega nele esse negócio de dinâmica. Não é uma coisa terminada. Ele não te dá uma teoria final. (...) por isso que eu falei no Lakatos em alguns trabalhos (Miarka, 2011, p. 65).
Então, por estar incomodado em relação ao desenvolvimento de uma descrição para a etnomatemática, D’Ambrosio (1993) encontrou em Lakatos uma opção (Miarka, 2011) científica e metodológica para programas de pesquisas científicas. Assim, a etnomatemática se constitui em um programa de investigação historiográfica consoante com a perspectiva lakatosiana (D’Ambrosio, 2005).
Consequentemente, para evitar uma aproximação com as posições filosóficas de Popper e Kuhn, D’Ambrosio (2011) afirma que tem um posicionamento próximo a Lakatos ao argumentar que a etnomatemática é um programa de pesquisa que apresenta uma alternativa para a ação pedagógica.
Similarmente, D’Ambrosio (2004) argumenta que a adoção do termo programa está relacionada com a crítica que Lakatos elaborou sobre os enfoques de Popper e Kuhn para a filosofia das ciências. Nesse sentido, uma das primeiras vertentes do pensamento etnomatemático que corresponde às ideias de D’Ambrosio (1990) considera a etnomatemática como um programa de pesquisa lakatosiana (Knijnik, 1996).
Então, como a concepção de programa de pesquisa científica para Lakatos (1970) também incorporou o reconhecimento da dinâmica cultural, que é essencial para o programa etnomatemática porque é intrínseca para todo conhecimento (D’Ambrosio, 2010), o principal objetivo deste artigo teórico é discutir a etnomatemática como um programa de pesquisa científica lakatosiano.
A partir da proposta denominada de programme por Lakatos (1978a) foi elaborada uma distinção entre teorias de conhecimento passivas e ativistas. De acordo com Moreira e Massoni (2009), as teorias passivas são originadas da observação, como, por exemplo, no empirismo clássico enquanto as teorias ativas pressupõem a utilização da atividade mental. Assim, o conhecimento autêntico está associado às teorias ativas e na noção de que conforme a ciência se desenvolve, diminui o poder da evidência empírica.
Nesse contexto, Lakatos (1978b) compartilhou a tese de Popper e Kuhn de que o conhecimento é socialmente construído. Por conseguinte, D’Ambrosio (1990) argumenta que a etnomatemática pode ser considerada como um programa de pesquisa que estuda a geração, a organização intelectual e social, e a difusão social do conhecimento, englobando o domínio das ciências da cognição, da epistemologia5, da história e da sociologia.
Lakatos (1978b) foi um dos mais influentes filósofos matemáticos falibilistas que argumentou sobre a inexistência de definições ou provas absolutas, finais e sem necessidade de revisão, sendo considerado como um dos principais filósofos das ciências no século XX.
Basicamente, em sua obra, procurou proporcionar um refinamento à abordagem falsificacionista6 popperiana, que o inspirou, mediante a incorporação de conceitos desenvolvidos por Khun, mas sem negar algumas das hipóteses clássicas do falsificacionismo, como, por exemplo, os critérios demarcacionistas7 e a ênfase nas investigações e nos testes empíricos.
A filosofia falibilista se apoia nas ideias de Lakatos (1978a) que repudiou o formalismo matemático. Nesse sentido, a “história da matemática e a lógica do descobrimento, isto é, a filogênese e a ontogênese do pensamento matemático, não se podem desenvolver sem a crítica e rejeição definitiva do formalismo” (Lakatos, 1978a, p. 17). Por exemplo, para Ernest (1991), o falibilismo se refere a uma matemática falível e corrigível, cuja verdade pode ser corrigida e revisada.
Uma das propostas de Lakatos (1978b) foi desafiar o formalismo, uma corrente filosófica que definiu a matemática como uma ciência das demonstrações rigorosas, ou seja, “a matemática, (...), é somente um jogo de deduções lógicas (...) em outros campos, certas teorias podem ser defendidas baseando-se na experiência ou plausibilidade, mas em matemática, diz ele (o formalista) ou temos uma demonstração ou não temos nada” (Davis & Hersh, 1985, p. 381).
Nesse sentido, é importante ressaltar que o:
(...) formalismo desliga a história da matemática da filosofia da matemática, uma vez que, de acordo com o conceito formalista da matemática, não há propriamente história da matemática. (...). O formalismo nega o status de matemática à maioria do que comumente tem sido considerado matemática, e nada pode se dizer sobre o seu progresso (Lakatos, 1978b, p. 14)
Em concordância com essa asserção, Lakatos (1976) considerava a matemática tão falível quanto o conhecimento do mundo externo. Por exemplo, Silva e Moura (2015) argumentam que o cerne da preocupação de Lakatos (1970) era a evolução do conhecimento matemático, que era oportunizado, principalmente, pelas conjecturas informais e provas heurísticas de teorias formalizadas.
Nesse sentido, as conjecturas informais estão relacionadas com o fazer matemático, com a resolução de problemas, com a adaptação dos contextos, com a elaboração de conjecturas e com a sua validação e refutação.
Nesse direcionamento, de acordo com Silva e Moura (2015), Lakatos (1976) argumenta que a matemática é formada por áreas emergentes denominadas de matemática informal que estão em fase de desenvolvimento. Essas áreas emergentes não foram organizadas em sistemas dedutivos rigorosos e nem foram formalizadas para que tenham os resultados apresentados a partir de um conjunto de axiomas explicitamente estabelecidos.
Por meio desse conjunto, cada decisão tomada é simples e mecânica, sendo derivada de um acordo composto por regras de inferência explicitamente determinadas. Para Lakatos (1976), essas regras representam a extinção do verdadeiro pensamento criativo.
Posteriormente, Lakatos (1978b) defendeu a metodologia científica falsificacionista popperiana, empírica e demarcacionista contra os ataques estruturalistas de Kuhn, incorporando, contudo, a noção do agrupamento das teorias científicas em estruturas denominadas de paradigmas kuhnianos para os programas de pesquisas científicas, que são expressões utilizadas por Lakatos para explicar o desenvolvimento da ciência empírica.
A característica fundamental da metodologia de Lakatos (1970) é a introdução da noção de programa de pesquisa científica, que pode ser considerado como uma versão mais detalhada do conceito de paradigma de Kuhn (1962)8.
Especificamente, um programa de pesquisa pode ser concebido como uma série de teorias que o constituem, possuindo características comuns que compartilham. Por exemplo, Moreira e Massoni (2009) apresentam um breve resumo sobre as principais características dos programas de pesquisa de Lakatos (1970):
As teorias científicas devem oferecer indicações sobre as ações que devem ser realizadas ou evitadas.
A ciência avança de acordo com a estruturação das teorias.
Um programa de pesquisa deve sempre respeitar os pressupostos teóricos que norteiam a pesquisa e o núcleo firme.
A heurística negativa está associada (protege) ao núcleo firme, cujos pressupostos teóricos não devem ser modificados.
A heurística positiva está vinculada a um cinturão protetor, que é formado por um conjunto de hipóteses auxiliares contra as quais colidem as refutações e as contrastações.
