A cultura do diagnóstico e a emergência de subjetividades psicopatológicas

The culture of diagnosis and the emergence of psychopathological subjectivities

João Pedro Alves Matos
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Tiago Alfredo da Silva Ferreira
Universidade Federal da Bahia, Brasil

A cultura do diagnóstico e a emergência de subjetividades psicopatológicas

Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, vol. 24, núm. 4, pp. 509-523, 2016

Universidad Veracruzana

Recepção: 18 Dezembro 2015

Aprovação: 15 Junho 2016

Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar, a partir de uma perspectiva da Análise do Comportamento, as implicações do diagnóstico psicopatológico para a construção de subjetividades que apresentam novas demandas para a clínica analítico-comportamental. Para tanto, faz uma revisão conceitual da estruturação do DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – estabelecendo uma crítica a partir da literatura analítico-comportamental, assim como expondo discussões na área sobre o tema. Uma vez estabelecida tal discussão, é proposto que as consequências contemporâneas da proliferação de uma “cultura do diagnóstico” produzem demandas subjetivas específicas para a clínica analítico-comportamental. Também é proposto que, para além da discussão sobre a utilização de diagnósticos sindrômicos ou funcionais, faz-se necessário o estudo aprofundado da cultura do diagnóstico que pode estar presente independente da escolha do profissional de saúde sobre o emprego do diagnóstico. Tal cultura envolve não apenas os profissionais de saúde, mas também os clientes que, tendo acesso livre a informação e a práticas sociais associadas aos modelos de saúde, tem sua subjetividade transformada a partir das contingências culturais vigentes.

Palavras-chave: psicopatologia, diagnóstico, análise do comportamento, cultura, subjetividade.

Abstract: This paper analyses, from a behavior-analytic perspective, the implications of psychopathological diagnoses to the formation of subjectivities, which present new demands for behavior-analytic psychotherapy. To that end, we build on a theoretical review of the structure of DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – in order to establish a critical point of view from the behavior-analytic literature and showcase discussions about this topic in the area of interest. Once this discussion is established, we propose that contemporary consequences of the proliferation of a “culture of diagnosis” produce specific subjective demands for behavior-analytic psychotherapy. We also propose that, beyond the discussion about the use of syndromic or functional diagnoses, it is necessary to invest in a thorough study of this “culture of diagnosis”, that may be present regardless of the health professional’s use of the diagnosis. This culture involves not only health professionals, but also psychotherapy clients who, having free access to information and social practices associated with health models, suffer a transformation in their subjectivities by ongoing cultural contingencies.

Keywords: psychopathology, diagnosis, behavior analysis, culture, subjectivity.

A Psicopatologia enquanto campo de estudos sobre diagnósticos de ordem psiquiátrica faz parte da matriz curricular na formação do psicólogo e permeia o exercer de sua prática ao longo de sua carreira. Dentre as práticas exercidas em Psicologia, a clínica psicoterapêutica (e estudos voltados à produção de conhecimento na área) exige um diálogo com profissionais que se comunicam a partir de descrições técnicas em psicopatologia e com clientes cada vez mais conscientes de tais descrições. Em meio a tal contexto, diagnósticos são discutidos e programas de pesquisa financiados com funções declaradas que implicariam no tratamento do que seria descrito por tais diagnósticos (a priori de interesse por parte da Psicologia). Assumindo tal propósito, são então desenvolvidos os manuais de classificação para os chamados diagnósticos denominados como “transtornos mentais” (Pinto, 2012).

Desde a Grécia antiga formulações primitivas de sistemas de classificação eram desenvolvidas para dar conta do que hoje chama-se “transtorno mental”, assim como no correr da história outros se seguiram. Emil Kraeplin, no início do século XX apresenta uma classificação destes fenômenos finalmente se referindo aos chamados “distúrbios mentais” (Gomes de Matos, Gomes de Matos, & Gomes de Matos, 2005). Dentre as perspectivas alinhadas com tais formulações, uma noção biologicista[1] é constatada (Lisboa, 2008), caráter relevante para a discussão que será apresentada no presente artigo. Hoje, o sistema classificatório dos transtornos mentais mais utilizado é desenvolvido pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) e sua primeira versão data de 1952: o "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais" (DSM), que passou por diversas modificações, revisões e edições, sendo a última o DSM-V (APA, 2013).

Instrumentos classificatórios em Psicopatologia podem ser entendidos como produtos de uma determinada cultura, bem como podem ser analisados como variáveis importantes na construção de novas práticas culturais. Atualmente discussões diversas têm sido levantadas acerca da temática, por vezes podendo incluir algumas manifestações a favor e contra o desenvolvimento e utilização destes instrumentos enquanto produtos sociais (Wilson, Hayes, Gregg, & Zettle, 2001; Gomes de Matos et al., 2005; Lisboa, 2008). Na literatura analítico-comportamental são apresentados argumentos que sustentam implicações para ambas as perspectivas (Hayes & Follette, 1992; Cavalcante & Tourinho, 1998; Wilson, Hayes, Gregg, & Zettle, 2001; Banaco, Zamignani, & Meyer, 2010; Banaco, Kovac, Martone, Vermes, & Zamignani, 2012; Britto, 2012) relevando uma perspectiva pragmática na qual os propósitos da utilização norteiam a apropriação ou crítica destes recursos.

