
Recepción: 09 Noviembre 2021
Aprobación: 07 Abril 2022
Resumo: Na obra de Skinner a noção de controle face a face aparece como uma tese política quando é apresentada como alternativa ao controle institucional. O objetivo deste artigo é analisar como essa noção foi empregado ao longo da obra skinneriana, avaliando as potencialidades e limites dessa proposta política. Para tanto, foram examinados treze textos em que Skinner empregou o termo ‘face to face’ como forma específica de controle social. As análises mostraram que, reiteradamente, a noção de controle face a face aparece como oposição ao controle promovido por agências, no qual predominam regras. No material analisado, Walden Two apareceu como exemplo de sociedade ordenada pelo controle face a face, embora a expressão ‘face to face’ não tenha sido encontrada no livro de 1948. A defesa do controle face a face aproxima Skinner do anarquismo, o que foi reconhecido pelo próprio autor. O tamanho do grupo e o desequilíbrio em relações de poder foram mencionados por Skinner como limitações para o controle face a face. Conclui-se que: i) quando se toma Walden Two como exemplo, as aproximações com o anarquismo são problemáticas; ii) a viabilidade do controle face a face como proposta política transformadora é questionável.
Palavras-chave: controle face a face, agências controladoras, controle social, F. Skinner, política.
Abstract: In his work, Skinner presented the notion of face-to-face control as a political thesis since it would be an alternative to institutional control, i.e., the social control executed by controlling agencies. The aim of this paper is to analyze how the notion of face-to-face control was discussed throughout Skinner’s work, evaluating the potential and limits of that political proposal. Thirteen texts in which Skinner used the term “face to face” as a specific form of social control were selected and examined. The analyzes showed that the notion of face-to-face control appears repeatedly in opposition to the control played by agencies like government and religion, where rules and laws predominate. In the material analyzed, Walden Two appeared as the main example of a society ordered by face-to-face control, although the expression ‘face-to-face’ was not found in the book published in 1948. The defense of face-to-face control as an alternative to controlling agencies brings Skinner closer to anarchism; that approximation was recognized by Skinner when he called himself a benign anarchist and claim Walden Two as an anarchic community. According to Skinner, the size of the group and imbalance in power relations would be limitations to face-to-face control. Faced with those limitations Skinner mentions psychotherapy as an effective example of face-to-face control in the real world. The paper highlights two main conclusions. First, when Skinner takes Walden Two as an example, approaches to anarchism are problematic; Walden Two is a technocracy and anarchism does not consider that kind of social organization is legitimate. Second, the feasibility of face-to-face control as a transformative policy proposal is quite questionable since the only “real” example mentioned by Skinner is psychotherapy, a controlling agency that bears the same risks as all institutional control; therapeutic relationship can turn an imbalance, especially when the process is successful and the therapist is able to manipulate relevant variables that control the client’s behavior. These questions do not mean to be against the face-to-face control thesis but emphasize the need to always contextualize it in a “concrete” analysis of society, which considers power relations at the micro and macro-political levels. It is about problematizing the scope and effectiveness of face-to-face control in the different contexts of behavior analysts’ actions.
Keywords: face-to-face control, controlling agencies, social control, B. F. Skinner, politics.
Desde a publicação de ‘Walden Two’, Skinner (1948/2005a) reconheceu problemas no controle social institucional que configura os campos econômico (e.g., pp. 45-46, 68-73), governamental (e.g., pp. 48-49, 180-184) e cultural (e.g., pp. 108, 125-126, 134, 185-186) da maioria das sociedades contemporâneas. Essa discussão foi mais sistemática em ‘Science and Human Behavior’ na análise das agências controladoras (Skinner, 1953/2014). Nesse contexto, Skinner (1953/2014) argumentou que o controle social promovido por agências era muito mais amplo e efetivo do que o controle pessoal porque “Essas agências são usualmente mais bem organizadas do que o grupo como um todo, e elas frequentemente operam com maior sucesso” (p. 333). Além disso, as agências dispõem de técnicas de controle poderosas, o que envolve um monopólio de reforçadores positivos e eventos aversivos, criados pela própria agência, que obriga os controlados a responderem às contingências organizadas por essas instituições sob a pena de perderem esses reforçadores ou de terem consequências punitivas intensas (ver Lopes, Laurenti, Abib, 2018, pp. 134-136).
