Adaptações do Protocolo de Tomada de Perspectiva para crianças pré-escolares brasileiras

Adaptations of the Perspective Taking Protocol for Brazilian preschool children

Lívia Andrade Benatti
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
Susane Vitória Gonçalves Vieira
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
Débora de Hollanda Souza
Universidade Federal de São Carlos, Brasil

Adaptações do Protocolo de Tomada de Perspectiva para crianças pré-escolares brasileiras

Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, vol. 29, núm. 2, pp. 41-59, 2021

Universidad Veracruzana

Recepción: 24 Abril 2019

Aprobación: 12 Septiembre 2019

Resumo: Pesquisas recentes, apoiadas no referencial da Teoria das Molduras Relacionais, têm utilizado um protocolo para o ensino de tomada de perspectiva (RFT-TP). A tomada de perspectiva (TP) é um tipo de responder relacional dêitico importante para o desenvolvimento sociocognitivo. O protocolo, no entanto, apresenta um nível de complexidade alto que sugere a necessidade de adaptações para crianças com baixo desempenho em tarefas de cognição social. A versão original consiste na apresentação de blocos de tentativas verbais simples e de tentativas que incluem reversão e dupla reversão de papéis com o experimentador. As tentativas englobam as molduras dêiticas EU-VOCÊ, AQUI-AÍ e AGORA-ANTES. O presente trabalho teve como objetivo testar uma versão adaptada deste protocolo em crianças brasileiras. Quatro crianças, com idades entre 4 e 5 anos e com baixo desempenho em tarefas de teoria da mente, participaram. Nesta versão adaptada, dicas visuais, como fichas e indicações gestuais, foram utilizadas e retiradas gradativamente. Os participantes responderam as tentativas reversas corretamente, mesmo depois da remoção das dicas físicas. Espera-se que estes resultados possam encorajar a investigação de novas possíveis adaptações do protocolo de tomada de perspectiva (RFT-TP).

Palavras-chave: tomada de perspectiva, teoria da mente, molduras relacionais, cognição social, pré-escolares.

Abstract: Theory of Mind (ToM) is conventionally defined as the ability to understand and make inferences about one’s own mental states (i.e., desires, intentions, and beliefs) and those of other people, and based on this understanding, predict and explain human behavior. Perspective taking (PT) is a type of relational deictic response that seems to be crucial for ToM development. Recent studies, supported by Relational Frame Theory, have been using a protocol for perspective taking training (RFT- PT). Children who were administered the RFT-PT showed improved performance in post-test ToM tasks. The RFT-PT involves training of three deictic frames: the interpersonal frame (I-You), the spatial frame (Here-There) and the temporal frame (Now-Then). The original version of the protocol consists in the presentation of blocks of simple verbal trials and trials including reversal and double reversal of roles with the experimenter. The present study aimed to test an adapted version of this protocol with Brazilian children. Four 4-to 5-year-old children, with low scores in ToM measures, participated. In this adapted version, visual cues, such as chips and hand gestures, were used and then removed progressively until the participant responded correctly without any help. Other modifications of the protocol were the following: a) simplifying the target question in each trial (e.g., “If I were you, where would you be sitting?”, instead of “If I were you and you were me, where would you be sitting?”) and b) substituting the words “yesterday” and “today” for “before” and “now”, respectively, in the temporal frame trials. The procedure was divided into three parts: Initial assessment (PPVT and ToM tasks), perspective-taking training and final assessment (ToM tasks). Two of the four participants reached learning criterion in the reverse trials, even after the removal of physical cues. Additionally, three children had over 65% correct responses in the post-test. All participants showed improvement in the ToM tasks, compared to the initial assessment (success in, at least, one more task). Despite these promising results, the protocol has a high complexity level which suggests that more adaptations are needed for children showing poor performance in social cognition tasks.

Keywords: perspective taking, theory of mind, relational frames, social cognition, preschoolers.

A Teoria da Mente é convencionalmente definida como a habilidade de fazer inferências sobre estados mentais (i.e., desejos, crenças, sentimentos e intenções) e, com base nessas inferências, predizer ou explicar comportamentos humanos (cf. Wellman, 2014). Essa habilidade é considerada fundamental para que um indivíduo se torne capaz de navegar no mundo social (Carpendale & Lewis, 2015) e é parte integrante dos processos de tomada de decisão e de formação de juízos (Arket, Aronson, & Wilson, 2002).

Mais recentemente, o desenvolvimento da Teoria da Mente tem chamado a atenção de pesquisadores que trabalham com o modelo da Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory - RFT; Hayes, Barnes-Holmes, & Roche, 2001; Hendriks et al., 2016). Segundo Hayes et al. (2001), a RFT é uma abordagem que se apropria do conceito de molduras relacionais para interpretar diferentes aspectos da linguagem e da cognição. As molduras relacionais são classes de um operante complexo: o responder relacional arbitrariamente aplicável (RRAA). O RRAA é definido como responder a um estímulo ou evento em função de outro, sem que os aspectos formais desses estímulos sejam levados em consideração. Além disso, para que esse operante seja instalado, é preciso uma comunidade verbalmente competente que reforce diferencialmente a relação entre os estímulos arbitrários (Hayes et al., 2001).