Para a abordagem apresentada no presente trabalho, a classificação diagnóstica pode ser vista enquanto elemento construtor de práticas culturais que influenciam variáveis de controle presentes na vida de sujeitos da sociedade contemporânea. Serão expostas e discutidas ambas as perspectivas (i.e. a classificação diagnóstica enquanto produto e enquanto partícipe de contingências que estabelecem uma cultura), permitindo uma compreensão das discussões levantadas sobre o instrumento em si e suas funções.

O objetivo do presente artigo é apresentar e discutir fenômenos enredados em uma “cultura do diagnóstico” (terminologia que será apresentada neste artigo), na qual instrumentos de classificação como o DSM estão implicados, posteriormente discutindo o que esta cultura pode acarretar para a experiência subjetiva do sujeito que busca a clínica analítico-comportamental. Para tanto serão apresentados e contextualizados o DSM como modelo de classificação e uma breve explanação de alguns tópicos discutidos em meio à comunidade analítico-comportamental contemplando o tema “Psicopatologia e classificação”. Em seguida, será apresentada a noção de cultura do diagnóstico e práticas envolvidas nesta, além de suas implicações para o sujeito que nela está inserido.

1. DSM como Modelo de Classificação

O DSM é um modelo de classificação multiaxial, cujo propósito é auxiliar o diagnóstico e o tratamento de transtornos psicopatológicos. Estes últimos são separados conforme suas características sintomáticas e inseridos em categorias. Portanto, é organizado categorialmente e, principalmente, zela para ser um modelo ateórico - não explicitamente comprometido com alguma teoria específica (Gomes de Matos et al., 2005). Segundo Wilson, Hayes, Gregg e Zettle (2001), o DSM seria um sistema de classificação sindrômico, ou seja, que classifica especificamente a ocorrência de síndromes, como está escrito no próprio manual em sua penúltima edição: “[...] cada um dos transtornos mentais é conceituado como uma síndrome ou padrão comportamental ou psicológico” (APA, 1994, p. XXI).

Há, de certa forma, um consenso de que a tradição médica empirista tenha sido uma influência direta para as práticas psicológicas (Pinto, 2012). Visto que a Psicologia dialoga constantemente com a Medicina psiquiátrica, principalmente em sua prática mais clássica (i.e. a clínica), a utilização de instrumentos médicos pela Psicologia se torna explicável, tendo função considerável, principalmente por facilitar a comunicação e proporcionar maior diálogo entre as duas áreas.

Segundo Wilson et al. (2001), síndromes referem-se a características formais, topográficas, publicamente observáveis de comportamentos. Para os autores, um problema se apresenta na distância entre a proposta de uma classificação sindrômica e o uso que ela tem no contexto clínico, de maneira que o modelo não está sendo utilizado apenas como uma classificação sistemática e organizada de signos e sintomas, mas também no estabelecimento do que é tipicamente associado a um estado patológico. Segundo os autores, síndromes diferem de doenças na medida em que as últimas são classificadas segundo direcionamentos funcionais que implicam etiologia, curso ao longo do tempo e respostas a tratamentos para ela especificados (cf. Wilson et al., 2001, p.212).

Segundo este raciocínio, classificações sindrômicas se atêm a caracterizar topograficamente os comportamentos, o que não é recurso suficiente para uma descrição funcional (i.e. etiológica) de comportamentos mas, em algum grau, para critérios de comunicação (Banaco, Zamignani, & Meyer, 2010). Em se tratando de doenças, o termo leva a uma conotação baseada em pressupostos médicos, existindo então uma explicação causal, para o que seria chamado de “comportamento problema” manifestado pelo indivíduo. Embora exista o zelo pela constituição de um modelo ateórico (i.e. que não se propõe a uma teoria etiológica acerta da síndrome) o contexto de práticas médicas cotidianas pode gerar, no grande público, uma tradução equivocada de síndromes em doenças. Neste sentido, o que é manifesto e observável publicamente comumente passa a ser caracterizado como expressão de uma doença e, portanto, diretamente causado por ela.

Estabelece-se então que o DSM é um modelo sindrômico, porém com margem para a interpretação de propósito etiológico. Este descreve topografias variadas que frequentemente podem ser parte de um mesmo repertório comportamental, sendo controladas por contingências semelhantes. Consta no prefácio de sua última edição: “o DSM se propõe a servir como um guia prático, funcional e flexível para organizar informações que podem auxiliar o diagnóstico preciso e o tratamento de transtornos mentais.” (APA, 2013, p. xli). A que se referiria o termo “funcional” neste citado? – A resposta para esta questão parece estar pouco clara.

Para além de funções comunicativas, interpretações de asserções deste tipo parecem admitir o diagnóstico como fonte controladora para um tratamento não especificado. Argui-se aqui que uma concepção de tratamento frequentemente inclui uma conotação etiológica para tal. Neste contexto, há margem para a busca (tanto de profissionais quanto clientes) por tratamentos que incluem noções causais em perspectivas teóricas variadas.

Segundo Wilson et al. (2001), em uma cultura médica, sistemas de classificação deste tipo são utilizados com o apoio de um modelo de classificação auxiliar chamado de “modelo biológico”. Caso um diagnóstico seja impreciso ou dificultado pela grande variedade sintomática do paciente, as características primeiras do fenômeno são investigadas, ou seja, sua fisiologia. Exames laboratoriais, de imagem, ferramentas de investigação afins na cultura médica são utilizadas neste modelo. O recurso a este modelo, porém, parece estranho quando o assunto é psicopatologia, principalmente em uma perspectiva analítico-comportamental (Banaco, Kovac, Martone, Vermes, & Zamignani, 2012). Uma vez que o recurso à fisiologia parece não ser bem aceito para todos os tipos de transtornos psicopatológicos, diagnósticos são criados e classificados a partir de um estudo estatístico. Nesse contexto, a variação sintomática ou topográfica explicitada por qualquer tipo de síndrome descrita pelo manual sindrômico pode ser estendida ao infinito, na medida em que este estudo não é limitado por uma teoria que defina critérios específicos (Wilson et al., 2001).