O controle social promovido por agências controladoras está, portanto, assentado em um desequilíbrio de poder em favor dos controladores, que, diferente dos controlados, dispõe de reforçadores e punições relevantes. Esse desequilíbrio aumenta o risco dessas instituições se “desviarem” do bem comum, a sobrevivência da cultura, para o bem dos representantes da agência ou a sobrevivência da própria agência. Nas palavras de Skinner (1953/2014): “Agências religiosas, como todas as outras agências aqui consideradas, têm usado algumas vezes seu poder para vantagens pessoais ou institucionais – construir organizações, acumular riqueza, punir aqueles que não ficam sob controle facilmente, e assim por diante” (p. 358). Perseguindo essa crítica ao controle institucional, Skinner parece ter indicado, em alguns momentos, que o controle face a face poderia ser uma alternativa. Nas palavras do autor: “Uma melhor estratégia é fortalecer o controle face a face. Um ambiente social, ou cultura, pode operar sem a ajuda de governantes, usurpadores ou delegados, e empresários” (1977/1978a, p. 9). De acordo com o argumento skinneriano, o controle social face a face seria capaz de promover uma espécie de “equilíbrio” em um grupo, sem a mediação de leis, mandamentos ou outros tipos de regras formuladas por agências controladoras. Nessa acepção, o controle face a face configura-se como uma tese política, uma vez que seria uma forma de alcançar o fim mínimo da política (Bobbio, 1983/1995), a ordem social, evitando os problemas decorrentes do controle institucional3.
Essa interpretação política do conceito de controle face a face tem sido adotada por uma série de autores e autoras. Por exemplo, Abib (2001) menciona que a tese skinneriana do quarto Estado – composto pela mídia, professores, cientistas e acadêmicos –, poderia promover formas menos institucionalizadas de controle social, como o controle face a face. Rocha (2017) argumenta que o controle face a face seria uma alternativa à postura tecnocrática presente em Walden Two, enquanto Hamilton (2012) considera que essa forma de controle evitaria que até mesmo Walden Two degenerasse em um “microgoverno” de planejadores. Lowery e Mattaini (1999) empregam o controle face a face para discutir a prática do poder compartilhado, característico do pensamento de alguns povos originários americanos que se opõe a hierarquias e ao poder coercitivo, típicos de sociedade ocidentais modernas. Carrara (2016), por sua vez, interpreta o conceito de controle face a face não apenas como uma crítica à democracia representativa, mas como uma antecipação da proposta mais contemporânea de fortalecimento de movimentos coletivos e pulverização do poder em organizações não-governamentais. Versoza-Carvalhal (2021) defende que com o controle face a face, Skinner não estaria advogando pelo fim das agências de controle, mas por uma diversificação de controles na sociedade, o que, segundo a autora, teria afinidades com a defesa de que burocratas deveriam se relacionar diretamente (face a face) com os cidadãos para a promoção de direitos fundamentais.
Em todos esses trabalhos, o uso político do conceito de controle face a face é acompanhado da menção a textos skinnerianos. A maioria fez referência a um único texto de Skinner (1977/1978a) e nenhum desses trabalhos apresentou uma análise pormenorizada do conceito de controle face a face na obra do autor. Este é justamente o objetivo deste artigo: apresentar uma discussão do conceito de controle face a face como tese política ao longo da obra skinneriana. Trata-se de verificar em que momento Skinner começou a empregar a expressão ‘controle face a face’ para descrever um tipo específico de controle social, bem como analisar as discussões do autor sobre esse conceito ao longo do tempo.
MÉTODO
Para alcançar o objetivo, foi realizada uma pesquisa teórico-conceitual, cujo material foram textos, selecionados primordialmente em livros de Skinner, que empregaram a expressão ‘face to face’, no sentido de um tipo de controle social específico. A decisão pelo uso dos livros como ponto de partida para a seleção foi orientada pela possibilidade de acesso ao material, uma vez que outras modalidades de publicação de Skinner (e.g., alguns artigos publicados em periódicos extintos, textos publicados em jornais e magazines) não puderam ser acessados na época da pesquisa.
Procedimento de seleção e análise do material
Os textos foram selecionados com o emprego do recurso Ctrl+F do computador, buscando a expressão ‘face to face’ em todos os livros de Skinner, em inglês, previamente digitalizados. Nos casos de coletâneas de artigos republicados (e.g., ‘Cumulative Record’, ‘Reflections on Behaviorism and Society’), sempre que possível, os textos foram cotejados com os artigos, de modo a garantir que a expressão ‘face to face’ já aparecia na publicação original.
Os textos selecionados foram analisados de dois modos. Primeiramente, foi feita uma organização cronológica do material, indicando quando e quanto a expressão ‘face to face’ foi empregada no material selecionado. Em seguida, os textos foram analisados seguindo o Procedimento de Interpretação Conceitual de Texto (PICT) (Laurenti & Lopes, 2016), o que permitiu construir uma síntese interpretativa da discussão do controle face a face em cada texto. Essas sínteses foram, então, comparadas, permitindo, ao final, agrupar essas discussões em torno de temáticas para as quais elas convergiam.
