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Recepção: Maio 31, 2018
Aprovação: 02 Setembro 2018
Resumo: É possível analisar o preconceito racial focando tanto nos processos comportamentais individuais, como nos processos culturais envolvidos. Nessa direção, tem-se discutido o racismo institucional (RI): o fracasso das organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Levando em consideração os efeitos negativos do preconceito racial e a escassez de estudos da análise do comportamento que foquem nos processos culturais relacionados a esse tema, o objetivo desse trabalho foi apresentar algumas interpretações do RI a partir de uma análise comportamental da cultura. Inicialmente, conceituações do RI e seus indicadores foram apontados. Em seguida, foram expostas concepções comportamentais sobre as organizações e uma interpretação sobre o RI nas abordagens da Polícia Militar, sugerindo que, para sua modificação, alterações no seu ambiente selecionador seriam necessárias. A aprendizagem direta do preconceito racial que pode ocorrer a partir do alto número de ocorrências com pessoas negras, a justificativa à abordagem diferenciada a partir da “guerra às drogas” e o macrocomportamento de abordar majoritariamente pessoas negras e pobres, gerando como efeito cumulativo um número desproporcional de ocorrências com essa população também foram destacados como aspectos culturais envolvidos no RI. Por fim, eventos que contribuem para a manutenção do RI e sugestões de onde intervir em cada um dos fatores supracitados também foram propostos.
Palavras-chave: preconceito racial, racismo institucional, análise comportamental da cultura, metacontingência, abordagem policial, análise do comportamento nas organizações.
Abstract: One can analyze racial prejudice by focusing in individual behavioral processes as well as in the cultural processes involved in it. In this latter sense, researchers have been discussing institutional racism (IR): an organization’s failure to provide a professional and adequate ser- vice to individuals because of their skin color, culture, race or ethnicity. Taking into account the negative effects of racial prejudice and the lack of behavior-analytic studies focusing on the cultural processes related to this topic, the aim of this study was to present some interpretations of IR based on a behavioral analysis of culture. Initially, conceptions of IR and some of its indicators (e.g., health, public security, hiring and educational disparities between Black and White individuals) were summarized. Then, behavioral conceptions on organizations were presented. As an example, we proposed an interpretation of some aspects of IR on the Brazilian Military Police approach. We suggested that, for its modification, changes on its selecting environment (the Department of Public Safety agencies) are necessary. These agencies are responsible for establishing and changing the military police guidelines, directing their actions (e.g., defining resource investments priorities) and designating some of military police members to higher positions – all of these are potential cultural consequences for the military police. The direct learning of racial prejudice that can occur from the high number of occurrences with Black people, the macrobehavior of approaching mainly Black and poor individuals, generating a disproportionate number of occurrences with these populations as a cumulative effect, and the pretext for the differential approach in the “war on drugs” were also highlighted as cultural aspects involved in the IR. Events that contribute to IR maintenance were pointed out (e.g., impunity) and suggestions for interventions in each of the aforementioned factors were also provided.
Keywords: racial prejudice, institutional racism, behavioral analysis of culture, metacontingency, police approach, Organizational Behavior Management.
A maioria dos brasileiros – 54,9% de acordo com dados do IBGE de 2016 – declara sua cor ou raça como negra (preta ou parda). Entretanto, isso não tem impedido a persistência do preconceito racial, ou seja, de um conjunto de atitudes negativas em relação a indivíduos com certas caraterísticas físicas como cor de pele ou outros traços fenotípicos associados a pessoas negras (Nogueira, 2006; ver também Mizael & de Rose, 2017).3 Várias pesquisas têm evidenciando a ocorrência desse fenômeno nos mais diversos contextos, como na universidade, instituições de saúde, vida social, etc. (e.g., Kanter, Williams, Kuczynski, Manbeck, Debraux, & Rosen, 2017; López, 2012; Trad et al., 2016).
Analistas do comportamento têm tratado do preconceito racial de uma perspectiva mais focada em processos comportamentais individuais. Guerin (2005) destacou como para analisar funcionalmente o preconceito racial é necessário elencar variáveis controlando a emissão e comportamentos preconceituosos, i.e., os contextos nos quais uma pessoa faz um comentário considerado racista ou é chamada de racista por outros motivos. Nesse sentido, por exemplo, um indivíduo A que evita apertar a mão de um indivíduo negro B pode ser considerado preconceituoso por muitas pessoas. Uma análise funcional desse comportamento, porém, pode evidenciar que ele ocorre sob controle: da dificuldade do indivíduo A de ter aproximação física com quaisquer pessoas, de regras de evitação de pessoas desconhecidas, da suposição de que o indivíduo B não queira contato físico com A, dentre outras possibilidades. Ou seja, uma análise funcional do comportamento individual considerado preconceituoso é fundamental pois topografias semelhantes nem sempre envolvem as mesmas funções. Essa forma de analisar comportamentos preconceituosos tem implicações importantes ao se buscar intervir: uma intervenção sobre a emissão de comentários considerados racistas por um novo membro de uma empresa como forma de ser aceito no grupo deve ser diferente de uma intervenção com um indivíduo que faça o mesmo tipo de comentário para ferir uma pessoa negra (Guerin, 2005).