Partindo do que é apresentado por Wilson et al. (2001), é visto que da edição do DSM-III (APA, 1987) para o DSM-IV (APA, 1994) somaram-se classificações de síndromes em quantidade considerável. Uma amostra disso é o número de possíveis diagnósticos para psicopatologias ligadas à ansiedade, que foi elevado de 9 para 12 (Friman, Hayes, & Wilson, 1998). Quanto ao DSM-V (APA, 2013), é visto que continua sendo 12 o número de possíveis diagnósticos relacionados à ansiedade, porém, algumas diferenças na construção dessa edição devem ser consideradas (e.g. transtornos ligados aos comportamentos obsessivos e compulsivos nesta atualização parecem merecer uma classificação separada dos transtornos relativos à ansiedade). Neste sentido, há um acréscimo no número de síndromes a cada edição do manual. Mesmo com as revisões recorrentes do DSM, as possíveis queixas de clientes que sofrem por sintomas de “transtornos psicopatológicos” parecem crescer e muitos dos sintomas descritos em contexto clínico continuarão não sendo abarcados completamente pela classificação.

A expansão de diagnósticos não precisa ser entendida apenas como a “descoberta” de fatores subjetivos específicos, mas também pode ser interpretada como um fenômeno vinculado a condições econômicas e, mais especificamente, a necessidades de mercado. Analisando neste sentido, Leader (2015) levanta evidências históricas para o vínculo entre a expiração das patentes de determinados medicamentos de alta vendagem (e.g. antidepressivos) e o investimento orçamentário da indústria farmacêutica na consolidação e divulgação de novos diagnósticos, que exigem novos medicamentos (e.g. estabilizadores do humor). Desta forma, a atividade científica que envolve a formação e a consolidação de diagnósticos pode ser entendida, enquanto prática cultural, a partir da noção skinneriana de controle econômico (cf. Skinner, 2003, p. 436).

O aumento do número de transtornos diagnosticáveis interfere na prática clínica, tanto envolvendo a Psicologia quanto a Medicina. Supondo uma prática de diagnosticar o sujeito com inúmeros transtornos diferentes a fim de serem considerados todos os sintomas descritos, o número de transtornos que são comórbidos entre si é vasto. Gomes de Matos et al. (2005), na discussão acerca da relevância da categorização para a escolha de um curso de tratamento (psicofármaco ou mesmo psicoterápico), apontam dados sobre o aumento de diagnósticos comórbidos:

[...] a comorbidade dentro de um eixo (ou de vários deles) passa a ser quase sempre a regra, e não a exceção. Fóbicos sociais recebem, em 80% dos casos, outro diagnóstico correlato. O transtorno de pânico surge ao lado da depressão em mais de 50% dos casos e muitas vezes está associado, ainda, com ansiedade generalizada, fobia social, transtorno obsessivo-compulsivo e outros transtornos de personalidade. (p. 314)

A Psiquiatria considera implicações específicas para cada tipo de transtorno diagnosticado, assim como para seu tratamento (Sanches, Assunção, & Hetem, 2005). Sendo assim, a comorbidade pode dar margem a pelo menos dois desdobramentos: (a) uma vez que se considere a maior especificação do caráter de determinada síndrome como favorável ao tratamento, medicamentos mais adequados podem ser administrados de forma eficiente; ou (b) pode sustentar uma contrapartida que promulga maior prescrição de tratamentos psicofarmacológicos. O segundo desdobramento, implica em que um diagnóstico com muitos outros associados pode permitir a administração plural de medicamentos.

Tratando-se de um instrumento de fundamentação médica, uma ressalva é anunciada no que diz respeito ao uso medicamentoso nos tratamentos como forma resolutiva para os transtornos (Lisboa, 2008): em casos nos quais os comportamentos do sujeito em questão sejam prejudiciais a si, ao seu ambiente[2], ou dificultando intervenções com objetivos terapêuticos o auxílio farmacoterápico é justificável. O entendimento do fenômeno então adquire caráter traduzido pela sentença: “a etiologia está implícita à topografia, que por sua vez remete a uma disfunção fisiológica”. Síndromes e doenças, a despeito da discussão conceitual, são funcionalmente semelhantes na medida que quando se cessam os sintomas (ou parte deles) é reforçada a noção de que as causas foram tratadas. Trata-se, portanto, de uma tendência a redução causal ao nível fisiológico que difere significativamente de uma explicação analítico-comportamental. A Análise do Comportamento, embora considere a relevância da fisiologia na constituição do fenômeno comportamental (Tourinho, Teixeira, & Maciel, 2000) defende a multicausalidade envolvendo fatores filogenéticos, ontogenéticos e culturais na explicação do comportamento (Skinner, 1981; Tourinho et al., 2000; Tourinho, 2006).