RESULTADOS
Análise quantitativa e cronológica dos textos
A expressão ‘face to face’ foi encontrada em oito dos 21 livros de Skinner: ‘Verbal Behavior’; ‘The Technology of Teaching’; ‘Reflections on Behaviorism and Society’; ‘Notebooks’; ‘A Matter of Consequences’; ‘Upon Further Reflection’; ‘Recent Issues in the Analysis of Behavior’ e ‘Cumulative Record – Definitive edition’4. Uma leitura dos parágrafos em que a expressão ‘face to face’ era empregada em cada texto permitiu, no entanto, excluir da amostra os livros ‘Verbal Behavior’ e ‘The Technology of Teaching’, uma vez que, nesses casos, o termo estava sendo usado apenas como sinônimo de “estar diante de algo”. Nos seis livros restantes, os capítulos em que o termo apareceu foram contabilizados cada um como um texto, com exceção do terceiro volume da autobiografia, por não apresentar divisão capitular, e do livro ‘Notebooks’, por ser uma coletânea de notas. Nesses casos, cada livro foi contabilizado como um único texto.
Outros dois textos que não apareceram nos livros foram adicionados, considerando leituras anteriores que tinham revelado a presença de discussões sobre controle face a face. Estes artigos são: ‘War, peace and Behavior Analysis: Some comments’ (Skinner, 1988b) e ‘The non-punitive society’ (Skinner, 1990).
Assim, ao final, foram selecionados para análise 13 textos, que empregavam o termo ‘face to face’ como uma forma específica de controle social. A Tabela 1 apresenta esses textos cronologicamente, com a respectiva frequência da expressão ‘face to face’ em cada um. Para essa organização, os textos republicados em coletâneas foram consultados no original e, quando identificado que a expressão ‘face to face’ já constava na primeira versão, foi considerada apenas a data original da publicação do texto. Esse procedimento só não pôde ser realizado com o texto ‘Human behavior and democracy’, que foi publicado originalmente em 1977, com o título ‘Between freedom and despotism’ (Andery, Micheletto, & Sério, 2004); como o original não pode ser recuperado, foi mantida a data e o título da republicação. Notebooks (1980) foi excluído da organização cronológica uma vez que as anotações de Skinner compiladas nesse livro não têm data especificada (Epstein, 1980).
Tabela 1. Ocorrências da expressão face to face nos textos analisados

Como pode ser verificado na Tabela 1, a primeira ocorrência da expressão controle face a face, como um conceito que descreve uma forma específica de controle social, foi encontrada em 1976, no texto ‘Walden Two revisited’, que consiste em um prefácio escrito para uma nova edição de ‘Walden Two’. A partir daí o termo apareceu quase todos os anos, e em alguns anos em mais de uma publicação. Sobre a frequência do uso do conceito, dois textos se destacam: ‘Human behavior and democracy’ (Skinner, 1977/1978a) e ‘A matter of consequences’ (Skinner, 1983/1984), com seis e cinco ocorrências, respectivamente. ‘The operant side of behavior therapy’ (Skinner, 1988a) também se destacou no material analisado, com três ocorrências do conceito. A última ocorrência encontrada foi em 1989, em ‘A new preface to Beyond Freedom and Dignity’, publicado no livro ‘Recent issues in the Analysis of Behavior’ (Skinner, 1989).
Análise do conteúdo dos textos
A análise do conteúdo dos textos que empregaram o conceito de controle face a face permitiu o agrupamento das discussões em temáticas. Trata-se de questões complementares que não indicam qualquer ruptura ou mudança expressiva no modo como Skinner considerou o controle face a face. Na sequência serão discutidas cada uma das temáticas, ilustrando-as com menções aos textos analisados.
Controle face a face como alternativa ao controle institucional
No material analisado, a discussão do controle face a face apareceu reiteradamente como alternativa ao controle institucional, promovido por agências controladoras poderosas, especialmente governo e economia. Por exemplo, no prefácio de ‘Reflection on Behaviorism and Society’, que consiste em uma sinopse dos textos compilados no livro, Skinner (1978b) sumariza o primeiro texto (‘Human behavior and democracy’) afirmando que “a modificação de comportamento é exatamente a tecnologia que precisamos para promover o controle face a face do povo, pelo povo e para o povo, e assim reduzir o alcance de instituições centralizadas do governo e economia” (p. ix).
Vale ressaltar que, no material analisado, ‘Human behavior and democracy’ (Skinner, 1977/1978a) foi o texto em que o conceito de controle face a face foi mais frequente. O texto discute o sistema democrático ocidental da época, partindo do argumento de que ele não pode ser considerado um governo do povo, pelo povo e para o povo, tal como Abraham Lincoln havia proclamado, em 1863, no ‘Gettysburg Address’. De acordo com Skinner (1977/1978a), a democracia tem funcionado quase que exclusivamente por punição e ameaça de punição, com a função primordial de “compelir obediência à autoridade” (p. 3). Mesmo alternativas ao sistema ocidental padrão, como o Estado de bem-estar social e o socialismo de Estado, ainda mantinham condições aversivas e funcionavam prioritariamente para compelir obediência. Assim, a questão central seria: como restabelecer uma verdadeira democracia, entendida como um governo do povo, pelo povo e para o povo?
