A que servem os “ismos” em debates acadêmicos e científicos?
What are the “isms” good for in academic and scientific debates?
A que servem os “ismos” em debates acadêmicos e científicos?
Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, vol. 27, núm. 4, pp. 511-525, 2019
Universidad Veracruzana
Recepção: Agosto 26, 2018
Aprovação: Outubro 26, 2018
Resumo: O uso de “ismos” para denominar comunidades que compartilham certas práticas é procedimento comum, com longa tradição histórica. Este ensaio tem como objetivos: (1) apresentar uma interpretação analítico-comportamental dos processos que dão origem aos “ismos”; (2) apontar aspectos positivos e alertar para os perigos da utilização dos “ismos”, destacando possibilidades de amenizá-los ou preveni-los. Em relação ao objetivo (1), concluímos que “ismos” são operantes verbais sob controle de características do comportamento de integrantes de certas comunidades, que emergem a partir de processos de generalização intraclasse e discriminação entre classes. Em relação ao objetivo (2), argumentamos que embora os “ismos” permitam a identificação de práticas usuais entre membros das diferentes comunidades verbais, eles também podem nos fazer “esquecer diferenças” entre indivíduos e grupos, tratando os de forma homogênea e simplificando relações comportamentais complexas. Tais perigos podem ser amenizados ou prevenidos por meio de práticas que reconheçam e estimulem a diversidade de perspectivas, direcionem análises críticas a práticas específicas e reconheçam os benefícios de críticas bem fundamentadas. Para a análise do comportamento, em especial, tais conclusões sugerem que as contribuições de outras ciências do comportamento devem ser avaliadas sob controle de suas práticas, e não dos “ismos” que representam.
Palavras-chave: teorias científicas, práticas científicas, debates científicos, epistemologia, behaviorismo radical, análise do comportamento.
Abstract: The use of “isms” to denominate communities that share certain practices is a common procedure, with a long historical tradition. Philosophy, the root of all systematic forms of investigation and reflexion, is ripe with such labels, but they are also pervasive in the scientific realm. In this essay we have two goals: (1) to present a behavior-analytic interpretation of the processes that give rise to “isms”; (2) to point out positive aspects of the use of “isms”, but also to warn against the perils of such use, suggesting some ways to soften or prevent them. Regarding goal (1), we conclude that “isms” are verbal operants under the control of features of the behavior of members of certain communities, which emerge from intra-class generalization and inter-class discrimination processes. Regarding goal (2), we argue that the “isms” allow the identification of the usual practices among the members of the various verbal communities, granting an “identity” to those communities and facilitating collective work toward common objectives. The complexification and ramification of the “isms” may contribute to a more precise identification of such practices. However, the “isms” may also cause us to “forget the differences” between individuals and groups, thus treating them in a homogeneous way and simplifying complex behavioral relations. Such simplification may give rise to social prejudices and stereotypes, also promoting isolation (creating “ideological bubbles”) and harming scientific and intellectual advance. We suggest that it’s possible to soften or prevent such perils by recognizing intellectual diversity and complexity, fostering the diversity of perspectives, refraining from definitions of “isms” based on essentialism or authority, specifying which proposals of any “ism” we are criticizing when doing so, recognizing that a well-based criticism to some “ism” is a collaboration to it, promoting empathy and courtesy in academic debates and, finally, fostering collaborative interactions between the “isms”, as long as theoretical coherence remains preserved. To behavior analysis in particular, such conclusions suggest that the contributions of other behavioral sciences must be evaluated under the control of their practices, not the “isms” that they represent. Skinner insisted upon the complexity of behavior as a scientific subject matter, and although behavior analysis has made an original and maybe crucial contribution to the understanding of such complexity, there are many other behavioral sciences - biological, psychological and sociological. Clearly, we shouldn’t accept all the practices of such sciences without criticism, but we must recognize that there are many ways of producing relevant data that can help us understand behavior and all of them, with no exceptions, has their own limitations.
Keywords: scientific theories, scientific practices, scientific debates, epistemology, radical behaviorism, behavior analysis.
É procedimento acadêmico e científico comum, com longa tradição histórica, classificar comunidades verbais que compartilham certas práticas usando rótulos que fazem alusão a tais práticas. Podemos denominar tais rótulos genericamente como “ismos”, embora a presença do sufixo não seja necessária. A Filosofia, fonte histórica de todas as formas sistemáticas de investigação e reflexão, é pródiga em tais rótulos. Entre incontáveis exemplos, alguns dos mais recorrentes podem ser citados: positivismo, pós-modernismo, racionalismo, realismo, reducionismo, monismo, ceticismo, mecanicismo, romantismo, materialismo, humanismo, empirismo, hedonismo, existencialismo, solipsismo. Cada um desses termos está sob controle de diferentes características (ontológicas, epistemológicas, metodológicas, éticas, estéticas) das práticas de várias comunidades verbais, de modo que uma mesma comunidade pode receber diferentes rótulos, e o mesmo rótulo pode ser aplicado a diferentes comunidades.