2. Análise do Comportamento e Classificação em Psicopatologia

Sobre a classificação em psicopatologia, na literatura analítico-comportamental são reconhecidas, ao menos, duas problematizações: (1) descrições sindrômicas não dão conta do caráter funcional de comportamentos, portanto, a utilidade de classificações deste tipo apresenta limitações no contexto terapêutico analítico-comportamental (Cavalcante, 1997; Friman et al., 1998; Bissett & Hayes, 1999; Wilson et al., 2001; Zamignani & Banaco, 2005; Copque & Guilhardi, 2009; Banaco et al., 2010; Banaco et al., 2012; Britto, 2012); (2) modelos de classificação funcionais em psicopatologia podem ser alternativas às classificações sindrômicas (Hayes & Follette, 1992; Hayes, Wilson, Gifford, Follette, & Strosahl, 1996; Cavalcante & Tourinho, 1998; Chawla & Ostafin, 2007).

O primeiro ponto refere-se à noção de que descrições sindrômicas se limitam a descrever o caráter topográfico de determinado repertório comportamental. Em uma perspectiva analítico-comportamental, a ênfase em topografias do comportamento é útil apenas na medida em que é acompanhada por uma abordagem funcional que permita sua previsão e controle (cf. Skinner, 1953, p. 31-39; Skinner, 1959, p. 203; Banaco et al., 2010, p. 184), uma vez que a mesma resposta pode ser controlada por diversas variáveis implicando uma multicausalidade (cf. Skinner, 1953, pp. 205-213, 1957, p. 227;Cavalcante & Tourinho, 1998, p. 143).

Assumindo um critério analítico-funcional para o comportamento humano, a Análise do Comportamento coloca em foco a função que o comportamento possui em determinado contexto. Como dito anteriormente, um modelo de classificação sindrômico tem como característica fundamental a descrição formal de comportamentos, sendo assim, diverge consideravelmente (ao ignorar variáveis de controle) de uma proposta analítico comportamental.

O problema de ser inferida uma dimensão etiológica do comportamento a partir apenas de descrições topográficas negligencia a variedade de funções possíveis para uma gama de respostas (Cavalcante & Tourinho, 1998; Bissett & Hayes, 1999). A supressão meramente topográfica envolve implicações a serem consideradas (e.g. aspectos que envolvem a variabilidade para outras topografias com mesma função ainda implicadas no sofrimento do sujeito; efeitos colaterais por vezes inclusos em tratamentos psicofarmacológicos que influenciam a emissão de outros comportamentos compreendidos por domínios importantes na vida do sujeito, etc.)

2.1. O DSM como um Instrumento Funcional

Até então, os argumentos apresentados levam a crer que o DSM não cumpre algumas funções específicas (i.e. identificação etiológica e guia para uma opção funcional de tratamento). Em contrapartida, Hayes e Follette (1992) arguem que: [...] syndromal classification is not necessarily incompatible with a behavioral position; it is useful for analytic purposes to examine the degree to which functional analysis could serve as a comprehensive alternative to syndromal classification. (p. 349)[3]

Neste trecho, os autores chamam a atenção para duas implicações na utilização de manuais de classificação sindrômicos por analistas do comportamento: apontam as vantagens da análise funcional como alternativa e demonstram que, frente ao modelo sindrômico, ainda existem algumas limitações desta. A utilidade do manual sindrômico é obscura como (A) fonte para a identificação etiológica e (B) guia para tratamento. Todavia o DSM é um instrumento que (C) facilita a comunicação entre os profissionais das áreas psi (Psicologia e Psiquiatria) e áreas afins que precisem de noções sobre disposições comportamentais nocivas em âmbitos sociais mais gerais (ex.: o Direito), bem como (D) favorece o desenvolvimento de pesquisas aplicadas a grandes grupos.

Algumas pesquisas em Psiquiatria investigam, a partir das classificações topográficas, possíveis relações entre os recursos fisiológicos do organismo e seus comportamentos (i.e. topografias), utilizando medicamentos que comprovem efetividade em ensaios clínicos randomizados controlados (Leonardi, 2016). Embora permita uma interpretação equívoca de causalidade (Hayes & Follette, 1992;Wilson et al., 2001;Skinner, 1953), é um recurso viável para auxiliar a redução dos prejuízos implicados nas manifestações topográficas do comportamento. Como por exemplo: Transtorno de Personalidade Borderline tem como um dos possíveis sintomas a automutilação (cf. APA, 2013, p. 663). Sendo assim, uma postura interdisciplinar dos profissionais envolvidos pode proporcionar uma melhoria qualitativa na vida do sujeito, prevenindo topografias indesejáveis durante o processo psicoterapêutico com o auxílio medicamentoso relativo a um determinado objetivo pré-estabelecido no processo.

O âmbito legal também é uma área que está em constante comunicação com a Psicologia. Desde causas trabalhistas a processos criminais, laudos e pareceres técnicos que descrevem síndromes (i.e. topografias) são utilizados para embasar decisões judiciais. Para além da comunicação entre as áreas, a classificação que utiliza regularidades topográficas na composição de padrões comportamentais favorece pesquisas em grandes grupos. A elaboração de pesquisas com ensaios clínicos randomizados, por exemplo, não poderia ser baseada em análises funcionais idiossincráticas, uma vez que métodos estatísticos não contemplam as diferenças individuais, mas sim as suas regularidades.

Apresentando essa perspectiva, o uso da análise funcional como único subsídio para a prática clínica em psicopatologia parece complexo principalmente quanto aos critérios que simplifiquem a comunicação. Seria então possível uma classificação baseada em um modelo metodológico de análise funcional que fornecesse mais que os recursos A (fonte para identificação etiológica) e B (guia para o tratamento), mas também o C (facilitar a comunicação das áreas psi e afins) e D (possibilitar a formulação de pesquisas em grandes grupos)?