A heurística positiva mostra como o cinturão protetor pode ser desenvol
A heurística positiva mostra como o cinturão protetor pode ser desenvolvido enquanto a negativa restringe-se às ações que os pesquisadores devem evitar.
As manobras metodológicas que contrariam o núcleo firme devem ser excluídas.
As modificações ou adições nas teorias do cinturão protetor devem ser comprovadas ou testadas de maneira independente.
As hipóteses ad hoc9 devem ser evitadas, pois não são comprovadas de forma independente.
O programa de pesquisa científico pode ser progressivo, quando produzir resultados novos; ou degenerativo (regressivo), quando deixar de produzi-los.
O programa de pesquisa científico também pode ser degenerativo quando não conseguir explicar as suas próprias refutações e as explicações somente ocorrerem por meio de hipóteses ad hoc.
Há uma diferença fundamental entre as hipóteses ad hoc e auxiliares. As hipóteses auxiliares integram o cinturão protetor do programa de pesquisa científica e são refutáveis (testáveis) enquanto as hipóteses ad hoc não possuem essas características.
Um programa de pesquisa deve ser avaliado à medida que progride ou regride (degenera).
Os pesquisadores que modificam o núcleo firme se afastam do programa de pesquisa científica.
É importante ressaltar que os ajustes ad hoc nas teorias auxiliares podem explicar as anomalias que atingem o cinturão protetor dos programas de pesquisas científicas. Esses ajustes podem ser considerados como “uma modificação numa teoria, tal como o acréscimo de um postulado extra ou uma mudança em algum postulado existente, que não tenha conseqüências testáveis, e que já não fossem conseqüências testáveis da teoria não- modificada” (Chalmers, 1993, p. 70).
As teorias auxiliares que são refutadas podem ser substituídas por outras, contudo, Lakatos (1970) argumenta que é importante reforçar o cinturão protetor com teorias auxiliares ad hoc que somente têm o propósito de sustentar esse núcleo.
O núcleo firme é a principal característica que define um programa de pesquisa científica lakatosiano, pois “assume a forma de alguma hipótese teórica muito geral que constitui a base a partir da qual o programa deve se desenvolver” (Chalmers, 1993, p. 113). Esse núcleo consiste em um conjunto de hipóteses teóricas irrefutáveis que os programas de pesquisas científicas devem compartilhar (Lakatos, 1970).
Nesse direcionamento, o núcleo firme é formado pelo conhecimento tácito produzido e acumulado em um determinado programa de pesquisa científica. Assim, as proposições que constituem esse núcleo firme têm um caráter metafísico (Hands, 1993), pois estão relacionadas com questões filosóficas centrais que são utilizadas para descrever a finalidade, os fundamentos, as condições, as leis, a estrutura básica e as causas ou os princípios desse núcleo.
Ao redor do núcleo firme está localizado o cinturão protetor, que é formado pelas hipóteses auxiliares e/ou pelas teorias intermediárias, que podem ser reajustadas periodicamente ou totalmente substituídas para proteger esse núcleo.
Os programas de pesquisa científica também são caracterizados por um conjunto de regras metodológicas, denominadas de heurística, que podem ser consideradas como ferramentas utilizadas para a resolução de problemas, pois:
(...) com o auxílio de técnicas matemáticas sofisticadas, digerem as anomalias10, tornando-as evidências positivas. Por exemplo, se um planeta não se move como deveria, os cientistas Newtonianos verificam as conjecturas concernentes a refração atmosférica, a propagação da luz em tempestades magnéticas e outras centenas de conjecturas que são todas partes do programa. Eles podem inventar um planeta desconhecido para calcular a sua posição, a massa e a velocidade para explicar essas anomalias (Lakatos, 1977, p. 5).
As heurísticas orientam os cientistas na condução de suas investigações, pois são os caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negativa) ou percorridos (heurística positiva) (Lakatos, 1970). Desse modo, as heurísticas podem ser positivas ou negativas.
A heurística positiva é um conjunto de regras metodológicas articuladas que indicam como os pesquisadores podem desenvolver, modificar e/ou alterar as hipóteses e as teorias que compõem o cinturão protetor dos programas de pesquisa científicos, pois visam delinear o seu desenvolvimeno. A heurística positiva auxilia na predição e na resolução dos problemas, buscando assimilar as anomalias para convertê-las em evidências positivas para esses programas (Lakatos, 1970).
A heurística positiva também propicia o desenvolvimento do cinturão protetor de hipóteses auxiliares que tem como objetivo proteger o núcleo firme das refutações. Essa heurística sinaliza quais são as ações que devem ser realizadas pelos pesquisadores para salvaguardá- los de ficarem sem rumo para que possam resolver as anomalias que podem atacar o núcleo firme (Silva & Laburú, 2002).
De acordo com Lakatos, (1970), a heurística negativa é um conjunto de injunções sobre os caminhos de pesquisa que devem ser evitados pelos pesquisadores. Essa heurística assume um papel de proteção que tem como objetivo prevenir que os pressupostos e as proposições do núcleo firme sejam testados, modificados e alterados.
Por exemplo, Silva e Laburú (2002) argumentam que a heurística negativa não impede que os investigadores possam ousar no desenvolvimento de um novo procedimento metodológico, pois somente sinaliza sobre os perigos relacionados com essa opção.
Assim, essa heurística evita que os pesquisadores questionem ou critiquem o núcleo firme de um determinado programa de pesquisa científico. Para Sheppard (2005), as heurísticas negativas são consideradas irrefutáveis pela comunidade, que molda as heurísticas positivas e definem as problemáticas que devem ser discutidas e analisadas.
Como as teorias que compõem o cinturão protetor dos programas de pesquisas científicas podem ser atacadas por anomalias e contraexemplos, a heurística positiva define as estratégias para lidar com esses ataques (Lakatos, 1970).
Assim, para combater essas anomalias, as teorias do cinturão protetor são constantemente modificadas e adaptadas com o objetivo de evitar que as refutações atinjam o núcleo firme para que permaneça intacto e inalterado.
Nesse direcionamento, quando os programas de pesquisa são atacados por algum tipo de anomalia, os pressupostos e proposições do núcleo firme estão imunes aos testes, às falsificações e às refutações, pois as revisões corretivas são direcionadas para as hipóteses auxiliares e teorias intermediárias que compõem o seu cinturão protetor.
Então, em um programa de pesquisa científica, as teorias são elaboradas com o auxílio da heurística positiva por meio do acréscimo de cláusulas adicionais às teorias predecessoras. Dessa maneira, um programa de pesquisa é uma entidade dinâmica, pois envolve, no decorrer do tempo, a descoberta de fatos desconhecidos enquanto novos problemas emergem, requerendo, assim, modificações frequentes nas teorias do cinturão protetor (Lakatos, 1970). A figura 1 mostra o esquema do programa de pesquisa científica Lakatosiano.

Com relação ao crescimento científico, os programas de pesquisa são avaliados em termos de sua progressividade, podendo ser progressivos ou degenerativos (regressivos) (Lakatos, 1970).
Um programa de pesquisa está progredindo quando as modificações e as alterações realizadas nas teorias auxiliares e intermediárais que compõem o seu cinturão protetor o direciona para a descoberta de novos fatos, que são explicados com base nos elementos essenciais e nas principais características do programa de pesquisa científica.