O conceito de controle face a face surge como uma resposta a essa questão. Tradicionalmente entende-se que um governo democrático seria aquele no qual um líder ou representante é colocado no poder. Skinner (1977/1978a) opõe-se a essa concepção argumentado que:
Quando delegamos o controle do povo para instituições políticas e econômicas renunciamos ao controle face a face de um governo igualitário do povo pelo povo, e é um erro supor que restituiremos esse poder restringindo o escopo daqueles para quem o delegamos. Uma melhor estratégia é fortalecer o controle face a face. Um ambiente social, ou cultura, pode operar sem a ajuda de governantes, usurpadores ou delegados, e empresários, e é mais claramente um governo do povo pelo povo quando assim o faz. (Skinner, 1977/1978a, p. 9)
No terceiro volume de sua autobiografia, ‘A matter of consequences’, Skinner (1983/1984) retoma essa posição, dizendo que as autoridades para as quais delegamos o poder em um sistema representativo podem ser tão problemáticas quanto os tiranos. Além disso, quando autoridades e leis são colocadas como responsáveis pelo controle do povo, perdemos a oportunidade de fortalecer nossas relações interpessoais, distanciando-se do outro e dos efeitos que nosso comportamento produz nele.
Uma vantagem do controle face a face seria a de que quando entramos em contato direto com esses “efeitos sociais”, ou seja, com aquilo que nosso comportamento produz em outras pessoas, nos comportamos em função desses efeitos e não de leis ou regras formuladas pela agência governamental (Skinner, 1977/1978a). Esse ponto foi reiterado algum tempo depois, em ‘The contrived reinforcement’. Nesse texto, Skinner (1982) recusa a tese de que seria impossível abrir mão do controle por reforçadores artificiais no governo, argumentando que antes da instituição de governos: “as pessoas se comportavam bem por causa das reações daqueles que elas afetavam” (p. 5). Entre essas reações, estaria a censura ou elogio do outro diante de um comportamento de alguém em uma comunidade (Skinner, 1976/2005b).
Controle face a face como alternativa ao controle por regras
Outra discussão da qual participa a tese do controle face a face é a oposição ao comportamento estritamente governado por regras. Em ‘Whats is wrong with daily life in the Western world?’, publicado em 1986, Skinner discute alguns dos problemas que os países ocidentais enfrentavam (e ainda enfrentam). Ele deixa claro no começo do texto que esses problemas não são aqueles mais fundamentais como a pobreza, a violência, as guerras, mas sim, questões como tédio, apatia e depressão (Skinner, 1986).
Para Skinner (1986), o que estaria causando os problemas no ocidente seria a corrosão das contingências de reforçamento, promovida por certas práticas culturais. Uma dessas práticas tem relação direta com a discussão do controle face a face: o excesso de comportamentos governados por regras. Embora as regras sejam importantes, uma vez que permitem agir de maneiras adequadas em certas contingências, sem termos que nos expor a possíveis consequências aversivas, elas têm riscos que não devem ser menosprezados.
Em primeiro lugar, no contexto social, as regras seriam menos efetivas em promover o “bom comportamento”, entendido como um comportamento que não é aversivo para outros. Retomando o argumento sobre a “sensibilidade” aos efeitos sociais do comportamento, o controle por contingências seria mais “sensível” ao que está acontecendo em um contexto social:
As pessoas tendem a agir de modo a agradar ou evitar desagradar os outros, em parte porque os outros respondem de maneira apropriada, mas elas estão menos inclinadas a se comportarem bem quando estão apenas seguindo regras de boa conduta. (Skinner, 1986, p. 571)
Além disso, a cultura evolui, e regras e leis nem sempre acompanham essa evolução. Por isso, agindo somente em função da regra ou lei, alguém pode ficar “alienado” de eventuais mudanças nas contingências. Em outras palavras, passamos a fazer o que é “considerado certo”, mesmo que as consequências de nossas ações não sejam vantajosas para ninguém – exceto, talvez, para a própria agência controladora que criou e continua difundindo a regra (Skinner, 1986).
Essa preferência pelo comportamento social controlado por contingências, ao invés de regras, também aparece no texto ‘Why we are not acting to save the world’, derivado de uma fala de Skinner na ‘American Psychological Association’ em 1982, mas que só foi publicado em 1987 (Chance, 2007). Nesse texto, a expressão ‘face to face’ é citada na descrição de um mundo melhor, afirmando que nele as pessoas poderiam tratar bem umas às outras por conta do controle face a face, ao invés da necessidade de obedecer a leis formuladas por governos ou mandamentos instituídos por religiões (Skinner, 1987).