Ainda de uma perspectiva mais focada no comportamento individual, analistas do comportamento também têm relacionado o preconceito racial com o paradigma de equivalência de estímulos (de Carvalho & de Rose, 2014; Mizael, de Almeida, Silveira, & de Rose, 2016; Mizael & de Rose, 2017), comportamento verbal (Guerin, 1994) e Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT – Levin, Luoma, Vilardaga, Lillis, Nobles, & Hayes, 2016; Lillis & Hayes, 2007). Ainda são poucos os estudos nessa perspectiva, mas outras dimensões do preconceito racial também demandam estudo e elaboração.
Mais recentemente, estudos sobre o preconceito racial têm adotado uma perspectiva que tira o foco do comportamento individual e enfatiza os processos culturais envolvidos (e.g., López, 2012; Trad et al., 2016, 2017; Weichert, 2017). Nessa direção têm se discutido, por exemplo, o racismo institucional, que pode ser definido como
o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. (Brasil, 2006, p. 22)
Para Werneck (2016), o racismo institucional ou sistêmico é um
mecanismo estrutural que garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados. . . atuando como alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes sujeit@s nestes grupos. Trata-se da forma estratégica como o racismo garante a apropriação dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a fragmentação da distribuição destes resultados no seu interior. O racismo institucional ou sistêmico opera de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial. (p. 17)
Desse modo, o resultado desse tipo de racismo não seria “somente” o acesso restrito a produtos, serviços e oportunidades por indivíduos dos grupos racialmente subordinados, mas também a perpetuação de uma condição de desigualdade que é estruturante (Brasil, 2006).
O racismo institucional tem sido medido a partir de diversos indicadores. Na área da saúde, por exemplo, o racismo institucional tem sido evidenciado pela desvantagem das pessoas negras em comparação com as brancas quanto a: número de atendimentos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), número de exames preventivos (e.g., mamografia e Papanicolau) realizados, satisfação com o serviço prestado, número de pacientes que retornam às consultas, taxa de mortalidade de mães e bebês, número de partos realizados com anestesia, dentre outros. Assim, enquanto 85% das mulheres brancas realizaram o mínimo de seis consultas pré-natais recomendadas pelo SUS, apenas 71% das mulheres negras realizaram esse número de atendimentos (Brasil, 2016). Enquanto 16,2% das mortes prematuras foram de crianças brancas no ano de 2012, a porcentagem de crianças negras que morreram desta causa foi de 34,8% (Brasil, 2016). Segundo dados do DATASUS, a mortalidade materna no ano de 2016 no Brasil foi de 31,43% entre as mulheres brancas e 64,25% entre as negras. Essas diferenças entre brancos e negros ocorrem mesmo quando as pessoas negras possuem alto poder aquisitivo, excluindo explicações alternativas por questões socioeconômicas e justificando o uso do termo racismo institucional (e.g., IPEA, 2011; Leal, Gama & Cunha, 2005; PNAD, 2010; Werneck, 2016).
Na área da educação, a porcentagem de pessoas negras com quatro ou menos anos de estudo é de 32,3%. Em contrapartida, a porcentagem de pessoas brancas é de 23%. No outro extremo, os dados mostram que 22,2% dos brancos possui 12 ou mais anos de educação, enquanto que apenas 9,4% dos negros o possuem (IPEA, 2014). Na iniciativa privada, os dados sobre contratações no mercado de trabalho, tipo de cargo ocupado e salários também mostram que as pessoas negras sempre estão em desvantagem, recebendo salários mais baixos mesmo quando exercem a mesma função que pessoas brancas, sendo contratadas majoritariamente para cargos de baixa hierarquia, mesmo quando bastante qualificadas, etc. (e.g., Instituto Ethos, 2010, 2016; IPEA, 2011).
Outro indicador extremamente alarmante se refere aos dados de segurança pública. No Rio de Janeiro, por exemplo, no ano de 2014, os homicídios praticados pela polícia corresponderam a 15,4% do total de homicídios. Quando se analisa o perfil das vítimas, evidenciase que a maioria é do sexo masculino (99,5%), jovem (75% entre 15 e 29 anos de idade) e negra (79%). A maioria deles também vivia nas áreas mais pobres da cidade, principalmente nas favelas (Anistia Internacional, 2015).
Levando em consideração os efeitos negativos do preconceito racial para grande parcela da população e a escassez de estudos da análise do comportamento que foquem nos processos culturais relacionados a esse tipo de comportamento, o objetivo desse trabalho é apresentar algumas interpretações do racismo institucional a partir de uma análise comportamental da cultura (e.g., Andery, 2011; Tourinho, 2009).
RACISMO INSTITUCIONAL, ORGANIZAÇÕES E EVOLUÇÃO CULTURAL
As definições e indicadores apresentados circunscrevem o racismo institucional como um fenômeno organizacional, isto é, como um arranjo de contingências característico de instituições públicas ou privadas. O fenômeno pode incluir práticas racistas voltadas para membros da própria organização, gerando, por exemplo, desigualdades em termos dos cargos ocupados e dos salários pagos a negros e brancos. O destaque, porém, está na diferenciação em termos do acesso a produtos e serviços ou da qualidade do tratamento ofertado, isto é, em como as práticas de uma organização afetam seus clientes ou usuários. Nesse sentido, os indicadores do racismo institucional seriam seus efeitos: acesso a serviços, tratamento prestado e resultados alcançados que são desiguais para populações distintas.