2.2. Análise Funcional e Sistemas de Classificação

Alguns autores analítico-comportamentais defendem a possibilidade da sistematização de um modelo de classificação baseado na análise funcional[4]. Hayes e Follette (1992) parecem considerar tal possibilidade e voltam-se para o modelo de análise funcional que chamam de análise funcional clássica. Os autores fazem uma observação referente à fragilidade deste modelo de análise funcional que consistiria no que descrevem como “formular-avaliar-intervir-avaliar”, método este que alegam não ser sistematizado o suficiente para permitir sua replicação. Cavalcante e Tourinho (1998) discutem o texto dos autores e afirmam que estes supõem que a questão da análise funcional como é utilizada não apresentaria uma sistematização clara. Considerando que um modelo de classificação funcional viesse a ser formulado, alguns critérios haveriam de ser cumpridos em sua confecção, tais como:

“[...] (a) um guia para a coleção de informação avaliada; (b) uma linguagem para comunicação em relação aos casos; (c) um guia para o uso dos princípios comportamentais; (d) decisões de tratamento e (e) a base para testar a adequação da própria análise funcional” (Cavalcante & Tourinho, 1998, p. 144).

Considerando o que é citado acima por Cavalcante e Tourinho (1998), depreende-se a caracterização do necessário para a sistematização de um modelo funcional de classificação. O que Hayes e Follette (1992) propõem parece ser direcionado ao cumprimento destes critérios, apontando que o problema da ausência de clareza quanto à sistematização da análise funcional enquanto instrumento analítico-comportamental implica em um prognóstico negativo para sua replicação empírica.

Cavalcante e Tourinho (1998) ainda problematizam a questão além do abordado por Hayes e Follette (1992). Os primeiros colocam que, mesmo cumprindo com as necessidades de especificação metodológica e investigação empírica, a análise funcional permite a elaboração de um número de hipóteses “x”, sendo que “x” pode variar indefinidamente. Um instrumento que classifique funções de comportamentos, então, não conseguiria suprir todas as hipóteses possíveis de análise.

Uma forma de evitar a variação indefinida de interpretações funcionais é proposta por alguns analistas do comportamento (Hayes et al., 1996) baseada na identificação de uma dimensão funcional que estaria na base de boa parte das chamadas psicopatologias. Trata-se do recurso a “esquiva experiencial” como uma dimensão funcional de classificação. Esquiva experiencial é um conceito se refere ao repertório cuja função é dada pela fuga ou esquiva de eventos privados. Tal comportamento é caracterizado pela tendência à modificação da forma, diminuição da frequência, intensidade ou mesmo da sensibilidade a eventos privados aversivos[5]. O esforço de autores como Friman et al. (1998) em demonstrar como a esquiva experiencial estaria envolvida em diversos diagnósticos relacionados à ansiedade demonstra a abrangência da classe como dimensão funcional envolvida em diversas topografias consideradas problemáticas. A noção parece ser tão abrangente que dificilmente outra dimensão seria priorizada e, neste sentido, a esquiva experiencial estaria envolvida na maior parte (se não em todo) diagnóstico topográfico em psicopatologia.

Quando a possibilidade da formulação de um sistema de classificação funcionalmente embasado é abordada, Cavalcante e Tourinho (1998) fazem ainda mais uma ressalva argumentando que: “[...] a diversidade de possibilidades de intervenção baseadas na análise funcional sugere que uma questão anterior deve ainda ser examinada com cuidado: o que define a necessidade de sistemas de classificação e diagnóstico para a intervenção clínica de caráter analítico-comportamental?” (p. 146)

Este questionamento dos autores ganha especial relevância porque a lógica de como a literatura analítico-comportamental vem utilizando a análise funcional em busca de entender funções que envolvem topografias comportamentais como descritas em manuais sindrômicos tem se mostrado um recurso preciso e viável para o desenvolvimento de tratamentos eficazes (Banaco et al., 2010; Britto, 2012). Neste sentido, se os analistas do comportamento têm obtido êxito mesmo sem a formulação de um novo sistema de classificação funcional, qual seria a relevância do esforço para construção de tal sistema? Talvez por conta da dificuldade em responder a esta questão, mesmo os autores que outrora propuseram a construção de tal sistema (Hayes et al. 1996) parecem não ter mais despendido esforços em defesa da pauta durante os últimos dezoito anos.

3. A Clínica Comportamental e a Emergência de Subjetividades Psicopatológicas

Embora parte significativa da literatura analítico comportamental que versa sobre a relação entre a análise do comportamento e o diagnóstico psicopatológico possua ênfase na discussão entre a utilização ou não de diagnósticos sindrômicos e/ou funcionais, defende-se, neste artigo, que uma outra dimensão do problema precisa ser investigada com maior rigor. Uma vez contextualizadas as questões, vê-se que a reflexão sobre os instrumentos disponíveis pela cultura psiquiátrica parte da cultura dominante em psicopatologia para as implicações na prática analítico-comportamental. No entanto, quer seja por meio da utilização de classificações sindrômicas, quer seja pela utilização de uma categorização funcional, o diagnóstico possui implicações socialmente contextualizadas para o sujeito a quem se destina. A partir do presente tópico em diante, então, a análise voltar-se-á para as implicações das práticas envolvidas no uso destes instrumentos, quer sejam sindrômicos ou funcionais, para os sujeitos que são o foco da prática analítico comportamental em contexto clínico: o cliente.

