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Valores Feministas na Clínica Comportamental: Reflexões Baseadas em bell hooks
Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, vol. 29, núm. 2, pp. 61-79, 2021
Universidad Veracruzana


Recepción: 08 Marzo 2020

Aprobación: 05 Agosto 2020

Resumo: O objetivo desse artigo é discutir a possibilidade de uma clínica comportamental comprometida com valores feministas, refletindo sobre sua desejabilidade e aplicabilidade, bem como as implicações culturais. Para tanto, foi realizada uma pesquisa teórico-reflexiva de caráter filosófico para sugerir que valores feministas fossem aplicados como objetivos globais dentro das práticas existentes da Análise do Comportamento Clínica (ACC). Como referencial feminista tomou-se alguns escritos de bell hooks, dos quais foram abstraídos valores como: conscientização, enfrentamento, solidariedade, libertação, partilha, poder de fala, amor e igualdade. Argumenta-se que os valores citados podem propiciar mudanças individuais significativas para analista do comportamento e clientes ao introduzir variáveis de gênero, raça e classe como aspectos relevantes no processo terapêutico.

Palavras-chave: análise do comportamento clínica, bell hooks, feminismo, valores.

Abstract: Values are considered behavioral phenomena. As behavior, verbal or not, they can be analyzed according to the assumptions of Radical Behaviorism. So, values can be object of study as any other behavior. The qualitative classification of values as “good” or “bad” is based on the effects that they produce in the individual and in the world, being reinforced or not by verbal community. The clinical behavior analyst is susceptible of reproducing his / hers individual and cultural values, in clinical context. Although it is known that it is no impartiality in clinical context, it is important the behavior analyst do not reproduce his / hers values overlapping the client’s, seeking for self-knowledge and to follow the ethic code of his / her profession. The Clinical Behavior Analysis is composed by different practices which have different goals. Two categories are presented: the global and local goals. The global goals form the finality and normative principles of psychotherapy. The local goals approach the client’s demands and intervention. This paper aims to discuss the possibility of a behavioral clinic compromised with feminist values, reflecting about its desirability and applicability, as well as its cultural implications. The feminist writings chose to support the discussion came from bell hooks. A theorical reflexive research was conducted to abstract feminist values from bell hooks. This kind of research allows to explore epistemological and ethical assumptions that fundament a science. The values abstracted from bell hooks, and detailed in behavioral interpretation, were consciousness, coping, solidarity, liberation, sharing, power of speech, love, and equality. In the end, it is considered that these values can provide significant individual changes for the client and the behavior analyst when introducing gender, class, and race variables as relevant aspects in therapeutic process, being positive changes also for cultural and social context.

Keywords: clinical behavior analysis, bell hooks, feminism, values.

A discussão sobre valores

A discussão sobre valores na Análise do Comportamento Clínica (ACC) pressupõe o estudo da normatividade ética e da cultura. Essa discussão toca em aspectos que ultrapassam a descrição, adentrando em questões como os significados dos valores, suas bases culturais e os motivos pelos quais uma sociedade preconiza alguns em detrimento de outros (Assaz et al., 2016). Desse modo, antes de falar sobre valores na ACC é preciso fundamentá-los na concepção da Análise do Comportamento (AC).

Valores são considerados um fenômeno comportamental, verbal e não-verbal, passíveis de explicação e controle (Assaz et al., 2016; Watrin & Stein, 2015). Compreendidos a partir da perspectiva behaviorista radical, valores são comportamentos e, portanto, sujeitos à análise funcional (Ferreira et al., 2019).

Para Skinner (1971), as pessoas chamam de “bom” eventos que funcionam como reforçadores positivos e de “ruim” eventos que funcionam como reforçadores negativos. A questão não é a mera descrição do evento em si, mas sim dos efeitos que os eventos produzem no indivíduo, é uma distinção entre a “coisa” e seu efeito reforçador. Inquirir sobre por que um evento é assim classificado é, de certa forma, inquirir sobre por que ele funciona como reforçador positivo ou negativo (Skinner, 1971). Basicamente é perguntar: “por que um reforçador reforça?” (Skinner, 1953/2003).

Skinner (1953/2003; 1971) argumenta que contingências de sobrevivência foram responsáveis pela origem da função de determinados eventos como reforçadores, da mesma forma que foram pela sensibilidade dos organismos a relações entre estímulos, o que permite, no seu tempo de vida, a construção de novos reforçadores.

Palavras qualitativas como as mencionadas passam a ter efeitos reforçadores por acompanharem eventos que já têm essa função. Essas palavras se tornam reforçadores condicionados (verbais) e são utilizadas para fortalecer ou enfraquecer comportamentos (Skinner, 1971). Logo, reforçadores que possuem valor biológico– processos evolutivos – podem compreender comportamentos verbais – asserções como “certo” e “errado” – que consistem, basicamente, em consequências reforçadoras generalizadas sem caráter evolutivo (Bogo & Laurenti, 2012; Dittrich & Abib, 2004; Skinner, 1971).

Tal como eventos podem ser reforçadores e classificados qualitativamente, comportamentos verbais ou não, dentre eles os chamados de valores também podem. Comportamentos podem ser classificados como “bons” ou “ruins” dependendo dos efeitos que produzem no mundo e se, por conta disso, são ou não reforçados por outros sujeitos (Skinner, 1971).

Desse modo, valores podem ser selecionados e mantidos pelo ambiente verbal do qual um indivíduo faz parte (e.g., seus pais). Eles são também modelados por agências de controle que atuam em contingências sociais de reforço e na regulação do fornecimento de reforçadores (Dittrich & Abib, 2004). Verifica-se que a formação da moralidade de um sujeito surge por meio de práticas de reforço entre os membros do grupo social ao qual pertence, gerando padrões de julgamentos, moralidade e ética, individuais e sociais (Assaz et al., 2016; Dittrich & Abib, 2004).