Ao apresentar a uma criança, pela primeira vez, uma boneca e dizer “boneca”, estamos ensinando uma relação arbitrária (não há equivalência entre as propriedades formais da boneca e da palavra falada “boneca”; é uma relação socialmente estabelecida). Segundo McHugh, Barnes-Holmes, Barnes-Holmes, Whelan e Stewart (2007), esse ensino começa naturalmente por volta dos 2 anos de idade e, ao longo do tempo, o constante pareamento entre os dois estímulos, juntamente com os reforços emitidos pela comunidade verbal, ensinam à criança o padrão de relações simétricas entre nome e objeto (nome A → objeto B; objeto B → nome A). Segundo McHugh, Barnes-Holmes, Barnes-Holmes e Stewart (2006), uma história consistente de treinamento permite o desenvolvimento de um repertório de derivação nome-objeto, o que aumenta exponencialmente o número de relações bidirecionais que a criança é capaz de fazer.

Cada tipo de responder relacional arbitrariamente estabelecido, como por exemplo, nome-objeto, é chamado na RFT de moldura relacional (Hayes et al., 2001). Essas molduras apontam o controle contextual dos estímulos, ou seja, como os eventos estão relacionados uns aos outros, como, por exemplo, por comparação, diferença, oposição, coordenação, hierarquia, de forma dêitica, entre outras. As molduras dêiticas, que se referem à perspectiva de tempo e espaço, parecem estar fortemente relacionadas com a habilidade de tomada de perspectiva (Hayes et al., 2001; McHugh et al., 2006; McHugh, Barnes-Holmes, & Barnes-Holmes, 2004), especificamente as molduras Eu-Você, Aqui-Aí e Agora-Então.

Segundo Törneke (2010), essas molduras estão diretamente relacionadas ao aprendizado da descrição de eventos e comportamentos, sejam eles públicos ou privados. As descrições são, em parte, resultado de uma história de reforçamento que ensina o uso de termos que indiquem tempo e espaço (e.g., eu, aqui, agora). Tais descrições são, portanto, feitas com a perspectiva do falante, e é a emergência de um senso dessa perspectiva que possibilita o aprendizado da distinção entre a própria perspectiva e a perspectiva do outro (você, aí, então). Ainda segundo Törneke, essas perspectivas são interdependentes, de modo que “eu” faz sentido em relação a “você”, e “aqui” faz sentido em relação a “aí”; a própria perspectiva é sustentada pela noção de que outro ponto de vista é possível.

A tomada de perspectiva parece ser, de fato, uma habilidade primária na construção da Teoria da Mente. Ao longo do processo do desenvolvimento, a capacidade de tomada de perspectiva parece assumir um papel fundamental para a aquisição de uma teoria da mente mais sofisticada (Hadwin, Howlin, & Baron-Cohen, 1999). Embora poucos estudos tenham seguido uma direção mais aplicada, ou seja, voltada para o treinamento em Teoria da Mente (cf. Lecce, Bianco, Devine, Hughes, & Banerjee, 2014; Lohmann & Tomasello, 2003), algumas pesquisas recentes vêm procurando estabelecer relações entre a capacidade de tomada de perspectiva e o desempenho nas tarefas clássicas de Teoria da Mente.

McHugh et al. (2004), por exemplo, desenvolveram um protocolo para o ensino da tomada de perspectiva, baseado no modelo da RFT. Esse protocolo (RFT-PT; Relational Frame Theory Protocol) treina três molduras dêiticas: a pessoal (Eu-Você), a de lugar (Aqui-Aí) e a temporal (Agora-Antes). O protocolo é composto por 62 tentativas, divididas em três níveis de dificuldade (tentativas simples, reversas e duplamente reversas). As tentativas simples não envolvem nenhum tipo de reversão, por exemplo: “Eu tenho uma pedrinha vermelha e você tem uma pedrinha verde. Que pedrinha eu tenho? Que pedrinha você tem?”. Nas tentativas reversas, há inversão de um dos quadros (“Eu tenho uma pedrinha vermelha e você tem uma pedrinha verde. Se eu fosse você e você fosse eu, que pedrinha eu teria? Que pedrinha você teria?”). Nas tentativas duplamente reversas, dois dos quadros são invertidos (“Eu estou sentado aqui numa cadeira azul e você está sentado aí numa cadeira preta. Se eu fosse você e você fosse eu e se aqui fosse aí e aí fosse aqui, onde eu estaria sentado? Onde você estaria sentado?”). Uma tentativa é considerada bem-sucedida quando o participante respondia corretamente às duas perguntas. Utilizando o Protocolo de McHugh et al. (2004) como base para um procedimento de ensino, Weil, Hayes e Capurro (2011) treinaram a habilidade de tomada de perspectiva em três crianças de 4 e 5 anos de desenvolvimento típico. O delineamento utilizado foi o de sondagens múltiplas. As habilidades sociocognitivas das crianças foram avaliadas por meio de tarefas de teoria da mente e tentativas teste do protocolo (pré- e pós-teste). Além disso, ao finalizar cada nível de dificuldade do protocolo, novas medidas eram realizadas. Para realizar as sondagens do RFT-PT, os autores utilizaram 18 tentativas retiradas do protocolo, contendo os três níveis de dificuldade relacional (simples, reverso e duplo reverso). Já para realizar as avaliações de teoria da mente, eles utilizaram 15 tarefas adaptadas do estudo de Howlin, Baron-Cohen e Hadwin (1999).

O treino para cada nível relacional foi feito com 12 tentativas (quatro da moldura Eu-Você, quatro da Aqui-aí e quatro Agora- Em outro momento) para cada nível de dificuldade relacional. Ao longo das sessões, durante as quais o nível de dificuldade das tentativas aumentou progressivamente, respostas corretas foram reforçadas e respostas incorretas, corrigidas. À medida que os participantes atingiam o critério de 80% de respostas corretas para cada bloco treino (tentativas simples, reversas e duplamente reversas), sessões de teste eram realizadas, antes de passarem para o próximo bloco de tentativas. Ao mesmo tempo, na sessão de linha de base e, posteriormente, nas de teste, os pesquisadores aplicavam também tarefas tradicionais de Teoria de Mente.