3.1. A Cultura do Diagnóstico

Ferreira e Tourinho (2011) fazem uma análise de contingências culturais e sua relação com repertórios comportamentais classificados como depressão. Notadamente trazem a diferenciação dos repertórios emergentes nas sociedades modernas comparando-os com repertórios semelhantes em sujeitos de outros períodos históricos, fazendo uma revisão de trabalhos descritivos sobre a individualização dos sujeitos no curso da história.

Com base no continuum de complexidade (Tourinho, 2006) que considera os três níveis de seleção pelas consequências (i.e. filogenético, ontogenético e cultural), destaca-se no presente artigo o terceiro nível de seleção (i.e. cultura), trazendo a concepção de transformação de função de estímulos como um dos principais fatores para a modificação de como os sujeitos vêm respondendo de formas peculiares a eventos privados que eram relatados em outros períodos históricos da humanidade.

As implicações do trabalho de Hayes et al. (2001) colocam em foco a influência do comportamento verbal sobre outros repertórios comportamentais. Esta concepção sobre a linguagem e a cognição humana traz uma perspectiva que evidencia que o responder de um organismo verbal (humano) se dá a partir de uma rede relacional de estímulos formais e arbitrários. A “transformação de função de estímulos” seria um fenômeno envolvido na formação de uma rede de estímulos relacionados, em que um estímulo pode alterar a função de outro relacionado a ele: o descrever sobre um fenômeno (seja este um evento ou mesmo disposição para um evento) altera a função deste mesmo fenômeno (e.g. estímulos de função aversiva podem tornar-se reforçadores; estímulos aversivos podem ter sua função aversiva potencializada). Pode-se dizer então que quando um cliente relata que “pensar sobre minha vida me entristece”, as contingências verbais que envolvem o relato alteram a função do evento relatado em nível macro (i.e. o operante de “pensar sobre a própria vida” adquire função aversiva), assim como pode alterar a função dos estímulos verbais envolvidos (a própria vida). Ferreira e Tourinho (2011) então, afirmam:

Conforme Friman, Hayes e Wilson (1998), a auto-discriminação de um indivíduo pode afetar seu comportamento, valendo ressaltar que esta auto-discriminação tem necessariamente caráter verbal. Para estes autores, auto-relatos não somente descrevem comportamentos e circunstâncias como também alteram a função do comportamento e das circunstâncias descritas. Neste sentido, as autodescrições fariam parte do fenômeno em questão, participando de um entrelaçamento de relações e passando a exercer controle sobre outras respostas do indivíduo. (p.24)[6]

De maneira resumida, relatos sobre sentimentos ou pensamentos podem alterar a função dos eventos privados relatados. O diagnóstico é um relato que se refere a tais eventos privados e altera, portanto, sua função. Na clínica psiquiátrica e psicológica, tem sido uma prática comum reforçar diferencialmente não apenas as descrições sobre os eventos privados dos sujeitos, mas também sobre seus significados (i.e. relações funcionais arbitrárias verbalmente construídas). Ilustrando, um sujeito além de ser ensinado a descrever o conjunto de estados do corpo “sudorese”, “taquicardia” e “tremores” como “ansiedade”, também é ensinado que ansiedade está relacionada a outros termos que, em um processo de coordenação[7], a estabelecem de maneira aversiva. Por conseguinte, um conjunto de estímulos verbais que qualifica a ansiedade como “ruim” pode transformar a função de “ansiedade” e dos sinais e sintomas a ela relacionados tornando-os aversivos e reforçando respostas cuja função é livrar-se do sentimento ou de pensamentos de caráter ansioso.

A questão apresentada no parágrafo anterior se complexifica ao considerar que além do processo de coordenação entre o diagnóstico e o que é por ele descrito emerge também uma perspectiva que implica a atribuição de um caráter causal ao diagnóstico como fonte controladora das topografias consideradas problemáticas para o sujeito. O que anteriormente foi citado neste texto diferenciando as características de uma síndrome e uma doença parece ser uma linha tênue no senso comum, implicando a coordenação também destes dois termos (i.e. depressão é uma doença que causa o que por sua classificação é descrito).

Chamar-se-á, no presente artigo, de “cultura do diagnóstico” o conjunto de práticas culturais que envolve a atribuição de causalidade da experiência vivida à “doença” que recebe um rótulo no diagnóstico. Tal cultura envolve um paradoxo: a busca do sujeito por esquivar-se de tudo que funcionalmente é descrito pelo diagnóstico (e.g. eventos privados) está atrelada a uma ocupação de boa parte de sua vida (do sujeito), implicando em aproximar-se de informações sobre o diagnóstico, sobre o seu tratamento, a busca pelo testemunho de outras pessoas sobre sua “doença”, etc. Com a cultura do diagnóstico, alguns reforçadores positivos são alçados: alguma atenção social é dada para os relatos sobre a doença; assim como alguns reforçadores negativos são afastados; cobranças sociais são retiradas, etc. Ao mesmo tempo, o sujeito deixa de se comportar de modo a produzir alguns reforçadores sociais (principalmente aqueles envolvidos em comportamentos ditos como produtivos socialmente) que são gradativamente retirados. Tal retirada envolve o sujeito em contingências cada vez mais vinculadas ao próprio diagnóstico e cada vez menos produtivas em relação a outros aspectos da vida – como a família, a carreira, dentre outros.