Walden Two como protótipo de uma sociedade mantida por controle face a face
Em ‘Walden Two’, Skinner (1948/2005a) não empregou a expressão ‘controle face a face’ (apesar de o termo aparecer no prefácio da edição de 1976 do livro). No entanto, críticas ao controle institucional (governamental, econômico e religioso) são ostensivamente apresentadas no livro de 1948. Por exemplo, na comunidade não existe um governo centralizado na figura de um líder:
O governo de Walden Two, continuou ele [Frazier], tem as virtudes da democracia, mas nenhum dos defeitos. Está muito mais próximo da teoria ou intenção da democracia do que a prática atual na América de hoje. A vontade do povo é cuidadosamente averiguada. Nós não temos campanhas eleitorais para falsificar questões ou obscurecê-las com apelos emocionais, mas é feito um estudo cuidadoso da satisfação dos membros. Cada membro tem um canal direto através do qual pode protestar para os Administradores ou mesmo para os Planejadores. E tais protestos são levados tão a sério quanto o piloto de um avião leva a sério um motor fazendo ruídos. (Skinner, 1948/2005a, p. 253)
Por conta disso seria razoável levantar a hipótese de que a tese do controle face a face tem raízes em ‘Walden Two’. Essa hipótese ganha força com o fato de que, no material analisado, Walden Two apareceu recorrentemente como um exemplo de como o controle face a face poderia funcionar na ordenação de um grupo social relativamente amplo.
Na terceira parte de sua autobiografia, publicada em 1983, Skinner defendeu que, em Walden Two, os representantes de agências controladoras (policiais, cléricos, empresários, professores e terapeutas) não eram necessários, pois, suas funções eram desempenhadas pelas próprias pessoas, por meio de censuras e elogios face a face (Skinner, 1983/1984).
Em ‘The operant side of behavior therapy’, Skinner (1988a) cita o termo ‘face to face’ ao falar sobre como Walden Two não somente era livre de agências governamentais, religiosas e capitalistas, mas também se valia do controle face a face para manter as contingências sociais que foram programadas:
Meu romance utópico ‘Walden Two’, publicado quarenta anos atrás, foi uma antecipação ficcional do que viria a ser chamado de análise do comportamento aplicada. Ele descrevia uma comunidade na qual agências governamentais, religiosas e capitalistas eram substituídas por controle pessoal face a face. (Skinner, 1988a, p. 83)
No mesmo ano, Skinner (1988b) publicou o artigo ‘War, peace and Behavior Analysis: Some comments’, no qual o termo ‘face to face’ é citado na discussão de como em Walden Two as instituições foram substituídas pelo planejamento de práticas culturais, no qual as pessoas fazem o que precisa ser feito para que a comunidade funcione. Essas práticas culturais planejadas funcionam primordialmente por meio do controle face a face que os membros exercem uns sobre outros. Essa forma de controle é tratada, assim, como uma maneira adequada de estabelecer e manter comportamentos em uma cultura.
Em ‘A new preface to Beyond Freedom and Dignity’, de 1989, Walden Two é citado novamente como um exemplo fictício de comunidade que não precisava de instituições, e geria a si própria por meio do controle face a face de seus membros (Skinner, 1989). O controle face a face é colocado, portanto, como estratégia oposta à constituição de agências controladoras para organizar essa comunidade.
Uma aproximação com o anarquismo
Outro ponto que chama a atenção no material analisado é a menção ao anarquismo como uma ideologia alinhada à tese política do controle face a face. Por exemplo, logo depois de defender a “estratégia de fortalecer o controle face a face”, Skinner (1977/1978a) comenta que: “Alguma coisa desse tipo tem sido proposta de tempos em tempos – por exemplo, na filosofia política da anarquia” (p. 09). Em ‘New from nowhere, 1984’, Burris, o narrador, fala da reação de um novo personagem, Blair, diante do funcionamento sem instituições de Walden Two, tecendo aproximações com o anarquismo:
O que tinha impressionado Blair e o trazido para Walden Two era a ausência de qualquer governo, religião ou sistema econômico institucionalizado. Isso tinha sido o sonho do anarquismo do século XIX, mas tinha dado errado. Evidentemente isso tinha dado certo em Walden Two. (Skinner, 1985, p. 6)
Em ‘A new preface to Beyond Freedom and Dignity’, publicado como um capítulo de ‘Recent issues in the Analysis of Behavior’, Skinner (1989) explica que as vendas de ‘Walden Two’ aumentaram nos anos 1960 porque nessa época havia um movimento que estava desafiando instituições como governos, indústrias e organizações religiosas (Skinner, 1989). De acordo com Skinner (1989), esse movimento consistia em uma forma de “anarquismo não-violento” (p.120).
