Recepção: Junho 23, 2018
Aprovação: Dezembro 20, 2018
Resumo: Diversos estudos apontam que jogos educativos podem ser instrumentos efetivos para o ensino de leitura e escrita ao mesmo tempo em que produzem engajamento. O presente estudo teve por objetivo avaliar o protótipo do jogo educativo Abrakedabra no ensino de palavras com encontros consonantais. Participou deste estudo uma criança de cinco anos. Empregaram-se como estímulos experimentais palavras faladas (A), palavras faladas pelo participante (A’), palavras impressas (B), figuras (C), escrita manuscrita (D), conjunto de letras (E), soletração oral (F), sílaba falada (G) e sílaba impressa (H). Na intervenção, os procedimentos de MTS e CRMTS foram usados para ensinar, por meio do jogo, as relações BA’, AA’, HA’, BE, AE, HE, GH, AC, BC, BD, AD, AF e BF. Foram testadas as relações CD, CB, BA’ e AE. Após a intervenção observou-se aumento no número de palavras corretamente lidas (relação BA’) e de letras corretamente selecionadas (relação AE). Quanto às sílabas com encontro consonantal, observou-se aumento no número de sílabas lidas apenas para as palavras de ensino, mas não em leitura recombinativa. Os resultados sugerem que embora o jogo possa ser empregado para o ensino, há necessidade de readequá-lo e de modificações no procedimento de ensino.
Palavras-chave: Equivalência de estímulos, MTS, CRMTS, leitura recombinativa, jogo educativo.
Abstract: Reading and writing are important behaviors in people’s lives, highlighting the importance of the development of educational technology. Several studies point that educational games can be effective to teach reading and writing because of its motivational character and the possibility of programming them according to Behavior Analysis principles. The current study aims to evaluate the prototype of the educational game Abrakedabra, Version 2, in teaching words with consonantal encounters and in the usability and engagement. The game Abrakedabra was modified to include words with consonantal clusters and the prototype of the modified game was evaluated. One 5-year-old child who did not read or write words with consonantal clusters participated. The experimental stimuli used in the study was spoken words (A), words spoken by the child (A’), printed words (B), figures (C), handwritten words (D) and set of letters (E), oral spelling (F), spoken syllable (G) and printed syllable (H).In the pre-test, the relations CD, CB, BA’ and AE were evaluated. In the intervention, the MTS and CRMTS procedures were used to teach, through the game Abrakedabra, the relations between BA’, AA’, HÁ’, BE, AE, HE, GH, AC, BC, BD, AD, AF and BF. The post-test was similar in structure to the pretest. There was an increase in the number of words correctly read (BA’) and letters correctly selected (AE). Regarding the syllables with consonantal clusters, the increase of words correctly read was only for the taught words, but not in recombinative reading. The results suggest that the game can be used to teach words with consonantal clusters, however, there is a need to readjust it and changes in the teaching procedure.
Keywords: Stimulus equivalence, MTS, CRMTS, recombinative reading, educational game.
Ler e escrever são comportamentos importantes para a vida em sociedade, pois possibilitam a comunicação com os outros e o acesso a conhecimentos apresentados em formato escrito. Mesmo assim, de acordo com a Prova Brasil de 2015, apenas 50% dos alunos do 5º ano atingiram o nível de aprendizado adequado em língua portuguesa, enquanto no 9º ano essa porcentagem é de 30% (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2015). Dificuldades para ler e escrever podem acarretar dificuldades de aprendizagem em diversos âmbitos. A literatura aponta que palavras que apresentam encontro consonantal (CCV – consoante-consoante-vogal), como a palavra PRATO, apresentam maior grau de complexidade fonológica que palavras “simples” (CV), como a palavra PATO, sendo essa dificuldade da língua um dos últimos segmentos a serem aprendidos, pois é preciso maior planejamento articulatório (Queiroga, Alves, Cordeiro, Montenegro, & Asfora, 2010). Evidencia-se, portanto, a necessidade de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de tecnologias para o ensino de leitura e escrita, em especial aquelas que produzam a aprendizagem desses comportamentos com palavras com maior grau de complexidade.
Entre as tecnologias empregadas para o ensino de leitura e escrita têm-se o uso de cartões com estímulos impressos (De Rose, de Souza, Rossito, & De Rose, 1989) e programas computadorizados (e.g., Cravo, 2018; Ponciano & Moroz, 2012; Rosa Filho, de Rose, de Souza, Hanna, & Fonseca, 1998). Apesar da bem documentada eficácia destas ferramentas, inclusive com palavras com dificuldades da língua (e.g., Cravo, 2018; Melo & Serejo, 2009), algumas pesquisas apontam para as vantagens do uso de jogos educativos para o ensino, que utilizem os princípios da Análise do Comportamento (Linehan, Roche, Lawson, Doughty, & Kirman, 2009). Jogos educativos podem ser definidos como ferramentas que possibilitam o planejamento de contingências de ensino utilizando atividade lúdica de maneira a manter o aprendiz engajado na tarefa que realiza enquanto aprende (Gris & Souza, 2016; Perkoski & Souza, 2015).
Pesquisas foram desenvolvidas utilizando jogos educativos para o ensino de leitura e escrita como o trabalho de Kirby, Holborn e Bushby (1981) que avaliaram os efeitos do uso do jogo Bingo de palavras (Word Game Bingo) sobre o desempenho de leitura de palavras que requerem memorização na língua inglesa (sightwords). Ronimus e Richardson (2014), também empregaram um jogo (GraphoGame) para o ensino. O GraphoGame é um jogo digital que visa ensinar a correspondência entre sons e letras, sílabas, palavras e pseudopalavras em um contexto de fantasia, além de ser composto por atividades de formação de palavras. Em todos os estudos houve melhora na leitura das palavras ensinadas.
