Resumo: A violência por parceiros íntimos tem sido cada vez mais reconhecida como um problema de saúde pública. Este estudo avaliou o efeito de uma intervenção comportamental na identificação de interações abusivas em duas mulheres, de 26 e 28 anos, com queixas (ex. depressão) ligadas a interações com seus parceiros íntimos. Foi empregado um delineamento de caso único intra-participantes, com fases de linha de base (A), implementação de Terapia analítico-comportamental (TAC) (B), e adição da cartilha ‘Namoro Legal’ à TAC (BC) para uma das mulheres, e inversão da ordem de implementação das fases BC e B para a outra. Foram realizadas quatro sessões de linha de base e oito sessões de TAC, quatro delas com a adição da cartilha. Todas as sessões foram gravadas e categorizadas por meio de categorias criadas para o estudo, buscando registrar a identificação de interações abusivas pelas participantes. Os resultados mostraram que após a utilização da cartilha houve melhora na identificação e na precisão da descrição de interações abusivas nos relatos das participantes, assim como diminuição dos escores de depressão. Sugere-se investigar outras atividades estruturadas e outras estratégias psicoterapêuticas para impedir a progressão do abuso psicológico para outras formas mais explícitas de violência.
Palavras-chave: relacionamento abusivo, terapia analítica comportamental, interações abusivas, violência por parceiro íntimo, análise clínica do comportamento, psicoterapia, atividades estruturadas.
Abstract: Intimate partner violence (IPV) has been increasingly recognized as a public health problem. IPV is perpetrated in affective relationships, in which, physical, psychological or sexual abuse occur. Psychological abuse can affect mental health and can predict physical violence. Thus, the objective of this study is to evaluate an intervention in the identification of abusive interactions for people in psychologically-abusive relationships. The intervention consisted of 12 behavior therapy sessions: four base-line sessions and eight Behavior Analytic Therapy (TAC) sessions. In four of the TAC sessions, a booklet (Namoro Legal) was used. The participants were two 26 and 28 year-old-women. Their complaints (e.g. depression) were related to their intimate partners. Physical violence was an exclusion criterium for this study. Sessions were conducted by a female behavior analyst. The study consisted of a single-case experimental design. One of the participants received A-B-BC design while the other received A-BC-B design. Phase A consisted of a baseline, Phase B consisted of the introduction of TAC and phase BC consisted of TAC plus the ‘Namoro Legal’ booklet. All sessions were recorded and coded using codes created for the study in order to capture abusive interactions identification. Social skills, depression and social anxiety were measured before and after the 12 sessions. Such measures aimed the participants characterization. Results indicated the increase of abusive interactions identification. There have been improvements on the accuracy of descriptions. Apparently, the content of the booklet influenced the increase in the accuracy of the description of abusive interactions. However, its repeated presentation as well as some questions about abusive interactions may also have influenced their identification. Therefore, for future investigations, it is suggested to evaluate other potential resources to assist people facing IPV. It is suggested to investigate structured activities focused on contents that evoke reports about interactions with the partner. It seems to reduce clients and therapists scape/avoidance behaviors of such aspects. It is also suggested further studies on curbing abuse progression, since it tends to start subtly and then, to move on to other types of violence.
Keywords: abusive relationship, behavior therapy, abusive interactions, intimate partner violence, clinical behavior analysis, psychotherapy, structured activities.
Efeitos da Terapia analítico-comportamental e de uma cartilha na identificação de interações abusivas
Recepción: 13 Julio 2020
Aprobación: 29 Noviembre 2020
O abuso psicológico perpetrado por parceiros íntimos frequentemente progride para agressões físicas, associando-se a importantes prejuízos para a vítima (Echeburúa et al., 2009; Patel et al., 2019; Patró et al., 2007). A violência por parceiro íntimo (VPI) é aquela cometida em relacionamentos afetivos, nos quais ocorrem abusos físicos, psicológicos ou sexuais. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (2015), as mulheres sofrem a maior parte dos danos decorrentes deste tipo de violência, dentre eles, impactos na saúde mental, como depressão e ansiedade. Foi encontrada associação entre VPI e sintomas depressivos e entre VPI e tentativas de suicídio (Devries et al., 2013). Dessa forma, a violência contra a mulher tem sido cada vez mais reconhecida como um problema de saúde pública, tornando-se alvo de políticas públicas e de pesquisas (Brasília: Senado Federal, 2018; Organização Pan-Americana da Saúde, 2015).