Nesse caso, ocorre o deslocamento progressivo do programa11, que envolve a introdução de hipóteses que modificam a sua heurística positiva. Nessa abordagem, um programa que esteja em sua fase degenerativa pode ser capaz de lidar satisfatoriamente com as suas anomalias, pois visa a explicação da descoberta de novos fatos.
Por outro lado, um programa de pesquisa é degenerativo (regressivo), se as regras da heurística positiva não o auxilia na geração de novos fatos e descobertas, pois as hipóteses ad hoc12 são adicionadas às teorias do programa e os ajustes parciais não apoiam a ampliação de seu conteúdo empírico. Nesse caso, ocorre o deslocamento degenerativo (regressivo) do programa13. Um programa de pesquisa degenerativo pode ser substituído por um programa rival, na medida em que desenvolve problemas na estruturação e/ou reestruturação do cinturão que protege o seu núcleo firme.
Quando Lakatos (1970) descreveu os deslocamentos dos programas de pesquisas científicas, se refere às modificações que ocorrem na heurística positiva enquanto o núcleo firme pemanece intacto e inalterado. No entanto, existe o reconhecimento de que os programas são dinâmicos, movimentando-se em um contínuum cujas extremidades são as suas fases progressiva e degenerativa.
O abandono dos programas de pesquisas científicas ocorre quando programas rivais os substituem, pois as suas descrições são verdadeiras nos programas anteriores. Por exemplo, os programas rivais oferecem um excesso de evidências empíricas corroboradas em relação aos programas anteriores que são degenerativos (Lakatos, 1970).
As experiências dos pesquisadores em relação a um determinado programa de pesquisa científica, fortalecido ou com pleno potencial para fortalecimento, pode ser um componente importante no enfrentamento de teorias rivais e/ou de programas de pesquisas científicas competitivos.
Contudo, Lakatos (1978b) argumenta que uma das maiores dificuldades do critério de avaliação de programas de pesquisas científicas está relacionada com o tempo necessário para que se possa detectar se um determinado programa se degenerou, devendo, portanto, ser rejeitado. A reiterada substituição de programas de pesquisas científicas regressivos por progressivos caracteriza o avanço do conhecimento científico.
A adoção do termo programa está relacionada com Lakatos14(1978b), pois a sua proposta, denominada programme incorpora o reconhecimento da dinâmica cultural, que é intrínseca à teoria do conhecimento e essencial para o programa etnomatemática. Nesse sentido, o programa etnomatemática pode ser considerado como uma teoria do conhecimento, pois incorpora as concepções da epistemologia e da ciência.
Para D’Ambrosio (1993), a etnomatemática é um programa de pesquisa lakatosiano, pois a metodologia desse programa é ampla, focalizando a geração, produção, organização, transmissão e difusão do conhecimento desenvolvido pelos membros de grupos culturais distintos, que foram acumulados no decorrer da história e que estão em permanente evolução.
Na etimologia da etnomatemática, o prefixo etno tem uma abrangência significativa, pois se refere aos membros dos grupos culturais identificáveis, que desenvolvem ideias, procedimentos e práticas matemáticas que são empregadas na resolução de situações- problema enfrentadas no cotidiano por meio de codificações e simbologias próprias, que compõem a memória matemática cultural desses grupos.
Dessa maneira, os membros de cada grupo auxiliam na composição de sua memória matemática cultural coletiva (Halbwachs, 1950). Então, para compreendermos as referências matemáticas culturais de cada cultura, o programa etnomatemática fornece as ferramentas necessárias para compormos um mosaico com esses elementos para que possamos focar na geração e organização dos conhecimentos matemáticos e difundi-los nos meios educacionais.
Por exemplo, Lakatos (1978b) também destacou a importância do enfoque crítico da ciência e a visão de seu desenvolvimento histórico, pois se preocupava com a importância da evolução histórica e, em especial, das descobertas científicas, contrapostas às verdades, proposições e teorias a serem estabelecidas de modo correspondentes à natureza.
Nesse contexto, a difusão do conhecimento pode ser considerada como a capacidade de transformar o conhecimento matemático teórico ou prático em uma ferramenta útil para que a sociedade possa resolver os problemas enfrentados no cotidiano. Esse é um instrumento de mudança, que ocorre quando se difunde uma ideia a respeito de um determinado padrão verificado no desenvolvimento de um procedimento ou de uma prática matemática no decorrer da história (D’Ambrosio, 2004).
Lakatos (1976) também argumentou sobre o desenvolvimento histórico das provas matemáticas, mostrando que o conhecimento matemático não é atemporal, eterno e imutável e que as provas não são absolutamente certas, indubitáveis e seguras. Assim, é importante entender como a matemática possibilitou uma compreensão dos processos históricos de descoberta que conduziram ao desenvolvimento de suas provas.
Continuando essa discussão teórica, o programa etnomatemática pode ser definido como o estudo das técnicas que, durante a evolução dos diversos grupos culturais, possibilitou que os seus membros pudessem explicar, entender e lidar com os ambientes: natural, social, político, econômico e cultural. Diante desse contexto, a etnomatemática:
(...) é um programa de pesquisa no sentido Lakatosiano que vem crescendo em repercussão e vem mostrando uma alternativa válida para um programa de ação pedagógica. A etnomatemática propõe um enfoque epistemológico alternativo associado a uma historiografia mais ampla. Parte da realidade e chega, de maneira natural e através de um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural, à ação pedagógica (D’Ambrosio, 1993, p. 6).
De acordo com essa asserção, a influência de Lakatos (1970) pode ser percebida na formulação do programa etnomatemática, que considera a proposta historiográfica para a busca do entendimento do fazer e saber matemático dos grupos culturais (D’Ambrosio, 1993).
Nessa abordagem, o conhecimento é gerado pela necessidade de uma resposta às situações- problema distintas que estão subordinadas aos contextos: natural, social, políticoeconômico e cultural. Dessa maneira, como a etnomatemática requer uma filosofia relativista, possibilitou que esse programa questionasse as noções universais da matemática (Barton, 1992).
É imporante ressaltar que por meio da elaboração de uma epistemologia falibilista, Lakatos (1978b) também argumentou que a matemática informal é uma ciência que se desenvolve por meio de um processo de críticas sucessivas e pelo refinamento de teorias inovadoras. Para Ernest (1994), Lakatos estava ciente das implicações educaconais da filosofia falibilista e da construção social do conhecimento matemático.
De acordo com Lakatos (1976), a matemática se desenvolve por meio do diálogo entre os indivíduos para que se possam resolver os problemas matemáticos. Nesse direcionamento, o conhecimento matemático é uma construção social por meio da qual os processos sociais de diálogo e crítica são necessários para mostrar as conexões entre a matemática, a história e a filosofia.
Dessa maneira, Restivo, Van Bendegem e Fischer (1993) argumentam que as provas matemáticas são oferecidas à comunidade como parte de um diálogo contínuo para a sua aceitação ou crítica. Esses diálogos podem desempenhar um papel importante no desenvolvimento e na formulação de novos conhecimentos matemáticos. A aceitação social do conhecimento matemático e, portanto, o seu status de conhecimento é constituído por meio do desenvolvimento desses dialógos.