No Brasil, as pesquisas com uso de jogos educativos no ensino de leitura e escrita têm como embasamento a Análise do Comportamento. Para os analistas do comportamento, ler e escrever são compreendidos como comportamentos operantes e como tal, são modelados ao longo da história de vida pelas relações entre indivíduo e ambiente (Skinner, 1957). Como afirma de Rose (2005, p. 32) “os componentes dos repertórios de leitura e escrita compreendem basicamente relações de controle de estímulo”. Ler requer relações de controle, entre respostas verbais (de topografia vocal ou motora, no caso das LIBRAS) e texto impresso, por exemplo, na presença de um texto impresso emitir uma resposta vocal/motora ou na presença de uma palavra falada selecionar um texto impresso (leitura auditiva receptiva, Sidman, 1971); e escrever um responder verbal de topografia manuscrita que pode estar sob controle de estímulos auditivos (configurando-se como ditado) ou visuais/impressos (cópia). O escrever pode ser considerado, ainda, como uma resposta construída pela seleção ordenada dos componentes impressos (letras, sílabas ou palavras), condicionalmente a um modelo.
Para alguns analistas do comportamento (e.g. Sidman & Tailby, 1982) ler e escrever podem ser entendidos como uma rede de relações que podem compreender tanto relações entre estímulos, como figuras, textos e estímulos auditivos quanto entre estímulos e respostas (e.g., entre figuras, textos, estímulos auditivos e nomeação, escrita manuscrita). Embora essas relações possam ser inicialmente independentes (de Rose, 2005), à medida que são aprendidas elas podem se integrar de maneira que novas relações não ensinadas diretamente possam emergir. As relações condicionais emergentes são de equivalência se as propriedades formais de simetria, reflexividade e transitividade forem demostradas. Um procedimento utilizado para o ensino das relações condicionais entre estímulos arbitrários é o de escolha de acordo com o modelo (MTS – matching to sample) (Sidman & Tailby, 1982). O procedimento consiste na apresentação de um estímulo-modelo, pelo menos dois estímulos de comparação diferentes e reforço diferencial da resposta de escolher o estímulo de comparação previamente estabelecido como correto para aquela tentativa. Por exemplo, na presença da palavra ditada “casa” (estímulo-modelo) e das palavras escritas CASA e CARRO (estímulo de comparação), o comportamento de escolher a palavra CASA é seguido de reforçamento diferencial (e.g., elogio).
O procedimento de escolha de acordo com o modelo com resposta construída, ou CRMTS (constructed response matching to sample) também tem sido empregado para o ensino das relações envolvidas nos comportamentos de ler e escrever (Mesquita & Hanna, 2016). Esse procedimento consiste na apresentação de um estímulo-modelo como uma palavra impressa, uma figura ou uma palavra ditada e de estímulos a serem escolhidos (como letras ou sílabas), e o aprendiz deverá selecionar ordenadamente cada componente do estímulo, de modo a construir um estímulo que está relacionado com o modelo (Mackay, 1985; Mackay & Sidman, 1984). O procedimento está de acordo com o ensino de leitura com o controle exercido por unidades moleculares, favorecendo a leitura recombinativa (Hübner, Souza, & Souza, 2014). Dentre os estudos que empregaram o modelo de rede de relações e jogos educativos destacam-se os de Dutra (1998) e Tenório (2013).
O estudo desenvolvido por Dutra (1998) avaliou se os procedimentos de ensino derivados da Análise do Comportamento poderiam ser aplicados por meio de jogos. Participaram seis alunos do ensino regular, com histórico de fracasso escolar e com idades entre 8 e 9 anos.
Foram utilizados um jogo da memória adaptado, um jogo de bingo e cartelas para ensino da nomeação de figuras, das relações entre palavra falada e figura, palavra falada e palavra impressa, palavra impressa e construção da palavra com sílabas impressas, sílaba falada e sílaba impressa. Foram empregados os procedimentos de MTS e CRMTS. Ao todo foram ensinadas 36 palavras que tiveram suas sílabas recombinadas e formaram as palavras de generalização. A avaliação foi feita por meio da comparação entre testes de leitura e escrita realizados antes e depois do início da intervenção. Os dados obtidos mostram que todos os participantes leram corretamente as palavras de ensino e tiveram uma porcentagem alta de acerto na escrita dessas mesmas palavras. Em relação às palavras de generalização, também se observou alta porcentagem de acertos. Esses resultados indicam que é possível utilizar jogos para o ensino de leitura e escrita em consonância com procedimentos da Análise do Comportamento. Os dados de Tenório (2013) corroboram os resultados obtidos por Dutra (1998).
Ainda, foram realizados outros estudos embasados nos princípios e conceitos da Análise do Comportamento que usaram o jogo AbraKedabra (Pellizzetti & Souza, 2014; Souza & Hübner, 2010; Sudo et al., 2008; 2014; Tripiana-Barbosa & Souza, 2015; Ximenes et al., 2011). O AbraKedabra é um jogo de tabuleiro que visa ao ensino de leitura e escrita de palavras dissílabas simples, ou seja, palavras com duas sílabas e estrutura silábica regular (consoante-vogal – CV), como BOLA, FADA etc. O jogo se baseia no modelo de rede de relações, e usa os procedimentos de MTS e CRMTS. No início do jogo cada participante ganha uma palavra impressa e deve lê-la em voz alta. Em seguida há o rolamento do dado. Os jogadores devem deslocar seus peões, ao longo de uma trilha, o número de casas correspondente àquele apresentado no dado e executar as ações pedidas em cada casa. O jogo possui casas das famílias silábicas (excluindo as sílabas compostas pelas letras H, K, W e Y e pela família silábica do Q - QUA, QUE, QUI, QUO) que visam ensinar as relações entre figura, palavra impressa e/ou palavra falada pelos jogadores e conjunto de sílabas; casas de bônus, nas quais se pode escolher uma sílaba do monte, sendo ensinadas as relações entre figura, palavra impressa e/ou palavra falada pelos jogadores e conjunto de sílabas; casas de Figuras, em que jogador deve escolher uma figura e visa ao ensino da relação entre figura e palavra impressa e/ou falada pelos jogadores; casas de Tarefas, nas quais o jogador pega uma nova palavra ou figura do monte com a finalidade de construir o nome destas com as sílabas ganhas; casa da Biblioteca na qual se trabalha a relação entre palavra impressa e palavra falada pelo jogador; casas da Bruxa que não Sabe Soletrar, Ler e Escrever, nas quais o jogador deve soletrar (oralmente), ler ou escrever (escrita manuscrita), respectivamente, de forma correta sua palavra; casa do Transporte escolar que visa ao ensino da relação entre palavra impressa-palavra falada pelo jogador e a casa Início da qual partem os peões de todos os jogadores no início do jogo. O jogo termina quando um dos jogadores (que será o vencedor da partida) conseguir, primeiro, construir sua palavra impressa a partir das sílabas ganhas durante o jogo e emparelhar a palavra impressa com a figura correspondente.