A compreensão da relação entre comportamento e ambiente, torna possível a identificação de variáveis ambientais que controlam os valores de um determinado sujeito e a sua função (Ferreira et al., 2019). Nesse sentido, a classificação explorada na AC dispensa o dualismo entre valor/fato, posto que valor se torna também um objeto de estudo tão concreto quanto o último (Ferreira et al., 2019; Leigland, 2005; Watrin & Stein, 2015).

Os valores são, então, colocados no debate científico confrontando sua suposta neutralidade. Leigland (2005) declara que, apesar de controverso, isso é viável quando a análise científica aponta as mudanças a serem realizadas e, também, os resultados práticos baseados em evidências. Skinner (1953/2003, 1971), por exemplo, sugere que a sobrevivência da cultura deveria ser um valor fundamental a todos por suas consequências para a sociedade.

Para subsidiar sua inferência, o autor propõe a experimentação como recurso. Ou seja, pondera que não há fórmulas prontas, mas que é possível buscar práticas que favoreçam consequências orientadas ao valor da sobrevivência. Afirma ser papel do planejador cultural e, por conseguinte, do(a) analista do comportamento, assegurar-se desse tipo de estudo, lidando com as questões éticas do tema (Skinner, 1953/2003, 1971; Watrin & Stein, 2015).

Leigland (2005) afirma que para o behaviorista radical é impossível alcançar um consenso ou criar diretrizes aplicáveis a quaisquer problemáticas éticas existentes, mas é viável indicar valores considerando as contingências. Esse tipo de discussão se mostra inevitável na clínica comportamental e fora dela, pois os valores dos sujeitos não são expressos no vácuo, mas em um contexto cultural (Assaz et al., 2016).

Na literatura da ACC, uma definição frequentemente citada sobre valores é da Terapia de Aceitação e Compromisso (Acceptance and Commitment Therapy- ACT). Nela, os valores possuem um aspecto motivador estabelecido por consequências verbais (Watrin & Stein, 2015). O(a) analista do comportamento auxilia o(a) cliente a clarificá-los a fim de reforçar comportamentos de engajamento que tornem sua vida mais significativa (Assaz et al., 2016).

Em suma, verifica-se que não há como fugir da noção de valores como fenômenos comportamentais relevantes para o cliente. A cautela está em como o(a) analista do comportamento os coloca na prática clínica. Isso porque o contexto clínico se configura como o local no qual o comportamento do cliente fica sob controle do(a) analista do comportamento, fornecendo um contexto microcultural em que seus valores serão buscados, analisados e/ou mudados. Isto é, um ambiente em que a expressão de valores fica sob controle contextual da audiência: nesse caso, o(a) terapeuta (Assaz et al., 2016).

Como todo organismo que se comporta, precedido por história comportamental e inserido culturalmente, os(as) analistas do comportamento também são dotados de valores próprios. Durante a terapia, seus valores podem manifestar-se, influenciando os valores dos clientes, bem como a própria intervenção em si (Watrin & Stein, 2015).

É pertinente ainda atentar para os valores adquiridos pelos(as) terapeutas em sua interação com a Psicologia e, sobretudo, com a comunidade da Análise do Comportamento. Supõe-se que, ao longo da formação profissional, valores que fomentem uma prática ética e adequada sejam proeminentes nesse contexto (Watrin & Stein, 2015).

Sendo o(a) analista do comportamento suscetível a reproduzir valores individuais ou culturais significativos para ele(a) na terapia, isso expõe um questionamento sobre qual o interesse da psicoterapia e, também, a necessidade de pensá-la social e politicamente.

Watrin e Stein (2015) explicam que os(as) terapeutas apresentam valores constituídos por repertórios singulares (história individual do sujeito), tendo alguns em comum (história cultural). O primeiro comporta as interações do(a) terapeuta ao longo de sua vida com família, amigos, trabalho e sociedade (nível ontogenético); o segundo envolve valores compartilhados comunitariamente como aqueles referentes à profissão, como a Psicologia, Análise do Comportamento, dentre outras (nível cultural).

É importante que o(a) analista do comportamento consiga discriminar as variáveis que controlam seu comportamento e as consequências que os mantêm para minimizar eventuais expressões de valores que interfiram no andamento da psicoterapia (Watrin & Stein, 2015).

É possível (e, talvez, provável) que os valores dos clientes mudem ao longo da terapia, sendo parte da queixa ou não. Como não existe imparcialidade no contexto clínico, esclarecer o que é considerado pelas duas partes como “desejável” e “indesejável” é interessante para que o(a) analista do comportamento, que está em uma relação de poder, não reproduza seus valores individuais e culturais sobre o comportamento do cliente (Watrin & Stein, 2015).

Em síntese, nota-se que a previsão precisa da ocorrência dos valores e de suas consequências é impraticável. No entanto, Watrin e Stein (2015) afirmam que cabe ao(à) analista do comportamento prezar pelo autoconhecimento e cumprimento dos regimentos do Código de Ética de sua profissão (Resolução n.010, 2005). Os autores advertem que os valores do(a) terapeuta não implicam no enviesamento negativo da psicoterapia, mas devem ser incluídos como variável em uma análise funcional.

O delineamento do processo psicoterapêutico (estratégias, intervenções, métodos) é construído diante da demanda trazida pelo(a) cliente. No caso do(a) analista do comportamento, sua base teórica irá ditar os caminhos percorridos e, sendo ele(a) adepto(a) a um método específico, certamente irá empregá-lo baseado no que julga adequado (Ferreira & Souza, 2019; Ferreira et al., 2019; Marçal, 2005).

Porém, a clínica comportamental não apresenta uma normativa generalizada. Isto é, a ACC é constituída por práticas plurais com objetivos diferentes e técnicas específicas entre si (Ferreira & Souza, 2019). Quando se busca apurar a eficácia de uma psicoterapia, esses aspectos podem escapar à análise gerando apurações errôneas sobre (Ferreira & Souza, 2019).

Para tanto, Ferreira et al. (2019) consideram duas categorias de análise: os objetivos globais, que compõem o processo da psicoterapia, sua finalidade e princípios normativos; e os objetivos locais, que abordam as especificidades da demanda do(a) cliente e as intervenções adequadas à terapia em questão. Os objetivos globais apresentam uma reflexão ética e filosófica, ao passo que os objetivos locais focam no sujeito e na sua “queixa”.