As organizações têm sido estudadas e administradas há décadas pela Análise do Comportamento nas Organizações (Organizational Behavior Management), dentro da qual a Análise de Sistemas Comportamentais (Behavioral Systems Analysis) tem focado nas relações da organização com seu meio externo (Vilas Boas, Cassas, & Gusso, 2017). A Análise de Sistemas Comportamentais, por sua vez, pode ser integrada à análise de outros fenômenos culturais com a introdução em seu arcabouço teórico de conceitos como o de metacontingência (Glenn & Malott, 2004; Malott, 2003, 2016).
Nessa direção, Glenn e Malott (2004) aplicaram as noções de evolução cultural e metacontingência às organizações. Essas autoras definiram uma organização como um grupo de pessoas que realiza tarefas para gerar um determinado produto (e.g., geladeiras, serviços de telecomunicação, atendimentos médicos). Os membros de uma organização interagem entre si, i.e., o comportamento de um indivíduo afeta o comportamento de outro(s) indivíduo(s). Em outros termos, as contingências comportamentais de uma pessoa estão entrelaçadas às contingências comportamentais de outra – daí falar-se de contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs). Essas interações se repetem, produzindo a cada ocorrência um efeito direto dependente dessas interações, i.e., um produto agregado. CCEs podem ser operacionalmente definidas ou medidas pelo produto agregado que geram (Glenn et al., 2016). O trabalho diário em uma fábrica (CCEs) produz uma determinada quantidade de produtos manufaturados ao final do mês (produto agregado); o funcionamento diário de uma Unidade Básica de Saúde (CCEs) gera certo número de atendimentos realizados (produto agregado).
Apesar de, segundo Glenn e Malott (2004), as fronteiras de uma organização serem definidas pelo produto agregado gerado, não é ele per se que mantém a organização funcionando – ou que induz alterações nela. Uma fábrica que apenas produza milhões de manufaturados não é necessariamente uma organização bem-sucedida – a consequência crítica são os resultados gerados pelas manufaturas produzidas: a receita angariada. Uma Unidade Básica de Saúde que realiza uma grande quantidade de atendimentos de qualidade ainda pode receber poucas verbas e ser sucateada. São essas consequências que mantêm a recorrência ou alteram as CCEs da organização. Como elas dependem do comportamento entrelaçado de diversos indivíduos, elas podem ser consideradas eventos culturais: consequências culturais. Os indivíduos externos à organização que são responsáveis pela produção das consequências cultu- rais (e.g., os clientes da fábrica ou a Secretaria de Saúde que administra a Unidade Básica de Saúde) compõem seu ambiente selecionador (Glenn & Malott, 2004; ver também Glenn et al., 2016). Identificar e caracterizar esse ambiente selecionador seria fundamental para gerir a evolução cultural de uma organização.
O comportamento de cada membro da organização dificilmente pode ser analisado e alterado sem considerar o comportamento de outros membros (Glenn & Malott, 2004), o que justifica tratar uma organização como uma entidade cultural, um todo em si mesmo. Essa unidade evoluiria a depender tanto de seleção comportamental (envolvendo contingências comportamentais) quanto da seleção propriamente cultural, esta última envolvendo metacontingências, ou seja, as relações de dependência entre as CCEs que geram um produto agregado e as consequências culturais (vide Figura 1, adaptada de Glenn et al., 2016). Respostas recorrentes de diversos indivíduos (1, 2, 3 e 4) produzem estímulos que afetam os outros em CCEs. O resultado direto dessas CCEs é um produto agregado. Um ambiente selecionador externo à organização é afetado pelo produto agregado, gerando consequências culturais que retroagem sobre as CCEs.

Um exemplo apresentado por Glenn e Malott (2004) é o de um restaurante como uma organização:
O produto agregado das contingências comportamentais entrelaçadas do restaurante é a comida servida, e o sistema receptor são os consumidores. O restaurante sobreviverá somente se sua comida e suas características físicas (ambiência) satisfizerem às exigências do ambiente selecionador (pessoas que comem nesse restaurante). A comida e a ambiência podem mudar à medida que o ambiente externo do restaurante (preferência dos consumidores ou concorrência) se transforme. (pp. 100-101)
Uma organização é composta por subsistemas denominados de “setores”, “departamentos”, “diretorias”, etc. Cada um deles pode ser analisado do mesmo modo que uma organização completa, envolvendo metacontingências específicas (Glenn & Malott, 2004). Os produtos agregados de cada setor são essenciais para o funcionamento de outro(s) setor(es) da organização e geram consequências culturais específicas (muitas vezes produzidas internamente à organização; Glenn & Malott, 2004).