Sudo et al. (2008) usaram o jogo AbraKedabra para o ensino de três crianças com idades entre seis e sete anos, que cursavam o ensino fundamental e apresentavam dificuldades na leitura e na escrita de palavras com dissílabos simples. Inicialmente, realizou-se um ditado de 33 palavras, a partir do qual foram selecionadas, dentre as incorretamente escritas, oito palavras para o ensino; as sílabas das palavras de ensino foram recombinadas e formaram dez novas palavras (palavras de generalização). Na intervenção (sete sessões) utilizou-se o jogo de tabuleiro Abrakedabra, um jogo de memória (com o qual foram ensinadas as relações entre figura e palavra falada e figura e palavra impressa) e atividades de cópia no quadro-negro com giz (relação entre palavra falada ou impressa e escrita manuscrita). Ao final do estudo realizou-se um novo ditado com as oito palavras de ensino e as 10 de generalização. Houve aumento no número de palavras e sílabas corretamente escritas para as palavras diretamente ensinadas. Quanto às palavras de generalização, observou-se aumento no número de palavras corretamente escritas para dois dos três participantes. Quanto à leitura, observações não sistemáticas indicaram melhora na leitura de sílabas e de palavras simples.
A fim de expandir os resultados do estudo de Sudo et al. (2008), Souza e Hübner (2010) realizaram um novo estudo com nove crianças pré-alfabetizadas, com idades de 5 e 6 anos. Ao contrário do que foi feito no estudo de Sudo et al., no estudo de Souza e Hübner (2010) houve o registros sistemático do comportamento de ler dos participantes, apenas o jogo AbraKedabra foi usado para o ensino e um maior número de sessões com o jogo foi realizada (15 sessões). Ao final do estudo observou-se um aumento no número de palavras de ensino corretamente escritas (ditado com escrita manuscrita), lidas (leitura textual) e construídas (ditado com construção) e de emparelhamentos corretos entre palavras impressas e figuras. No que diz respeito às palavras formadas a partir da recombinação das unidades menores das palavras de ensino, as crianças não foram capazes de lê-las corretamente e nem de escrevê-las, mas houve um aumento no número de sílabas corretamente selecionadas por elas.
Os resultados obtidos por Sudo et al. (2008) e Souza e Hübner (2010) indicaram que embora o jogo tenha se mostrado efetivo na leitura e escrita de palavras de ensino, um desempenho menos consistente foi observado para as palavras de generalização. Um dos argumentos para esse resultado diz respeito ao baixo número de sessões. Sendo assim, Ximenes et al. (2011) realizaram novo estudo, com duas crianças de 5 anos da educação infantil, a fim de avaliar o número necessário de sessões com o jogo Abrakedabra para que as crianças lessem e escrevessem com 100% de acerto tanto as palavras de ensino quanto as de generalização. O procedimento empregado foi semelhante ao de Souza e Hübner (2010). Foram necessárias 18 e 27 sessões, respectivamente, para que os Participantes 1 e 2 lessem, escrevessem e compusessem as palavras de ensino e generalização.
Até aquele momento o jogo havia sido aplicado apenas pelo pesquisador. Resultados positivos também foram obtidos quando mães usaram o jogo para ensinarem seus filhos (Pellizzetti & Souza, 2014) e com pessoas com deficiência intelectual (Tripiana-Barbosa & Souza (2015). Embora alguns estudos tenham sido realizados usando o jogo Abrakedabra, duas questões ainda não foram adequadamente avaliadas. A primeira é: pode-se ensinar por meio do jogo a leitura e escrita de palavras com maior grau de complexidade de decodificação? Até o momento todas as pesquisas foram conduzidas usando como estímulos experimentais dissílabos simples, contudo, várias palavras da língua portuguesa não atendem a padrões regulares da estrutura silábica (CV) como é o caso das palavras que apresentam encontro consonantal (duas consoantes juntas dentro da palavra). Avaliar essa questão implica em reformulações no jogo. A segunda questão diz respeito a uma avaliação mais criteriosa quanto aos aspectos de usabilidade e engajamento produzidos pelo jogo já que nenhuma coleta sistemática desses dados foi realizada em estudos anteriores. A usabilidade diz respeito à mecânica do jogo (regras, manuseio, funcionamento etc.). O engajamento diz respeito ao comportamento do jogador de permanecer jogando. O equilíbrio desses aspectos possibilita que não se priorizem apenas os componentes educativos dos jogos em detrimento de seu caráter motivador (Linehan et al., 2009). Uma forma de avaliação desses aspectos por meio da observação direta e sistematizada de alguns comportamentos do jogador enquanto jogam foram propostas por Perkoski e Souza (2015) e Gris e Souza (2016). Outro conceito que se relaciona com o engajamento é a taxa de replay, que diz respeito ao número de vezes que um jogo pode ser jogado antes que haja perda de engajamento (replay ou rejogabilidade).