Embora esse posicionamento favorável ao anarquismo seja, geralmente, complementado com explicações do porquê tal proposta não prosperou, Skinner parece reconhecer afinidades com essa ideologia política. Isso fica evidente quando, em sua autobiografia, ele menciona que em uma palestra chegou a se definir como um “anarquista benigno”, e que Walden Two não era uma ditadura, mas uma comunidade anárquica:
Mas Walden Two era anárquico. Nenhuma pessoa estava no controle. A comunidade foi projetada de tal maneira que polícia, clero, empresários, professores e terapeutas não eram necessários. As funções que eram delegadas a eles no mundo em geral foram desempenhadas pelas próprias pessoas, por meio de elogios e censuras face a face. (Skinner, 1983/1984, p. 426-427)
Parece, portanto, que a proposta de controle face a face aproxima Skinner do anarquismo, no sentido de fundamentar uma proposta de sociedade que dispensa autoridades de poder, principalmente nos campos governamental e político. No entanto, tal como acontece com o anarquismo, a pergunta que resta é: por que não vemos isso na prática? Ou seja, por que no “mundo real” o controle face a face parece não funcionar? As respostas a essas questões podem ser agrupadas em uma nova categoria de análise do material.
Os limites do controle face a face
Embora defenda a tese de que o controle face a face seria uma alternativa aos problemas do controle institucional, Skinner indicou que essa proposta só poderia funcionar se algumas condições fossem satisfeitas.
A primeira condição para a efetividade do controle face a face diz respeito ao tamanho do grupo social em que a pessoa vive e convive. Quanto maior o grupo, menos efetivo é o controle face a face. Em ‘Walden Two revisited’, Skinner (1976/2005b) aborda esse ponto ao examinar uma crítica comum dirigida ao livro de 1948:
O que podemos concluir de uma comunidade bem-sucedida de mil pessoas? Tente aplicar esses princípios na cidade de Nova York, dirão, ou ao Departamento de Estado e veja o que acontece. O mundo é um vasto e complexo espaço. O que funciona para um pequeno grupo está longe de ser o que o necessário para uma nação ou para o mundo todo. (Skinner, 1976/2005b, pp. xviii-ix)
Skinner não contesta a crítica, mas defende a necessidade de revermos a organização urbana contemporânea: “muitas cidades provavelmente já passaram do ponto de um bom governo porque muitas coisas estão erradas. Não deveríamos antes perguntar se precisamos de cidades?” (p. ix). Citando o livro de Schumacher (1973/1975), ‘Small is beautiful’, Skinner indica que a organização urbana em grandes cidades vinha sendo criticada também por outros autores5, e conclui que: “uma rede de pequenas cidades ou Walden Twos teria seus próprios problemas, mas o fato surpreendente é que seria bem mais fácil resolver muitos dos problemas cruciais enfrentados no mundo de hoje” (p. x).
Skinner esclarece que, no caso do controle face a face, a manutenção da ordem em um grupo social por meio de elogios e censuras diretas, sem a mediação institucional, dependeria do fato desses elogios e críticas partirem de pessoas que convivem constantemente, o que raramente acontece no caso de grandes cidades: “A grandeza de uma cidade é problemática precisamente porque encontramos muitas pessoas que nunca mais veremos e cujo elogio ou censura, portanto, não tem sentido” (p. xi).
A despeito dessa dificuldade, Skinner (1976/2005b) continua insistindo que “O problema não pode ser resolvido delegando a censura a uma força policial e aos tribunais” (p. xi). A tese de que comunidades pequenas, como aquela descrita em ‘Walden Two’, poderiam operar por meio de controle face a face sem a necessidade de controle institucional continuou sendo reiterada no decorrer da obra de Skinner. Mesmo depois que o entusiasmo dos anos 1960, com as comunidades intencionais, já tinha arrefecido, Skinner ainda recorreu por um tempo a essa proposta: “Podemos restaurar algumas das vantagens nesse controle [face a face] retornando a pequenos grupos, como comunidades intencionais” (Skinner, 1982, p. 6).
Esse ponto também apareceu em uma anotação de ‘Notebooks’ selecionada pelo ‘Index’ do livro. Embora não utilize o termo ‘face to face’ literalmente nessa anotação, Skinner (1980) menciona uma comunidade italiana na Almafi, cujo tamanho reduzido manteria um “senso de comunidade”, no qual as pessoas censuram umas às outras sem ressentimentos. Com isso, ele conclui que essa relação mais próxima é o que se perde em grandes cidades. Ao mesmo tempo, a anotação indica que a desvantagem de pequenas comunidades seria a falta de oportunidades aos seus habitantes, que acabam buscando-as em cidades grandes.