Apesar de Glenn e Malott (2004) terem focado em empresas privadas, esse tipo de análise também se aplica a organizações sem fins lucrativos e instituições públicas (e.g., Ellis,1991; Malott, 2003; Redmon & Wilk, 1991). Uma universidade pública federal, por exemplo, é definida pelas relações entre seus servidores (CCEs) que geram pesquisas publicadas, estudantes formados, serviços prestados à comunidade, etc. (produtos agregados) e que são mantidas pelos recursos federais e de outras ordens que ela capta (consequências culturais) advindos de agências de fomento, doações, investimentos de organizações privadas, etc. (ambiente selecionador).
Uma análise baseada nos conceitos de organização e metacontingência sugere a necessi- dade de identificar e caracterizar o ambiente selecionador gerando as consequências culturais relevantes para a organização a ser analisada. Apenas a partir dessa identificação e carac- terização pode-se planejar intervenções para alterar as contingências e metacontingências específicas em vigor na organização.4 Nesse processo, deve-se destacar que nem todo efeito produzido por uma organização está relacionado a uma consequência cultural (e, portanto, participa de uma metacontingência). Ou seja, alguns efeitos da organização podem simples- mente não exercer controle sobre o funcionamento da organização – e podem nem sequer ser identificados pela organização. Uma fábrica de manufaturas pode produzir também poluição no rio próximo. Apenas quando uma nova legislação, por exemplo, é introduzida, implicando em possíveis multas ou sanções de grande magnitude (consequência cultural), as CCEs que geram a poluição (aspectos das práticas de produção, manejo de rejeitos, etc.) podem ter sua probabilidade diminuída; ou seja, só então a poluição passa a exercer algum tipo de controle sobre a organização (mediada pelas multas programadas pelo governo).
Outro ponto a ser destacado é que nem todas as características de um produto agregado são relevantes para o fornecimento de consequências culturais pelo ambiente selecionador. Em uma universidade pública federal, por exemplo, os recursos (consequências culturais) fornecidos pelo governo federal (ambiente selecionador) para atividades de pesquisa (CCEs) podem depender apenas da quantidade, mas não da qualidade dos artigos publicados (produto agregado). Nessa direção, os indicadores utilizados para identificar o racismo institucional tipicamente são descrições de certas características de um produto agregado gerado por uma organização. O serviço educacional prestado a crianças negras, por exemplo, é, em geral, de menor qualidade do que aquele prestado a crianças brancas (e.g., Gilliam, Maupin, Reyes, Accavitti, & Shic, 2016). É uma questão a ser resolvida empiricamente se essa característica do produto agregado indicador de racismo institucional impacta o ambiente selecionador e tem repercussões em consequências culturais que afetam a organização, ou se ela é apenas um efeito colateral das CCEs organizacionais. Assim como, no caso dos comportamentos racistas de um indivíduo, é necessário identificar suas funções específicas (Guerin, 2005), também na análise do racismo institucional é preciso identificar as funções dessas CCEs organizacionais para elaborar intervenções adequadas e efetivas. Quando se afirma, por exemplo, que “o que o racismo institucional produz é não só a falta de acesso e o acesso de menor qualidade aos serviços e direitos, mas é também a perpetuação de uma condição estruturante de desigualdade em nossa sociedade” (Brasil, 2006, p. 13), se sugerem consequências culturais que estariam mantendo o racismo institucional. Essa sugestão precisa ser avaliada empiricamente antes que se planejem intervenções com base nessa análise. O objetivo desse trabalho não é realizar tal avaliação empírica, mas sugerir interpretações passíveis de verificação empírica. Em última instância, espera-se incentivar justamente estudos experimentais ou quase-experimentais com esse objetivo.
UM EXEMPLO: RACISMO INSTITUCIONAL NA POLÍCIA MILITAR
Com base no que foi apresentado anteriormente, propomos uma interpretação de alguns aspectos do racismo institucional presente em ao menos algumas Polícias Militares (PMs) brasileiras. Um primeiro passo nessa direção é uma análise organizacional da PM (Glenn & Malott, 2004; Malott, 2003). Destaque-se desde já a dificuldade dessa tarefa, haja vista a complexidade ambiental, de componentes e hierárquica (Glenn & Malott, 2004) dessa organização e o fato dela integrar uma das maiores organizações do país: o governo. A PM faz parte, junto com a Polícia Civil, a Polícia Técnico-Científica e outros órgãos (e.g., ouvidoria, assessoria de imprensa, chefia de gabinete), da Secretaria de Segurança Pública (SSP), que integra, por sua vez, a estrutura do seu respectivo governo estadual (vide, e.g., a página na internet da Polícia Militar do Estado de São Paulo). O governo estadual, por fim, estabelece diversas relações com o governo federal. Devido aos limites desse trabalho, não será possível analisar toda essa estrutura. Focaremos nos elementos mais diretamente relacionados à PM.