Considerando a relevância de estudar os jogos educativos como tecnologia de ensino para os comportamentos de leitura e escrita, além dos resultados já obtidos com pesquisas envolvendo o jogo Abrakedabra, foi desenvolvido um protótipo com readequação no jogo, ampliando seu escopo de maneira que, por meio dele, fosse possível trabalhar palavras com dificuldades da língua. Assim, para além do ensino de palavras dissílabas simples, foi adicionada uma nova trilha bem como novas palavras com dificuldades da língua. A nova trilha apresenta os encontros consonantais com a letra R, formando sílabas como BRA, DRA, CRA e palavras como CREPE, TIGRE e TREVO. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo avaliar o jogo após as alterações realizadas, investigando o efeito de seu uso no ensino de leitura e escrita de palavras com dificuldades da língua. Além disso, investigou a usabilidade e engajamento produzidos pelo jogo.
MÉTODO
Participante e Local
Participou do estudo uma criança do sexo masculino com 5 anos de idade, que cursava a Educação Infantil em um colégio particular. De acordo com seus pais, ela sabia nomear as letras do alfabeto mas ainda não sabia ler e nem escrever. O procedimento foi realizado na residência do participante com o consentimento dos responsáveis. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética com Seres Humanos Parecer nº 62589516.1.0000.5231. No local havia uma mesa, cadeiras, enfeites, um aquário, e, ocasionalmente, brinquedos.
MATERIAIS E INSTRUMENTOS
Os materiais utilizados no estudo foram folhas sulfites tamanho A4, lápis, borracha, canetas, quadro negro, giz, filmadora para registro da intervenção e um computador para análise dos dados.
Jogo AbraKedabra: construindo palavras (Versão 2). É um jogo de tabuleiro cujo objetivo é o ensino de leitura e escrita de dissílabos a partir de tarefas que incluem compor uma palavra com sílabas ganhas durante o jogo e emparelhá-la com uma figura correspondente, também adquirida ao longo do jogo. Podem participar de dois a quatro jogadores com a supervisão de um adulto ou uma criança alfabetizada. Para a realização desse estudo, o tabuleiro desenvolvido por Souza (2007) foi modificado: foi adicionada nova trilha ao jogo, o que possibilita o ensino de encontros consonantais. Além disso, a composição da palavra (via procedimento de CRMTS), que antes era realizada com cartões com sílabas impressas, passou a ser realizada letra por letra, utilizando o bloco de letras. A Figura 1 apresenta o protótipo do jogo, com as modificações.
Cartões com figuras e com palavras. Cartões de aproximadamente 5 cm por 5 cm com palavras com encontros consonantais impressas em preto, fonte Arial, tamanho 36, sobre um fundo branco. Os cartões com figuras coloridas, correspondentes às palavras usadas, impres- sas sobre um fundo branco medem aproximadamente 5 cm por 7 cm (Figura 1, B).
Bloco de letras. É composto de cinco blocos dispostos paralelamente. Cada bloco contém 23 pequenas páginas, cada uma com uma letra do alfabeto impressa em preto, fonte Arial, tamanho 90. Ao virar as páginas, cada bloco pode mostrar uma letra diferente e, dessa forma, é possível compor palavras com até cinco letras (e.g., uma sílaba simples e um encontro con- sonantal). A Figura 1 apresenta uma foto do bloco de letras usado no estudo.

ESTÍMULOS EXPERIMENTAIS
Os estímulos experimentais utilizados no estudo foram apresentados sob a forma de palavras faladas (A), palavras faladas pelo participante (A’), palavras impressas (B), figuras (C), escrita manuscrita (D), conjunto de letras (E), soletração oral (F), sílaba falada (G) e sílaba impressa (H). As palavras são compostas por duas sílabas, uma sílaba simples e uma sílaba com encontro consonantal. As palavras de ensino foram: CREPE, NOBRE, PEDRA, PADRE, TIGRE, GRILO, PREGO, TRAVE e TREVO. Cada uma das palavras de ensino e generalização tem uma figura que foi escolhida como correspondente. O critério para a seleção das palavras de ensino e generalização foi: (a) palavras dissílabas que apresentassem uma sílaba com encontro consonantal com a letra R; (b) palavras para as quais fosse possível o emparelhamento com uma figura (figura correspondente). Para as palavras de generalização, além dos critérios descritos acima, selecionou-se uma palavra que continha o mesmo tipo de encontro consonantal (GR, PR etc.) na mesma posição da palavra de ensino (e.g., paDRE e poDRE). Em razão da dificuldade de encontrar palavras com encontro consonantal que atendessem aos critérios anteriormente mencionados, para alguns encontros (CR, BR e PR) foi usado como estímulo somente uma palavra de ensino e uma de generalização. As palavras de generalização foram: CRAVO, FEBRE, LADRA, PODRE, BAGRE, GRIPE, PRECE, TRAPO e TRENÓ.
PROCEDIMENTO
Inicialmente ensinou-se a relação entre figura (C) e palavra falada pelo participante (A’) (prétreino) e verificou-se a nomeação das letras do alfabeto (relação EA’). Em seguida realizou-se o pré-teste, no qual foi avaliada a leitura e a escrita de palavras com dificuldades da língua (relações CD, CB, BA’, AE). Posteriormente foram realizadas sessões de intervenção divididas em blocos de três sessões (três blocos, totalizando nove sessões de intervenção). Ao final de cada bloco de intervenção foram realizadas sondas. Quando o participante não apresentasse, nas sessões de sonda, 80% de acerto na relação entre figura e palavra escrita (manuscrita) com as palavras ensinadas no bloco realizava-se um procedimento adicional, que era seguido por nova sonda. Por fim, realizou-se uma sessão de Pós-teste e após um mês, uma sessão de follow up. As etapas do procedimento bem como as relações ensinadas ou testadas em cada etapa são apresentadas na Tabela 1.


PRÉ-TREINO (RELAÇÃO CA’)
Esta etapa foi realizada individualmente com o participante. Inicialmente foram apresentados, um a um, cartões com as figuras impressas das palavras de ensino e generalização e o participante foi solicitado a dizer o nome das figuras. Com a finalidade de ensinar o nome das figuras, as nomeações correspondentes foram seguidas por elogio e as não correspondentes pela apresentação oral do nome da figura pelo pesquisador que era repetido pelo participante (ecóico). A repetição correta do nome da figura era seguida de elogios. Ao longo das sessões de teste e intervenção, sempre que o participante perguntava o nome da figura ou dizia o nome errado, a pesquisadora repetia o nome correto da figura pedindo que o participante repetisse. Elogios se seguiam a correta nomeação da figura.