Diversas intervenções de caráter preventivo e remediativo vêm sendo estudadas, seja para evitar, seja para mitigar a VPI (Trabold et al., 2018). Mas o manejo de problemas sociais e psicológicos relacionados à VPI é desafiador, porque as variáveis mantenedoras dos diversos comportamentos que levam a permanecer em um relacionamento abusivo são complexas. Barrios et al. (2020) desenvolveram um mapeamento teórico baseado na interseccionalidade do processo de tomada de decisão de abandonar um parceiro abusivo. Eles desenvolveram uma base de interseccionalidade composta por fatores individuais e socioculturais que afetam o acesso da mulher a recursos formais. A partir de entrevistas com 25 mulheres (todas mães) que sofriam abuso, os autores descreveram a intersecção de vários fatores na tomada de decisão de deixar um parceiro abusivo – fatores de natureza individual, familiar e sociocultural, como raça, classe, religião, apoio social, idade dos filhos, entre outros. A influência dos aspectos culturais parece ser confirmada pelo estudo de Bott et al., (2019), o qual verificou, em uma revisão dos dados sobre prevalência de VPI, que as taxas de mulheres que relataram já haver experimentado VPI física ou sexual variaram bastante de um país para outro. Por exemplo, de 1,1%, no Canadá, a 27,1% na Bolívia.
A ampla variedade de fatores importantes na interpretação dos relacionamentos em que há VPI parece ter originado propostas de intervenção bem diversificadas. Por exemplo, uma revisão de literatura indicou que intervenções focadas na resolução de problemas, na tomada de decisão e na alteração de percepção e pensamentos distorcidos foram promissoras para a melhoria da saúde da mulher vítima de VPI (Trabold et al., 2018). Quanto às modalidades de intervenção, Trabold et al. (2018) encontraram aquelas com foco individual, seja terapêutico ou de proteção e as voltadas para grupos, todas no formato terapêutico. Encontraram também combinações de sessões individuais e em grupo. As intervenções se basearam em diferentes orientações teóricas e os tamanhos das amostras variaram de 18 a 1.070 para as individuais e de 20 a 306 para as voltadas a grupos. As intervenções baseadas em proteção, em sua maioria, foram baseadas na teoria do empoderamento. O foco da proteção foi oferecer referências na comunidade, planejamento de segurança e apoio para enfrentar o abuso/violência.
Trabold et al. (2018) observaram que as intervenções reduziram a violência e melhoraram a saúde física das mulheres, assim como suas medidas obstétricas, tais como a diminuição de nascimentos pré-termo. Os estudos de intervenções clínicas em sua maioria focaram em reduzir sintomas negativos provenientes de VPI. Tendo isto em vista, os autores indicaram a necessidade de estudos que incorporem fatores protetivos para promover qualidade de vida para essa população. Nesse sentido, intervenções que promovam autoconhecimento e conscientização acerca dos diferentes tipos de violência podem focar em fatores protetivos e prevenção de VPI.
Quanto às estratégias de prevenção de VPI, a educação sexual foi avaliada por meio de um delineamento longitudinal quase-experimental, nos anos de 2017 e 2018, em uma instituição de nível técnico da Cidade do México (Makleff et al., 2019). A intervenção encorajou reflexões críticas sobre normas ligadas ao gênero, com uso de entrevistas e grupo focal, com alunos, professores e educadores de saúde. Eles verificaram que o referido curso ajudou a prevenir VPI entre os jovens e ajudou-os a responder ao problema. Os autores indicaram quatro elementos do curso que promoveram os resultados: encorajar reflexões sobre relacionamentos românticos, desenvolver habilidades para comunicar sobre sexualidade, e avaliar normas sobre gênero e sexualidade. Os resultados ressaltam a importância da educação para a prevenção da violência, sugerindo que estratégias baseadas em educação sejam foco de estudos futuros.
Há ainda intervenções voltadas para a saúde mental e que também promovem diminuição de VPI, por meio do tratamento de problemas como depressão e abuso de álcool (To1 et al., 2019). Em estudo de revisão, Tol et al. (2019) avaliaram sete estudos, dentre os quais quatro focaram em saúde mental em populações específicas, como depressão e abuso de álcool, e outros três avaliaram intervenções integrativas. Dentre os sete estudos avaliados, dois deles, voltados para depressão, também promoveram redução de VPI. Um deles consistiu num ensaio clínico randomizado que avaliou psicoterapia interpessoal para sobreviventes de terremotos e cujos resultados incluíram diminuição de VPI em homens e mulheres, refletindo tanto na perpetração como na vitimização. O outro estudo avaliou o efeito de intervenção baseada em ativação comportamental em centros de atenção primária na Índia e os resultados indicaram diminuição de VPI em mulheres. Os autores sugerem, entre outras possibilidades, que estudos futuros foquem na identificação de mecanismos de VPI que sejam favoráveis para intervenções de saúde mental.