Dois participantes concluíram o protocolo, tendo precisado de 18 sessões em média para conclusão do procedimento. Um participante apresentou dificuldade na moldura temporal, necessitando de mais sessões de treino. Com o término do ano letivo, os pesquisadores não conseguiram completar o treino do duplo reverso com este participante, finalizando o procedimento com as sondagens do nível reverso. Apesar de um dos participantes não ter concluído todo o procedimento, os resultados desse estudo sugerem que houve um processo de aprendizagem de tomada de perspectiva. Todos os participantes atingiram o critério na sondagem final, tendo levado entre três e 13 semanas para a conclusão do procedimento de ensino. Além disso, o desempenho dos participantes nas tarefas de Teoria da Mente também apresentou melhora.

Outros estudos vêm utilizando treinamento de molduras dêiticas com diferentes populações. Tibbetts e Rehfeldt (2005) utilizaram uma versão adaptada do protocolo de McHugh et al. (2004) com quatro crianças autistas, com idade entre 7 a 10 anos. Os autores aplicaram uma versão computadorizada com 53 tentativas adaptadas do RFT-PT. Cada sessão durava cerca de uma hora, com intervalos durante a aplicação. Após a conclusão da sessão, o participante ganhava cinco dólares para gastar em uma lanchonete. Os resultados indicaram que as quatro crianças deste estudo tiveram um desempenho pior do que os participantes com desenvolvimento típico do estudo de McHugh et al., (2004).

Davlin, Rehfeldt e Lovett (2011), por sua vez, adaptaram o protocolo utilizando histórias infantis como base e contexto para a elaboração das tentativas. Os autores contavam uma história de contos de fadas e durante o curso da leitura realizavam o treino com as tentativas adaptadas, um exemplo de tentativa simples modificada: “Você está lendo livro comigo. A Cinderela está fazendo tarefas domésticas. O que você está fazendo? O que Cinderela está fazendo?”. Foram utilizados 21 livros infantis e 37 tentativas para o treino das relações dêiticas. Participaram três crianças típicas com 7 a 10 anos de idade. Cada sessão durou cerca de 30 a 40 minutos. Os participantes realizaram em média 23 sessões de treino para atingir o critério de aprendizagem do protocolo. Os resultados indicam que o treino foi eficaz para o ensino dos três níveis de dificuldade relacional do protocolo.

Baseados no estudo de Davlin et al., (2011), Gilroy, Lorah, Dodge e Fiorello (2015) realizaram o mesmo procedimento, porém com três crianças com diagnóstico de autismo. Os participantes tinham entre 9 a 13 anos de idade. Os resultados indicaram que todos os participantes atingiram o critério de aprendizagem do protocolo. O’Neill e Weil (2014), por sua vez, aplicaram o protocolo de tomada de perspectiva, assim como tarefas de Teoria da Mente em adultos com diagnóstico de esquizofrenia, sendo que os escores em tarefas de Teoria da Mente melhoraram significativamente após o treino.

Nessa mesma direção, Montoya-Rodríguez e Cobos (2018) testaram modificações do protocolo em 20 crianças uruguaias (14 meninas e 9 meninos) de 6 e 7 anos com desenvolvimento típico. Em um dos seus estudos, os participantes foram distribuídos em três condições. Nas Condições 1 e 2, o protocolo era apresentado com dicas visuais em 18 tentativas distribuídas nos três níveis de dificuldade do protocolo. Elas eram feitas com fotos dos estímulos mencionados na tentativa (e.g., sofás, canetas). A Condição 1 diferia da condição 2 em relação ao número de tentativas. Na Condição 1, o participante deveria responder duas questões corretamente para a tentativa ser considerada correta. Na Condição 2, em cada tentativa, ele respondia apenas à uma questão. A hipótese dos autores era a de que a resposta correta da primeira pergunta poderia servir como um estímulo discriminativo e facilitador para responder corretamente a segunda questão. Finalmente, na Condição 3, outras 18 tentativas foram treinadas, no entanto, as palavras-chave de cada moldura não eram mencionadas. Outra diferença foi a diminuição do tamanho da questão principal, facilitando a discriminação das relações reversas e dupla reversas. Essas modificações tinham a função de diminuir a repetição constante de palavras durante as tentativas, e consequentemente, diminuir o risco de fadiga. Os resultados indicaram que os participantes tiveram melhor desempenho nos níveis simples e reverso da Condição 1. Os participantes que tiveram melhor desempenho no duplo reverso foram os da Condição 3. Esses dados sugerem que adaptações do protocolo (e.g., aumentar a variabilidade entre os cenários; diminuir o enunciado da tentativa; usar uma linguagem mais próxima do esperado em uma situação natural) podem contribuir para a eficácia do treinamento.

No entanto, com exceção do trabalho de Montoya-Rodríguez e Cobos (2018), não há registro de estudos testando o RFT-TP na América Latina. Considerando a demanda alta para programas de intervenção voltados para populações com atrasos ou comprometimentos no domínio da cognição social, é importante que esse tipo de protocolo seja testado em crianças e adultos de diferentes países e com diferentes repertórios. O presente estudo teve como objetivo principal contribuir nessa direção, administrando uma versão adaptada do Protocolo de Tomada de Perspectiva (McHugh et al., 2004) em crianças brasileiras com baixo desempenho em tarefas de Teoria da Mente. Adicionalmente, o trabalho objetivou verificar se, após o treinamento do responder relacional dêitico, as crianças participantes apresentariam ganhos em Teoria da Mente.