É comum a compreensão de que as diversas ciências, conforme as classificamos contemporaneamente, teriam conquistado gradativamente sua independência em relação à Filosofia. Porém, a utilização de rótulos originalmente filosóficos para classificar práticas científicas sugere uma continuidade mais orgânica. No âmbito das próprias ciências a variação entre as características das diversas comunidades verbais teve sequência, assim como a criação de rótulos para designá-las. A exemplo do que ocorreu na Filosofia, surgiram também nas ciências diferentes linhas, correntes ou escolas de pensamento. Assim, na Psicologia fala-se em estruturalismo, funcionalismo, behaviorismo, cognitivismo, humanismo, gestaltismo, psicanálise, psicologia histórico-cultural, etc. Na Economia, fala-se em capitalismo e socialismo, daí derivando diversas subcorrentes, fazendo referência, por exemplo, a autores específicos (marxismo, keynesianismo, fordismo) ou a regiões geográficas (Escola de Chicago, Escola de Estocolmo). Nas Ciências Políticas, fala-se em esquerda e direita, liberalismo, anarquismo, autoritarismo, conservadorismo, monarquismo, feminismo, ambientalismo. Os “ismos” originalmente filosóficos que mencionamos há pouco são com frequência utilizados para designar características de cada uma dessas comunidades, ou para identificar subcorrentes dentro delas. Os “ismos” são inerentes às práticas acadêmicas e científicas, mas eventualmente podemos utilizá-los sem atentar para certos tipos de controle que eles podem exercer sobre tais práticas. Queremos aqui sugerir que um exame desses controles pode ser, de diversos modos, relevante. Assim, este ensaio tem como objetivos: (1) apresentar uma interpretação analítico- comportamental dos processos que dão origem aos “ismos”; (2) apontar aspectos positivos e, em especial, alertar para os perigos da utilização dos “ismos”, destacando possibilidades de amenizar ou prevenir tais perigos.
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS SOB UMA PERSPECTIVA ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL
Como formamos conceitos? Para um analista do comportamento essa é uma questão empírica sobre o comportamento verbal. Um conceito é um operante verbal sob controle de características estimuladoras comuns a diferentes objetos ou eventos. A simples observação anedótica dos contextos em que conceitos são emitidos pode sugerir características importantes das relações comportamentais envolvidas. Em Sobre Verdade e Mentira, Nietzsche antecipou uma explicação para a formação de conceitos que posteriormente se beneficiaria de uma compreensão científica:
Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma folha primordial . . . (Nietzsche, 1896/2012, p. 35).
O aspecto chave destacado por Nietzsche é a “igualação do não-igual”, ou o “esquecer-se do diferenciável”: um conceito está sob controle das características comuns a diversos objetos ou eventos, mesmo que outras de suas características sejam “diferenciáveis”. Ao usar palavras como “folha”, “mesa” ou “chuva”, estamos sob controle dessas características comuns, e não das características divergentes as quais “esquecemos” ou “abstraímos”.
Conforme aponta de Rose (1993), Jorge Luís Borges sugere, no conto Funes, o Memorioso (1944), que “pensar é esquecer diferenças” isto é, generalizar. Irineu Funes, o personagem de Borges, não generalizava. Eis a descrição de Funes por Borges:
Não lhe custava compreender somente que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente). (citado em de Rose, 1993, p. 284).
Como resume de Rose (1993), “por ser incapaz de ‘esquecer diferenças’, Funes não podia agrupar os estímulos (objetos, eventos ou qualidades) em classes e, portanto, não formava conceitos” (p. 284).
Quando relacionamos conceitos, porém, precisamos novamente “lembrar” diferenças: dizemos que um cão é diferente de um gato quando estamos sob controle de características desses animais que nos permitem diferenciá-los. Formar e relacionar conceitos exige, portanto, “generalização no interior de uma classe e discriminação entre classes” (de Rose, 1993, p. 285) ou ainda, “esquecer diferenças” (generalização intraclasses) e “lembrar diferenças” (discriminação entre classes). Obviamente, podemos fazer discriminações adicionais dentro de uma classe (e.g., distinguimos as raças dos vários cães), bem como generalizações entre classes (e.g., cães e gatos são quadrúpedes). O aspecto relevante aqui é que usar conceitos envolve necessariamente estar sob controle de semelhanças e diferenças entre estímulos, conforme ensinadas por comunidades verbais.2
Os conceitos apresentam evidentes vantagens em relação aos nomes próprios, que estão sob controle de objetos ou eventos singulares. De acordo com Skinner, conceitos nos permitem “falar sobre características do mundo comuns a uma ampla diversidade de instâncias” (Skinner, 1974, p. 106), além de “selecionar e identificar apenas aquelas propriedades . . . que são importantes para o ouvinte” (Skinner, 1957, p. 113). Nesse sentido, eles são fundamentais para o pensamento, como também nota de Rose (1993): “O pensamento e a linguagem requerem . . . a capacidade de agrupar os estímulos em classes. Estas classes, formadas a partir de alguma relação entre os estímulos, constituem a base do que chamamos genericamente de conceitos” (p. 284). Aprender a lidar com conceitos é aprender a lidar com o ambiente.