Nesse sentido, pesquisadores inspirados por Lakatos e Kuhn, desenvolveram uma sociologia da matemática, que foi um dos principais focos direcionados para a compreensão da prática matemática como um fenômeno grupal ou comunitário. Contudo, contrastando com a história e a filosofia da matemática, a abordagem sociológica não se fundiu facilmente com as tradições desse campo de conhecimento (Restivo, Van Bendegem, & Fischer, 1993).
Por exemplo, Silva e Moura (2015) afirmam que Lakatos (1976) desenvolveu uma epistemologia falibilista (ou não dogmática) da matemática, afirmando que esse campo do conhecimento informal é uma ciência que se desenvolve por meio de um processo histórico de críticas sucessivas, de emergência e refinamento de teorias conflitantes e procedimentos que se contrapõe ao modelo dedutivo formalizado.
De modo similar, Knijnik (1996) argumenta que a etnomatemática como um programa de investigação historiográfica é consoante com a perspectiva lakatosiana, pois abrange dois âmbitos específicos que estão relacionados com a história interna e externa. Nesse sentido, a história interna aponta para a centralidade dos elementos específicos da própria ciência visando garantir o seu desenvolvimento enquanto a história externa relaciona o desenvolvimento das ciências com as condições sociais em que são produzidas, acumuladas e difundidas.
Ao admitir a importância da história da ciência para a filosofia e vice-versa, Lakatos (1970) iniciou um processo de valorização da historicidade do conhecimento, pois a ciência se mostra histórica porque os seus resultados constituem elementos autenticamente históricos que adquirem valor no contexto em que são produzidos (Knijnik, 1996).
Para Lakatos (1978b), a ciência deveria ser estudada a partir de sua compreensão histórica, bem como pelos momentos históricos onde ocorreram mudanças científicas significativas, ou seja, onde determinados programas foram substituídos por outros. Essa preocupação pela busca de uma reconstrução histórica assinala o comprometimento espistomológico de Lakatos (1978b) com a explicação racional do progresso científico.
Na metodologia de programa de pesquisa científica lakatosiano, o desenvolvimento contínuo do conhecimento humano pode ser considerado como um processo desencadeado pela história. Esse método considera as alternativas possíveis entre as teorias disponíveis em cada momento, bem como pela substituição de teorias por outras com a aplicação dos princípios gerais observados nas atividades humanas às matemáticas.
De acordo com Lakatos (1978b), as teorias científicas emergem como estruturas organizadas denominadas de programas de pesquisas científicas, que são sustentadas por um núcleo firme, um cinturão protetor e pelas heurísticas.
Dessa maneira, um programa de pesquisa científico é caracterizado por seu núcleo firme, que articula e cria hipóteses auxiliares que formam um cinturão protetor em torno desse núcleo, redirecionando-o para os objetivos estabelecidos pelo programa.
Esse cinturão protetor tende a suportar e minimizar o impacto dos testes e das críticas ao programa por meio de ajustes, reajustes ou substituição das hipóteses auxiliares e das teorias intermediárias que defendem o núcleo firme.
Nesse contexto, para que a etnomatemática seja considerada como um programa de pesquisa científica lakatosiano, existe a necessidade de que os investigadores identifiquem as teorias que formam o seu núcleo firme e a atuação de seu cinturão protetor (Ferreira, 2007). O núcleo firme do programa etnomatemática pode ser considerado como a característica fundamental que o define, pois “assume a forma de alguma hipótese teórica muito geral que constitui a base a partir da qual o programa deve se desenvolver (...), o núcleo é convencionalmente aceito sendo, dessa maneira, irrefutável por uma decisão provisória” (Chalmers, 1993, p. 113).
A irrefutabilidade das hipóteses, teorias, pressupostos e proposições também é uma característica importante do núcleo firme do programa etnomatemática. Então, de acordo com a linguagem utilizada por Lakatos (1970), o programa etnomatemática repousa sobre um núcleo firme, no qual estão inseridos a transdisciplinaridade (principalmente com outras etno-x), a transculturalidade, o multiculturalismo, a diversidade e a pluralidade cultural, sendo composto também pela “geração, organização, e difusão do conhecimento” (Ferreira, 2007, p. 274).
Concordamos com a argumentação de Ferreira (2007) sobre a inclusão da pesquisa etnográfica no núcleo firme do programa etnomatemática, pois “conhecer o outro, quer indivíduo ou meio social, nos dá uma visão diferenciada de ação, de reconhecimento e de valorização do saber construído pelo grupo étnico” (p. 276). Consequentemente, a preocupação constante da inserção desse programa no currículo escolar mostra a relevância de sua ação pedagógica como uma de suas características fundamentais.
O núcleo firme é considerado um dos aspectos fundantes da etnomatemática, que é um programa de pesquisa científica no âmbito da teoria do conhecimento que “incorpora o reconhecimento de dinâmica cultural (...) como sendo intrínseca a todo conhecimento” (D’Ambrosio, 2004, p.137).
É importante salientar que, ao compreender a matemática como uma estratégia humana para lidar com a realidade, o programa etnomatemática reconhece a essencialidade e a indissociabilidade à vida por meio dos Ciclos do Conhecimento e do Comportamento Humano que, de acordo com a perspectiva lakatosiana, também está se constituindo em seu núcleo firme.
Por exemplo, no Ciclo do Conhecimento ocorre a geração, os modos de organização intelectual e social e, também, os meios de difusão, incluindo-se a sua ação pedagógica. O Ciclo do Comportamento Humano se inicia a partir de uma “realidade, que informa o indivíduo, que processa essas informações e executa ação que modifica a realidade, que informa o indivíduo” (D’Ambrosio, 2011, p. 58-59).
Compartilhamos com Ferreira (2007) que a etnomatemática é um programa de pesquisa científica bem sucedido, pois interage com outros programas, trazendo para o seu cinturão protetor “a Modelagem Matemática, a Resolução de Problemas, a História da Matemática e a Antropologia Sociocultural” (p. 278). O cinturão protetor da etnomatemática é diferenciado pelas várias teorias que são compartilhadas nesse programa.
As teorias que compõem o cinturão protetor da etnomatemática são constituídas por hipóteses auxiliares que são criadas ou descartadas com o objetivo de proteger a integridade do núcleo firme desse programa. É importante que o cinturão protetor desse programa seja reforçado com teorias auxiliares que procuram modificar as hipóteses existentes ou compensar as anomalias não previstas pelas teorias originais (Lakatos, 1978b).
Um fator importante para o fortalecimento do cinturão protetor do programa etnomatemática é refutar15 as críticas que constantemente tentam atingir o seu núcleo firme (Ferreira, 2007). Por exemplo, Dowling apud Knijnnik (1996) critica a etnomatemática como sendo um programa fundamentado em uma manifestação ideológica, pois a sociedade contemporânea é heteroglóssica, composta por uma pluralidade de comunidades culturais, que são monoglóssicas.
Assim, como o foco da etnomatemática é o estudo das ideias, procedimentos e práticas matemáticas desenvolvidas pelos membros dessas comunidades, esse programa tenderia a ter um discurso ideológico monoglóssico, no qual as manisfestações matemáticas de um determinado grupo cultural tende a ser privilegiado em relação às manifestações matemáticas produzidas pela sociedade na qual esses grupos estão inseridos.