Patel et al. (2019) investigaram se mulheres indianas vítimas de VPI poderiam se beneficiar de uma versão adaptada da ativação comportamental (Healthy Activity Program HAP), comparando-a com o tratamento usual na rede de atenção primária em saúde (Enhanced Usual Care EUC). As participantes foram mulheres casadas designadas para o HAP ou para o EUC. Os sintomas depressivos foram medidos na linha de base, após três meses e após 12 meses. As mulheres que estavam passando por VPI tiveram níveis mais baixos de ativação e sintomas depressivos mais elevados, comparadas com participantes que não relataram VPI, nas análises de três a 12 meses. Mesmo assim, a ativação foi associada com níveis de depressão menos severos nelas em 12 meses. Por isso, os autores sugerem que mesmo experimentando VPI, as mulheres ainda podem se beneficiar do tratamento com ativação comportamental.
No campo da Análise do Comportamento, Bell e Naugle (2005) e Guerin e Ortolan (2017) descreveram diversos processos comportamentais envolvidos nas interações em que há VPI, como fatores comportamentais presentes na decisão de ficar ou sair de uma relação violenta e padrões funcionais de diferentes tipos de abuso. A gravidade e a topografia das interações variam de abusos psicológicos sutis a abusos físicos. Guerin e Ortolan (2017) realizaram uma análise de comportamentos ligados à VPI, com base em um projeto de intervenção para reduzir violência doméstica. Os autores apresentaram uma lista de comportamentos e os agruparam em cinco padrões funcionais: ações diretas; manipulação do contexto para controlar o comportamento da mulher; estratégias para manter o segredo dentro do relacionamento; estratégias para monitorar as atividades e a rede de contatos da mulher; e construções verbais para ameaçar ou persuadir a mulher a aceitar o ponto de vista dele sobre o mundo.
Como se pode notar na sistematização feita por Guerin e Ortolan (2017), as respostas da mulher nas interações com VPI entram em padrões funcionais importantes. Assim, a observação das ocasiões em que certas respostas ocorrem pode ser um passo inicial necessário no tratamento psicoterápico dessas mulheres. Por exemplo, Williams (2001) recomenda aos terapeutas que auxiliem a cliente a analisar e a identificar situações de risco. Segundo a autora, um dos primeiros objetivos numa intervenção clínica com mulheres em relacionamentos abusivos é a auto-observação de seu comportamento e de sua interação com o agressor.
O controle comportamental exercido em relacionamentos abusivos não é, necessariamente, impositivo ou unidirecional (ver Luiz & Hunziker, 2018). Pode-se supor que as interações abusivas ocorram de modo que um parceiro sirva de ambiente para as respostas do outro. Assim, as interações podem ir modificando-se em direção a formas de abuso e de controle cada vez mais danosas. Além disso, os efeitos nocivos podem recair claramente sobre as duas pessoas ou somente sobre uma delas.
Um relacionamento abusivo desenvolve-se a partir da instalação de comportamentos abusivos (Echeburúa et al., 2009; Trabold et al., 2018). Então, para cada casal, esses comportamentos têm topografias específicas. Em casos de violência física, a topografia indica mais claramente a natureza danosa da interação. A topografia do abuso psicológico, embora muitas vezes de difícil identificação, pode apresentar alguns padrões. Depreende-se que, em geral, as interações em que há abuso psicológico levam a: (1) isolamento (restrição da interação social), (2) diminuição da emissão de tatos de eventos encobertos, como sentimentos, opiniões e decisões pessoais, (3) diminuição da variabilidade comportamental e (4) aumento dos níveis de ansiedade e de sentimento de medo.
No que diz respeito à queixa clínica formulada pela pessoa vítima de VPI, frequentemente, ela pode tomar a forma de descrições de depressão ou de ansiedade. Para estas queixas, a aplicação da Terapia Analítico-comportamental (TAC) tem obtido bons resultados. Em estudo recente (Levatti et al., 2018), a TAC foi avaliada para duas mulheres com ansiedade e depressão. Após 30 sessões de atendimento, os sintomas de ansiedade e depressão das duas clientes saíram da faixa clínica, havendo também aquisição de habilidades sociais.