MÉTODO

Participantes

Quatro crianças, de 4 a 5 anos de idade (Midade = 4 anos e 8 meses; DP = 2,65 meses), participaram do presente estudo, sendo três meninas (M., M.J., e M.E.) e um menino (J.C.). A participação no estudo foi condicionada à autorização dos país por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e da concordância das crianças por meio do Termo de Assentimento.

Local e Materiais

As atividades foram conduzidas numa pequena sala de uma creche pública, localizada em uma cidade do interior de São Paulo, onde os participantes estavam matriculados. A sala continha uma mesa pequena e duas cadeiras. Uma câmera filmadora foi posicionada em um tripé a 1,5 m de distância da mesa. No fundo da sala, no chão, ficavam dispostos brinquedos variados, aos quais o participante tinha acesso ao final de cada sessão. A pesquisadora usava um pequeno caderno com as questões e respostas do protocolo e um cartão neutro para cobrir o verso da página, impedindo que a criança visse o conteúdo da mesma.

Instrumentos

Teste de Vocabulário Receptivo Por Imagens Peabody (TVIP)

Este instrumento avalia o vocabulário receptivo de crianças de 2 anos e 6 meses a 18 anos de idade, tendo sido traduzido e adaptado por Capovilla e Capovilla (1997). O teste conta com 130 pranchas, organizadas em ordem crescente de dificuldade. O participante é convidado a prestar atenção em quatro figuras dispostas em cada prancha e então, ele é solicitado a dizer qual das quatro corresponde a uma palavra ditada (e.g., baleia). As pranchas são apresentadas em sequência, sem que haja consequências para acertos ou erros. O teste é interrompido quando a criança alcança seis erros em um bloco de oito tentativas consecutivas. É atribuído um ponto para cada acerto e a pontuação bruta é então comparada com os dados de crianças na mesma faixa etária do participante. Com base nos escores padronizados, é possível avaliar se o vocabulário receptivo da criança se encontra dentro do esperado para a sua idade, abaixo ou acima da média. Essa medida foi utilizada para garantir que as crianças escolhidas não apresentariam grande comprometimento em aspectos básicos da linguagem, o que poderia interferir na aprendizagem do protocolo e das tarefas de Teoria da Mente.

Tarefas de Teoria da Mente

Foram utilizadas três tarefas tradicionais de Teoria da Mente, presentes na escala criada por Wellman e Liu (2004) e traduzidas para o português pela pesquisadora:

1. Crenças diferentes. Para obter êxito nesta tarefa, a criança deve ser capaz de predizer onde uma personagem vai procurar um objeto, sabendo que esta personagem tem uma crença falsa sobre a localização do mesmo.

2. Acesso ao conhecimento. A criança abre uma caixa e observa o que há dentro. Em seguida, ela é solicitada a dizer se outra pessoa, que nunca viu a caixa antes, sabe o que ela contém.

3. Crença falsa: conteúdo inesperado. A criança abre uma caixa familiar (e.g., uma caixa de bombons) e percebe que ela contém algo inesperado (e.g., pedras em vez de bombons). Em seguida, a caixa é fechada e a criança é solicitada a dizer o que outra pessoa, que nunca viu o conteúdo da mesma, acharia que ela contém.

Protocolo de Tomada de Perspectiva

Uma tradução livre do Protocolo de Tomada de Perspectiva de McHugh et al. (2004) foi utilizada. O protocolo é dividido em três níveis de dificuldades (tentativas simples, tentativas reversas e tentativas duplamente reversas), abrangendo as três molduras relacionais consideradas essenciais para a tomada de perspectiva (Eu-Você, Aqui-Aí, Agora-Antes) em um total de 64 tentativas. As tentativas simples não envolvem nenhuma reversão (e.g., “Eu tenho uma pedrinha vermelha e você tem uma pedrinha verde. Que pedrinha eu tenho? Que pedrinha você tem?”). As tentativas reversas envolvem a reversão de uma das molduras (e.g., “Eu estou sentada aqui numa cadeira preta e você está sentado aí numa cadeira azul. Se eu fosse você e você fosse eu, onde você estaria sentado? E onde eu estaria sentado?”). As tentativas duplamente reversas envolvem a reversão de duas molduras (e.g., “Antes eu estava sentada aqui numa cadeira azul. Agora eu estou sentada aqui numa cadeira preta. Se aqui fosse aí e se aí fosse aqui e se agora fosse antes e antes fosse agora, onde eu estaria sentada antes? E onde eu estaria sentada agora”). Uma tentativa é considerada bem-sucedida quando o participante responde corretamente as duas perguntas que compõem a tentativa. As adaptações feitas no protocolo original foram: a troca dos termos “ontem” e “hoje” por “antes” e “agora”, respectivamente, nas tentativas que envolviam a moldura Agora-Antes; diminuição no enunciado das tentativas (e.g. “Eu estou sentada aqui numa cadeira preta e você está sentado aí numa cadeira azul. Se eu fosse você, onde você estaria sentado? E onde eu estaria sentado?”) e, por fim, foi realizada a retirada gradativa de dicas físicas ou gestuais no treinamento das tentativas reversas.