A segunda condição para efetividade do controle face a face foi esboçada inicialmente em ‘Walden Two revisited’, quando Skinner (1976/2005b) afirma que: “Pessoas estão mais inclinadas a tratar uns aos outros com amizade e afeição se não estiverem em competição por status pessoal ou profissional” (p. xi). Novamente, a análise faz referência a Walden Two, onde a competição pessoal teria sido abolida e era ostensivamente evitada pelo Código Walden: “não valorizamos e certamente não enfatizamos triunfo pessoal. Isso não só é desnecessário numa cultura cooperativa, como também é perigoso” (Skinner, 1948/2005a, p. 222).
Por extensão, em uma sociedade competitiva, a efetividade do controle face a face seria questionável. Nesse contexto, status pessoal e profissional significam não apenas ter comportamentos positivamente reforçados, mas, principalmente, ter a possibilidade (ou poder) de manejar reforçadores e punidores para o comportamento de outrem. Assim, de uma perspectiva comportamental, status seria um reforçador social poderoso, que sinaliza poder de reforçar e punir. Justamente por isso, aqueles que adquirem status profissional ou pessoal comportam-se para mantê-lo, o que, muitas vezes, significa evitar o contracontrole, mantendo as relações hierárquicas em um sistema de privilégios e usando o poder para compelir obediência (ver Holland, 1975).
Esse ponto é reiterado na proposta de uma democracia que pudesse ser realmente considerada um governo do povo pelo povo. No contexto dessa discussão, Skinner (1977/1978a) afirma que isso depende de um equilíbrio nas relações de poder:
Infelizmente, pessoas governam pessoas nesse sentido bastante idealista [do controle face a face] apenas quando todos têm essencialmente o mesmo poder, e isso quase nunca é o caso. Alguém emerge como líder e, infelizmente, quase sempre exercendo uma parte especial do poder de compelir obediência. (p. 8)
A horizontalidade das relações parece ser, então, um pré-requisito para que o controle face a face realmente funcione. Isso quer dizer que em relações hierarquizadas, “estar diante de outra pessoa” não configura funcionalmente controle face a face. Nesse tipo de relação, aqueles com privilégios (maior poder de reforçar e punir) passam a usar seu poder para obrigar a obediência, ao mesmo tempo em que aquele em posição de subalternidade tem poucas chances de contracontrole efetivo, restando a ele apenas obedecer: “Nós ainda obedecemos frequentemente pessoas com poder superior porque ao fazê-lo acabamos com a condição aversiva denominada ‘ameaça de punição’” (Skinner, 1982, p. 5).
Em suma, Skinner sugere que o controle face a face, necessário para estabelecer um governo do povo pelo povo, não poderá se concretizar em comunidades muito grandes, ou em qualquer grupo caracterizado por uma grande desigualdade de poder nas relações sociais. Mas será, então, que o controle face a face é realmente possível? Isso não tornaria a proposta de Skinner utópica, no sentido de irrealizável?
É possível controle face a face efetivo em uma sociedade “real”?
O reconhecimento dos limites do controle face a face, com uma série de condições para sua efetividade, coloca a questão óbvia sobre a possibilidade dessa forma de controle social ser efetiva na sociedade contemporânea. Essa questão é reforçada pelo fato de Skinner sistematicamente mencionar ‘Walden Two’ em suas discussões sobre o conceito. Será que apenas nessa comunidade fictícia o controle face a face poderia funcionar?
Mesmo usando a comunidade utópica como protótipo do controle face a face, Skinner parece dar uma resposta negativa a essa pergunta. Em primeiro lugar, ele reconhece que a problemática que está enfrentando com o conceito de controle face a face não é exatamente nova: “Um ambiente social no qual as pessoas se comportam como gostam, ao invés de como devem, tem sido o sonho de muitos reformadores sociais e políticos, mas é usualmente chamado de ‘utopia’ no sentido pejorativo de impossível” (Skinner, 1977/1978a, pp. 7-8). Porém, ele recusa essa interpretação, afirmando que:
No entanto, nós já estamos no caminho para desenvolver uma alternativa para o governo, entendido como poder de compelir obediência. E ela pode levar a algo que está mais próximo de um governo do povo pelo povo do que qualquer coisa já proposta em nome da democracia. (Skinner, 1977/1978a, p. 8)
Haveria, então, contextos reais em que o controle face a face já é efetivo? De acordo com Skinner (1976/2005b), um exemplo disso seria a atuação prática de analistas do comportamento (na época denominada modificação do comportamento): “Aqueles que têm usado a modificação de comportamento na terapia familiar [family counseling] e nas instituições sabem como arranjar as condições face a face que promovem respeito interpessoal e amor” (Skinner, p. xi). Em ‘The non-punitive society’, Skinner menciona especificamente a psicoterapia como um uso “real” do controle face a face, ressaltando que, nesse contexto, esse tipo de controle atua minimizando os efeitos da punição que um indivíduo sofreu ao longo de sua vida: “A psicoterapia face a face é outro campo no qual a modificação de comportamento é utilizada, e isso é particularmente significante, pois esse tipo de terapia está, geralmente, preocupada precisamente com os efeitos da punição” (Skinner, 1990). Em ‘The operant side of behavior therapy’, Skinner (1988a) emprega a expressão ‘face to face’ tanto para se referir ao contexto da clínica quanto para destacar que essa forma de controle garante melhores possibilidades de uma modelagem mútua de comportamentos:
A psicoterapia face a face na clínica é diferente. Apenas uma pequena parte da vida do cliente se passa na presença de um terapeuta. Apenas alguns poucos reforçadores podem ser usados, e na maior parte do tempo somente para reforçar comportamentos sociais, especialmente verbais. Há uma grande possibilidade de modelagem mútua de comportamento em confrontações face a face. (Skinner, 1988a, p. 80)
Assim, embora admita limites na proposta de controle face a face em larga escala, Skinner ainda defende sua viabilidade apontando dois contextos “reais” em que ela é possível e efetiva: em comunidades pequenas (como aquela da Almafi, registrada em ‘Notebooks’), e na atuação de analistas do comportamento, principalmente no âmbito da psicoterapia.