A depender dos objetivos terapêuticos e da população atendida, a TAC pode ser combinada a recursos terapêuticos de cunho psicoeducacional, como livros e cartilhas (Lemes & Ondere Neto, 2017; Mussi et al., 2013; Santini & Williams, 2017). Segundo Lemes e Ondere Neto (2017), a psicoeducação é uma técnica que relaciona os instrumentos psicológicos e pedagógicos com o objetivo de ensinar o paciente e os cuidadores sobre a patologia física e/ou psíquica, bem como sobre o seu tratamento. Alguns resultados satisfatórios com a adição de componentes psicoeducacionais para o tratamento de diversos transtornos (Lemes & Ondere Neto, 2017; Mussi et al., 2013) e para mulheres que experimentavam VPI (Santini & Williams, 2017) encorajaram a presente proposta de adicionar uma cartilha à TAC para clientes com problemas de abuso em seus relacionamentos íntimos. Assim, o presente estudo teve como objetivo avaliar a influência da TAC, e desta modalidade de terapia acrescida de conversas relacionadas com o conteúdo de uma cartilha sobre relacionamentos abusivos (Namoro Legal), na identificação de interações abusivas, mensurando adicionalmente indicadores de depressão, ansiedade e habilidades sociais, de forma a caracterizar as participantes do estudo antes e após a intervenção.
Participaram do estudo duas clientes adultas que atenderam a um convite em cartazes de recrutamento espalhados pelos campi de uma universidade pública. Os cartazes convidavam: “Você se sente diminuída, ansiosa ou pouco à vontade para expressar seus sentimentos no seu relacionamento amoroso?” e disponibilizavam o telefone de contato da pesquisadora logo abaixo da pergunta. As pessoas interessadas passaram por uma entrevista (as perguntas norteadoras foram: como você se sente no atual relacionamento com seu parceiro íntimo? Este sentimento é parecido com outro que já teve em relacionamentos afetivos ou em outras relações interpessoais na sua vida?). As duas primeiras que atingiram os critérios de inclusão – estar em um relacionamento com VPI, sem violência física, foram selecionadas. As duas foram cegas em relação à variável dependente (identificação de interações abusivas) e às hipóteses do estudo. No entanto, as participantes puderam identificar fases diferentes do estudo (com e sem uso da cartilha no atendimento). As clientes serão apresentadas com os nomes fictícios Ana e Maria.
Ana tinha 26 anos, fazia doutorado em engenharia ambiental e morava com a mãe e a irmã. Nunca havia feito terapia e queixava-se de desânimo, ansiedade relacionada à vida acadêmica e dificuldade nas relações interpessoais. A partir da entrevista clínica inicial, foram identificados possíveis comportamentos abusivos do parceiro de Ana no relacionamento amoroso, envolvendo ciúmes e comportamentos explosivos.
Maria tinha 28 anos, era dentista e morava com o marido. Queixava-se de crises de ansiedade no trabalho e ganho de peso, sendo que havia feito cirurgia bariátrica dois anos antes. A partir da entrevista clínica inicial, foram identificados possíveis comportamentos abusivos do marido como controle da vida pessoal, controle dos recursos financeiros e imposição de isolamento social para a parceira.
Foram selecionados quatro estudantes de graduação em psicologia, que já haviam cursado disciplinas de Análise do Comportamento, para transcrição e categorização das verbalizações das sessões. Também colaborou uma terapeuta graduada em Psicologia, com especialização em “Clínica Analítico-Comportamental: práticas e recursos terapêuticos”. Ela recebeu um treino de três horas de integridade em TAC especificamente para o estudo. Além disso, a terapeuta foi orientada a utilizar a cartilha (ver Materiais a seguir) em sessão como um recurso para pedir exemplos e para promover reflexão sobre as situações em que as clientes estivessem em interações abusivas.
As sessões de TAC e aplicação dos instrumentos de medidas de habilidades sociais, depressão e ansiedade social foram realizadas no Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Paraná. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade em que foi conduzida, com o parecer nº3538707.
Relacionados com o registro das sessões terapêuticas e análises de dados Foram utilizados uma filmadora digital (Sony Handycam HDR-CX240), programas de reprodução de vídeo e programa de estatística R Studio.
Relacionados com a implementação das sessões terapéuticas
-Cartilha ‘Namoro Legal’ – Lançada em 2019, a cartilha foi elaborada pela Promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes, com o objetivo de orientar jovens a perceberem atitudes abusivas do companheiro. O material contém dicas práticas de como perceber se uma relação está se tornando abusiva. Com uma linguagem simples, a cartilha é constituída por sete capítulos: (1) “Confie na atitude, não nas palavras”, (2) “Seu espaço é só seu”, (3) “O ‘código da boa namorada’”, (4) “ A chave da sua vida”, (5) “Não vá morar na lua”, (6) “Saia dessa montanha russa de emoções” e (7) “Sorry, fera não vira príncipe com seu amor”. Além disso, a cartilha também faz menção a temas como isolamento, controle, autonomia de decisão e tipos de abuso.