Procedimento

As etapas do procedimento são apresentadas na Figura 1. Antes do início das sessões de coleta de dados, a pesquisadora participou de duas a três sessões de familiarização com as crianças, durante o horário de brincadeiras na creche. As sessões eram conduzidas diariamente. Na primeira sessão, a pesquisadora administrou o Teste de Vocabulário Receptivo Peabody (TVIP) e, na segunda, foram aplicadas as três tarefas de Teoria da Mente. Ao final de cada sessão, a pesquisadora permanecia na sala com a criança por 15 a 25 minutos, realizando brincadeiras da escolha da criança (e.g., quebra-cabeças, carimbos, boliche).

Etapas do procedimento.
Figura 1.
Etapas do procedimento.

O protocolo RFT-TP foi estruturado em blocos de seis a doze tentativas, de acordo com o número de tentativas de cada nível de dificuldade. O nível simples era formado pelo Bloco A e o nível reverso pelos Blocos B, C, D e E. O Bloco A era formado por doze tentativas. Os blocos reversos estavam divididos de acordo com as molduras dêiticas que englobavam: Bloco B com oito tentativas do tipo Eu-Você, Bloco C com 12 tentativas do tipo Aqui-Aí e os Blocos D e E com oito tentativas cada do tipo Agora-Antes. Ao completar todos os blocos de um nível de dificuldade, o participante passava por um bloco adicional de teste, contendo seis tentativas apenas daquele nível de dificuldade. Pré-teste e pós-teste foram conduzidos ao início e fim do protocolo, cada um contendo seis tentativas dos três níveis de dificuldade (uma simples, três reversas e duas duplamente reversas). O protocolo foi apresentado às crianças de forma lúdica, sendo sempre referido como “O Jogo das Perguntas”.

Nos blocos de teste, nenhuma consequência ao acerto ou erro das tentativas era fornecida. Para as etapas de ensino, foi utilizado um sistema de reforçamento de fichas, com peças de dominó, entregues a cada acerto para serem colocadas em um recipiente disposto na mesa em frente à criança. No caso de erros, era fornecida uma correção verbal (“Não, estaria na cadeira azul”) e a tentativa era repetida até que o participante acertasse a resposta e recebesse a ficha referente ao acerto. A correção era feita contingentemente à resposta incorreta, fosse ela na primeira ou na segunda pergunta da tentativa.

Para o ensino das tentativas reversas, um sistema de dicas visuais foi usado até que os participantes fossem capazes de responder as tentativas sem o auxílio das mesmas. Dois tipos de dicas foram usados: fichas e indicações gestuais. As fichas eram feitas de papel colorido em quatro cores (verde, vermelho, azul e preto), de acordo com as cores mencionadas nas tentativas. As fichas eram apresentadas aos participantes conforme o andamento da tentativa, por exemplo: “Eu tenho uma pedrinha vermelha (pesquisador coloca a ficha vermelha diante de si) e você tem uma pedrinha verde (pesquisador coloca a ficha verde diante da criança). Se eu fosse você (pesquisador troca as fichas de lugar), que pedrinha você teria? E que pedrinha eu teria?”. Ora a experimentadora pedia para a criança distribuir e alternar a posição das fichas, ora ela pedia para a criança não trocar as fichas de lugar, mas indicar gestualmente a troca (deslizando o dedo indicador sobre a mesa de uma ficha até a outra).

Na condição que envolvia o uso de indicações gestuais, as fichas não eram utilizadas, mas o pesquisador indicava gestualmente a posição das mesmas, por exemplo: “Eu tenho uma pedrinha vermelha [pesquisador apontava para um espaço na mesa mais próximo dele] e você tem uma pedrinha verde [pesquisador apontava para um espaço na mesa mais próximo da criança]. Se eu fosse você [pesquisador indica gestualmente a troca de lugar das fichas], que pedrinha você teria? E que pedrinha eu teria?”.

A utilização de dicas visuais foi retirada gradativamente, diminuindo a quantidade de ajuda (pesquisador manipulando as fichas, participante manipulando as fichas, fichas sem troca de lugar, indicações gestuais) até que a criança fosse capaz de responder as tentativas sem o uso dessas dicas. Em resumo, o procedimento abrangia três tipos de tentativas: tentativas livres (sem ajuda), tentativas com fichas e tentativas com indicações gestuais.

A cada sessão de ensino, a porcentagem de acerto era computada. O critério de aprendizagem do bloco era de 65% (oito em doze tentativas, seis em oito tentativas e quatro em seis tentativas). Caso a criança não alcançasse este critério, o bloco era repetido no dia seguinte. A exceção se encontrava no Bloco A das tentativas reversas. Considerando a introdução de dicas visuais para o auxílio da reversão de papéis, o Bloco A era repetido três vezes, independentemente da quantidade de ajuda que a criança precisasse para responder as tentativas. A partir do Bloco B, o critério de acerto voltava aos 65%, considerando apenas as tentativas livres. Ao concluir todos os blocos de um nível de dificuldade, era então apresentado um bloco de teste, com o mesmo critério de acerto. Sendo esse critério alcançado, a criança passava então para o próximo nível de dificuldade do protocolo. Caso contrário, uma nova sessão de treinamento era conduzida e o bloco de teste repetido. O critério de conclusão do procedimento de ensino era de 65% de respostas corretas ou mais no pós-teste, realizado ao final do teste de tentativas reversas. Tendo alcançado esse critério, o procedimento de ensino deveria ser encerrado. As mesmas tarefas de Teoria da Mente utilizadas no levantamento de linha de base foram usadas no pós-teste.