Contudo, essa crítica pode ser refutada por meio da argumentação de que a proposta pedagógica do programa etnomatemática não se restringe somente ao estudo das ideias e procedimentos matemáticos desenvolvidos pelos membros de um determinado grupo cultural (Ferreira, 1997), pois também está direcionada para o compartilhamento de práticas matemáticas por meio da qual esses indivíduos incorporam em suas atividades cotidianas os conhecimentos matemáticos oriundos de outros contextos culturais (D’Ambrosio, 1990).
Na dinâmica desses encontros, ocorre um processo de interação cujo resultado é a geração de novos produtos culturais. Nesses encontros, o relacionamento entre “indivíduos de uma mesma cultura (intraculturais) e, sobretudo, as relações entre indivíduos de culturas distintas (interculturais) [são vigorosos]. Nas relações intra e interculturais reside o potencial criativo da espécie” (D’Ambrosio, 2011, p. 208) humana.
O dinamismo cultural dessa abordagem somente é possível por meio da utilização de teorias de conhecimento inovadoras que modificam e alteram as teorias auxiliares e intermediárias que compõem o cinturão protetor (Lakatos, 1970) do programa etnomatemática.
Em nosso ponto de vista, é importante que os pesquisadores etnomatemáticos tenham o compromisso de auxiliar continuamente na evolução do cinturão protetor desse programa, fortalecendo, dessa maneira, o seu núcleo firme. Por exemplo, esse fortalecimento pode ser verificado por meio da etnomodelagem, que “assume a visão de Matemática como algo presente na realidade concreta, sendo uma estratégia de ação ou interpretação desta realidade” (Bassanezi, 2002, p. 208).
Nessa abordagem, a etnomodelagem pode ser considerada como um conjunto de ações pedagógicas desenvolvidas por meio da modelagem no contexto social e econômico dos membros de grupos culturais distintos, pois nesse ambiente pode-se presenciar e explorar o conhecimento matemático local, valorizando e respeitando os valores culturais e os conhecimentos adquiridos pela vivência dos membros de um determinado ambiente sociocultural por meio de suas próprias etnomatemáticas (Rosa & Orey, 2012).
Assim, a etnomodelagem pode ser definida como o estudo dos fenômenos matemáticos que ocorrem em uma determinada cultura, pois é um construto social culturalmente enraizado.
Nesse sentido, Rosa e Orey (2010) afirmam que a etnomodelagem contempla os aspectos culturais do conhecimento matemático no processo da modelagem matemática.
Por outro lado, os programas de pesquisas científicas lakatosianos utilizam a heurística, que consiste em um conjunto de regras metodológicas e técnicas que são utilizadas no processo de ensino e aprendizagem, na resolução de problemas e no descobrimento de metodologias inovadoras e alternativas. O método heurístico é utilizado para acelerar o processo da determinação de soluções para uma determinada situação-problema.
Em nosso ponto de vista, a heurística proposta por Lakatos (1970) é uma metodologia adequada para o programa etnomatemática, pois “aplica uma qualificada base de conceitos, modelos e hipóteses, que são necessárias para o processo de resolução de problemas” (Rosa & Orey, 2009, p. 21) que são enfrentados pelos membros de grupos culturais distintos em seu cotidiano.
Nesse sentido, a “heurística pode ser considerada como o desenvolvimento de métodos e regras para a elaboração de teorias e teoremas, que está baseada em métodos não- dedutivos” (Rosa & Orey, 2009, p. 21).
Na perspectiva lakatosiana, a heurística do programa etnomatemática pode ser entendida como a conjunção entre as heurísticas negativa e positiva, pois consiste em um conjunto regras metodológicas; que fornece os caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negativa) enquanto outros fornecem os caminhos que devem ser trilhados (heurística positiva) (Lakatos, 1978b).
A heurística negativa “envolve a estipulação de que as suposições básicas subjacentes ao programa, seu núcleo [firme], não devem ser rejeitadas ou modificadas” (Chalmers, 1993, p. 113). A heurística positiva é “composta de uma pauta geral que indica como pode ser desenvolvido o programa de pesquisa” (Chalmers, 1993, p. 113), inclusive prevendo novos fenômenos e possíveis modificações no cinturão protetor, objetivando a sua melhoria.,
Em ambos os casos, as teorias, as hipóteses e as modificações ad hoc devem ser rejeitadas. Nesse direcionamento, o núcleo firme do programa etnomatemática pode ser vulnerável às anomalias e refutações de acordo com a vulnerabilidade de seu cinturão protetor, que corresponde a uma base teórica, de proposição de observações e de orientações para as pesquisas.
O cinturão protetor do programa etnomatemática pode ser modificado e alterado visando à proteção de seu núcleo, porém, não por meio de modificações apresentadas por teorias ad hoc, pois as novas hipóteses constantemente utilizadas pelos cientistas devem ser passíveis de serem testadas individualmente e, possivelmente, falsificadas e refutadas, possibilitando o progresso do programa de pesquisa científica.
De acordo com Hands (1993), essa abordagem proposta por Lakatos (1978b) pode ser considerada como o progresso heurístico de um programa de pesquisa. A figura 2 mostra a etnomatemática como um programa de pesquisa científica lakatosiano.
De acordo com a perspectiva lakatosiana de programa de pesquisa científica, entendemos que, no programa etnomatemática, a heurística negativa possui uma dupla função:
Proteger o núcleo firme das refutações, direcionando os pesquisadores a realizarem modificações nas hipóteses auxiliares das teorias que compõem o seu cinturão protetor.
Impedir as tentativas de explicações teóricas radicalmente diferentes daquelas aconselhadas pela heurística positiva.
Contudo, é importante ressaltar que a heurística negativa de investigação científica “racionaliza de forma considerável o convencionalismo clássico. Podemos decidir racionalmente não permitir que refutações transmitam falsidade ao núcleo enquanto(Lakatos, 1970, p. 49).
Diante dessa asserção, entendemos que a heurística negativa do programa etnomatemática proíbe que, frente a qualquer caso problemático com a refutação, o núcleo firme seja declarado falso; pois a falsificabilidade incidirá sobre as hipóteses auxiliares de seu cinturão protetor (Lakatos, 1977).
Assim, o programa etnomatemática pode ser caracterizado por seu núcleo firme, que é composto pelas teorias e pela conjunção de hipóteses contra as quais não é aplicada a retransmissão da falsificabilidade. Essa retransmissão ocorre quando alguma conseqüência lógica de um conjunto de hipóteses é dada como falsa, pois a lógica dedutiva permite afiançar a falsificabilidade de alguma(s) da(s) hipótese(s) (Silveira, 1996) do programa etnomatemática.
Por exemplo, a refutação do núcleo firme do programa etnomatemática foi proposta por Taylor apud Knijnik (1996) ao sugerir que uma de suas anomalias estava relacionada com o seu discurso teórico, pois os etnomatemáticos o direcionam somente para a relação entre a política e a pedagogia ao invés de discuti-lo epistemologicamente.