-Manual para treinamento da integridade do tratamento em Terapia Analítica Comportamental – o Manual foi desenvolvido para o presente estudo com o objetivo de treinar e testar se a terapeuta atingia critérios aceitáveis de integridade de um tratamento em TAC e, sobretudo, para assegurar que somente a TAC (e não outras formas de intervenção) estava sendo empregada, juntamente com a cartilha. O Manual utilizado no treinamento introduziu e discutiu com a terapeuta em treino os seguintes temas: pré-requisitos do terapeuta em treino; objetivos do treino; distinção da TAC de outras intervenções com princípios comportamentais; formulação de caso clínico na TAC; criação de condições para autoconhecimento relevante e exercício de intervenções por meio de role-play. A parte final do treino envolveu a condução de um role-play, simulando um cliente com queixa relacionada à VPI, a quem a terapeuta deveria atender com base nos temas discutidos, por meio do manual. A integridade do tratamento em TAC foi avaliada com base nos seguintes critérios: (1) formulação de caso clínico conforme a TAC, (2) aplicação, preferencialmente, de procedimentos da TAC nas interações, (3) criação de condições para autoconhecimento relevante, conforme a formulação de caso clínico. A terapeuta colaboradora do estudo foi considerada treinada quando atingiu desempenho satisfatório nos três critérios, conforme julgamento das duas autoras do presente estudo.
Relacionado com mensuração da identificação de interações abusivas
-Instrumento de Descrições de Interações Abusivas (IDIA) - Desenvolvido pelas autoras do estudo para verificar os efeitos da intervenção nas descrições e na acurácia das descrições de interações abusivas na vida da participante e do seu repertório necessário para prevenir interações abusivas em relacionamentos afetivos. O instrumento foi aplicado no final de todas as sessões, de linha de base e de intervenção, e apresentava as seguintes consignas: “com base na conversa da sessão de hoje, eu identifiquei as seguintes interações abusivas vividas no meu relacionamento” e “com base na conversa da sessão de hoje, eu identifico as seguintes situações como sinais de alerta que precedem uma interação abusiva”, seguidas de espaço para as participantes escreverem. O instrumento também incluía a opção de que não houve identificação de interações abusivas e sinais de alerta que precedem uma interação abusiva.
Relacionados com caracterização das participantes antes e após intervenção
-Inventário de Habilidades Sociais (IHS) - Desenvolvido por Del Prette e Del Prette (2001; ver também Del Prette et al., 2012), ele afere o repertório de habilidades sociais usualmente requerido em uma amostra de situações interpessoais do cotidiano. Além de produzir um escore geral, o IHS também agrupa as respostas em cinco subescalas de habilidades sociais: (1) Enfrentamento e Autoafirmação com Risco; (2) Autoafirmação na Expressão de Sentimento Positivo; (3) Conversação e Desenvoltura Social; (4) Autoexposição a Desconhecidos e Situações Novas e (5) Autocontrole da Agressividade.
-Inventário de Depressão de Beck (BDI-II) - Desenvolvido por Beck e Steer (1993), foi validado para a população brasileira por Gorenstein e Andrade (1996), com posterior estudo realizado por Cunha (2001). É um instrumento de autoaplicação composto por 21 questões que descrevem sintomas de depressão. Este inventário tem o objetivo de medir a intensidade da depressão em adultos e adolescentes (Gomes-Oliveira et al., 2012).
-Escala de Ansiedade Social de Liebowitz (LSAS) - Desenvolvida por Liebowitz (1987), foi criada para avaliação de ansiedade social. Consiste em um instrumento com 24 itens, em que a pessoa indica o medo ou ansiedade e a evitação numa escala likert de 0 (nenhum ou nunca) a 3 (intenso ou quase sempre). A escala foi traduzida inicialmente por Lotufo-Neto (2000) e validada por Santos (2012).
O estudo teve três fases: (A) linha de base, (B) TAC e (BC) TAC com uso da cartilha ‘Namoro Legal’, totalizando 12 sessões terapêuticas. A primeira aferição das medidas de caracterização dos participantes antes e após intervenção foi feita antes da primeira sessão e a segunda foi feita após a última sessão. A identificação de interações abusivas foi feita no final de todas as sessões, desde a primeira da linha de base até a última sessão. A fase A teve duração de quatro sessões. Durante estas sessões, foram coletadas informações para conceituação de caso na Análise do Comportamento, portanto, com ênfase na identificação de condições antecedentes e consequentes para o responder de cada uma das participantes nas interações com seus parceiros. Os relatos sobre o contexto geral das interações atuais da cliente, nos ambientes da família e do trabalho, foram considerados para composição da formulação de caso. Paralelamente, esperou-se que a terapeuta adquirisse propriedades de audiência não punitiva para relatos de eventos privados e de eventos puníveis por outras audiências.