RESULTADOS

Avaliações iniciais

Em relação à medida de vocabulário receptivo (escores ponderados do TVIP), três crianças (M., M.J. e M.E.) tiveram pontuação baixa e uma criança (J.C.) obteve pontuação média. A Tabela 1 apresenta o gênero e a idade de cada criança no início e no fim do procedimento, as pontuações bruta e ponderada do TVIP, bem como a categoria descritiva de desempenho do TVIP.

Tabela 1
Descrição dos participantes do estudo, de acordo com o gênero, idade e desempenho
Descrição dos participantes do estudo, de acordo com o gênero, idade e desempenho

A segunda avaliação consistiu na aplicação de três tarefas de Teoria da Mente (pré-teste). Todas as crianças acertaram somente a primeira tarefa (crenças diferentes), não pontuando nas demais, totalizando 33% de acerto no pré-teste em Teoria da Mente.

Protocolo de Tomada de Perspectiva

O número de sessões necessárias para completar o protocolo variou de 14 a 17 sessões (M =15,5; DP =1,3). Duas crianças (M. e J.C.) precisaram de apenas um bloco de tentativas simples (Bloco A) para atingir o critério de aprendizagem (65%), enquanto as outras duas crianças (M.J. e M.E.) precisaram de uma repetição do Bloco A para atingir o critério. A Tabela 2 apresenta as taxas de acerto dos participantes nas tentativas reversas. Como pode ser observado, as crianças obtiveram o seu melhor desempenho na moldura pessoal (Eu-Você), com uma porcentagem média de acerto de 72,3%, e o pior desempenho na moldura de tempo (Agora-Antes), com uma média de acerto de 59,3%.

Tabela 2
Porcentagem de acerto dos participantes nas tentativas reversas de acordo com a moldura
Porcentagem de acerto dos participantes nas tentativas reversas de acordo com a moldura

Em relação aos erros cometidos nas respostas às duas perguntas das tentativas reversas (“Se eu fosse você, onde eu estaria sentado? E se você fosse eu, onde você estaria sentado?”), 94% dos erros concentraram-se nas respostas à primeira pergunta da tentativa. De maneira geral, nos blocos reversos, a porcentagem de erros era maior na primeira repetição de cada bloco e, ao longo das repetições, ela diminuía. A exceção se encontra no Bloco B (bloco durante o qual ocorria o primeiro contato com as dicas visuais), sendo que três dos quatro participantes atingiram 100% de acerto na primeira repetição, apresentando uma maior porcentagem de erros ao longo das repetições.

Participante M.

M. precisou de 15 sessões para completar o treino até as tentativas reversas. Nas tentativas do tipo simples, não foi necessária a repetição do bloco, tendo ela acertado cinco das seis tentativas no teste. Nos blocos de tentativas reversas, M. repetiu o Bloco C três vezes e os Blocos D e E duas vezes cada até alcançar o critério de 65% de acerto em tentativas livres. Na sessão de teste com tentativas reversas, M. acertou quatro de seis tentativas (66,6% de acerto), atingindo o critério estabelecido. No pós-teste do protocolo, M. apresentou uma maior pontuação, com cinco respostas corretas em seis tentativas (83,3% de acerto), em comparação à pontuação do pré-teste (66,6% de acerto). A Figura 2 apresenta a porcentagem de acertos de M., assim como o tipo de tentativa (livre, indicação gestual ou fichas) em que esses acertos ocorreram, ao longo das sessões de treino e teste do protocolo de tomada de perspectiva.

Porcentagem de acertos de M. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.
Figura 2
Porcentagem de acertos de M. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.

Participante M.J.

M.J. realizou 17 sessões até o término da aplicação do protocolo. No primeiro teste referente às tentativas simples, M.J. não atingiu o critério estabelecido, acertando duas em seis tentativas (33,5%). O Bloco A foi então repetido e, na nova sessão de teste, M.J. acertou cinco das seis tentativas (83%). Nos blocos de tentativas reversas, M.J. repetiu o Bloco C três vezes e os Blocos D e E duas vezes cada até alcançar o critério. Na sessão de teste com tentativas reversas, M.J. acertou quatro em seis tentativas (66,6%). No pós-teste, M.J. manteve a mesma quantidade de acertos obtida no pré-teste, acertando quatro das cinco tentativas (66,6%). A Figura 3 apresenta a taxa de acertos de M.J. em cada sessão do protocolo.

Porcentagem de acerto de M.J. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.
Figura 3
Porcentagem de acerto de M.J. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.

Participante J.C.

Para J.C., foram necessárias 14 sessões até o término das tentativas reversas. Nas tentativas do tipo simples, não foi necessária a repetição do bloco, acertando cinco das seis tentativas no teste referente às tentativas simples (83,3% de acerto). Nos blocos de tentativas reversas, J.C. precisou repetir o Bloco B quatro vezes (uma a mais do que o pré-estabelecido) porque, na terceira repetição, ainda apresentava taxas de acerto muito baixas, mesmo com o uso de fichas.

Na quarta repetição do bloco, J.C. apresentou taxas mais altas de acerto, mesmo em tentativas livres, diferentemente dos outros participantes que só começaram a responder livremente a partir do Bloco C. Ele repetiu os Blocos C e D duas vezes cada e o Bloco E uma vez até alcançar o critério estabelecido (65% de acerto em tentativas livres). Na sessão de teste com tentativas reversas, J.C. acertou três em seis tentativas (50%), não atingindo o critério de aprendizagem. Comparando o pré-teste com o pós-teste, J.C. apresentou um aumento no número de tentativas corretas, passando de um acerto (16,6%) para três acertos (50%) nas tentativas apresentadas. A Figura 4 apresenta a porcentagem de acertos de J.C. ao longo de todos os blocos.