Note-se que o que mantém os dois lados apresentados por este paradoxo podem representar dois conjuntos de contingências distintas, porém, frutos de um mesmo complexo conjunto de práticas culturais. Por um lado, o caráter aversivo de eventos privados coordenados a um dado diagnóstico evoca um repertório que pode ser altamente refinado de fuga/esquiva. Por outro lado, o próprio diagnóstico coordenado com a concepção do sujeito que é rotulado altera a função deste mesmo sujeito para os que o cercam em seu meio social. O diagnóstico então torna-se um problema em dois níveis para o sujeito: (1) ocorre a luta com o caráter altamente aversivo arbitrariamente condizente com o que é descrito pela classificação, (2) assim como os indivíduos pertencentes ao contexto social do sujeito diagnosticado reforçam relatos e práticas derivadas destes relatos, fornecendo consequências por meio de reforçadores que antes eram produto de outros repertórios.

Como consequência direta, o perfil de vários clientes que procuram a clínica analítico-comportamental é composto por “especialistas” no próprio diagnóstico, ou seja, sujeitos que gastam boa parte de seu tempo pesquisando sobre o diagnóstico, sobre tratamentos possíveis ou sobre implicações da doença. Tais “especialistas” tipicamente se envolvem em redes sociais, virtuais ou presenciais, que versam sobre o diagnóstico, obtendo reforçadores para quaisquer repertórios que se apresentem em função do diagnóstico obtido. Basta uma breve procura em redes sociais virtuais para encontrar comunidades de pessoas que se unem unicamente para debater sobre o diagnóstico em relação a diversos aspectos da vida cotidiana, fortalecendo cada vez mais interações baseadas nesta cultura do diagnóstico.

Com os modos mais autônomos que a tecnologia voltada à informação tem desenvolvido, qualquer comportamento de procura de informação é facilmente reforçado, o que favorece práticas de autodiagnostico. Segundo Vasconcellos-Silva & Castiel (2009) “a disponibilização de informações técnicas na Internet prenunciou o surgimento de uma nova saúde pública, centrada no autoesclarecimento e na autorresponsabilização dos usuários em questões ligadas à sua saúde” (p. 172). Leader (2015), por sua vez, afirma que as indústrias farmacêuticas empreendem esforços para que, cada vez mais, o diagnóstico seja acessível para que sujeitos possam iniciar um autodiagnostico. O que interessa ao presente artigo não é o diagnóstico em si, como descrição do sujeito ou de seus estados subjetivos (experiência de eventos privados), mas as implicações disso para a transformação da maneira como tais sujeitos lidam com seus próprios eventos privados – em uma palavra: com sua subjetividade.

Parece haver uma nova perspectiva de subjetividade que tem o diagnóstico como seu construtor. Colocando o uso do termo “subjetividade” para se referir à experiência de eventos privados e considerando as práticas que a cultura do diagnóstico fortalece em função destes eventos, o diagnóstico é arraigado às funções do que é chamado “subjetivo”. Não se trata apenas de uma simples nomeação que classificaria sinais e sintomas, mas uma recontextualização verbal que estrutura o modo como um sujeito se relaciona com as funções dos sinais e sintomas que descrevem seus eventos privados. Em meio a tal cultura, na medida em que o terapeuta se esforça em retornar a atenção do cliente para a sua vida, em um sentido mais amplo, este esforço tipicamente assume função aversiva para o sujeito e este tende a se esquivar – frequentemente acusando o terapeuta de minimizar ou “não entender” a sua dor. A partir disso, constroem-se sujeitos que, na procura de livrar-se de uma “doença”, encontram-se cada vez mais enredados na cultura do diagnóstico e menos ativos em relação a outros aspectos significativos da vida. Este fenômeno cultural pode ser descrito, em uma linguagem menos técnica, como a produção cultural de sujeitos que não conseguem lidar com sua própria subjetividade.

Dando um passo atrás e entendendo esta cultura a partir das práticas da Medicina, vê-se que repertórios comportamentais de “consultar profissionais de saúde” frente a uma enfermidade são reforçados negativamente pela retirada dos estímulos aversivos que envolvem a nomeação “doença”. Funcionalmente, neste dado contexto, descrições que valorizem negativamente a palavra e que estabeleçam a função da concepção “doente” como aversiva são importantes para a manutenção em padrões de qualidade de vida, que está relacionada à sobrevivência em nível cultural. Não haveria muito o que discutir sobre um enunciado como “ao aparecerem sintomas de uma gripe, é sensato que se consulte um médico para que o quadro não se agrave”. No entanto, quando o que é nomeado como doença é um aspecto da própria subjetividade do indivíduo, tem-se algo que pode ir contra a própria sobrevivência cultural. Como Skinner (1987) deixa claro, as práticas culturais que fortalecem uma fuga desenfreada do sofrimento ameaçam a própria cultura ocidental.

Como discutido anteriormente, “doença” é um termo que se relaciona à noção de causalidade. Acontece que também se relaciona à noção de “patologia” ou “anormalidade”, seguindo uma relação de coordenação funcional: ambos os termos são valorados como “ruins”, e o “ruim” relacionado com uma gama de eventos aversivos. Neste sentido, não é tão significativo se está lidando com um diagnóstico funcional ou sindrômico, mas com as coordenações que são culturalmente instaladas nos repertórios dos clientes. O fato de que o profissional da medicina ou psicologia pode conseguir evitar tais coordenações não exerce influência significativa em um contexto cultural em que os limites para a informação de massa são praticamente inexistentes.