A fase B foi composta por quatro sessões de TAC, durante as quais foram utilizados procedimentos diversos da TAC, como avaliação comportamental, modelagem de tatos com descrições de relações antecedentes e consequentes de respostas interpessoais e reforçamento diferencial de descrições de variáveis relacionadas ao ambiente social. Ou seja, a fase B consistiu na aplicação da TAC como usualmente é feita. Os objetivos gerais das sessões de TAC centraram-se em aumentar autoconhecimento, especialmente os relatos ligados aos relacionamentos interpessoais.
A fase BC teve duração de quatro sessões e foi composta por procedimentos da TAC mais a apresentação da cartilha ‘Namoro Legal’ (Fernandes, 2019). Nas sessões com a cartilha, a terapeuta leu o texto juntamente com a cliente e fez as seguintes perguntas: “O que você pensa sobre isso?”; “Você teria algum exemplo de situações como essa no relacionamento com seu parceiro?”. Quanto à forma de aplicação, os capítulos 1 e 2 foram lidos na primeira sessão, os capítulos 3 e 4 na segunda, os capítulos 5 e 6 na terceira e o capítulo 7 na última.
Em todas as fases os transcritores das sessões anotaram a minutagem das falas, de modo que a duração de cada vez de fala foi calculada com base nesta minutagem.
Os categorizadores passaram por um treino de categorização. Eles foram distribuídos em duplas, e cada dupla realizou a categorização das verbalizações das sessões de uma cliente participante. Após o treino, os categorizadores e a primeira autora categorizaram trechos com 15 verbalizações de cada fase do estudo, totalizando 45 vezes de fala. Então, foi calculada a concordância. Para as verbalizações de Ana, o índice de concordância entre categorizador 1-pesquisadora foi k = 0,73, entre categorizador 2- pesquisadora foi k = 0,87 e entre categorizador 1 – categorizador 2 foi k = 0,78. Para as verbalizações de Maria, o índice Kappa entre categorizador 3-pesquisadora foi k = 0,91, entre categorizador 4 – pesquisadora foi k = 0,86 e entre categorizador 3-categorizador 4 foi k = 0,86. Os categorizadores receberam as sessões em ordem aleatória para a categorização e cada uma das verbalizações referentes às duas participantes foram categorizadas, conforme a seguinte especificação: (1) Outros; (2) Descrição de interação abusiva sem identificar abuso e (3) Identificação de interação abusiva. A categoria “Outros” foi aplicada para indicar qualquer verbalização em que a participante não estivesse descrevendo interações abusivas com seu parceiro. A categoria 2 aplicou-se para verbalizações de descrição da interação abusiva com o parceiro, sem indicar que o comportamento dele foi injusto e sem indicar que o comportamento do parceiro poderia ser uma tentativa de controlá-la. Na categoria 2, também foram incluídas verbalizações em que a cliente relatava culpa em relação aos abusos ou atribuía responsabilidade para si mesma acerca dos efeitos danosos das interações abusivas. A categoria 3 aplicou-se para verbalizações que descreveram a interação abusiva com o parceiro, indicando que a ação dele foi injusta, sem atribuir a si mesma a responsabilidade dos efeitos danosos dessa interação, indicando que o comportamento do parceiro poderia ser uma tentativa de controlá-la.
O estudo empregou um delineamento experimental de caso único intra-participantes. Foram realizadas quatro sessões de linha de base (fase A), seguidas de quatro sessões de TAC mais a utilização da cartilha (fase BC) e por fim quatro sessões de TAC (fase B), para a participante Ana (A-BC-B), com a inversão da fase BC para a cliente Maria (A-B-BC).
Foram comparados os escores dos testes BDI-II, LSAS e IHS antes e depois das doze sessões. As referidas medidas foram feitas com o objetivo de caracterizar as clientes quanto à depressão, à ansiedade social e às habilidades sociais, no momento da entrada e no ponto em que a coleta de dados foi encerrada. A medida contínua para observar a influência da cartilha foi obtida por meio do Instrumento de Descrição de Interações Abusivas. Com ele, foram examinadas as descrições de interações abusivas feitas pelas participantes ao final de todas as sessões, a fim de avaliar se nas sessões com uso da cartilha houve mais precisão na identificação de interações abusivas. Na análise das sessões, somou-se a duração das falas em cada categoria, obtendo-se as frequências absolutas. Em seguida, dividiu-se a frequência absoluta das categorias pela soma de todas as falas da participante e obteve-se a frequência relativa de cada categoria na sessão.