Breve Análise Organizacional da Polícia Militar
Como toda organização de grandes dimensões, a PM é composta por diversos setores internos, organizados hierarquicamente. Dentre esses, podem-se encontrar comandos de policiamento (de áreas metropolitanas, do interior, da capital, de trânsito, etc.), além de diretorias (e.g., de ensino, de logística, de saúde, de pessoal) e outros departamentos (e.g., corregedoria, comando geral). Isso sugere a complexidade das CCEs envolvidas no funcionamento interno da PM, i.e., que os comportamentos interrelacionados de diversos funcionários, organizados em diferentes setores, são necessários para que a PM seja capaz de desenvolver suas atividades. E são essas atividades que geram os produtos agregados definindo as fronteiras dessa organização (Glenn & Malott, 2004): a ronda de áreas escolares, as abordagens policiais, detenções, entre outros. Isso implica a existência de várias metacontingências, umas embutidas nas outras: as metacontingências relacionadas ao funcionamento de um comando de policiamento da PM estão contidas nas metacontingências maiores relacionadas ao funcionamento da PM como um todo, que, por sua vez, estão embutidas nas metacontingências da SSP, etc.
Assim, o ambiente selecionador primário da PM parece ser composto por outros órgãos da respectiva SSP estadual (e.g., chefia de gabinete, ouvidoria). São esses órgãos os responsáveis por estabelecer e alterar as diretrizes para o funcionamento da PM, direcionar sua atuação (e.g., definindo prioridades de investimento de recursos) e nomear os membros da PM de cargos mais elevados – todas essas potenciais consequências culturais para a PM. Em outros termos, são eventos como esses que aumentam ou diminuem a probabilidade de recorrência das CCEs que determinam o funcionamento da PM.5 A Figura 2 diagrama algumas dessas relações: respostas dos policiais militares participam de CCEs que geram como produtos agregados rondas, abordagens, detenções, etc. Outros órgãos da SSP, como a Chefia de Gabinete, são afetados por esses produtos agregados e funcionam como ambiente selecionador, gerando consequências culturais tais como diretrizes de atuação, nomeação para cargos e distribuição de recursos para a Polícia Militar. Qualquer análise comportamental ou cultural da PM deve levar em conta essas metacontingências mais amplas que circunscrevem seu funcionamento.

Racismo Institucional nas Abordagens Policiais
Para tratar do racismo institucional na PM, contudo, precisamos analisar atividades específicas responsáveis pelos indicadores de racismo institucional. A abordagem policial é um exemplo – uma atribuição essencial da PM e que necessariamente envolve relação com os usuários dos seus serviços. A abordagem policial pode ser definida como o “encontro entre a polícia e o público, cujos procedimentos adotados variam de acordo com as circunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com quem interage, podendo estar relacionada ao crime ou não” (Pinc, 2007, p. 7). A abordagem policial apresenta discricionariedade, ou seja, os policiais podem decidir abordar qualquer indivíduo a partir de avaliações subjetivas que os levem a identificar determinados comportamentos como suspeitos, assim como decidir quando e como utilizar a força letal e não-letal (Pinc, 2007; Trad et al., 2016).
Diversas pesquisas (e.g., Sinhoretto, Schlittler, & Silvestre, 2016; Trad et al., 2016; Weichert, 2017) indicam que pessoas negras, especialmente homens negros e pobres, são os alvos mais frequentes da abordagem policial. Trad et al. (2016), por exemplo, investigaram com base em quais critérios os policiais abordam indivíduos considerados suspeitos e como os jovens que já foram abordados veem essas práticas. Foram recrutados, para isso, mais de 100 policiais militares e mais de 80 jovens autodeclarados negros de Salvador, Fortaleza e Recife. A escolha das cidades se deu devido às altas taxas de mortalidade de jovens por causas externas, como a violência. Todos os jovens que participaram da pesquisa residiam em bairros periféricos e já haviam sido abordados por policiais.
No relato dos policiais com relação às características utilizadas para discriminar quem seria suspeito, se destacam a presença de tatuagens com desenhos que remetam a gangues e alguns tipos de vestimenta, embora tenham sido frequentes também relatos de que suas ações são baseadas em regras institucionais (Trad et al., 2016). Os jovens, por outro lado, apontaram que os critérios mais comuns seriam: (1) o pertencimento social ou situação econômica, sendo muito mais frequente a abordagem de pessoas que se encontram em áreas periféricas ou que “destoam” do ambiente, como quando um indivíduo anda em um bairro considerado nobre, mas suas roupas indicam um status social diferente; (2) os comportamentos, como gestos e formas de andar, além do tipo de reação diante da presença de um policial, como desviar o olhar, jogar algo que está segurando no chão, se abaixar ou se esconder, correr, etc.; e (3) a aparência do indivíduo, em termos de vestimenta, acessórios (brincos e colares de certo tipo), corte de cabelo ou penteado, a presença de cicatrizes ou tatuagens com desenhos específicos. Segundo Trad et al. (2016), essas características estariam popularmente relacionadas (diretamente ou verbalmente) com atos ilícitos. Por fim, os jovens também destacaram como critério para ser abordado pela PM: (4) traços fenotípicos do indivíduo relacionados à raça negra, como cabelos crespos, nariz achatado e pele preta ou parda.