Os objetivos locais já fazem parte do processo terapêutico comportamental, mas os objetivos globais não. A definição de objetivos globais na ACC propiciaria a análise de intervenções sob critérios pertinentes às suas práticas, evitando-se que unidades funcionais fossem ignoradas em favor de topografias de sintomas (Ferreira & Souza, 2019). Ao elucidar os objetivos globais da ACC, torna-se viável estruturar diretrizes para orientação do processo psicoterapêutico, integrando as práticas comportamentais.

Assumindo a premissa de que a ciência não é neutra, a ACC estaria se posicionando ao estipular determinados objetivos globais e, por conseguinte, as consequências provenientes de tal escolha. Quais seriam essas consequências e suas implicações no contexto clínico e social, é uma discussão a ser feita, porém, não negligenciada. Como aludido anteriormente, a experimentação é o caminho para a transformação.

Diante do que foi exposto, o presente artigo objetiva discutir a possibilidade de uma clínica comportamental comprometida com valores feministas, refletindo sobre sua desejabilidade e aplicabilidade, bem como as implicações culturais. Propõe que valores feministas sejam introduzidos na ACC como objetivos globais, balizando a relação psicoterapêutica para analista do comportamento e cliente.

Indica essa direção fundamentando-se na concepção de que os indivíduos, pertencentes a uma cultura, são atravessados por questões políticas e sociais (independentemente do sexo biológico ou identidade de gênero), seja perpetuando ou sofrendo com elas.

DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO COMPORTAMENTO E FEMINISMO

Os diálogos entre a AC e o Feminismo vêm se intensificando contemporaneamente com a expansão de publicações e de encontros acadêmicos no Brasil que abordam o assunto (Couto & Dittrich, 2017). Sugere-se que a distância ocorrida entre as áreas deu-se por uma visão errônea sobre a ciência comportamental provinda de trabalhos do Behaviorismo Metodológico em detrimento aos estudos posteriores do Behaviorismo Radical (Ruiz, 1995, 1998; Silva & Laurenti, 2016).

Ruiz (1998) argumenta que a combinação entre Feminismo e AC propicia análises de contingências discriminativas invisibilizadas e perpetuadas em práticas culturais. Tais contingências geram efeitos diferenciais que parecem mínimos, porém, acarretam nos desequilíbrios que fundamentam as relações de gênero. A AC subsidiaria a identificação dessas contingências para o estudo de variáveis que influenciam os comportamentos que as mantêm (Ruiz, 1998).

Certos pressupostos do Behaviorismo Radical, inclusive, coincidem com propostas feministas e são amostras de potencialidade, como: a visão contextualista e multidimensional do Behaviorismo Radical que considera o comportamento como produto do contexto histórico e nega a ação de agentes internos como explicativos do comportamento humano; a não-neutralidade do discurso científico, cujo caráter é social, relacional, político, e possui valores e gênero; e o anseio por mudanças sociais (Couto, 2019; Ruiz, 1998; Silva & Laurenti, 2016).

Seja movimento, teoria ou vertente, o Feminismo não é monolítico (Ruiz, 1998; Silva & Laurenti, 2016). Constitui-se por uma pluralidade de preceitos e reivindicações que não o circunscrevem, mas, sim, o diversificam. Todavia, desse discurso é possível destacar temas analisáveis pelo prisma comportamental (Ruiz, 1998).

Em uma interpretação da AC, pode-se considerar gênero (ou raça, classe, entre outros) como uma categoria construída culturalmente, mantida e transmitida por práticas culturais por meio de padrões de reforçamento diferenciais, associado pela comunidade verbal a características biológicas humanas (Ruiz, 1998, 2003). Assim, devido à aparência física certos indivíduos terão ao longo da vida acesso limitado a reforçadores. Uma mulher negra pode ser preterida sob uma leitura enviesada de seu comportamento em uma ocasião na qual um homem branco ou negro apresentando similar comportamento (topograficamente falando) seria valorizado. Práticas culturais machistas selecionadas e incorporadas tornaram-se indiscriminadas ou generalizadas no decorrer do tempo (Ruiz, 1998). As variáveis que controlam comportamentos nessas práticas geram a invisibilização de sujeitos, estabelecendo contingências diferenciadas (Ruiz, 1998, 2003). Nesse sentido, as comunidades verbais feministas, representadas pelo(s) Feminismo(s), auxiliariam na tomada de consciência das relações de controle, validação de experiências e elaboração de comportamentos de contracontrole (Mizael, 2019; Ruiz, 1998).

É importante ressaltar que definir o Feminismo é uma atividade complexa. Ênfases diferentes determinam o seu cerne. Geralmente, na exposição histórica, o Feminismo é dividido em três “ondas” com paradigmas característicos determinando enfoques e posições políticas de cada época (Bittencourt, 2015). Sugere-se até a existência de nove a 20 tipos de Feminismos.. Para tanto, foram escolhidas obras da autora bell hooks. como referência teórica feminista, seguindo os critérios expostos nas considerações metodológicas, a fim de delimitar o Feminismo abordado neste artigo.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Com o estudo teórico, cenários em que não seria possível intervir empiricamente podem ser hipotetizados (Ferreira & Souza, 2019). Na pesquisa conceitual buscam-se procedimentos metodológicos compatíveis com a investigação executada, considerando coerência, consistência e afinidade. O objeto estudado, objetivo visado, nível de análise de achados ou escopo de investigação serão determinantes no método a ser empregado (Laurenti & Lopes, 2016). O intuito final não é a replicação, mas expor o desenvolvimento da pesquisa e visibilizar o encontro de falhas ou equívocos (Laurenti & Lopes, 2016).