Quanto aos escores iniciais e finais dos instrumentos de caracterização, na primeira aplicação, o escore do BDI-II correspondeu a intensidade moderada de depressão para as duas participantes, caracterizando uma faixa clínica para ambas e passando para um nível mínimo de depressão na medida final para a cliente Ana (27 para 09) e um nível leve para a cliente Maria (22 para 14). Ambos os escores finais são não clínicos, indicando diminuição dos sintomas depressivos. Os resultados do LSAS indicaram pouca ou nenhuma fobia social (abaixo de 55 para as duas clientes). Em relação ao IHS, destaca-se o aumento nos escores da participante Ana no Fator 1, passando de 7,865 (abaixo da média), para 9,73 (dentro da média). Além disso, ambas as participantes passaram de escores dentro da média para acima da média no Fator 3, referente às habilidades de conversação e desenvoltura social.
Em relação à Ana, com base na duração das falas das clientes, foi calculada a frequência relativa das categorias em cada sessão, conforme a Tabela 1. Em uma das sessões da linha de base e em três sessões da fase B, a frequência das categorias “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” e “Identificação de interação abusiva” foi nula. Nessas sessões, os assuntos não se referiram a interações abusivas com o parceiro. Os valores indicam que durante a linh de base, a frequência da categoria “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” foi maior (40,77) do que a da categoria “Identificação de interação abusiva” (11,76). A partir da inserção da intervenção, tanto na fase B (TAC) e BC (TAC mais a apresentação da cartilha), a frequência da categoria “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” diminuiu. A categoria “Identificação de interação abusiva” teve seus valores mais altos na fase BC (16,65), indicando que a apresentação da cartilha adicionada aos procedimentos da TAC em sessão pode ter contribuído para descrições mais acuradas das interações abusivas.

Quanto à Maria, a Tabela 2 apresenta a frequência relativa das categorias “Outros”, “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” e “Identificação de interação abusiva” ao longo das sessões. É possível observar que a média da frequência da categoria “Identificação de interação abusiva” permaneceu quase idêntica na linha de base (23,43) e na fase B (23,45) e na fase BC teve seu maior valor (45,64), indicando que a introdução da cartilha parece ter influenciado em descrições mais acuradas das interações abusivas no relacionamento.

Para avaliar melhor as alterações das categorias “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” e “Identificação de interação abusiva”, foi calculada a média das frequências delas em cada fase para as duas clientes, conforme Figura 1.

É possível observar que, para a cliente Ana, a média da frequência da categoria “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” diminuiu ao longo das sessões de intervenção, indicando que a TAC e a utilização da cartilha provavelmente influenciaram a melhora na precisão da identificação de interações abusivas. Na fase B, houve uma diminuição da média de ambas as categorias, visto que, em três sessões, os valores foram nulos. Isto se deve ao fato de que a cliente abordou outros assuntos nessas sessões e na única sessão dessa fase em que o tema “relacionamentos amorosos” foi abordado, a frequência da categoria “Identificação de interação abusiva” superou a “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso”, indicando melhora na identificação de abuso.
Para a cliente Maria, a categoria “Identificação de interação abusiva” foi maior do que a categoria “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso” em todas as fases do estudo. No entanto, na fase BC houve um aumento da categoria “Identificação de interação abusiva” e diminuição da categoria “Descrição de interação abusiva sem identificar abuso”, indicando que a apresentação da cartilha na intervenção provavelmente influenciou na identificação e descrição de interações abusivas com o namorado.
O presente estudo visou verificar a influência da TAC com a adição da cartilha ‘Namoro Legal’ na identificação de interações abusivas por mulheres que relataram VPI, além de descrever medidas de caracterização referentes à indicadores de habilidades sociais, depressão e ansiedade social, antes e após a intervenção. As variações no delineamento pretenderam diferenciar efeitos relacionados à adição da cartilha nas sessões de TAC. Os resultados sugerem que esta combinação de intervenções, TAC juntamente com a cartilha, promoveu a melhora na precisão das descrições de interações abusivas que ocorreram com o parceiro para uma das participantes. É razoável supor que, para a segunda participante, a intervenção também tenha produzido aumento na identificação de interações abusivas, quando são desconsideradas as sessões em que ela simplesmente não tratou de temas como o relacionamento com o parceiro.
Contudo, é importante notar que a apresentação do instrumento com perguntas sobre interações abusivas no final de todas as sessões pode ter influenciado a melhora na identificação destas interações. De todo modo, esta alternativa de intervenção parece ter respondido, em parte, ao apontamento de Tol et al (2019) quanto à necessidade de pesquisas que identifiquem mecanismos da VPI que sejam favoráveis aos tratamentos de saúde mental. No presente estudo, foi possível observar que duas mulheres em tratamento com a TAC beneficiaram-se, aumentando a consciência das interações abusivas. Assim, sugere-se que a identificação de uma interação de abuso psicológico seja considerada um mecanismo da VPI passível de tratamento em contextos de saúde mental.