Porcentagem de acerto de J.C. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.
Figura 4
Porcentagem de acerto de J.C. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.

Participante M. E.

M.E. completou 16 sessões até o término das tentativas reversas. Nas tentativas do tipo simples, não foi necessária a repetição do Bloco A e ela acertou cinco das seis tentativas no teste referente às tentativas simples (83,3%). Nos blocos de tentativas reversas, M.E. repetiu o Bloco C três vezes e os Blocos D e E duas vezes cada até alcançar o critério. Na sessão de teste com tentativas reversas, M.E. acertou apenas duas das seis tentativas (33,3%). No pós-teste, M. E. obteve melhores resultados, em comparação ao pré-teste, passando de um acerto (16,6%) para quatro (66,6%).

A Figura 5 apresenta a porcentagem de acertos de M.E. em cada sessão nos três diferentes tipos de condição de ajuda (com fichas, indicação gestual e sem ajuda).

Porcentagem de acerto de M.E. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.
Figura 5.
Porcentagem de acerto de M.E. ao longo dos blocos de treino e teste, discriminados pelo tipo de ajuda fornecida nas tentativas.

Avaliação final

Em relação ao desempenho nas tarefas de Teoria da mente, na primeira aplicação, todos os participantes obtiveram sucesso em uma das três tarefas, sendo que todos os acertos se deram na tarefa Crenças Diferentes. Na segunda aplicação, três dos quatro participantes obtiveram êxito em duas das três tarefas e um dos participantes, J.C., passou em todas as tarefas apresentadas. A Tabela 3 apresenta o desempenho dos participantes nas tarefas antes e depois de passarem pelo protocolo de tomada de perspectiva.

Tabela 3
Desempenho dos participantes nas tarefas de Teoria da Mente nas duas aplicações realizadas.
Desempenho dos participantes nas tarefas de Teoria da Mente nas duas aplicações realizadas.

DISCUSSÃO

O presente estudo teve como objetivo testar adaptações do RFT-TP em uma amostra de crianças brasileiras com desempenho abaixo do esperado para a idade em tarefas de cognição social. Os quatro participantes foram submetidos ao protocolo adaptado e foram capazes de responder às tentativas reversas de maneira correta. Todos os participantes alcançaram o critério de 65% durante os blocos de treinamento, respondendo nos blocos finais, sem o auxílio de dicas visuais. Além disso, três participantes tiveram desempenho no pós-teste condizente com o critério de aprendizagem estabelecido.

Em relação ao uso das dicas visuais, a retirada gradativa da ajuda parece ter tido um efeito facilitador no aprendizado das tentativas reversas, já que contribuiu para a redução do número de erros nas tentativas livres. De fato, o número de repetições necessárias para atingir o critério de aprendizagem caiu para 1, após a retiradas das dicas visuais. Além disso, somente o participante J.C. precisou receber ajuda das dicas novamente, após iniciar os blocos com tentativas livres.

Outra variável que parece ter contribuído para a aprendizagem das relações reversas foi a mudança na ordem de apresentação das molduras: o ensino das molduras pessoal e de lugar (Blocos B e C, respectivamente) foi feito antes do ensino da moldura temporal (Blocos D e E). O número médio de repetições para os blocos B e C foi de 3, enquanto, para os blocos D e E, foi necessária apenas uma repetição. Uma explicação possível para esse efeito está relacionada ao fato de que a moldura temporal contém as molduras pessoal e de lugar. Embora McHugh et al. (2004) argumentem que o ensino das molduras pode ser feito em qualquer ordem e de forma intercalada (ou não), é possível que a ordem usada no presente estudo tenha sido mais eficiente porque aprender as molduras pessoal e de lugar seria pré-requisito para responder corretamente as tentativas da moldura temporal.

Os dados sobre as porcentagens de acerto também sugerem que a moldura temporal é a mais difícil: enquanto a porcentagem média de acertos na moldura pessoal foi de 72,3%, a da moldura temporal foi de 59,3%. Mesmo que as molduras pessoal e de lugar não sejam pré-requisito para a temporal, elas parecem ser mais fáceis. As crianças parecem aprender mais rapidamente a moldura pessoal, seguida da de lugar e, por último, a temporal.

Outra característica importante do procedimento utilizado no presente estudo foi a de reforçar ou corrigir a resposta na primeira pergunta; somente quando a criança acertasse, era feita a segunda questão. A maior porcentagem de erros foi na resposta à primeira questão da tentativa, o que é consistente com os achados de Montoya-Rodríguez e Cobos (2018) que sugerem que a resposta correta da primeira pergunta pode servir como um estímulo discriminativo e facilitador para responder corretamente a segunda questão.

Já em relação ao perfil dos participantes, J.C. e M.E., que obtiveram as maiores pontuações do TVIP (105 e 91,2, respectivamente), também apresentaram os maiores ganhos no pós-teste em relação ao pré-teste. J.C. começou com 1 acerto no pré-teste e teve 3 no pós-teste. M.E. foi de 1 ponto no pré-teste para 4. Em comparação, M. acertou 4 no pré-teste e 5 no pós-teste (diferença de apenas 1 ponto) e M.J. acertou 4 tanto no pré-teste como no pós-teste. É possível então que as crianças com um melhor vocabulário se beneficiem mais do protocolo, o que é consistente com a literatura na área da RFT, que sugere que a moldura dêitica é a última a ser aprendida no desenvolvimento do repertório verbal. É necessário a aquisição de outras molduras para que a criança consiga estabelecer relações dêiticas, que contêm somente elementos abstratos (Hayes et al., 2001).