Dessa maneira, o núcleo firme do programa etnomatemática poderia ser falsificado, pois esse programa despreza o ato de aprender ao ignorar o aspecto cognitivo do discurso, privilegiando somente o ato de ensinar.
Porém, essa crítica é refutada por intermédio do cinturão protetor desse programa. De acordo com as teorias que o compõem, um dos princípios fundamentais da etnomatemática é o seu aspecto cognitivo; pois o conhecimento sociocultural dos alunos é utilizado em sala de aula para que possam perceber o significado da matemática na vida cotidiana.
Então, a inclusão do programa etnomatemática no currículo escolar possibilita a inserção da história da matemática nas aulas, possibilitando que os professores revejam as maneiras distintas de conceituação do conhecimento matemático por meio da tradução de modelos matemáticos utilizados no decorrer da história.
De acordo com a heurística positiva, quando os etnomatemáticos se deparam com alguma refutação ou algum fato incompatível com as previsões teóricas do núcleo firme do programa etnomatemática, é importante que as modificações e as alterações sejam realizadas no seu cinturão protetor para superá-las (Lakatos, 1978b).
Nesse sentido, a heurística positiva consiste em um conjunto articulado de recomendações sobre como alterar e desenvolver as variantes refutáveis desse programa e, também, sobre como modificar e sofisticar o seu cinturão protetor (Lakatos, 1978b).
Como os programas de pesquisa apresentam, desde o seu início, um grande número de anomalias, a heurística positiva indica aos cientistas caminhos que podem, lenta e continuamente, explicar essas anomalias para transformá-las em corroborações.
Nesse sentido, Ferreira (2007) argumenta que “o poder de um programa de pesquisa se constrói pelas heurísticas positivas e não pelas anomalias; essas são, geralmente, colocadas de lado na esperança de que mais tarde se transformem em corroborações do programa” (p. 277).
Por exemplo, Milroy apud Knijnik (1996) comenta sobre uma possível anomalia do programa etnomatemática quando questiona como os pesquisadores que foram escolarizados na matemática acadêmica podem perceber outras maneiras de produzir matemática que sejam desvinculadas dos conteúdos curriculares matemáticos aprendidos nas instituições oficiais de ensino.
Concordamos com o ponto de vista de Ferreira (1997) ao argumentar que essa crítica demonstra a preocupação existente com as pesquisas em etnomatemática que procuram traduzir o saber matemático produzido pelos membros de grupos culturais distintos para a matemática acadêmica, transplantando os procedimentos e as práticas matemáticas desenvolvidas nesses grupos de acordo com a cultura escolar dos pesquisadores.
Em nosso ponto de vista, para atacar essa anomalia, a heurística positiva foi utilizada por Eglash, Bennett, O’Donnell, Jennings e Cintorino (2006) ao proporem a etnocomputação, que pode ser considerada como uma teoria que apresenta sugestões sobre como alterar e desenvolver as variantes refutáveis do programa etnomatemática, modificando e sofisticando o cinturão protetor desse programa.
A etnocomputação pode ser considerada como o estudo das interações entre a computação e a cultura, pois emerge do conhecimento desenvolvido pelos grupos culturais e se adapta às mudanças que ocorrem na cultura desses grupos (Tedre, 2002). Do ponto de vista da etnocomputação, a tecnologia computacional é influenciada pela cultura enquanto as práticas culturais estão vinculadas ao desenvolvimento computacional.
Na etnocomputação, as práticas matemáticas desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos são traduzidas para a matemática acadêmica por meio da utilização de ferramentas tecnológicas culturalmente relevantes. Assim, a etnocomputação tem as suas raízes na etnomatemática, havendo investigações nessa área que podem ser consideradas como os primeiros estudos em etnocomputação.
De acordo com Tedre (2002), o estudo conduzido por Ascher e Ascher (1981) sobre os Quipus incas e a investigação conduzida por Eglash (1999) sobre os fractais africanos são exemplos de etnocomputação.
Nesse contexto, é importante enfatizar que o desenvolvimento da etnomatemática inclui uma sucessão de modelos crescentes em complexidade, que procura a aproximação desse programa com a realidade Essa abordagem pode ser considerada como um conjunto de condições iniciais vinculado às teorias auxiliares e intermediárias, que podem ser alteradas ou substituídas durante o desenvolvimento desse programa.
Essas condições iniciais são estabelecidas pelo seu cinturão protetor, que contém ideias, procedimentos e práticas matemáticas que podem ser originadas na modelagem, na resolução de problemas e na história da matemática.
Os programas de pesquisas científicas, em relação ao crescimento científico, podem ser progressivos ou degenarativos16(Lakatos, 1970), sendo que esse último pode ceder lugar ao anterior, na medida em que acumular problemas na estruturação e/ou na reestruturação do cinturão que protege o seu núcleo. Contudo, a principal preocupação de Lakatos (1978b) está relacionada com a avaliação das proposições e dos pressupostos do núcleo firme desses programas.
Contudo, é importante distinguirmos sobre a diferença entre os programas de pesquisas científicas progressivos e degenerativos. Os programas de pesquisa progressivos absorvem as anomalias, gerando novas previsões que confirmam as suposições do núcleo firme. Esses programas estão continuamente reformulando as teorias constituintes visando expandir o escopo das explicações de seus pressupostos e proposições por meio da análise ampla dos dados recalcitrantes, que são difíceis de serem operacionalizados e gerenciados, com o objetivo de ampliar o processo analítico para alcançar a precisão interpretativa dos fenômenos que ocorrem no cotidiano dos membros de grupos culturais distintos.
Contrastando, um programa de pesquisa é degenerativo quando utiliza as suas hipóteses auxiliares e intermediárias para afastar a explicação das anomalias que podem colocar em risco os seus pressupostos meta-teóricos, provocando falhas na produção de novas predições e previsões17. Nesse sentido, os pressupostos e proposições do núcleo firme se tornam refutáveis.
Os programas de pesquisa degenerativos são trabalhados por meio de dados recalcitrantes e também com as formulações ad hoc. Em consequência, nesses programas, as modificações e alterações introduzidas no cinturão protetor dificultam a produção de novas predições, que dificilmente são corroboradas.
Por meio de ajustes convenientes no cinturão protetor do programa etnomatemática é possível explicar as anomalias que tentam refutar o seu núcleo firme. Esses ajustes tornam o programa etnomatemático progressivo, pois procuram explicar os fatores culturais, sociais, econômicos, políticos e ambientais que os motivam, predizendo e prevendo, dessa maneira, os fenômenos ou os fatos matemáticos novos, corroborando-os.
Por outro lado, o programa etnomatemática pode tornar-se degenerativo se as suas teorias não forem capazes de prever novos fatos e fenômenos, enquanto que, prevendo-os, não consegue corroborá-los.
Importar imagen Importar tabla Nessa perspectiva, o programa etnomatemática pode se degenerar se o seu crescimento teórico se atrasar em relação ao seu crescimento empírico, pois somente poderá oferecer explicações post-hoc18 de descobertas casuais ou fatos antecipados por um programa rival (Lakatos, 1977). Contudo, como o programa etnomatemática é um corpo de conhecimento derivado de práticas matemáticas quantitativas e qualitativas; como, por exemplo, contar, medir, pesar, sortear, classificar, inferir e modelar (D’Ambrosio, 2000).