Para os jovens, especialmente os moradores de Salvador e Recife, há uma “hierarquia de marcadores sociais” na escolha de quem é considerado suspeito ou não, sendo a cor da pele o primeiro critério utilizado, seguido pela condição socioeconômica. Nesse sentido, um indivíduo negro, pobre e morador de favela seria certamente abordado e, além disso, constituiria o candidato para o tipo de abordagem que configura abuso de autoridade. Interessante notar, por fim, que os jovens não se mostram contra a abordagem policial; o questionamento se refere ao tratamento diferenciado que ocorre entre eles e outras pessoas, geralmente brancas e de nível socioeconômico mais privilegiado, mesmo em situações nas quais ambos estão em um mesmo local e/ou se comportam da mesma maneira.
Essas descrições sobre a abordagem policial, assim como as estatísticas que evidenciam um maior número de abordagens e abusos a pessoas negras em comparação com pessoas brancas (e.g., Sinhoretto et al., 2016; Trad et al., 2016; Weichert, 2017) sugerem que a PM produz sistematicamente um produto agregado com determinadas características (abordagens diferenciadas com base na raça) indicadoras de racismo institucional. Um fenômeno dessa magnitude é certamente determinado por inúmeras variáveis inter-relacionadas e seria impossível sequer listalas. Aqui iremos apenas sugerir alguns fatores comportamentais e culturais que futuras investigações empíricas sobre o tema deveriam explorar.
Aprendizagem social do preconceito racial. Em primeiro lugar, o racismo institucional nas abordagens policiais pode ser alimentado pelo preconceito racial difundido entre a população como um todo, inclusive entre os policiais, devido a processos não necessariamente relacionados à polícia e ao crime. Esse fator não seria específico do racismo institucional em geral e nem do racismo institucional da PM, mas parece claramente contribuir para ambos. Por exemplo, a divulgação de estatísticas do tipo “a maioria das pessoas analfabetas são negras” (IPEA, 2014), pode levar à emergência, sem qualquer ensino direto, das relações “negro-burro” e/ou “negroruim” —uma vez que "burro" pode ser um termo pejorativo utilizado para se referir a um indivíduo analfabeto e ser analfabeto é considerado algo ruim em nossa sociedade—, ocasionando abordagens diferenciais a pessoas negras. (cf. Mizael, dos Santos, & de Rose, 2016; Mizael & de Rose, 2017).
Direcionamento das abordagens policiais pela “guerra às drogas”. Um segundo fator pode contribuir para a maioria das abordagens policiais envolver pessoas negras, pobres e socialmente excluídas: o foco de atuação da PM na chamada “guerra às drogas”. Esse modo de lidar com a questão do uso de substâncias ilícitas concentra esforços em diminuir a oferta dessas substâncias a qualquer custo. Nesse processo, e considerando as consequências dife- renciais para a PM ao lidar com ricos e pobres no Brasil, tende-se a reprimir e atuar junto às partes mais vulneráveis da cadeia de produção e distribuição de substâncias ilícitas: os “vendedores a varejo” que muitas vezes se concentram nas áreas periféricas das grandes cidades, onde devido a questões socioeconômicas concentram-se proporcionalmente mais negros. A decisão de lidar deste modo com o uso de substâncias ilícitas acabaria incentivando abordagens mais frequentes de negros socialmente desfavorecidos. Inclusive, várias pesquisas têm mostrado que a “guerra às drogas” tem sido uma das principais justificativas para o maior policiamento e abordagens às pessoas nas favelas (e.g., Anistia Internacional, 2015; Trad et al., 2017; Weichert, 2017). Note-se que, quanto a esse fator, diretrizes emitidas por órgãos como a chefia de gabinete da SSP exerceriam um papel fundamental na manutenção do racismo institucional na PM e deveriam ser alteradas em intervenções voltadas ao tema.
Seleção de macrocomportamento. Considerando que muitas abordagens policiais são direcionadas a uma população específica devido à política da “guerra às drogas”, deve-se analisar as contingências comportamentais a que os policiais são expostos ao realizar uma abordagem. Três tipos de consequências comportamentais parecem ser relevantes para o comportamento de “realizar uma abordagem”: (1) o registro de uma ocorrência, i.e., a identificação de um delito cometido pela pessoa abordada (e.g., porte ilegal de arma, posse de drogas ou itens roubados); (2) as reclamações da pessoa abordada quanto à legalidade ou retidão da abordagem ou apreensão realizada; as quais, por sua vez, podem levar à (3) interferência posterior da corregedoria ou de superiores exigindo dos policiais que respondam questionamentos ou anulando seu trabalho de abordagem, apreensão, preenchimento de boletim de ocorrência, etc. O relato de um policial citado por Trad et al. (2016) sugere que, na rotina da PM, consequências do tipo (1) ocorreriam mais frequentemente quando a pessoa abordada é negra e socialmente desfavorecida:
A maior parte da população que está no submundo é a de pele escura, entendeu? Ai [sic] os vinte e tantos anos de polícia dele, quer dizer, a maioria das ocorrências que [o policial] fez: é com o negro, é com o pobre, com o socialmente excluído. Automaticamente a fundada suspeita dele pode se confundir com o preconceito racial dele abordar o negro, o pobre, mas não que o policial seja preconceituoso. É que ele é levado pela sociedade, vem do meio (p. 56).