Devido à diversidade da ACC, Ferreira e Souza (2019) ponderam que, para estudá-la, é preciso variabilidade metodológica. Os métodos devem ser congruentes com a pesquisa básica e aplicada, e abarcar estratégias de pesquisas empíricas e teórico-reflexivas. Quanto aos objetivos psicoterapêuticos, propõem uma metodologia de pesquisa clínica sistematizada em: pesquisa empírica, subdividida em pesquisa básica e aplicada, e pesquisa teórico-reflexiva, subdividida em pesquisa conceitual, teórica e filosófica (Ferreira & Souza, 2019).

Na pesquisa empírica notam-se materiais já pormenorizados para a prática e pesquisa científica (Ferreira & Souza, 2019). A pesquisa teórico-reflexiva, ao contrário, não possui uma fórmula basilar para a orientação de pesquisas (Ferreira & Souza, 2019). Conforme a conceituação supracitada, a pesquisa conceitual analisa conceitos de teorias ou intervenções, avaliando coerência e precisão; a pesquisa teórica investiga o vocabulário de uma teoria utilizado para esclarecer fenômenos; e a pesquisa filosófica explora aspectos da epistemologia de um saber científico, questionando ética e pressupostos que fundamentam uma ciência (Ferreira & Souza, 2019). A discussão trazida neste artigo demanda uma análise conceitual de perspectiva filosófica, pois, ao idealizar valores feministas como objetivos globais da ACC, sugere normativas mediante afinidades entre teorias. Ademais, envolve uma conjuntura ampla e hipotética. Sua realização metodológica fundamenta-se nas considerações de Laurenti e Lopes (2016) e de Ferreira e Souza (2019) sobre pesquisa conceitual.

A escolha do referencial teórico teve como critério de elegibilidade materiais que contemplassem o tema estudado: (1) seleção de autor(a) ou textos fundamentais do Feminismo; e (2) pesquisa de texto(s) da AC sobre valores e clínica. Procurou-se analisar os materiais do critério 1 considerando principais pautas e abstraindo valores com base na perspectiva teórica comportamental do critério 2.

Para operacionalização do estudo das obras, empregou-se o método de fichamento sugerido por Prodanov (2013) no registro das informações necessárias ao objetivo da pesquisa. Quanto ao critério 1, optar por obras específicas tenciona suprir o obstáculo metodológico relativo à profusão da literatura feminista e, simultaneamente, abarcar discussões significativas da área. Os resultados foram organizados apresentando as principais características do Feminismo concebido por bell hooks, os valores dessa vertente em diálogo com a ACC.

O FEMINISMO POR BELL HOOKS

bell hooks define o Feminismo como “um movimento para acabar com a opressão sexista” (1984, p. 24, tradução própria). O destaque ao sexismo, de base cultural, expõe uma socialização originada desde o nascimento dos sujeitos (mulheres e/ou homens sofrem ou podem perpetuá-lo), capaz de dificultar a percepção de outros tipos de opressão e de moldar futuras relações de poder. Para ela, a revolução feminista seria o meio para que todos fossem capazes de viver conjuntamente em liberdade e justiça (hooks, 1984).

Apesar de não empregar propriamente a expressão “Feminismo Interseccional”. nas obras estudadas neste artigo, ao longo de seus trabalhos, hooks (1981, 1984, 1989, 1992, 2000, 1996/2009, 1990/2015) conduz sua visão do limiar que considera importante em uma agenda feminista: abranger as intersecções de classe e de raça em relação a gênero.

Segundo a autora, a construção da teoria, prática e ética feminista deve considerar que as opressões de gênero-raça-classe são sistemas interligados. A compreensão da interseccionalidade situa-se justamente no ponto de encontro entre esses três aspectos que não são somatórios, mas constituem os marcadores sociais que expõem os sujeitos às desigualdades, opressões e explorações cotidianas e históricas. Esses marcadores podem ser entendidos como características físicas e/ou simbólicas dos sujeitos (Mizael, 2019), não se limitando aos mencionados. Idade, identidade de gênero, orientação sexual, religião, entre outros marcadores demarcam a existência humana.

A demanda pela interseccionalidade vai surgir de um histórico de movimentos emancipatórios femininos que eram, principalmente, voltados ao público branco, não acompanhando especificidades da condição feminina – mulheres negras, pobres, iletradas – ou as questionando como posteriormente foi feito (hooks, 1981, 1984). Importante salientar que muitas manifestações femininas anteriores ao “início” do Feminismo ressoaram enfraquecidas ou foram abafadas pelo discurso dominante até que as próprias mulheres, excluídas dessa narrativa, pudessem relatar sobre si mesmas (Bittencourt, 2015).

Nos períodos descritos como primeira (meados do século XIX até início dos anos 1960) e segunda (de 1960 a 1980) ondas feministas, o debate sobre raça se encontrava deslocado em movimentos e escritos ditos a favor da libertação feminina (Bittencourt, 2015; hooks, 1984; Mizael, 2019). Embora o momento vigente demarque a terceira onda (iniciado em 1980), essa divisão não representa ocorrências postas de lado quando “superadas” (Mizael, 2019). Ao contrário, as demandas coexistem, inclusive, em discussões atuais.

A partir do crescimento e fortalecimento do Feminismo Negro na segunda onda, as vozes negras atravessadas por marcadores sociais puderam ecoar mais alto e em concorrência ao debate dominante (Bittencourt, 2015). Em contraponto ao caráter burguês-liberal da primeira onda, era evidenciado que, enquanto a “libertação” se dava para um grupo específico de mulheres que alcançavam acesso a direitos, até então masculinos, outros continuavam em condições exploratórias: mulheres, homens negros, entre outros sujeitos (Mizael, 2019).