VARIÁVEIS ESPECIAIS NO CONTROLE DOS “ISMOS” ENQUANTO OPERANTES VERBAIS
Os “ismos” aos quais nos referimos há pouco também são conceitos desta feita, sob controle de características do comportamento (verbal, em especial) de integrantes de determinadas comunidades. Contudo, as variáveis que controlam a probabilidade de emissão de “ismos” são mais numerosas e interagem de formas mais complexas quando comparadas àquelas que controlam a probabilidade de emissão de conceitos como “cão”, “folha” ou “mesa”.
Cabe notar, de início, que enquanto a aprendizagem de um conceito como “mesa” depende de reforçamento diferencial sob controle de propriedades de estímulos não verbais, na aprendizagem dos “ismos” o reforçamento diferencial deve ocorrer majoritariamente sob controle de propriedades de estímulos verbais via de regra, auditivos e textuais. Aprendemos, assim, que as sentenças ditas ou escritas por certas pessoas permitem classificá-las, por exemplo, como “socialistas”, “mecanicistas” ou “existencialistas”.
A emissão de “ismos” provavelmente ilustra o que Skinner (1957) convencionou chamar de “causação múltipla” de operantes verbais, ao afirmar que “a força de uma única resposta pode ser, e normalmente é, uma função de mais do que uma variável” (p. 227). Assim, o comportamento de um acadêmico ou cientista ao classificar estímulos verbais com um certo “ismo” pode ter sua probabilidade alterada não só por tais estímulos, mas também, separadamente ou conjuntamente, por variáveis motivacionais, sob controle de audiências específicas (o público de uma palestra, os integrantes de um grupo de pesquisadores, os avaliadores de uma agência de fomento, os editores de um periódico, os empregadores de uma instituição). Em linguagem comum, poderíamos afirmar que a formação e emprego de “ismos” não obedece apenas a variáveis “racionais” (consequências da classificação das práticas de comunidades verbais para o trabalho acadêmico e científico), mas também “emocionais” (outras consequências da utilização de “ismos” para o falante). Isso implica, mais amplamente, em reconhecer que o comportamento profissional de acadêmicos e cientistas não está sob controle apenas de contingências internas ao empreendimento acadêmico e científico, mas também de contingências sociais “externas” (legais, econômicas, éticas, políticas, etc.). Em última análise, uma separação estrita entre tais variáveis mostra-se artificial tendo sido, de fato, criticada por vários estudos influentes na filosofia, história e sociologia da ciência (e.g., Bloor, 1976; Kuhn, 1962; Latour & Woolgar, 1979; Rorty, 1979).
Podemos, em resumo, definir os “ismos” genericamente como operantes verbais sob controle de características do comportamento (verbal, em especial) de integrantes de certas comunidades, que emergem a partir de processos de generalização intraclasse e discriminação entre classes, mas que também podem ser emitidos, separadamente ou conjuntamente, sob controle de outras variáveis, em especial de ordem motivacional.
OS “ISMOS” E SUA UTILIDADE
Os “ismos” apresentam as mesmas vantagens dos demais conceitos, aplicadas, porém, a comunidades verbais acadêmicas e científicas. Eles permitem a identificação de práticas comuns aos membros de tais comunidades, com isso facilitando as interações comportamentais que constituem o trabalho acadêmico e científico. Em especial, os “ismos” possibilitam o que eventualmente se chama de uma “identidade”: certas pessoas, classificando-se mutuamente (e sendo classificadas) a partir de um certo “ismo”, interagem e formam comunidades (e.g., “behavioristas radicais”) que supostamente compartilham um mínimo de coesão filosófica, conceitual e/ou metodológica. O fato de que os membros de tais comunidades possam, compartilhando tal identidade, trabalhar coletivamente em prol de objetivos comuns guarda uma importância que não pode ser subestimada.
Tratar os conceitos e por extensão os “ismos” como processos comportamentais permite, antes de tudo, “desessencializá-los”. Conceitos não têm uma existência independente das formas pelas quais são utilizados por pessoas e comunidades. Em termos analítico-comportamentais, quando perguntamos “qual é o conceito de x” não estamos buscando uma definição enciclopédica; estamos perguntando quais eventos no ambiente, verbais ou não verbais, controlam a emissão desse conceito por certa pessoa, com certa história de aprendizagem, em um certo contexto. As definições contidas em dicionários ou enciclopédias têm sua utilidade, pois supostamente resumem as variáveis que comumente controlam a emissão de um certo conceito em dadas comunidades verbais; mas, estritamente falando, não existe uma definição única, correta e definitiva de nada. Assim como podem variar as características discriminativas que controlam a emissão da palavra “chuva” (por parte de diferentes pessoas ou grupos), também podem variar tais características em relação a “behaviorismo”, “socialismo”, “huma- nismo”, ou qualquer outro “ismo”.3
Eventualmente, comunidades verbais que se identificam com um certo “ismo”, quando confrontadas com a crescente diversidade de definições do mesmo, recorrem a dispositivos variados para avaliar sua “adequação” ou “correção”: consulte-se uma obra de referência, ou certa autoridade, ou as práticas mais frequentes na própria comunidade. Havendo acordo sobre tais critérios, discordâncias conceituais podem ser assim resolvidas. Mas nenhum “ismo” permanece indefinidamente sob controle da tradição ou da autoridade. A variabilidade do comportamento verbal casual ou planejada inevitavelmente produzirá diferentes formas de definir os vários “ismos”.