A predição e a previsão dessas práticas devem ser investigadas para que possamos impedir o oferecimento de explicações post hoc para esses fenômenos e, também, dificultar as descobertas realizadas por um programa de pesquisa rival.
É importante salientar a ênfase que Lakatos (1970) coloca sobre o papel das predições e previsões de fenômenos desconhecidos e de novas descobertas no julgamento progressivo dos programas de pesquisas científicas, pois se existe a previsão de fatos desconhecidos ou novos, as teorias avançam em relação aos experimentos.
Por outro lado, um programa de pesquisa científica também pode estar apoiado na explicação de um fenômeno conhecido. Porém, essa explicação não pode ser utilizada na elaboração das teorias desse programa (Lakatos, 1970), pois nesse caso, as teorias são cosideradas ad hoc com relação a esse fenômeno.
De acordo com essa perspectiva, o programa etnomatemática pode ser considerado avançado em relação a si próprio e, também, porque cada modificação em seu cinturão protetor o direciona para novas e inesperadas predições ou retrodições19.
Esse avanço nos permite desvencilhar o poder da matemática acadêmica para que possamos perceber de uma maneira mais abrangente as ideias, os procedimentos e as práticas matemáticas desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos.
Por exemplo, Ferreira (1997) argumenta que algumas tribos indígenas brasileiras consideram o número dois como a unidade, pois a contextualização de seu universo está relacionada com essa paridade.
Consequentemente, essa paridade está baseada na construção sociocultural de uma ideia matemática, na qual os indígenas são monogâmicos, sendo que o núcleo familiar somente se origina com o casal. Esse aspecto pode possibilitar a descoberta de novos fatos matemáticos por meio das predições realizadas nessa ideia matemática.
Nesse direcionamento, D’Ambrosio (2000) se pautou nos aspectos socioculturais, políticos, econômicos e ambientais da matemática, considerando, assim, a cultura por meio do compartilhamento de representações da realidade que são elaboradas pelo pensamento abstrato.
Essa abordagem tem demonstrado a etnomatemática como um programa progressivo que possibilitou o desenvolvimento de uma base teórica que antecipa o seu aspecto “empírico, predizendo fatos novos com sucesso” (Lakatos, 1978b, p. 33).
Em concordância com Ferreira (2007), o programa etnomatemática critica a “epistemologia vigente por ela focalizar somente o conhecimento já estabelecido, (...) as ciências já constituídas, (...) estabelecidas pela cultura ocidental” (p. 274).
Por exemplo, as práticas ad hoc utilizadas pelos membros de culturas diferentes para lidar com as situações problemáticas surgidas da realidade podem ser consideradas como o resultado da ação de conhecer, do saber e do fazer (D’Ambrosio, 2005).
Dessa maneira, os membros de grupos culturais específicos desenvolvem práticas matemáticas ad hoc para lidar com as situações-problema específicas que enfrentam em seu cotidiano, compartilhando esse conhecimento com os seus colegas.
Essas respostas ad hoc se revelam eficientes para que esses membros possam lidar com situações semelhantes para resolver problemas semelhantes, pois estão organizadas em métodos, com jargões específicos, sendo adquiridas como práticas matemáticas comuns pelos membros de grupos culturalmente identificados (Rosa, 2010).
De acordo com D’Ambrosio (1993), um objetivo fundamental do programa etnomatemática está relacionado com a compreensão da criação de práticas matemáticas ad hoc desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos para que possam sobreviver e transcender.
Nesse sentido, é importante descrever como essas práticas se organizam como métodos, como as explicações para esses métodos se transformam em teorias e como ancorados nessas teorias, esses membros desencadeiam o processo de criação e invenção.
Então, a etnomatemática é considerada como um programa de pesquisa científica progressivo, que procura responder as questões diretrizes (D’Ambrosio, 1990):
Como as práticas ad-hoc utilizadas para solucionar problemas se transformam em métodos?
Como as explicações para esses métodos se desenvolvem as teorias?
Como as teorias evoluem para as criações e invenções científicas?
Nessa perspectiva, Rosa (2010) argumenta que para resolver os problemas específicos enfrentados na vida diária, os membros de grupos culturais distintos criam soluções ad hoc que não são sistemáticas e nem teóricas. A partir dessas soluções, os métodos são generalizados para que esses membros possam resolver problemas semelhantes. A seguir, as teorias são desenvolvidas a partir desses métodos.
Assim, investigamos as práticas matemáticas ad hoc para que possamos compreender como os métodos de resolução de problemas podem ser desenvolvidos em teorias.
Por conseguinte, a etnomatemática pode ser considerada como um programa de pesquisa lakatosiano progressivo, pois em seu desenvolvimento teórico, a “cada nova teoria tem algum acréscimo de conteúdo empírico em relação à teoria que a antecedeu, isto é, se predisse algum fato novo” (Lakatos, 1989, p. 38), que prevê a emergência de novos fatos e fenômenos que podem ser corroborados, delineando, dessa maneira, a sua progressividade.
Neste artigo teórico, procuramos discutir sobre as possíveis aproximações dos programas de pesquisas científicas lakatosianos com o programa etnomatemática. Lakatos (1978b) apresentou uma concepção diferente daquelas estudadas por seus contemporâneos, pois buscava fundamentar filosoficamente a matemática, tentando mostrar que esse campo de estudo, assim como as ciências naturais, é falível e contestável.
Nesse direcionamento, buscou-se a elaboração de uma discussão das ideias filosóficas e metodológicas dos programas de pesquisas científicas de Lakatos e de sua conexão com o programa etnomatemática.
Lakatos (1961) oferece uma teoria que reintroduz a história na filosofia da matemática, cuja essência é a heurística ou a lógica da descoberta matemática. Essa é uma teoria dialógica da história, da metodologia e da filosofia da matemática, que pode ser explicada como um processo cíclico por meio do qual as conjecturas ou as provas são apresentadas no contexto de problemas ou de teorias informais. Como resposta, são dadas refutações informais para as conjecturas ou provas, aperfeiçoando-as dialogicamente.
De acordo com Lakatos (1978b), um programa de pesquisa científica é um conjunto de teorias afins que é formado por heurísticas e, também, por um núcleo firme de hipóteses que orienta a pesquisa, positiva e negativamente. Esse programa caracteriza-se pelo núcleo firme, articulando e elaborando hipóteses auxiliares para formar um cinturão protetor em torno desse núcleo, redirecionando-o para que se mantenha intacto.
Esse cinturão de proteção de hipóteses auxiliares deve suportar o impacto dos testes, ajustando, reajustando e/ou substituindo as teorias e as hipóteses, em defesa do núcleo. É importante ressaltar que um programa de pesquisa científica pode ser progressivo ou degenerativo (regressivo).
O poder de pesquisa do programa etnomatemática está enraizado na percepção do desenvolvimento da matemática como uma característica própria da humanidade, que está presente nas atividades de comparar, classificar, medir, explicar, inferir, generalizar e modelar.