Com o advento da Psiquiatria, como área da Medicina voltada aos problemas psicopatológicos, as relações formam novas concepções e funções são transformadas. Eventos privados relatados no curso histórico da sociedade ocidental assumem novas funções. Ferreira e Tourinho (2011) citam o contexto em que novas nomenclaturas (e.g. depressão) surgem na contemporaneidade reunindo sintomas já conhecidos pela sociedade, introduzindo a perspectiva de como a transformação social influencia fenômenos humanos. Segundo os autores:

Pessotti (2001) indica que sintomas hodiernamente atribuídos à depressão como sensação de incompetência ou fracasso, apreensão quanto ao futuro, entre outros, teriam estado presentes por séculos anteriores à contemporaneidade e constituiriam o que, no passado, era conhecido como “vida dura”. (Ferreira & Tourinho, 2011, p. 29)

Relatos que, conforme Pessotti (2001), estejam presentes na característica topográfica como abatimento, sensação de incompetência ou fracasso desinteresse por novas atividades quando se está preocupado com alguma coisa, perturbações do sono, e outras descrições topográficas de fato ainda existem enquanto relatos. No entanto, em uma perspectiva analítico-comportamental, fenômenos são definidos funcionalmente. Isto quer dizer que, uma vez que a função é alterada, o fenômeno é alterado. Por conta disso, não se pode afirmar que “depressão” é o que era chamado “vida dura” anteriormente. O que se chama de “depressão” é um fenômeno contemporâneo, uma vez que a cultura do diagnóstico alterou a função e, consequentemente, o próprio fenômeno existente.

Como boa parte dos comportamentos públicos e privados tornam-se sinais e sintomas de doenças, e tais doenças têm seu número e variação de critérios diagnósticos multiplicados, a demanda de sujeitos cuja subjetividade se estrutura por diagnósticos tende a aumentar. Conviver com a própria subjetividade tem se tornado um problema decorrente e, segundo esta perspectiva, a clínica psicológica pode fazer parte das práticas culturais que compõem a cultura do diagnóstico.

4. Considerações Finais

A concepção de que a crítica à cultura do diagnóstico pode ser sanada quando o diagnóstico é utilizado apenas como recurso de comunicação entre profissionais parece fadada ao fracasso. A despeito do que pensem os profissionais de saúde sobre o diagnóstico, a contemporaneidade é marcada por um acesso relativamente livre de limites a informações e os clientes são controlados por práticas culturais que envolvem a atribuição causal de eventos privados a qualquer descrição diagnóstica. Do mesmo modo, tampouco uma aula sobre gênese de comportamentos que o sujeito tenha como problemáticos em nível cultural ou individual teria grandes efeitos, considerando que mesmo o entendimento deste nível seria conformado ao mesmo sistema de contingências envolvidas na cultura do diagnóstico.

Não obstante a importância da discussão acerca dos limites e possibilidades gerados por diagnósticos sindrômicos ou funcionais, o presente artigo propõe que a discussão acerca da cultura do diagnóstico deve ser pauta de relevância independente da adesão a um ou outro tipo de modelo diagnóstico. Uma terceira via poderia ser proposta a partir da recusa da utilização de diagnósticos, quer sejam sindrômicos ou funcionais, por parte do analista do comportamento. Não foi objetivo deste artigo investigar de forma pormenorizada esta terceira via, mas o aprofundamento em questões da cultura do diagnóstico se faz necessário mesmo com uma adesão a tal perspectiva, uma vez que os clientes já fazem parte de tal cultura, independente da adesão do profissional de saúde. Como foi argumentado, práticas que envolvem o autodiagnostico são possíveis a qualquer sujeito com acesso a redes virtuais e demais fontes de informação cotidianas.

Por tudo que foi posto nesta discussão, ergue-se a necessidade de um debate mais amplo acerca da cultura do diagnóstico superando a concepção de que o controle verbal exercido pelo diagnóstico seria apenas descritivo e denunciando o papel que tal cultura possui na formação de subjetividades contemporâneas cada vez mais enredadas na psicopatologia da vida cotidiana. O presente artigo, portanto, não se trata de uma proposta de recusa ou adesão a determinados tipos de classificações diagnósticas, mas de uma proposta para que as práticas que transcendem tais escolhas (i.e. a cultura do diagnóstico) sejam alvo de debates mais intensos na comunidade analítico-comportamental.

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Notas

[1] O termo “biologicista” pode estar implicado em vários usos. No presente texto, o termo será utilizado apenas para caracterizar vieses em Psicopatologia que reduzam etiologia aos fatores orgânicos.
[2] Termo utilizado em uma perspectiva analítico comportamental que não se limita a caracteres físicos. Aqui o termo é utilizado no sentido de contexto, podendo referir-se à cultura na qual o sujeito estabelece relações e está sujeito às contingências.
[3] “A classificação sindrômica não é necessariamente incompatível com uma posição comportamental. É útil para objetivos analíticos examinar até que ponto a análise funcional poderia servir como uma alternativa compreensiva à classificação sindrômica.” (tradução própria)
[4] Para uma análise extensiva do tema, conferir Cavalcante e Tourinho (1998); Hayes e Follette (1992); Hayes et al. (1996).
[5] Para uma análise mais detalhada sobre o conceito de esquiva experiencial ver Boulanger, J. L., Hayes, S. C., e Pistorello, J. (2010).
[6] Para uma análise extensiva do tema, conferir Barnes-Holmes, O’Hora, Roche, Hayes, Bissett e Lyddy (2001).
[7] Coordenação é um sinônimo de equivalência funcional entre estímulos, na perspectiva apresentada por Hayes et al. (2001). Para uma leitura mais aprofundada sobre o tema, conferir Hayes, Gifford, Wilson, Barnes-Holmes e Healy (2001).
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