OS “ISMOS” E SEUS PERIGOS
Como notamos há pouco, “ismos” são aprendidos e, portanto, sua emissão está sempre sob controle de variáveis históricas e contextuais únicas para cada pessoa ou comunidade. Assim, podemos estar certos de que diferentes pessoas e comunidades utilizarão o mesmo “ismo” sob controle de diferentes variáveis. Um recurso comum, diante disso, é solicitar que tais variáveis sejam explicitadas (e.g., “o que você quer dizer quando se classifica como cognitivista/ funcionalista/liberal, etc.?”). Via de regra, porém, poucas pessoas conseguem responder imediata e precisamente a perguntas como essas: nem sempre sabemos identificar verbalmente, de forma clara e abrangente, as variáveis que controlam nossa própria identificação a um certo “ismo”.4 Podemos diante disso “pensar sobre o assunto”, talvez assim identificando variáveis relevantes e nos preparando para no futuro responder de forma mais precisa um exercício ao qual a filosofia da ciência frequentemente se dedica. Mas pode-se afirmar com segurança que no interior de qualquer comunidade identificada por certo “ismo” haverá considerável variabilidade em relação a tais variáveis.
Em diálogos acadêmicos e científicos, isso sugere, em primeiro lugar, que devemos ser céticos não só em relação à nossa capacidade individual de definir “o que é” um certo “ismo” (dada a variabilidade de definições possíveis em uma comunidade), mas também de identificar as variáveis que controlam o nosso próprio uso dele. Sugere, em segundo lugar, que devemos ser céticos também em relação à nossa capacidade de identificar pronta e precisamente as variáveis que controlam o uso dos “ismos” por parte de outras pessoas ou comunidades, em especial quando desconhecemos as histórias que possibilitaram a tais pessoas ou comunidades emiti-los. Na falta de outras opções, cabe diante disso solicitar às próprias pessoas ou comunidades com as quais se dialoga que apontem as variáveis relevantes para que se identifiquem com certo “ismo”. O fato de que nem sempre fazemos isso constitui uma das principais fontes de mal-entendidos em discussões intelectuais: pessoas e grupos em uma discussão frequentemente estão sob controle de variáveis distintas ao se referir a um mesmo “ismo”.
O próprio Skinner (1953/1965) percebeu os potenciais problemas produzidos pelo uso descuidado dos “ismos”.5 Ao comentar sobre “os perigos inerentes em qualquer sistema de tipologia”, ele afirmou: “Há sempre uma tendência a argumentar que, porque indivíduos são similares em um aspecto, eles também são similares em outros” (p. 424). Skinner aponta aqui justamente para o perigo de “esquecer as diferenças”. No mesmo sentido, Skinner (1983/1984c) relata um encontro com o diplomata Henry Kissinger, no qual este teria atribuído as dificuldades de relacionamento entre estadunidenses e russos ao fato de seus governos serem, respectivamente, democrático e revolucionário: “Eu disse que achava as tipologias perigosas; na psicologia, elas foram devastadoras” (p. 151). Embora Skinner não seja explícito, é possível que estivesse alertando Kissinger para o fato de que na política, assim como em outros campos do saber, as tipologias podem simplificar o que é complexo, fazendo com que ignoremos as nuances de um problema.
Oposições binárias, comuns ao lidar com “ismos”, podem ser inadequadas ou limitadoras na investigação e discussão de qualquer fenômeno (Rebelatto & Botomé, 1999). Na política, dentre outros exemplos possíveis, os adjetivos “esquerda” e “direita” talvez sejam os mais ilustrativos. Pode-se admitir que tais adjetivos sejam genericamente orientadores: supõe-se certas tendências gerais em termos de conceitos e propostas por parte das pessoas ou comunidades que se denominam como pertencentes a algum dos polos. Contudo, se fizermos perguntas sobre temas específicos a duas pessoas, digamos, “de esquerda”, não será mais possível “esquecer as diferenças”; elas emergirão naturalmente, em grande quantidade, e os limites dos rótulos genéricos se tornarão óbvios. O campo das Ciências Políticas tem buscado há décadas criar instrumentos que retratem a ampla diversidade de orientações políticas possíveis, com frequência utilizando o conceito de espectro, aplicando-o também à distinção entre esquerda e direita (e.g., Heywood, 2015). Tais instrumentos buscam reconhecer e evidenciar tal diversidade ou ainda, destacar as diferenças ao invés de “esquecê-las”. É um movimento oposto à tendência contemporânea de usar rótulos para simplificar e caricaturizar as posições de pessoas e grupos em discussões políticas, simplesmente tratando-as como “de direita” ou “de esquerda”, como se tais adjetivos identificassem conjuntos fixos e bem definidos de conceitos e propostas. Não raro, tais adjetivos são utilizados inclusive como ofensa: presumese no outro “lado” certa inferioridade intelectual ou moral, e reações emocionais facilmente substituem argumentos.