Se esse relato representar precisamente a história profissional típica do policial militar, estarse-ia identificando uma variável importante no processo de transformação de características pessoais relacionadas à raça negra, à pobreza e à exclusão social em estímulos discriminativos para iniciar uma abordagem. Determinados reforçadores (registro de ocorrências) estariam sendo correlacionados mais frequentemente a determinados estímulos antecedentes (características de pessoas negras ou socialmente excluídas) do que a outros (características de pessoas brancas ou socialmente favorecidas).
Evidentemente, mesmo que os criminosos com a qual a PM interage sejam majoritariamente negros ou socialmente excluídos, eles podem não representar adequadamente a população criminosa como um todo. Os criminosos de “colarinho branco”, que tendem a ser mais socialmente favorecidos, estão mais na alçada de órgãos como a Polícia Federal, por exemplo. Além disso, a própria PM pode abordar desproporcionalmente mais negros do que brancos (como verificado, e.g., por Hetey, Monin, Maitreyi, & Eberhardt, 2016, em Oakland, nos Es- tados Unidos). Nesse sentido, uma possível intervenção nessa situação poderia ser construir um treino discriminativo diferenciado. Uma possibilidade é a sugerida por Tom Tyler na matéria de Weir (2016): criar protocolos e checklists para diversas atuações de policiais, como a abordagem a pessoas na rua ou no trânsito. Outra possibilidade relacionada seria direcionar os policiais a, ao menos em parte da sua rotina, abordar o mesmo número de pessoas negras e brancas em um mesmo bairro e com base nos mesmos critérios (e.g., as 10 primeiras pessoas que passarem pela viatura da polícia, ou as 10 primeiras que estiverem paradas em uma determinada esquina), para então verificar explicitamente a quantidade de delitos ou crimes cometidos pelos indivíduos abordados. Um mesmo número de abordagens de pessoas negras e brancas em bairros considerados de alto e baixo status socioeconômico com base nos mesmos critérios produziria uma experiência menos tendenciosa sobre a quantidade de delitos e crimes cometidos por pessoas negras e, possivelmente, diminuiria a saliência de pessoas negras como estímulos discriminativos para a abordagem policial.
Quanto às consequências do tipo (2) e (3) para a abordagem policial, dadas as diferenças nacionais em termos de instrução e influência social, supomos que elas ocorram mais frequentemente quando a pessoa abordada é branca e/ou socialmente favorecida. A abordagem de negros resultaria em menos reclamações nas ouvidorias e/ou corregedoria da PM, ações judiciais ou reclamações diretas com superiores (por meio de conhecidos) em comparação com a abordagem de brancos (que na média seriam mais ricos e “socialmente influentes”). Essas consequências diferenciais também tenderiam a tornar pessoas negras e socialmente desfavorecidas estímulos discriminativos para o início de uma abordagem policial – e para cometer abusos. Além disso, esse estado de coisas ainda afetaria a apresentação de consequências culturais para a PM por outros órgãos da SSP, já que esse ambiente selecionador não seria pressionado a alterar as CCEs mantenedoras desse tipo de racismo institucional. Intervenções pertinentes a esse fator poderiam, por um lado, facilitar o acesso de negros às ouvidorias e/ou corregedorias das PMs e a medidas judiciais; e, por outro lado, diminuir as possibilidades de brancos apelarem para reclamações diretas com superiores em caso de abordagem ou apreensão justificada (o que por si só é ilegal, ou ao menos imoral).
Essa análise das consequências comportamentais da abordagem policial pressupõe que a exposição de diversos indivíduos a contingências comportamentais semelhantes pode produzir padrões de resposta similares. Padrões similares de resposta entre diversos indivíduos têm sido chamados de macrocomportamento e os resultados desses padrões de efeitos cumulativos (Glenn et al., 2016). As relações entre macrocomportamento e efeitos cumulativos compõem macrocontingências (Glenn et al., 2016). Assim, a exposição de diversos policiais àquelas contingências de reforço diferencial tenderia a gerar um macrocomportamento de abordar majoritariamente pessoas negras, pobres e socialmente excluídas e de fazê-lo abusivamente que tem como efeito cumulativo (dentre outros) um número desproporcional de ocorrências com essa população. O direcionamento das abordagens pela política de “guerra às drogas” acaba expondo os policiais a essas contingências comportamentais e favorecendo a seleção (comportamental) do macrocomportamento.
Seleção por consequências culturais. E quanto à seleção propriamente cultural dessa forma de racismo institucional? Alguma consequência cultural seria contingente especificamente a essas características do produto agregado ou elas seriam efeitos colaterais de CCEs mantidas por outras razões? Werneck (2016) parece sugerir uma consequência cultural específica que manteria diversas formas de racismo institucional ao afirmar que ele seria uma “forma estratégica como o racismo garante a apropriação dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na sociedade” (p. 17). Ou seja, maiores riquezas para pessoas brancas seria uma consequência cultural para diversas formas de racismo institucional, como aquele presente na abordagem policial. Se esse for o caso, contudo, e considerando nossa análise organizacional da PM, consequências culturais “proximais” fornecidas pela SSP deveriam estar envolvidas na recorrência das abordagens diferenciadas por raça. As diretrizes de atuação, as nomeações e o modo de distribuir os recursos internamente deveriam estar de alguma forma sob controle desse favorecimento da população branca. Uma análise aprofundada ou intervenções voltadas para essa possibilidade deveriam partir desse ponto, mas estão fora do escopo desse texto.