Para hooks (1981), a urgência das intersecções deriva dos primeiros movimentos antirracistas em seu país, EUA, nos quais mulheres negras viam os homens negros unirem-se às mulheres brancas na luta contra a opressão masculina branca. Não havia o reconhecimento pelas mulheres brancas de que o sexismo não era a única força opressiva em suas vidas e, pelos homens negros, de que o racismo não os impediam de serem sexistas (hooks, 1981, 1984). A existência de mulheres em que os marcadores se interseccionavam era ignorada.

hooks (1984, 2000) afirma que o sexismo se expressa por meio da dominação masculina impulsionando uma tríade de discriminação, exploração e opressão. A dominação masculina indica a tentativa de conservação do poder pelo patriarcado. A concepção da autora de patriarcado, vale ressaltar, toma a supremacia branca masculina inserida no sistema capitalista como referência de classe dominante privilegiada. Ao contrário do sentido comum que patriarcado contém direcionado a gênero, a autora está sempre incluindo nessa definição os marcadores de gênero, raça e classe. O mesmo ocorre ao abordar o sexismo.

O paradigma raça-classe-sexo determinará o grau de exploração ou de privilégios que um indivíduo detém (hooks, 1990/2015). A consciência coletiva da necessidade de educação política do movimento feminista deve visar uma revolução que mude a ordem social vigente com uma ideologia libertadora compartilhada e transformadora da cultura (hooks, 1984). Isso ocorrerá quando aqueles marginalizados tiverem seus discursos compreendidos e incorporados, participando ativamente como teóricos e líderes de ação (hooks, 1984).

O Feminismo deve ser lugar de (des)encontros ideológicos (hooks, 1984, 2000). Considerar que a libertação se dá ao igualar-se à classe dominante, objetivando o poder social por ela exercido, é dar continuidade à exploração (hooks, 1984, 1989). Isso implica que apenas mudar quem está no poder, ainda significa manter alguém sob esse poder. O rompimento das bases da opressão se dá pela conscientização da realidade política na qual as mulheres estão inseridas, e isso inclui a sociedade como um todo.

Sucintamente, hooks (1981, 1984, 1989, 1992, 2000, 1996/2009,1990/2015) considera que o Feminismo deve ter uma teoria que analise as causas e consequências do sexismo e outros tipos de opressão; deve instrumentalizar o discurso feminista, trabalhando a educação coletiva e a conscientização crítica para o questionamento de ideologias hegemônicas patriarcais, experiência individual e realidade material; elaborar estratégias de resistência e novas interações sociais; buscar a coletividade pautada na solidariedade política compromissada com o movimento feminista; reconhecer a importância da participação dos homens no confronto ao patriarcado; enfatizar a ética da reciprocidade e interdependência, focada na mudança de impactos nas desigualdades.

VALORES PRESCRITIVOS NO FEMINISMO POR BELL HOOKS

Alicerçado nos pressupostos e textos analisados, foram abstraídos das obras de bell hooks valores feministas (tabela 1) a serem considerados como objetivos globais da ACC com base na interpretação das autoras deste artigo. Os nomes escolhidos intentam meramente caracterizá-los, não necessariamente estando identificados de modo igual nos textos originais.

Tabela 1.
Valores prescritivos do Feminismo por bell hooks

A socialização sexista alienou mulheres e homens a aspectos excludentes em forças opressivas como sexismo, capitalismo e racismo. Desaprendê-la pela conscientização (hooks, 1981, 1984, 1989, 2000, 1990/2015) é o meio para encontrar formas de enfrentamento contra forças que ameaçam a libertação feminina e humana, permitindo a contemplação da marginalidade e privilégio; da complexidade das experiências femininas e sua relação com o poder e a dominação.

Conscientizar-se de práticas culturais machistas envolve a discriminação e descrição de variáveis que controlam o comportamento. Com isso, é possível buscar tanto comportar-se para evitar a continuidade da manutenção dessas práticas, quanto para almejar mudanças frente essas contingências (Couto, 2019). A descrição de contingências sociais discriminatórias deve ser igualmente evidenciada, pois revela contextos em que o comportamento humano é diferencialmente reforçado (Couto, 2019).

O enfrentamento (hooks, 1981, 1984, 1989, 1990/2015, 2000) abrange fenômenos comportamentais de contracontrole, como: responsabilização nas lutas individuais tanto em prol da coletividade como junto a ela, mesmo em casos de opressões não relacionadas às suas. Compromissar-se politicamente com movimentos feministas que objetivem acabar com a opressão sexista, classista e racista, e estabelecer uma nova sociedade.

Lutar ativamente contra diferentes formas de opressão, confrontando a socialização que enfatiza o poder pela coerção, e denunciando-a a favor da libertação feminina e masculina. Confrontar dores individuais e coletivas a fim de gerar resistência para proteção contra desumanização, em situações de dominação ou relações íntimas e/ou familiares.

O contracontrole é definido como a emissão de comportamentos em resposta ao controle exercido por agências de controle ou indivíduos (Couto, 2019). Respostas de contracontrole têm topografias diversas, mas funções similares. Tais respostas são selecionadas, permitindo que o sujeito modifique as contingências de controle nas quais têm seus comportamentos reforçados negativamente ou punidos (Couto, 2019).

Embora hooks (1984, 1989, 2000, 1990/2015) utilize o termo sisterhood (traduzido para o português como “irmandade”) correlatamente, o foco na solidariedade, compreendida politicamente, para ela, incluiu mulheres negras e de outras etnias que não se viam amparadas nessa aliança predominantemente branca. A solidariedade abrange o trabalho entre mulheres no fortalecimento e apoio comum, para sustentar a união em meio à diversidade.

A comunidade verbal ensina as descrições verbais de eventos privados para os sujeitos, mesmo com acesso limitado ou valendo-se de acompanhamentos observáveis (Ruiz, 1995). Isso significa que uma cultura em que os marcadores sociais que permeiam a existência de determinadas pessoas são preteridos, é provável que percepções individuais ensinadas pela comunidade verbal, quando consideradas inadequadas, sejam distorcidas ou passíveis de punição e invalidação (Pinheiro & Oshiro, 2019; Ruiz, 1995).

A solidariedade pode ser equiparada à relevância de uma comunidade verbal feminista, refletindo a coletividade e valorização do relato de eventos privados (e.g., sentimentos, emoções), a fim de buscar a superação da opressão. O avanço da comunidade verbal feminista propicia a expressão dos sujeitos contextualmente, promovendo compreensão da relação funcional entre eventos privados e ambientais, produtos de contingências das quais faz parte e que influenciam vivências pessoais e a daqueles ao redor (Pinheiro & Oshiro, 2019; Ruiz, 1995).