Verificação da relação entre letra impressa e nomeação pelo participante (Relação EA’). Foram apresentados cartões com letras impressas, um de cada vez e de forma aleatória e o participante foi requisitado a nomeá-las. Para fazer parte do estudo o participante deveria ter um desempenho superior a 90% de acerto nesse teste. Foram apresentadas as 26 letras do alfabeto da língua portuguesa.
PRÉ-TESTE
Esta etapa foi realizada individualmente com o participante. Foram testadas as relações entre figura e escrita manuscrita (CD), entre figura e palavra impressa (CB), entre palavra impressa e palavras faladas (BA’), entre palavra falada e letras (AE) com todas as palavras de ensino e generalização. Nesta etapa, nenhum feedback foi liberado. As respostas foram seguidas pela apresentação da próxima tentativa.
Teste de escrita com figura como modelo (Relação CD). Um cartão com uma figura de cada vez foi apresentado e o participante foi instruído a escrever o nome das figuras em um quadro-negro.
Teste da relação entre figura e palavra impressa (Relação CB). A pesquisadora apresentou um cartão com uma figura e, em seguida, colocou sobre uma mesa três cartões com palavras impressas. O participante deveria tocar o cartão com a palavra impressa correspondente à figura apresentada no cartão pela pesquisadora.
Teste de leitura (relação BA’). Foram apresentados, um a um, cartões com palavras impressas e o participante foi instruído a ler o que estava impresso sobre eles. Caso o partici- pante demorasse mais de 3 segundos para responder, havia a retirada do cartão e apresentação do próximo.
Teste de construção de palavras com letras (relação AE). O participante recebeu o cartão com letras, que compõem o jogo e foi ensinado a utilizá-lo com a seguinte instrução: “Se você virar essas páginas terá todas as letras do alfabeto e poderá compor uma palavra”. O participante foi então requerido a compor uma palavra que já sabia escrever, no caso o seu nome. O teste só teve início depois que o participante compôs corretamente seu nome com o cartão, sem ajuda da pesquisadora. Em seguida, o participante foi solicitado a construir as palavras ditadas pela pesquisadora. As palavras de ensino e generalização foram ditadas, sem divisão de sílabas e entonações. Havia a possibilidade de a palavra ser repetida quantas vezes o participante requisitasse.
INTERVENÇÃO
Foram realizadas nove sessões de intervenção e, em cada sessão, o participante jogava com uma das três palavras de ensino que compunham o bloco. Para a intervenção utilizou-se o jogo de tabuleiro AbraKedabra: construindo palavras (Souza, 2007 – Versão 2), adaptado para atender aos objetivos desta pesquisa. Nas sessões de intervenção o participante jogou com a pesquisadora. Inicialmente os componentes do jogo foram apresentados ao participante, como peões, tabuleiro e cartas. Em seguida a pesquisadora leu a história do jogo, que descreve o enredo e explica o que os jogadores precisam fazer para ganhar: “Pedro é um menino muito dedicado e gosta de estudar. Todos os dias ele passa por uma trilha encantada em uma floresta a caminho da escola, mas hoje ele perdeu algumas partes de sua tarefa pelo caminho. Vamos ajudá-lo? Encontre pelo tabuleiro: (a) as sílabas para compor a palavra de Pedro, (b) uma figura que combine com a palavra; mas cuidado! Muitos desafios o aguardam, porque essa floresta é encantada!”. O participante foi então convidado a jogar. Cada jogador recebeu um cartão com uma palavra que compunha o bloco de palavras: uma para o participante e outra para a pesquisadora (e.g., o participante ficou com a palavra CREPE e a pesquisadora com a palavra PEDRA). A pesquisadora leu corretamente cada palavra e pediu que o participante repetisse o que foi lido (comportamento textual com dica ecóica). Cada jogador (pesquisador e participante) posicionou seu peão na Casa Início, jogou o dado e moveu o peão pelo número de casas correspondente ao número apresentado no dado. No jogo, em cada casa, havia uma atividade a ser cumprida pelo participante (ver Tabela 2). Após a execução correta das atividades, elogios eram liberados e o jogador poderia prosseguir no jogo. A execução incorreta da atividade era seguida de instruções sobre como realizá-la. Todas as instruções e auxílios foram esvanecidos ao longo das sessões, i.e., inicialmente instruções completas eram fornecidas com auxilio (instruções que descreviam o contexto, o comportamento a ser executado e as consequências da execução correta com realização da atividade pelo pesquisador), depois instruções completas eram fornecidas sem auxilio, em seguida apenas instruções parciais (instruções que descreviam apenas o comportamento a ser executado) e finalmente nenhuma instrução era dada (participante executava as atividades de maneira independente). Por meio do jogo foram ensinadas as relações entre: palavra impressa e palavra falada (leitura oral – BA’); palavra impressa e conjunto de letras (cópia por construção - BE); palavra falada pelo pesquisador e conjunto de letras (ditado por construção - AE); palavra impressa e figura (BC); palavra falada pelo pesquisador e figura (AC); soletração (AF e BF); palavra impressa-escrita manuscrita (BD); palavra falada-escrita manuscrita (AD); sílaba falada pelo pesquisador ou participante e sílaba impressa (GH); sílaba impressa-conjunto de letras (HE), palavra falada pelo pesquisador e palavra falada pelo participante (AA’) e sílaba impressa e sílaba falada pelo participante (HA’).


SONDAS
Nas sondas, o desempenho do participante foi avaliado utilizando-se os mesmos testes empregados no pré-teste. Contudo, as sondas se limitaram às palavras ensinadas durante as sessões de intervenção que a precederam e às palavras de generalização correspondentes.