O crescimento, diversificação e ramificação de comunidades verbais no meio acadêmico e científico se reflete em um movimento correspondente no campo dos “ismos”: busca-se mapear e dar nome à diversidade. Assim, conforme cresce a variabilidade de propostas para lidar com certos problemas, crescem igualmente as tentativas de identificar os componentes dessa variabilidade. Ficamos progressivamente sob controle de diferenças sutis entre características de práticas verbais, criando sucessivas subdivisões a partir delas; surgem os “ismos dos ismos”. No feminismo, por exemplo, encontramos uma “variedade de vertentes contemporâneas” (Couto & Dittrich, 2017), caracterizadas por objetivos, estratégias e fundamentações teóricas diversas: socialista, libertário, anarquista, pós-moderno, pós-estrutural, liberal, ecofeminismo, etc.
É possível argumentar que a diversificação dos “ismos” jamais será capaz de classificar satisfatoriamente a complexidade e variabilidade das formas humanas de lidar com qualquer assunto até porque tais formas estão em constante mutação. Eventualmente, pessoas ou grupos que integram uma certa comunidade verbal considerarão que suas divergências em relação às práticas dessa comunidade são suficientes para que se proponha um “ismo” independente. É seu direito; que as diferenças sejam evidenciadas e seus méritos avaliados. Não há qualquer métrica absoluta que defina quando a criação de um novo “ismo” é ou não justificável, mas talvez devamos ser cautelosos com os extremos. Por um lado, um conjunto substancial de diferenças filosóficas, conceituais e metodológicas, identificadas com razoável clareza, pode justificar que uma sub-comunidade se ramifique em um novo “ismo”, à parte da comunidade mais ampla dentro da qual emergiu. Por outro, não se justifica ceder facilmente à criação de novos “ismos” sempre que quaisquer diferenças forem evidenciadas do contrário, seria impossível reunir comunidades estáveis em torno de projetos comuns de investigação. Não é raro que a simples sedução da novidade exerça aí o seu poder: certo “ismo” é considerado a “última palavra”, supostamente superando propostas que passam então a ser consideradas antiquadas ou ultrapassadas. Surgem os modismos intelectuais.
A variabilidade de propostas presentes em um certo campo intelectual (filosófico, científico, político, artístico), assim como o custo envolvido em conhecê-las, avaliá-las e comparálas, pode eventualmente levar alguns a simplesmente ignorá-las, restringindo-se aos domínios de seu próprio “ismo”. É preciso notar, porém, as várias consequências indesejáveis de tal opção. A simplificação daí decorrente pode dar margem a preconceitos infundados, prejudicando o intercâmbio e o avanço acadêmico e científico. É possível aqui traçar um paralelo com preconceitos e estereótipos sociais (raciais, sexuais, de gênero, religiosos, etc.), que via de regra se fundamentam em concepções reducionistas e simplistas sobre relações comportamentais complexas (Mizael & de Rose, 2017; Moore, 2003).
Sugerimos anteriormente que lidar com conceitos e, portanto, com “ismos” envolve tanto “esquecer diferenças” (generalização intraclasses) quanto “lembrar diferenças” (discriminação entre classes). Como vimos, porém, ao “esquecer diferenças” corremos o risco de tratar comunidades verbais (as nossas ou outras) de forma homogênea e estereotipada, como se representassem um conjunto fixo, consensual e incontroverso de propostas. Por outro lado, “lembrar diferenças” também tem seus riscos: podemos insistir sobre as características singulares que diferenciam nossa comunidade das demais, com isso dificultando a identificação de possíveis canais de diálogo com outros empreendimentos científicos e intelectuais. Descartamos assim qualquer proposta associada a outro “ismo” simplesmente porque está associada a este “ismo”, ou porque não pertence ao nosso.
Note-se que apontar tal fato não impede uma pessoa ou comunidade de questionar e mesmo combater as práticas de qualquer “ismo”, caso se conclua que este deve ser o caso. Não se trata de silenciar críticas, apaziguar contradições ou simular entendimentos. Tratase, isso sim, de desenvolver repertórios para reconhecer e lidar com cenários intelectuais complexos e diversificados. Promover tais repertórios deveria ser parte explícita da formação educacional não só de acadêmicos e cientistas, mas de todos os cidadãos. A falta de tais repertórios possivelmente ajuda a explicar o fenômeno contemporâneo das “bolhas ideológicas” metáforas não só para o isolamento intelectual, mas para o reforçamento mútuo de um conjunto restrito de pontos de vista.