A libertação (hooks, 1981, 1984, 2000) orienta-se para o esforço coletivo continuado na criação de uma ideologia libertadora, geradora de oportunidades transformadoras e igualitárias. A liberdade abrange a viabilidade de escolhas e alternativas comportamentais do sujeito em contingências sociais que fornecem acesso a reforçadores positivos (Nicolodi & Arantes, 2019). Contudo, devem-se considerar quais sãos esses reforçadores e suas consequências, pois consequências aversivas tardias podem ser mantidas em relações de controle estabelecidas com reforçadores positivos em curto prazo (Skinner, 1971).

Esse valor compreende a luta contra a heterossexualidade compulsória que prega padrões normativos impedindo o direito à escolha (ou a não escolha) e partindo da suposição de que qualquer interação sexual deva ser de natureza cisgênera, reprodutiva e heterossexual. Estende-se ainda para o controle do próprio corpo, dos direitos reprodutivos, com ênfase ao fim do estupro e assédio sexual.

A sociedade é constituída sob restrição de reforçadores, frequentemente, distribuídos baseando-se em marcadores como sexo, raça e classe. A liberdade dos sujeitos é cerceada posto que uma parte detém poder (grau de controle) sobre a outra estabelecendo uma relação social desigual (Nicolodi & Arantes, 2019). A libertação se configura pelo controle por reforço positivo, visando oportunidades para mudanças coletivas.

A partilha (hooks, 1984, 2000) consiste em operacionalizar o desenvolvimento de pensamentos críticos e analíticos para a luta pela libertação, o fortalecimento intelectual do oprimido, para a consciência crítica, politização do eu, e compreensão das intersecções em indivíduos e experiências políticas. Mesmo as conversações diárias são espaço para essa educação feminista, principalmente para aqueles que possuem pouco acesso às informações ou não estão criticamente conscientes e socialmente ativos.

Conhecer é desenvolver novos repertórios comportamentais. Esses repertórios são úteis na descrição do controle aversivo e para mudanças nas estruturas de poder econômico e social ao introduzir o sujeito como pertencente e participante da cultura (Couto, 2019).

O poder de fala (hooks, 1989) refere-se ao ato de libertar a voz e se tornar sujeito. É recusar a subordinação histórica de uma visão patriarcal, no campo social, cultural e acadêmico, ir contra práticas enraizadas culturalmente e partir para o discurso de experiências específicas do ser mulher, incluindo aquelas carregadas por diversos marcadores.

Ruiz (1995) afirma que o silenciamento social e político de mulheres incentiva a continuidade de práticas culturais universalizantes. Como são práticas produto do comportamento humano, dificilmente a mulher encontra-se à frente de reformas culturais para modificá-las segundo suas experiências (Ruiz, 1995). Sendo o conhecimento humano permeado por valores, contexto e subjetividade (Ruiz, 1995), torna-se imprescindível que o discurso verbal interseccional exista e tome lugar.

Esse valor compreende comportamentos cujas consequências geradas reforçam o comportamento daquele que se comporta, aumentando sua probabilidade de ocorrência em futuras ocasiões. Quando o sujeito explorado fala, manifesta o discurso particular silenciado ou distorcido. Surge, igualmente, a necessidade de validar o discurso pela comunidade verbal para que emerja mais aguçado posteriormente (Pinheiro & Oshiro, 2019; Ruiz, 1995).

O amor (hooks, 1989, 2000) é entendido como fonte de empoderamento e resistência na luta contra a opressão sexista, mediando o processo de identificação e enfrentamento das diferenças e formas de dominação. Opõe-se à dominação: não é possível enfatizar o crescimento mútuo e autorrealização em parcerias e parentalidade em contextos coercitivos.

Para Skinner (1989) o amor como sentimento se baseia em consequências reforçadoras geradas pelos comportamentos daquele que se comporta. Skinner descreve o amor “agape” como aquele no qual o indivíduo reforça o comportamento do outro, sendo o principal efeito sobre o grupo.

São consequências artificiais criadas culturalmente que revelam o reforço produzido pela união entre pessoas: quando um sujeito demonstra satisfação com o comportamento do outro amado, esse comportamento é reforçado e o grupo é fortalecido (Skinner, 1989). Como valor, caracterizaria a consolidação do coletivo por meio dos comportamentos dos sujeitos, para além daquele que se comporta, mas que também é reforçador para esse último. São comportamentos que promovem relações de desenvolvimento mútuo.

A igualdade se dá pela eliminação da dominação sexista e opressão, a fim de respeitar as diferenças e, com isso, mudar os impactos nas desigualdades (hooks, 2000). Em relações de controle estabelecidas entre mulheres e homens, para que relações equitativas sejam constituídas, é necessário observar como o controle está sendo exercido, seu grau, condições que o mantêm e consequências sobre os envolvidos (Nicolodi & Arantes, 2019).

Quando uma parte exerce maior grau de controle sobre a outra, conseguindo benefícios ou privilégios, existe desequilíbrio no acesso a reforçadores. Assim, um sujeito possui mais reforçadores e possibilidades de gerenciá-los, afetando a liberdade da parte “mais fraca” da relação (Nicolodi & Arantes, 2019). Uma relação equitativa ou de igualdade envolve a distribuição de reforçadores similares e de contingências com possibilidades de escolhas para ambas as partes (Nicolodi & Arantes, 2019).

UMA CLÍNICA COMPORTAMENTAL COMPROMETIDA COM VALORES FEMINISTAS

Entre os movimentos de segunda onda, nos anos 80, ativistas feministas e mulheres reuniam-se para debater sobre a sujeição a que eram submetidas dentro do patriarcado (hooks, 1984, 2000; Narvaz & Koller, 2006). Designados como “grupos de conscientização” (do inglês consciousness-raising group), para muitas mulheres, funcionavam quase terapeuticamente.