PÓS-TESTE E FOLLOW UP
No pós-teste foram realizados os mesmos testes conduzidos nas sessões de pré-teste e visou avaliar o desempenho dos participantes em relação a todas as palavras ensinadas e de generalização. O follow up foi semelhante em estrutura ao pós-teste e foi realizado um mês após o término das nove sessões de intervenção.
AVALIAÇÃO DA USABILIDADE E ENGAJAMENTO
Para avaliação da usabilidade e engajamento registrou-se a frequência dos comentários espontâneos feitos pelos participantes sobre o jogo e sua interação direta com ele (fase de intervenção). Esses comentários foram categorizados de acordo com as categorias usadas por Gris e Souza (2016), adaptadas para este estudo. Para avaliar usabilidade, foram utilizadas as categorias: perguntas sobre o jogo, que diz respeito a fazer perguntas sobre o funcionamento do jogo, evidenciando dificuldade de compreendê-lo; e solicitação de ajuda para executar ações do jogo, que pode ser definido como pedir ajuda para jogar o dado, movimentar o peão, comprar cartas. Para avaliar o engajamento foram utilizadas as categorias comentários positivos sobre o jogo (apontar características agradáveis do jogo, expressar sentimentos positivos em relação ao jogo) e comentários sobre o enredo/história (emissão de comentários sobre elementos da história, dos personagens e do tabuleiro). Essas categorias indicam aumento de engajamento. As categorias comentários negativos sobre o jogo (pedir para interromper a partida, demonstrar desaprovação, expressar sentimentos negativos em relação ao jogo e se recusar a executar ações do jogo) e comentários sobre assuntos alheios ao jogo (iniciar assuntos diferentes dos tópicos apresentados pelo jogo) se relacionam com a diminuição do engajamento.
PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DE DADOS
A avaliação dos objetivos de ensino foi feita por meio da comparação das respostas apresentadas nas sessões de pré-teste, sondas, pós-teste e follow up. A porcentagem de acerto dos testes foi calculada da seguinte forma: para o teste de escrita manuscrita (CD) e de composição com conjunto de letras (AE), considerou-se cada letra da palavra escrita ou composta na posição correta. Por exemplo, se a figura do PADRE fosse apresentada como modelo e o participante escrevesse “PRIOCLA”, a única letra escrita corretamente era o P (única que se encontrava na posição correta), atingindo então 20% de acerto para esta palavra (1 letra escrita corretamente em uma palavra de 5 letras). O mesmo tipo de cálculo foi feito para a relação AE. Para o teste de leitura (BA’), foi considerada cada sílaba corretamente lida, por exemplo, frente à palavra escrita PREGO e da leitura da palavra “PRAGO” pelo participante, considerou-se que ele leu corretamente apenas a sílaba “GO”, atingindo uma porcentagem de acerto de 50% para esta palavra (uma sílaba lida corretamente para uma palavra de duas sílabas). Para o teste da relação CB, considerou-se a frequência de palavras corretamente selecionadas. Em todos os testes, quando o participante disse não saber a resposta ou apresentou uma resposta incorreta, isso foi considerado como erro (0% de acerto).
RESULTADOS
Avaliação dos Objetivos de Ensino
Pré-teste
Na verificação e ensino da relação entre figura e palavra falada pelo participante (CA’), ele nomeou incorretamente todas as figuras correspondentes às palavras de generalização e a figura da palavra de ensino NOBRE. O participante nomeou corretamente todas as letras do alfabeto (EA’), contudo, não escreveu corretamente nenhuma das palavras correspondentes às figuras apresentadas (relação CD). Neste teste ele escreveu as vogais da palavra seguida de outras letras (e.g., IOLAOQ para GRILO); para algumas figuras, ele escreveu corretamente a primeira letra da palavra (e.g., PERPRC para PEDRA). Ressalta-se que o participante apresentou dificuldade na motricidade fina para escrever algumas letras. A análise da porcentagem de acertos mostra que no pré-teste, das 90 letras presentes nas palavras de ensino e de generalização apresentadas na forma de figura, o participante foi capaz de escrever 14 delas (15,5% de correspondência). Em cinco tentativas (palavras CRAVO, PODRE, GRIPE, TRAPO e TRENÓ) o participante relatou não saber escrever e em uma tentativa (palavra FEBRE) ele fez uma garatuja.
No que diz respeito ao teste da relação entre figura e palavra impressa (CB), o participante escolheu corretamente três das 18 palavras que compunham o pré-teste (16,67% de acerto). No teste de leitura (BA’), ele leu incorretamente todas as palavras apresentadas. Para 17 palavras, o participante disse palavras do cotidiano e o nome de personagens de desenhos animados, apenas para uma delas ele relatou não saber o que estava escrito (palavra PREGO). No teste da relação entre palavra falada e conjunto de letras (AE), o participante compôs ini- cialmente seu próprio nome, verificando-se que ele aprendeu a usar o bloco com letras, contudo, não compôs nenhuma das palavras de ensino e generalização corretamente. Na maioria das tentativas o participante relatou não saber compor as palavras.
Intervenção e jogo
Foram realizadas 15 sessões de intervenção com o jogo: nove já previstas e seis sessões para realização do procedimento adicional: para as palavras CREPE, GRILO, TIGRE, PREGO, TRAVE e PADRE. As sessões de intervenção tiveram duração média de 36 minutos (16 minutos a 69 minutos). Em média foram realizadas 27,3 jogadas por sessão (de nove a 38). Entende-se por uma jogada o período desde o lançamento do dado até o lançamento do dado pelo outro jogador. O participante ganhou o jogo pelo menos uma vez em cada bloco. Nos casos em que a pesquisadora ganhou, o jogo prosseguiu até que o participante também compusesse sua palavra. Ao todo foram realizadas seis sessões de Sonda, duas para cada bloco de palavras. A Figura 2 apresenta a porcentagem de acerto no pré-teste, em cada sessão de sonda, no pós-teste e no follow up. Destaca-se que para o pré-teste, o pós-teste e o follow up a porcentagem de acerto diz respeito às respostas para as 18 palavras, enquanto para as sondas o cálculo foi feito apenas para seis palavras de cada vez conforme descrito na seção procedimento (palavras de ensino e generalização que precederam as sondas).