Assim, a etnomatemática como um programa de pesquisa científica lakatosiana foi originada na tentativa de entender e compreender os problemas relacionados com as situações enfrentadas no cotidiano dos membros de grupos culturais distintos. Então, existe a necessidade de verificarmos quais caminhos de investigação devem ser evitados e quais devem ser seguidos, pois esse programa somente é bem sucedido se for conduzido para uma mudança progressiva dos seus métodos de investigação.
Nesse sentido, podemos considerar que o programa etnomatemática está em consonância com a concepção de programas de pesquisas científicas proposta por Lakatos (1970).
Corroborando com esse ponto de vista, Ferreira (2007) argumenta que o “Programa de Pesquisa Científica Etnomatemática, criado por Ubiratan D’Ambrosio, tem, com certeza, seu respaldo na metodologia Lakatosiana” (p. 279).
Consequentemente, se a etnomatemática for considerada como um programa científico de pesquisa lakatosiano, existe a necessidade de se conhecer o seu núcleo firme e a atuação de seu cinturão protetor.
Por exemplo, o núcleo firme do programa etnomatemática é constituído por um conjunto de teorias, como, por exemplo; a transdisciplinaridade, a transculturalidade, a diversidade e a pluralidade cultura, a geração, a organização e a difusão do conhecimento e, também, por seus paradigmas e suas bases teóricas e epistemológicas; consideradas irrefutáveis pelos etnomatemáticos.
Esse programa também é constituído pelo cinturão protetor composto pelas teorias da modelagem matemática, história da matemática, resolução de problemas e antropologia cultural que são consideradas refutáveis pelos seus pesquisadores e, também, por um conjunto de regras metodológicas utilizadas na resolução de problemas que são denominadas de heurísticas, que podem ser positivas ou negativas.
A função da heurística negativa é a preservação do núcleo firme do programa etnomatemática enquanto a heurística positiva é responsável pelo estabelecimento das regras necessárias para modificar e alterar o seu cinturão protetor visando a eliminação das anomalias que podem ser encontradas nesse programa. Por outro lado, o programa etnomatemática considera a dinâmica da evolução dos saberes e fazeres que, em contato com membros de grupos culturais, produz novos conhecimentos (D’Ambrosio, 2001).
Esse programa, assim concebido, também se constitui em uma investigação historiográfica consoante com a perspectiva do programa de pesquisa de Lakatos (1970), pois se originou em um contexto próprio, buscando o entendimento do saber-fazer matemático dos membros de grupos culturais marginalizados, que estão na periferia do conhecimento acadêmico.
Porém, é importante ressaltar que, além de focalizar as diferentes maneiras para entender o conhecimento do saber e do fazer matemático das culturas periféricas, o programa etnomatemática também busca entender o ciclo de geração, organização intelectual e social e, também, a difusão desse conhecimento. Assim, o principal objetivo desse programa é o entendimento do ciclo do conhecimento (geração, produção e difusão) acumulado pela humanidade no decorrer da história para compreender a aventura humana em sua busca pela sobrevivência e transcendência (D’Ambrosio, 1993).
e, também, a difusão desse conhecimento. Assim, o principal objetivo desse programa é o entendimento do ciclo do conhecimento (geração, produção e difusão) acumulado pela humanidade no decorrer da história para compreender a aventura humana em sua busca pela sobrevivência e transcendência (D’Ambrosio, 1993).
De acordo com as discussões teóricas formuladas nesse documento, concordamos com D’Ambrosio (1990) que conceitua a etnomatemática como um programa de pesquisa lakatosiano, que é essencialmente transdisciplinar e dinâmico, sendo continuamente redefinido para entender e estudar as práticas matemáticas desenvolvidas em contextos culturais distintos.
Essa redefinição ocorre por meio da verificação das teorias auxiliares e intermediárias, que são modificadas, alteradas e reelaboradas com a finalidade de estabelecer um cinturão protetor em torno do núcleo firme do programa etnomatemática que tem por objetivo absorver, por meio de sua heurística positiva, os golpes potenciais das anomalias que procuram atacar constantemente as suas proposições nucleares.
Nesse contexto, o programa etnomatemática, por causa de sua natureza dinâmica, evolui progressivamente, pois está desvinculado das gaiolas epistemológicas que subordinam o conhecimento matemático. Para D’Ambrosio (2004), a metáfora das gaiolas epistemológicas também foi inspirada em Lakatos, pois para esse filósofo, os indivíduos que entendem que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e substituídos por outros melhores são considerados ativistas revolucionários.
Dessa maneira, de um modo similar, Lakatos também reconheceu que os indivíduos criam as suas próprias prisões, podendo, também, demoli-las de uma maneira crítica e reflexiva.
É importante ressaltar que, entre as décadas de 1970 e 1990, houve uma influência de visões estruturalistas a respeito da cognição, da filosofia, da epistemologia e da antropologia, que eram baseados em relações diferenciais dicotômicas.
Entendemos que a filosofia de Lakatos (1970) também está inserida nesse movimento, que foi amplamente contestado e problematizado na contemporaneidade, pois o estabelecimento de um núcleo firme, de leis de constituição, de heurísticas positiva e negativa e de programas progressivo e degenerativo pode reportar-nos para um internalismo epistêmico racional.
Esses aspectos podem ser considerados como uma limitação para o desenvolvimento da etnomatemática como um programa de pesquisa científica. Contudo, a teoria de Lakatos (1970) pode ser considerada um avanço em relação ao falsificacionismo popperiano, que predominava na época em que foi proposto. No entanto, apesar desses pontos parecerem discordantes, entendemos que a teoria lakatosiana está relacionada com o programa etnomatemática.
Dessa maneira, se abandonarmos os critérios demarcacionistas, em nosso ponto de vista, os demais conceitos lakatosianos, como, por exemplo, o núcleo firme, as heurísticas, o cinturão protetor, ou mesmo o progresso científico de um programa podem ser úteis para a apreciação de distintas visões de mundo em estudos relacionados com o desenvolvimento do conhecimento matemático em culturas distintas.
Obviamente, é importante que se procure controlar os problemas não previstos originalmente no pensamento de Lakatos (1970) como a sobreposição de programas de pesquisa e o aspecto dinâmico das hipóteses incluídas nos núcleos firmes desses programas. De acordo com a discussão teórica elaborada neste artigo, em nosso ponto de vista, a teoria de Lakatos está vinculada ao programa etnomatemática, pois conceitos lakatosianos importantes, como, por exemplo, o núcleo firme, as heurísticas, o cinturão protetor e a progressividade científica podem ser úteis para a apreciação de distintas visões de mundo em estudos da história do desenvolvimento do pensamento matemático.
Finalizando, buscamos, neste artigo, discutir a concepção de programas de pesquisas científicas de Lakatos, bem como sobre as possíveis aproximações entre as suas ideias com a etnomatemática. Lakatos apresentou uma concepção de programas de pesquisas científicas diferente daquelas desenvolvidas pelos seus contemporâneos, que buscavam fundamentar a matemática, mostrando que, esse campo do conhecimento, assim como as ciências naturais, é falível e contestável.
Contudo, é importante recomendar a realização de um debate amplo, abrangente e produtivo no âmbito das investigações em etnomatemática por meio da utilização de um conjunto de características críticas e reflexivas pós-modernas ou pós-estruturalistas no âmbito das Ciências, da História, da Epistemologia e da Educação Matemática.