As medidas de depressão e de habilidades sociais das duas participantes do presente estudo pareceram apresentar progressos. Embora estas medidas tenham sido aferidas apenas para caracterização das participantes, elas indicam uma direção importante, visto que, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (2015), em todo o mundo, as mulheres vítimas de violência praticada pelo parceiro têm uma probabilidade duas vezes maior que outras mulheres de ter depressão. As mudanças nos referidos escores parecem estar de acordo com os dados levantados por Trabold et al. (2018), que identificaram em revisão sistemática, que intervenções clínicas com foco cognitivo e comportamental mostraram redução dos sintomas depressivos em mulheres vítimas de VPI. No presente estudo, uma intervenção voltada ao tratamento da VPI aparentemente foi acompanhada da diminuição da depressão. Esta relação pode ser avaliada em estudos futuros. Mulheres indianas com depressão e que relataram VPI tiveram uma resposta inferior ao tratamento focado na depressão (Ativação Comportamental) se comparadas a mulheres que não relataram VPI (Patel et al., 2019), mas mesmo assim responderam ao tratamento.
Em relação à forma de acessar a pessoa que está em um relacionamento com VPI, o estudo de Barrios et al. (2020) teve acesso às participantes por meio de perguntas feitas a seus filhos, checando se havia formas de violência em casa. As participantes do presente estudo foram recrutadas mediante um cartaz com um convite que perguntou “Você se sente diminuída, ansiosa ou pouco à vontade para expressar seus sentimentos no seu relacionamento amoroso?”. Estudos futuros podem avaliar procedimentos que aumentem a consciência das mulheres quanto ao desconforto emocional gerado por um relacionamento abusivo e esse pode ser um primeiro passo para motivá-las a aderir aos tratamentos já existentes. Além disso, é preciso considerar que essa forma de recrutamento tenha favorecido a participação de pessoas inclinadas a aderir ao tratamento. Por fim, ainda em relação à influência da forma do convite, o emprego do artigo feminino atraiu mulheres. Estudos futuros podem convidar pessoas, independentemente do gênero, para a mesma intervenção. Ademais, a forma de recrutamento pode ter sido mais acessível a mulheres com grau de instrução elevado. Outros estudos podem ser realizados aplicando a intervenção a pessoas com diferentes graus de instrução.
O presente estudo focou exclusivamente no repertório de identificação de interações abusivas. Estudos futuros podem acrescentar a avaliação de metas terapêuticas nas quais a cliente interrompa estas interações. Além disso, embora não tenha sido manipulada a influência da identificação precoce de interações abusivas para prevenir o agravamento da VPI para agressões físicas, a literatura sugere a tendência do aumento da severidade do problema. Assim, estudos futuros podem aplicar a mesma cartilha para investigar esta variável (Echeburúa et al., 2009; Patel, et al., 2019; Patró et al., 2007). A identificação de interações abusivas merece ser estudada como possibilidade de prevenir VPI, o que representaria um importante diálogo com estudos que relataram o uso de estratégias educacionais para preveni-la (Makleff et al., 2019).
O presente estudo avança ao avaliar uma forma de tratamento de VPI no contexto de uma psicoterapia individual, mais especificamente, da TAC. Um outro ponto de destaque do estudo é a demonstração da efetividade de um procedimento para aumentar a precisão da identificação de interações abusivas para mulheres que estão em relacionamentos com VPI.
Para investigações futuras, sugere-se avaliar outros recursos, além da cartilha ‘Namoro Legal’, com potencial para auxiliar o manejo das sessões com pessoas em relacionamento com VPI. Sugere-se investigar as atividades estruturadas voltadas a temas que evoquem relatos sobre as interações com o parceiro, diminuindo chances de fuga/esquiva de propriedades aversivas do assunto, por parte tanto de terapeutas quanto de clientes. Sugere-se também mais estudos sobre intervenções que inibam a progressão de interações abusivas, as quais tendem a iniciar de modo sutil e passam para outras formas de violência.
A VPI é um problema complexo para o qual diversas propostas de intervenção vêm sendo estudadas. A aplicação da TAC com a adição da cartilha ‘Namoro Legal’ para o tratamento de duas mulheres que estavam em relacionamentos abusivos indicou diminuição da depressão e melhora nas habilidades sociais. Além disso, a intervenção avaliada no presente estudo foi bem-sucedida em aumentar a precisão das descrições feitas pelas participantes quanto às interações abusivas com seus parceiros em seus contextos diários.