Os resultados das sondas sugerem que, com o início da intervenção, houve um aumento na porcentagem de acerto para as relações CD, CB e BA’. Ao comparar os resultados das sondas após um mesmo bloco (e.g., Sonda 1 com Sonda 2, Sonda 3 com 4 e Sonda 5 com 6), constatou-se um aumento na porcentagem de acertos de uma sonda para outra, indicando a efetividade do procedimento adicional de ensino, que foi realizado entre estas sondas. Para a relação AE, contudo, houve baixa porcentagem de acertos em todas as sondas.
Quanto aos resultados do pós-teste e do follow up, comparado ao desempenho apresentado no pré-teste, houve aumento da porcentagem de acertos para as relações CB e BA’. Na sessão de pós-teste o participante leu (relação BA’) corretamente sete palavras de ensino e algumas das sílabas simples das palavras de generalização. No follow up o participante leu corretamente a palavra de generalização TRENÓ. Para a relação CB, o participante selecionou corretamente três palavras no pré-teste, 13 palavras no pós-teste e 17 no follow up. Quanto à relação CD, o participante escreveu a palavra PEDRA no pós-teste e follow up. Quando se compara o número de letras corretamente escritas (relação CD) na sessão de pré-teste e de pós-teste, verifica-se que houve uma diminuição na porcentagem de acerto no pós-teste, e um aumento na sessão de follow up. Para a relação AE, o participante relatou não saber compor a maioria das palavras apresentadas, apesar de ter utilizado corretamente o bloco de letras durante a intervenção. Quanto à escrita manuscrita, escreveu corretamente apenas uma palavra no pós-teste (PEDRA) e uma no follow up (PEDRA). Ao comparar os resultados da sessão de pós-teste e de follow up, constata-se que a porcentagem de acerto foi maior na sessão de follow up para algumas das relações. Quanto às sílabas com dificuldades da língua, observou-se que o participante leu as palavras de ensino, mas leu apenas uma das palavras de generalização (TRENÓ).
AVALIAÇÃO DA USABILIDADE E ENGAJAMENTO
No que diz respeito à avaliação da usabilidade, foram necessárias apenas as instruções do jogo para que o participante entendesse seu funcionamento. O participante emitiu quatro respostas de solicitação de ajuda para executar ações do jogo. Estas se relacionaram com o custo da resposta de montar as palavras no bloco de palavras. A respeito do engajamento, o participante manteve-se a maior parte do tempo realizando ações do jogo, inclusive ajudando a pesquisadora mesmo quando não era sua vez de jogar. Houve a emissão de comentários positivos (7) e comentários sobre a história (10). Contudo, observou-se uma alta taxa de comentários alheios ao jogo (n=71), que podem indicar uma diminuição do engajamento. Observou-se também a emissão de comentários negativos (10). Eles ocorreram, em sua maioria, na segunda metade do jogo e se relacionaram com a demora para que o jogo acabasse. Pode-se dizer, portanto, que nas partidas mais longas houve perda do engajamento, sendo necessário ajustar o procedimento para que as partidas sejam mais curtas. Por outro lado, mesmo após ter participado de 15 sessões, o participante manifestou o desejo de jogar novamente, o que pode indicar que o jogo pode ser repetido, ou seja, que ele possui alto grau de rejogabilidade.
DISCUSSÃO
Os resultados parecem indicar que o jogo foi efetivo para ensinar as relações entre figura e palavra impressa (CB) e entre palavra impressa e palavra falada (BA’) para as palavras de ensino. No jogo as relações BA’, AA’, HA’, BE, AE, HG, HE, GH, AC, BC, BD, AD, AF e BF foram diretamente ensinadas. Estudos mostram (Sidman & Tailby, 1982) que o ensino direto de algumas relações pode levar a emergência de relações não diretamente ensinadas. Dessa forma, o aumento na porcentagem de acerto para a relação CB pode estar relacionado ao ensino da relação simétrica BC. Também, o emparelhamento entre a palavra impressa e a palavra falada pelo participante (BA’) era ensinado diretamente quando se pedia ao participante para ler a palavra impressa (Casa início: “Esta é sua palavra. Vamos ler juntos?”). O ensino direto dessa relação pode ter possibilitado o aumento da porcentagem das palavras corretamente lidas nos testes. Estes resultados sugerem a possibilidade de empregar o jogo para ensino das relações CB e BA’ quando palavras com encontros consonantais são usadas enquanto estímulos experimentais.
O aumento na porcentagem de acerto para as relações BA’ e CB obtidos por meio do jogo, para as palavras de ensino e a porcentagem de acerto menos consistentes para as palavras de generalização corroboram, em parte, o de outras pesquisas que o utilizaram como estímulos palavras compostas por dissílabos simples (Souza & Hübner, 2010; Sudo et al., 2008). Também corroboram os resultados de estudos baseados no modelo de equivalência que usaram como estímulos experimentais sílabas irregulares e dificuldades ortográficas/decodificação, como encontros consonantais (Cravo, 2018; Melo & Serejo, 2009). No estudo de Cravo (2018) crianças com privação auditiva e implante coclear aprenderam a ler palavras com sílabas com dificuldades ortográficas por meio do software ALEPP (Aprendendo a Ler e a Escrever em Pequenos Passos). No estudo de Melo e Serejo (2009), crianças típicas, com dificuldade de aprendizagem, aprenderam a ler as palavras com dificuldade da língua ensinadas, contudo, quando se compara o desempenho das crianças do estudo de Melo e Serejo (2009), com o da participante do presente estudo observa-se que as primeiras apresentaram desempenho mais consistente nas palavras com recombinação das sílabas das palavras de ensino.