COMO AMENIZAR OU PREVENIR OS PERIGOS DOS “ISMOS”?
Embora seja esperado que os membros das comunidades caracterizadas pelos “ismos” compartilhem acordos mínimos, divergências internas devem ser tratadas não apenas como naturais, mas como essenciais para que o próprio “ismo” sobreviva e se desenvolva. Seria mesmo contrário à natureza experimental e exploratória do empreendimento intelectual e científico sugerir que os pressupostos, conceitos e métodos que qualquer comunidade adote devam ser indefinidamente preservados de críticas. Divergências e contradições intrateóricas e entre teorias são condição para o avanço intelectual, científico e civilizatório. Assim, é preferível identificá-las e discuti-las ao invés de ignorá-las.
Para tomar um exemplo familiar: sabemos que não há um “behaviorismo”, mas sim “behaviorismos” (Hayes & Ghezzi, 1997; O’Donohue & Kitchener, 1999; Zilio & Carrara, 2016, 2017; Zuriff, 1985) e não se trata apenas de matéria de interesse histórico, mas de controvérsias contemporâneas. Talvez todos os que se dizem behavioristas sejam “similares” em alguns aspectos, mas certamente não em todos. É possível afirmar, com segurança, que há uma variedade considerável de repertórios comportamentais entre behavioristas no que diz respeito a todos os aspectos relevantes para este “ismo”: fundamentação filosófica e conceitual, métodos de pesquisa e aplicação, áreas de interesse e orientação ético-política. Isso possivelmente se aplica mesmo àqueles que se denominam, de modo mais específico, behavioristas radicais. Reconhecer tal diversidade é melhor do que preservar uma aparência superficial de coerência e unidade. Devemos, como sugerem Laurenti, Lopes e Araújo (2016), evidenciar as “ambiguidades, contradições, lacunas, imprecisões, excessos, insuficiências, falácias, contrassensos dos projetos de psicologia” (p. 9), assim como de quaisquer outros projetos intelectuais e científicos.
É possível e saudável discutir o que deve caracterizar ou conferir “identidade” a um certo “ismo”, as vantagens e desvantagens de cada alternativa; mas ninguém tem o direito privativo de dar a última palavra sobre o que um “ismo” é ou deveria ser ou, para voltar à Nietzsche, de exigir que as suas propensões particulares (ou as propensões de alguma autoridade) representem a “folha primordial”. Embora tal exigência seja mais evidente em discussões políticas (nas quais é comum que se dispute o direito de representar adequadamente a “verdadeira esquerda”, o “verdadeiro liberalismo”, etc.), ela também ocorre em outros campos, entre os quais a Psicologia.
Especificamente na formação de psicólogos, é necessário educar para a flexibilidade e a pluralidade intelectual. Psicólogos em formação devem reconhecer o desafio constante representado pela busca do equilíbrio para evitar tanto um dogmatismo sectário quanto um ecletismo incoerente (Azoubel, 2017; Figueiredo, 1992; Laurenti, Lopes, & Araújo, 2016). A crítica entre teorias é relevante e necessária, e sua promoção pode mesmo ser considerada uma missão da academia. Dado que o avanço científico e intelectual não apenas admite, mas requer contradições, é preciso aprender a conviver com elas, sabendo que isso trará “algum grau de desconforto” (Laurenti, Lopes, & Araújo, 2016, p. 11).
Comportamentos belicosos e “tribais”, tão comuns e prejudiciais em discussões políticas ordinárias, podem surgir em qualquer intercâmbio intelectual. Uma das principais funções do ensino superior deveria ser estimular a pluralidade de perspectivas e sua discussão, ao mesmo tempo ensinando as habilidades de autocontrole necessárias para gerir os efeitos emocionais que eventualmente surgirão em tais debates. Aqui, novamente, o equilíbrio entre extremos é relevante. Mesmo que não se possa esperar dos participantes de qualquer debate um completo distanciamento emocional, é preciso reprovar resolutamente o pedantismo e a agressão, cultivando ao invés disso a empatia e a cortesia. Um passo talvez importante nesse sentido é notar que não há uma contraposição necessária entre crítica e colaboração em discussões acadêmicas. Uma crítica bem fundamentada a um certo “ismo” é uma das melhores contribuições a ele.6
O exame crítico de diferentes propostas para lidar com questões epistemológicas, conceituais, metodológicas, éticas e políticas é um dos pilares do avanço científico e intelectual e, mais amplamente, do avanço civilizatório. Mas é importante lembrar que são os méritos de tais propostas e não de seus proponentes, ou dos “ismos” que eventualmente representem que devemos examinar.7 Ao realizar tais exames, portanto, devemos ser explícitos sobre quais práticas estamos avaliando e sobre os motivos para isso. A simples crítica a um “ismo” sem que tal especificação seja realizada corre o risco de se restringir a estereótipos, incorrendo no que é chamado no campo da lógica de “falácia do espantalho”.8
O valor simbólico que os “ismos” adquirem nas práticas acadêmicas e científicas pode transformá-los em barreiras para intercâmbios intelectuais produtivos. Eventualmente, a identificação com os “ismos” é levada a extremos como se ao adotar um certo “ismo” estivéssemos impedidos de pisar em territórios nos quais outras bandeiras estão hasteadas, sob risco de traição ou contaminação. Se esta for a justificativa para que diferentes comunidades se vejam impedidas de colaborar em iniciativas visando o avanço do conhecimento e a resolução de problemas humanos, algo certamente está errado. Desde que se reconheçam e respeitem as especificidades das práticas de cada comunidade e que se evite um ecletismo teórico incoerente intercâmbios colaborativos entre “ismos” podem e devem ser estimulados.