Nos encontros, havia o compartilhamento de relatos particulares, estímulo à autonomia e emancipação, aumento da percepção do sexismo e de seus prolongamentos (hooks, 2000; Narvaz & Koller, 2006). Todavia, o trabalho orientava-se para mudanças individuais de comportamentos e crenças baseadas em preceitos feministas (hooks, 2000). Embora criassem uma relação horizontal, dando voz às mulheres, esses grupos não oportunizavam contexto para diálogos politicamente engajados (hooks, 2000).

A conscientização feminista, de acordo com hooks (1984, 1989, 2000), necessita estender-se às massas, visar uma revolução em torno do aprendizado sobre o funcionamento das diversas formas de opressão e se dá pela educação política. Tal argumentação não implica ignorar a individualidade dos sujeitos (hooks, 1989). Porém, é interessante perceber a constante ênfase da autora à associação do sujeito e suas vivências à política.

Nesse mesmo período, psicólogas e terapeutas feministas introduziram-se nos grupos de conscientização, revisando suas práticas de linha tradicional para conceber uma Psicologia Feminista (Narvaz & Koller, 2006). Ainda que limitados e apagados frente à crescente produção academicista feminista da época (hooks, 1984), os grupos de conscientização deram espaço para que mulheres visualizassem sua inserção contextualmente e as variáveis que controlavam seus comportamentos e o de outros que, por consequência, afetavam sua vida.

As conexões entre a AC e o Feminismo podem ser vistas na crescente produção acadêmica., contudo, apesar da evidente relevância desses estudos para as questões de gênero e seus desdobramentos, uma prática que incorpore tais achados a todo e qualquer indivíduo na clínica comportamental ainda não foi totalmente abraçada.

Encontra-se o uso de princípios feministas na prática terapêutica, como Fideles e Vandenberghe (2014) e Costa (2019) fazem com a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP). Isso faz dessa aplicação uma forma de Psicologia Feminista. Mas, geralmente, estudos de casos clínicos na ACC focam em análises a nível ontogenético (Pinheiro & Oshiro, 2019).

É imprescindível notar a implicação do contexto político e cultural sobre a história comportamental do sujeito e como eles, formados por contingências entrelaçadas, são produtos de indivíduos comportando-se coordenadamente.

Um(a) cliente que procura a terapia comportamental com comportamentos ansiosos aprende no decorrer do processo terapêutico a descrever e responder diferencialmente aos eventos privados que caracterizam sua ansiedade. O quanto, entretanto, variáveis de gênero, raça e classe atravessam essa ansiedade?

Essas variáveis repercutem nas desigualdades existentes culturalmente e em demandas clínicas (Pinheiro & Oshiro, 2019). Queixas como depressão, estresse, fobia, dificuldades interpessoais, são exemplos que podem estar permeados por variáveis do tipo. O(a) cliente pode creditar à sua ansiedade inúmeras origens, mas, além disso, existem contingências socialmente construídas sobre seus marcadores que podem obscurecer a discriminação de variáveis para cliente e terapeuta (Pinheiro & Oshiro, 2019).

Logo, em uma cultura de dominação masculina, questões trazidas à terapia podem não passar por análise e intervenção direta ou indiretamente (Pinheiro & Oshiro, 2019). Trabalhar evidenciando variáveis de gênero, raça e classe, nesse sentido, não deveria se limitar a casos imprescindíveis (relacionamentos abusivos, agressão por parceiros, discriminação).

Em uma proposta de clínica comportamental comprometida com valores feministas como objetivos globais, conteúdos trazidos pelo(a) analista do comportamento, podem propiciar espaço para que o(a) cliente compreenda como seus marcadores interseccionam-se moldando seu comportamento por meio de consequências geradas por contingências de uma sociedade patriarcal.

Além de uma análise da demanda individual, o debate sobre questões de gênero abarcando raça e classe permite ao(à) cliente o contato com essas variáveis. Por se tratar de uma exploração complexa, deve ser feita gradualmente ou havendo vínculo entre analista do comportamento e cliente. Os valores feministas adentram como guias desse processo.

Ilustrando uma situação: o(a) analista do comportamento ao ter a conscientização como valor global almejado na ACC, explicita no processo terapêutico a tomada de consciência de práticas culturais que reverbera em variáveis de controle que delinearam vivências do(a) cliente, associando-se direta ou indiretamente à demanda apresentada.

Não significa pontuar situações específicas de opressão, mas expor para o(a) cliente como a cultura pré-determina e mantêm práticas que controlam seu comportamento. Inclusive, não seria possível reconhecer integral e isoladamente todas as variáveis de um comportamento. Adotando a conscientização como valor global, o(a) analista do comportamento torna-se ambiente para a identificação e mudanças na relação do sujeito a estímulos com funções diversas (reforçadora, eliciadora, aversiva) ou a eventos ambientais.

Estabelecidas novas funções aos estímulos por meio da relação terapêutica, o(a) cliente se comportará diferencialmente quando em sua presença. Por conseguinte, oportuniza-se contexto para que sua resposta propicie consequências ao próprio comportamento.

Assim, notando que gênero, raça ou classe é estímulo discriminativo para um tratamento desigual, referente a si ou outrem, o(a) cliente poderá responder repreendendo (comportamento sob a topografia de contracontrole) algo ou alguém. A emissão dessas respostas geram consequências reforçadoras e em situações parecidas, com a função dos estímulos modificada, pode haver o aumento na frequência de comportamentos similares.

Esses comportamentos oportunizam transformações individuais, culturais e sociais, uma vez que os estímulos cuja função abrangeria comportamentos de neutralidade, raiva ou conivência tornam-se menos prováveis. Na contramão, novos comportamentos são introduzidos mediante a adoção de valores do tipo.

Conceber que todos possam, no processo psicoterapêutico, explorar os impactos das intersecções de gênero, raça e classe (entre outras) em relação à sua vida, representa uma análise do papel do sujeito na cultura. É atribuição do(a) analista do comportamento auxiliar a clarificar esses aspectos, demonstrando que diversas práticas (machismo, racismo, classismo, homofobia) são produtos de contingências seletivas transmitidas pela sociedade.