Para as relações entre figura e palavra escrita e entre palavra falada e conjunto de letras, o desempenho do participante indica a necessidade de revisão do procedimento de ensino. No jogo a escrita das palavras só era exigida quando o peão do participante caia nas casas da Bruxa da Escrita e do Mago da Escrita. O jogo tem 5 casas dessa natureza. A probabilidade de o peão do participante cair nessa casa era baixa, portanto, mudanças que permitissem mais chances dessa relação ser trabalhada durante o jogo poderiam ser implementadas. Ainda, os encontros consonantais escolhidos não tiveram uma distribuição regular (duas palavras com DR, duas com TR, duas com GR, uma com CR, PR e BR) e houve pouca repetição das sílabas em diferentes palavras e em diferentes posições nas palavras. Esse aspecto pode estar relacionado com os resultados pouco expressivos para a relação CD no pós-teste, para AE ao longo de todo o estudo e também para as palavras de generalização. Matos, Perez, Hübner e Malheiros (1997) apontam que para que ocorra o controle discriminativo de cada sílaba, é preciso que cada unidade silábica se repita nas diferentes palavras de ensino em diferentes posições dentro da palavra. Esse aspecto não foi atendido no presente estudo sendo indicada uma seleção mais criteriosa de palavras de ensino. Além disso, as palavras de generalização escolhidas continham prioritariamente a sílaba com encontro consonantal, e por causa da limitação na variabilidade de palavras com encontro consonantal, muitas delas continham sílabas simples não ensinadas diretamente. Esse fator pode ter influenciado o desempenho com as palavras de generalização.
Ainda é preciso considerar o repertório inicial do participante. Embora ele soubesse o nome das letras do alfabeto, não sabia ler ou escrever sílabas simples. Isso pode ter dificultado a aprendizagem de sílabas com encontros consonantais, que são mais complexas (Queiroga et al., 2010). No programa de ensino informatizado ALEPP, as palavras com dificuldades da língua se encontram apenas no segundo módulo, depois do ensino das sílabas simples (Rosa Filho, de Rose, de Souza, Hanna, & Fonseca, 1998). Uma alternativa para pesquisas futuras é selecionar participantes que já saibam ler e escrever algumas palavras com sílabas simples, mas que não estejam aprendendo palavras com dificuldades da língua; ou adicionar um procedimento de ensino que cumpra esse papel. Destaca-se que o participante sabia ler e escrever o próprio nome (Pedro), o que pode ter facilitado à escrita e a leitura da palavra PEDRA. Ressalta-se que dados de uma pesquisa que usou o jogo AbraKedabra com palavras com sílabas simples mostram que, para que todas as relações trabalhadas pelo jogo sejam aprendidas por crianças de 5 anos de idade, são necessárias entre 18 e 27 sessões (Ximenes, et al., 2011). Nesse estudo foram realizadas 15 sessões com o jogo. Pesquisas futuras poderiam trabalhar com um maior número de sessões, considerando o alto grau de rejogabilidade do jogo e a complexidade das palavras usadas como estímulos.
Nas relações testadas, a porcentagem de acerto foi maior no follow up em comparação com o pós-teste. De acordo com os pais do participante, ele não teve ensino formal de leitura e escrita na escola. Contudo, é preciso considerar que as crianças estão frequentemente em contato com palavras impressas em seu cotidiano, o que pode ter influenciado nos resultados. Além disso, na sessão de Pós-teste, que era conduzida usando fichas (com silabas, palavras e figuras impressas sobre ela), papel e lápis e não empregou o jogo, o participante relatou estar cansado e pediu para interromper o procedimento várias vezes. Investigações futuras poderiam usar jogos para realização dos testes já que pesquisas (Gris, Alves, Assis, & Souza, 2017) indicam que o uso de jogos adaptados pode contribuir para o aumento de engajamento nas sessões de avaliação.
Sobre as questões relacionadas à usabilidade, a avaliação indicou que ela estava adequada. Contudo, em relação ao engajamento, as modificações realizadas tornaram o jogo mais extenso pela presença de uma nova trilha e pela construção da palavra ser feita letra por letra, não com sílabas, como nos demais estudos com o jogo. No estudo de Souza e Hübner (2010), a média de jogadas por partida foi de nove. No presente estudo a média foi de 27 jogadas. Observou-se perda de engajamento do participante, o que pode estar relacionado com a extensão da partida, que variou de 16 a 69 minutos, e maior dificuldade na realização da tarefa. Outra possível explicação é o fato de o procedimento ter sido realizado na casa do participante, onde havia a presença de pessoas da família e objetos do seu cotidiano. Sugerem-se para estudos futuros modificações considerando esse aspecto, por exemplo, facilitando a passagem entre as trilhas e aumentando as chances de que o participante atinja o objetivo do jogo. Além disso, observa-se a necessidade de investigar a usabilidade do jogo em um estudo em que se considerem os comportamentos de um mediador não familiarizado com o jogo e suas regras. Outra questão relacionada ao mediador diz respeito a sua habilidade enquanto aplicador, que pode afetar o engajamento do participante no jogo para além do jogo em si. Uma pesquisa com mais participantes e aplicadores diferentes tornaria possível analisar a interferência desta variável.
O comportamento de engajar-se no jogo foi medido pela emissão de comentários positivos e sobre a história do jogo (enredo), que ocorreram pouco frequentemente. Contudo, observou-se, de forma não sistemática, que o participante se manteve engajado na maior parte do jogo, ajudando a pesquisadora nas tarefas a serem cumpridas na partida e comemorando quando era bem-sucedido em alguma ação do jogo. Estudos futuros poderiam incluir a observação desses comportamentos na avaliação do engajamento produzido pelo jogo. Enfim, este estudo investigou os efeitos do uso do jogo Abrakedabra modificado (protótipo do jogo) sobre os comportamentos de ler e escrever algumas palavras com encontros consonantais e questões relacionadas à usabilidade e engajamento produzidos por esse protótipo. Testar protótipos é uma importante etapa do procedimento de desenvolvimento e avaliação de jogos, pois fornece informações que permitem modificar o jogo antes de sua versão definitiva (Fullerton, 2008).
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