CONCLUSÃO
No início deste ensaio, enumeramos como objetivos: (1) apresentar uma interpretação analítico-comportamental dos processos que dão origem aos “ismos” e (2) apontar aspectos positivos e, em especial, alertar para os perigos da utilização dos “ismos”, destacando possibilidades de amenizar ou prevenir tais perigos. Sumarizamos a seguir as conclusões a que chegamos.
Em relação ao objetivo (1), apontamos que “ismos” são conceitos: operantes verbais sob controle de características do comportamento (verbal, em especial) de integrantes de certas comunidades. Eles emergem a partir de processos de generalização intraclasse e discriminação entre classes realizados por comunidades verbais, sob controle daquelas características. Apontamos, porém, que outras variáveis - em especial de ordem motivacional podem controlar, separadamente ou conjuntamente, o uso de “ismos”.
Em relação ao objetivo (2), trataremos de seus três aspectos separadamente.
Quais os aspectos positivos dos “ismos”? Eles permitem a identificação de práticas usuais entre membros de diferentes comunidades verbais, conferindo uma “identidade” a tais comunidades e facilitando o trabalho coletivo em prol de objetivos comuns. A complexificação e ramificação dos “ismos” pode contribuir para uma identificação mais precisa de tais práticas.
Quais os perigos dos “ismos”? Como quaisquer conceitos, os “ismos” podem nos fazer “esquecer diferenças”: dado que certos indivíduos ou grupos são similares em certos aspectos, podemos equivocadamente concluir que são também similares em outros. Sob esse ponto de vista, os “ismos” também podem simplificar o que é complexo, fazendo com que ignoremos as nuances de um problema. Por outro lado, ao nos fazer “lembrar diferenças” isto é, ao destacar as características singulares que diferenciam uma comunidade das demais os “ismos” podem nos levar a insistir sobre tais particularidades, dificultando a identificação de canais de diálogo relevantes entre diferentes empreendimentos científicos e intelectuais. A falta de repertórios para reconhecer e lidar com cenários intelectuais complexos e diversificados pode fundamentar preconceitos e estereótipos, além de fomentar o isolamento, criando “bolhas ideológicas” e prejudicando o avanço científico e intelectual.
Como amenizar ou prevenir os perigos dos “ismos”? Reconhecendo a diversidade intelectual e sua complexidade, estimulando a pluralidade de perspectivas, evitando definir “ismos” de forma essencialista ou com base na autoridade, especificando quais propostas de um “ismo” estamos avaliando, reconhecendo que uma crítica bem fundamentada a um certo “ismo” é uma contribuição a ele, promovendo a empatia e a cortesia em debates acadêmicos e, por fim, promovendo intercâmbios colaborativos entre “ismos”, desde que preservada a coerência teórica.
Qualquer psicólogo intelectualmente honesto, seja educador, pesquisador, ou prestador de serviços, admitirá prontamente o quanto não sabe sobre o ser humano se não por outro motivo, pela simples impossibilidade de dominar todo o conhecimento disponível, mesmo nos limites de uma teoria ou área específica. Isso frequentemente é fonte de angústia, porque espera-se que o psicólogo saiba, e o não saber é via de regra punido. Mas é preferível admitir nossas limitações ao invés de supor que qualquer teoria tenha condições, por si só, de oferecer todas as respostas às inesgotáveis perguntas que podemos fazer sobre o ser humano. Uma insistência em tratar os “ismos” como barreiras intransponíveis é incompatível com a flexibilidade necessária para buscar uma compreensão ampla, plural e transdisciplinar do comportamento.
A identificação das práticas que caracterizam uma comunidade e o uso de regras para transmiti-las a seus membros são necessárias para que esta desenvolva seu trabalho mas, como Skinner (1956/1972a) ilustrou ao contar sua própria história como cientista, a formalização da atividade científica por meio de regras traz consigo seus próprios riscos. Ela pode não só apresentar um retrato idealizado desta atividade, mas interditar o comportamento criativo produzido pela exposição direta às contingências da investigação científica.