Manutenção da abordagem diferenciada por raça. Tendo a abordagem policial diferenciada por raça se instalado na PM, sua manutenção pode ser favorecida por outros processos. Se os negros e pobres são majoritariamente abordados, a chance de serem presos de qualquer forma já é maior – por uma questão probabilística e por possivelmente terem em média menos instrução e conhecimento dos seus direitos. Caso os brancos fossem majoritariamente abordados em primeiro lugar, a proporção de prisões entre essa população seria maior. A partir do momento em que se priorizam abordagens de negros (especialmente de negros socialmente desfavorecidos, com menos condições de fazer valer seus direitos), pode ocorrer um fortalecimento do preconceito racial e das próprias abordagens preferenciais a negros. Isso ainda pode ser retroalimentado por práticas culturais propagadas na introdução dos policiais às suas atividades, na sua “enculturação” ao cargo de policial, por seus instrutores e colegas experientes. Nesse caso, os mecanismos básicos envolvidos seriam principalmente os relacionados à propagação de práticas culturais (quer envolvam comportamentos individuais ou CCEs específicas; Sampaio & Andery, 2010).
Outro fator fundamental para a manutenção da abordagem policial diferenciada por raça na PM parece ser a impunidade, i.e., a ausência de consequências comportamentais ou culturais para os comportamentos e CCEs envolvidos. Mesmo com o racismo institucional estando instalado e sendo mantido por fatores externos à PM, caso houvesse a punição dos seus perpetradores ou consequências culturais enfraquecedoras contingentes às características do produto agregado, este grave problema social deveria reduzir de frequência ou ao menos de magnitude.
CONCLUSÕES
O objetivo deste trabalho foi mostrar maneiras de se interpretar o racismo institucional a partir da análise comportamental da cultura. Assim, após a apresentação das definições de racismo institucional e de alguns de seus indicadores, o fenômeno foi relacionado à análise comportamental das organizações. Em seguida, uma interpretação sobre o racismo institucional na Polícia Militar foi proposta, evidenciando que, para sua modificação, alterações em seu ambiente selecionador (composto fundamentalmente por outros órgãos da SSP estadual) seriam necessárias. Entretanto, a possibilidade de existirem consequências culturais que estariam mantendo o racismo institucional precisa ser avaliada de modo empírico, antes que qualquer tipo de intervenção possa ser proposto.
Como exemplo, o racismo institucional cometido pela Polícia Militar a partir das abordagens foi analisado, delineando que, provavelmente, mudanças na Secretaria de Segurança Pública (ou equivalentes a esta), i.e., no seu ambiente selecionador deveriam ser um foco em futuras intervenções que objetivem a diminuição do racismo institucional. Adicionalmente, outros aspectos culturais envolvidos no racismo institucional também foram brevemente abordados, como a aprendizagem direta do preconceito racial que pode ocorrer a partir do alto número de ocorrências com pessoas negras, a justificativa à abordagem diferenciada a partir da “guerra às drogas” e o macrocomportamento de abordar majoritariamente pessoas negras e pobres, gerando, como um dos efeitos cumulativos, o número desproporcional de ocorrências com negros e pobres. Alguns dos principais fatores envolvidos na manutenção dessas práticas são a impunidade, ou seja, a ausência de consequências para os comportamentos e/ ou CCEs envolvidos, e os processos mantenedores da abordagem diferenciada, que geram sistematicamente um maior número de condenações e/ou prisões a pessoas negras, mesmo quando indevidas.
Em resumo, este trabalho apresenta algumas concepções preliminares sobre uma análise comportamental da cultura voltada para o preconceito racial. Muitas análises ainda precisam ser feitas, como, por exemplo, uma análise pormenorizada dos fatores mantenedores de abordagens mais frequentes, maior número de prisões e/ou de assassinatos por policiais de pessoas negras em detrimento das brancas; fatores que podem estar relacionados a prisões injustas, como bonificações aos policiais que apreenderem certo número de armas, drogas ou realizarem certo número de prisões (e.g., Anistia Internacional, 2015), etc. Além disso, muitas afirmações apresentadas sobre o funcionamento da PM e de suas abordagens policiais não se basearam em dados coletados sistematicamente. Se, por um lado, isso é uma limitação do presente trabalho, por outro, esperamos que sirva como incentivo para que dados como esses sejam coletados, analisados, apresentados, discutidos e confrontados entre si.
Este trabalho constitui um primeiro passo no compromisso da análise comportamental da cultura para com causas sociais de relevância científica e, principalmente, social. Espera-se que ele possa auxiliar outros pesquisadores interessados nessa e em temáticas relacionadas a realizar análises, mesmo que exploratórias, que possam, no futuro, guiar pesquisas empíricas e propostas de intervenção sobre a questão.
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Notas
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