No que diz respeito ao desempenho nas tarefas de Teoria da Mente, todas as crianças obtiveram um desempenho melhor no pós-teste (pelo menos, 1 ponto a mais). No entanto, uma limitação do presente estudo foi o número reduzido de tarefas de teoria da mente. Sugere-se, em estudos futuros, o uso da Escala de Teoria da Mente completa (7 tarefas), avaliando componentes distintos da teoria da mente (Wellman & Liu, 2004), ou outro instrumento que possa captar de forma mais abrangente toda a variação possível no domínio da cognição social. Por um lado, é possível que essa melhora de 1 ponto ou mais seja realmente resultado da exposição ao protocolo. Por outro lado, é importante testar se outros componentes da teoria da mente são impactados positivamente pelo protocolo.

Entre os estudos prévios que fizeram uso do RFT-PT, dois foram realizados com indivíduos autistas (Gilroy et al., 2015; Tibbetts & Rehfeldt, 2005), e em uma faixa etária muito superior à dos participantes do presente estudo: 9 a 13 anos e 7 a 10 anos, respectivamente. Davlin et al. (2011) utilizaram o protocolo com crianças de desenvolvimento típico, mas também mais velhas (7 a 10 anos) e obteve evidências de eficácia do protocolo. Weil et al. (2011), por sua vez, usaram o protocolo com crianças de 4 a 5 anos de desenvolvimento típico (mesma faixa etária dos participantes do presente trabalho). Considerando o nível de dificuldade das tentativas de duplo reverso, surpreendentemente, duas das três crianças conseguiram completar o protocolo.

Mais recentemente, Montoya et al. (2018) conseguiram sucesso nas tentativas do nível duplo reverso, mas com crianças um pouco mais velhas (6 a 7 anos). Embora o número médio de sessões realizadas com os participantes do presente estudo (15,5 sessões) seja comparável ao de sessões realizadas nesses estudos prévios, é possível que esse número ainda seja insuficiente, considerando o repertório de linguagem dos nossos participantes. É importante destacar também que os resultados aqui apresentados são condizentes com os achados de McHugh et al. (2004) no que diz respeito ao desempenho do grupo de crianças mais novas (3 a 5 anos), que tiveram índices de erro significativamente maiores do que os indivíduos dos outros quatro grupos de idade (variando de 6 a 30 anos).

Outra sugestão para estudos futuros está relacionada ao número de tentativas por bloco. No presente estudo, este número foi variável, já que foram utilizadas as tentativas disponíveis no Protocolo original (McHugh et al., 2004), para cada nível de dificuldade (neste trabalho, simples e reversas) e para cada moldura (Eu-Você, Aqui-Aí, Agora-Antes). Sugere-se que a padronização do número de tentativas em todos os blocos seja feita pela repetição de tentativas já anteriormente treinadas ou pelo acréscimo de novas tentativas ao protocolo original. Uma possibilidade, no caso da opção pelo acréscimo de tentativas, seria a de incluir dicas diferentes das utilizadas no presente estudo (e.g., bonecos/fantoches, bichos de pelúcia, objetos coloridos). Essa variação pode tornar o protocolo mais interessante e menos cansativo para as crianças participantes.

Algumas limitações metodológicas do presente estudo ainda devem ser consideradas. Em primeiro lugar, o critério para a retirada de dicas variou de acordo com o participante. A retirada da ajuda era realizada quando a pesquisadora observava que o participante acertava tentativas com algum tipo de ajuda, como por exemplo, com as fichas sendo trocadas de lugar. Uma vez obtida uma sequência de acertos consecutivos (com o número de acertos variando entre os participantes), uma tentativa com as fichas, sem a troca de lugar das mesmas, era inserida. Caso o participante errasse a tentativa, a pesquisadora fazia a correção e oferecia mais ajuda na forma das diferentes dicas (visual ou gestual). Assim, o procedimento de retirada de ajuda não foi sistematizado. Uma segunda limitação advém do fato de que a aplicação do protocolo não pode ser completada antes do término do período letivo na creche, em razão de diferentes atividades programadas na escola. É possível que as crianças participantes conseguissem também, com um número maior de tentativas, alcançar o critério no nível duplo reverso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo levanta questões importantes sobre a aplicação do Protocolo de Tomada de Perspectiva em crianças brasileiras. Os resultados são promissores e as sugestões de modificações para o Protocolo não parecem alterar o propósito do seu treinamento ou o seu conteúdo; pelo contrário, caminham na direção de facilitar o uso desse instrumento.

A promoção de Teoria da Mente e, consequentemente, de Cognição Social é fundamental para a manutenção das relações com pares e com o ambiente social, na medida em que mediam a interpretação dos acontecimentos e interações sociais (Arket et al., 2002). No entanto, embora, muitos estudos explorem a relação da Teoria da Mente com outras variáveis de interesse (e.g., linguagem, interação com adultos e crianças mais velhas), poucos têm seguido uma linha mais aplicada, ou seja, voltada para o treinamento em Teoria da Mente (cf. Lohmann & Tomasello, 2003; Lecce et al., 2014). Estudos como o aqui reportado podem contribuir nessa direção, testando o RFT-TP em diferentes populações e explorando adaptações ou modificações do mesmo para que ele se adeque às necessidades de cada grupo alvo.

REFERÊNCIAS

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