É preciso reconhecer que há diversos fenômenos comportamentais relevantes que a análise do comportamento simplesmente não estuda, ou aborda apenas de forma interpretativa. É possível discutir os motivos disso, mas dois deles parecem imediatamente óbvios: a falta de métodos apropriados e a simples limitação da “força de trabalho” de analistas do comportamento dedicada aos estudos empíricos, face às inúmeras possibilidades de investigação. A interpretação sempre foi e continuará sendo um procedimento fundamental na análise do comportamento.9 Entre outras funções, ela permite que dados produzidos por outros “ismos” sejam compreendidos e discutidos sob a perspectiva analítico-comportamental, e que eventuais estudos empíricos fundamentados nessa perspectiva sejam propostos. Novamente, o problema seria tratar os dados apresentados por outras comunidades que não a da análise do comportamento como necessariamente “contaminados”, simplesmente por terem sido produzidos com outros conceitos e métodos que não os tradicionalmente utilizados pelos analistas do comportamento. A avaliação das possíveis limitações conceituais e metodológicas dos estudos que produzem tais dados resta preservada, mas é bem diferente e bem mais exigente do que a mera rejeição deles. As sugestões de diálogo ou colaboração com outras tradições de pesquisa (filosóficas, biológicas, psicológicas, sociológicas) eventualmente apresentadas por analistas do comportamento jamais partem de uma aceitação incondicional de todas as propostas de tais tradições; antes, elas avaliam criteriosamente os pontos de intersecção e também as divergências (e.g., Donahoe & Palmer, 1989; Hackenberg, 2009; Leigland, 1999; Melo & de Rose, 2012; Morgan, 2018; Morris, 2009; Rachlin, 2012; Zilio & Hunziker, 2015). Iniciativas dessa natureza devem ser ampliadas e aprofundadas, pois são fundamentais para que a análise do comportamento sobreviva e para que suas contribuições tenham crescente impacto em um cenário científico amplo.
Recentemente, a ABAI (Association for Behavior Analysis International) divulgou um documento intitulado Shared Values and Guiding Principles of the Coalition of Behavioral Science Organizations (2018). O documento resultou de um processo de discussão que tomou quase um ano, reunindo representantes das entidades que formam a referida coalizão além da própria ABAI, a Association for Contextual Behavior Science, a Association for Positive Behavior Support, o Evolution Institute, a National Prevention Science Coalition e a Society of Behavioral Medicine. Tais entidades, reconhecendo que “os problemas fundamentais que nossas sociedades enfrentam são relacionados ao comportamento humano”, afirmam que “apenas reunindo a comunidade das ciências comportamentais para agir mais efetivamente em prol do uso da ciência comportamental poderemos verdadeiramente alcançar sociedades que estimulem o bem-estar de cada pessoa” (The Coalition of Behavioral Science Organizations, 2018, The Pivotal Role of Behavioral Science, para. 1). A coalizão cita como seus valores fundamentais o compromisso com “(a) saúde e bem-estar para todos, (b) evidência científica como a base para a realização de decisões sociais e (c) políticas públicas como um mecanismo para fomentar mudanças positivas” (Shared Values, para. 1). Há diferenças relevantes no que diz respeito à fundamentação histórica, filosófica, conceitual e metodológica de cada uma dessas entidades e essas diferenças, assim como suas afinidades, devem ser exploradas e explicitadas. Contudo, é possível apontar este caso como um exemplo no qual um excesso de purismo em relação aos “ismos” poderia impedir uma iniciativa cientificamente e socialmente relevante. A participação na iniciativa seria impossível se os analistas do comportamento tivessem insistido unicamente naquilo que os diferencia.
As contribuições singulares e, sob certo ponto de vista, revolucionárias que o behaviorismo radical e a análise do comportamento trouxeram para a Psicologia podem e devem ser defendidas e promovidas. Vale notar, porém, que é comum que nossa própria comunidade verbal identifique seu isolamento em relação a outras tradições de pesquisa e intervenção (Cruz, 2016). Talvez um passo importante para superar esse isolamento seja reconhecer que o controle simbólico dos “ismos” pode prejudicar uma avaliação produtiva de outras práticas de investigação.
Skinner (1953/1965) insistiu sobre a complexidade do comportamento enquanto objeto de estudo, e embora a análise do comportamento tenha uma contribuição original e talvez decisiva para a compreensão de tal complexidade, há muitas outras ciências do comportamento biológicas, psicológicas e sociológicas. Não se trata de advogar por uma aceitação acrítica de todas as práticas dessas ciências, mas apenas de reconhecer que há várias formas de produzir dados relevantes para a compreensão do comportamento e todas, sem exceção, têm suas limitações. Uma abertura ponderada a outras fontes de conhecimento sobre o comportamento servirá melhor aos analistas do comportamento do que uma insistência sobre a superioridade de sua própria proposta.
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Notas
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