Antes e durante a interação entre analista do comportamento e cliente, os valores de ambos são expressos. O(a) analista do comportamento, além de ser audiência para que o(a) cliente expresse seus valores e fique sob controle dos valores feministas preconizados, deve se ver também como variável relevante no contexto clínico e além dele. Isto é, considerar-se como pertencente a um sistema opressor e a sua função nele. Em especial, o lugar de terapeuta detentor e construtor do “saber”.

Tomar valores feministas como matriz, oportunizaria à ACC potencializar sua função social e transformadora na construção de uma teoria que elabora estratégias de cunho individual e coletivo, validando comportamentos mais engajados politicamente, a fim de extinguir aqueles que perpetuem a manutenção de contingências de opressão.

Ficar sob controle desses tipos de valores pode fortalecer comportamentos ativos e de resistência, principalmente daqueles em que diversos marcadores se interseccionam, expandindo a compreensão de que seus comportamentos refletem o âmbito familiar e íntimo, mas também são influenciados social e politicamente, minimizando (eventuais) comportamentos de culpabilização e maximizando um olhar contextual e funcional.

CONCLUSÃO

O debate ético sobre os valores, permite ao(à) analista do comportamento, amparado por uma teoria comportamental constituída de responsabilidade social, discriminar tanto os valores que norteiam seus comportamentos como os de seus clientes. É importante à ACC o estabelecimento de diretrizes que norteiem prática e teoria, a fim de evitar que eventuais prejuízos ocorram ao processo psicoterapêutico. Contribui, igualmente, para a integração das terapias comportamentais plurais.

Nesse sentido, quando este artigo indica valores do Feminismo como objetivos globais da ACC, a intenção não é preterir os valores dos clientes (objetivos locais), mas atentar para o potencial do(a) analista do comportamento como agente político (e também de sujeito do seu contexto) na promoção de valores cujas consequências supõe serem funcionalmente válidas para sujeito e sociedade.

Com isso, a ACC estabeleceria também as consequências resultantes de tal escolha: ao determinar como significativos valores feministas, práticas culturais e comportamentos que mantêm contingências opressivas devem ser enfraquecidos. Evidentemente, esse é um processo complexo. Como discutido, mesmo no contexto clínica, criar condições para que indivíduos, incluindo o(a) terapeuta, passem a responder diferencialmente a seu papel social, como oprimido(a) ou opressor(a), não é tarefa fácil.

Mas considerando que a AC não é neutra e que Skinner (1953/2003, 1971) propõe a experimentação, escolher seguir um caminho é fundamental para investigar potencialidades, falhas e lacunas. É relevante também para sociedade e cultura, indicando comportamentos que não se valham da punição, coerção ou qualquer outro meio que constitua contingências desiguais.

Valores feministas como os abstraídos das obras de bell hooks, fornecem condição para que o(a) analista do comportamento oportunize contexto para que clientes – e ele(a) mesmo(a) – tenham contato com variáveis relevantes para a existência humana.

Sugere-se, por fim, que, colocada em prática a proposta deste trabalho, pesquisas dentro da ACC poderiam ser executadas com o intuito de averiguar as consequências, senão, ou da introdução de valores globais feministas ou da análise dos impactos de uma psicoterapia que aborda questões de gênero, raça e classe na vida e contexto próximo do(a) cliente e sobre como o(a) mesmo(a) observa as implicações dessas práticas reforçadas culturalmente.

Tornando viável uma investigação do tipo (ancorada em uma metodologia válida), passos seriam dados para considerar a introdução dessa discussão tanto na ACC como no levantamento de hipóteses mais acuradas sobre os (prováveis) impactos culturais que a adoção desses tipos de valores feministas poderia obter.

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Notas

1) Karina da Silva Carneiro – karina.scarneiro@outlook.com
2) Welling, L. L., & Nicolas, S. C. (2015). The Darwinian mystique? Synthesizing evolutionary psychology and feminism. Em V. Zeigler-Hill, L. L. M. Welling, & T. K. Shackelford (Ed.), Evolutionary Perspectives on Social Psychology (pp. 203-214). Springer, Cham.
3) Nascida em 1952, no Kentucky, EUA, bell hooks é o pseudônimo da autora Gloria Jean Watkins, conhecida por sua atuação como feminista e ativista social. Seu trabalho aborda a interseccionalidade entre gênero, raça e classe, em consonância com temáticas como Feminismo, educação, arte e cinema. Inspirado no nome de sua avó, Bell Blair Hooks, o pseudônimo é usado desde a publicação de seu primeiro livro, de poemas (hooks, 1989). O nome é legado da ligação com suas ancestrais, mulheres que não se silenciavam, e em um gesto de rebelião e empoderamento. Relata, ainda, que é um modo de manterse, como autora, consciente das ideias que discute e evitar um apego que a impeça de questionar suas formas de pensar (hooks, 1989). Seu nome é referenciado, geralmente, em letras minúsculas e por isso será assim apresentado ao longo do artigo.
4) De acordo com Mizael (2019), o termo “interseccionalidade” refere-se à compreensão dos marcadores sociais (gênero, raça e classe) que restringem as vidas, principalmente, de mulheres negras. Kimberlé Crenshaw (1989) utilizou o termo pela primeira vez para o estudo das interseccionalidades, desenvolvendo a Teoria da Interseccionalidade, expondo o apagamento de fenômenos complexos em análises que contemplam somente raça ou gênero.
5) Notam-se pesquisas sobre variáveis de gênero (Pinheiro & Oshiro, 2019), práticas culturais (Nicolodi & Arantes, 2019; Ruiz, 1998, 2003, 2009), estudos baseados em atendimentos clínicos de mulheres oprimidas, abusadas, agredidas e/ou violentadas (Costa, 2019; Fideles & Vandenberghe, 2014), e textos reflexivos e teóricos (Couto & Dittrich, 2017; Silva & Laurenti, 2016; Ruiz, 1995).


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