DISCUSSÃO
Walden Two ‘versus’ anarquismo
Como mencionado, no material analisado, a discussão sobre o controle face a face ocorreu pela primeira vez no prefácio ‘Walden Two revisited’ (Skinner, 1976/2005b). Nesse texto, Skinner explica que, na época, o mundo vinha tomando ciência de novos problemas globais, como a exaustão de recursos naturais, o crescimento da violência, da superpopulação, da poluição, entre outros. Walden Two, que havia sido escrito há quase 30 anos, vinha chamando a atenção do público nessa época, pois apresentava uma possibilidade de enfrentar esses problemas.
De acordo com Rutherford (2003), a década de 1960 foi uma época historicamente complexa nos Estados Unidos, e as propostas de Skinner para a criação de um mundo novo e melhor convergiam, em alguns pontos, com os ideais que emergiram nesse contexto. Skinner concordava com as contestações contraculturais aos modelos de governo e à forma de organização da sociedade. Ele também via vantagens em uma vida mais comunitária e livre de instituições, considerando ‘Walden Two’ uma proposta viável para uma comunidade nesses moldes, justamente porque funcionava por meio do controle face a face (Skinner, 1976/2005b).
No entanto, os meios e fins defendidos por Skinner para alcançar esses objetivos, o afastavam dos movimentos “libertários” estadunidenses. Por exemplo, Skinner considerava os hippies como pessoas que nada ou pouco faziam pela sociedade, principalmente porque apoiavam-se em uma ideia de liberdade equivocada, que se opunha a qualquer forma de controle (Rutherford, 2003). Em ‘Walden Two’, Skinner (1948/2005a) já havia criticado o anarquismo, argumentando que “O problema com o programa do anarquismo é que colocava muita fé na natureza humana” (Skinner, 1948/2005a, p. 182). A argumentação do autor era de que o anarquismo acreditava, ingenuamente, de que com o fim do governo todos os problemas sociais acabariam, ignorando, assim, a necessidade de um planejamento deliberado para a constituição e manutenção de uma nova ordem social (Dittrich, 2004). Mas o ponto que interessa aqui é como se dá esse planejamento, o que dá relevo ao caráter tecnocrático da proposta apresentada no livro de 1948:
Em Walden Two, as decisões são tomadas por planejadores, que consultam os administradores responsáveis pelas diferentes atividades da comunidade. Isso reproduz uma espécie de sistema de “pirâmide social” em que uma minoria decide pela maioria, que deve, por sua vez, cumprir o que foi decidido. (Lopes, 2020, p. 209)
Esse modelo tecnocrático de sociedade é bastante diferente da proposta anarquista de autogestão. Como esclarece Corrêa (2015): “No autogoverno democrático [proposto pelo anarquismo], a política não se define pelo monopólio dos processos decisórios por um setor minoritário, o que implica uma dominação política, mas por sua completa socialização” (p. 160). Justamente por isso, a noção de democracia defendida pelo anarquismo define-se como um governo do povo pelo povo (Corrêa).
No entanto, a proposta de Skinner parece mudar quando ele passa a defender explicitamente o controle face a face, identificando-o como o governo do povo pelo povo (Skinner, 1977/1978a,1978b). Como mencionado alhures, isso aproxima Skinner do anarquismo, o que é reconhecido por ele em diferentes momentos (Skinner, 1985, 1986, 1989). Desse modo, a defesa de uma organização social orientada pelo controle face a face sinaliza uma diferença em relação ao projeto original de Walden Two, francamente tecnocrático (Lopes, 2020)6. Essa questão torna-se mais complicada porque ao invés de reconhecer essa mudança de projeto, Skinner passa a “reconstruir” Walden Two defendendo que a comunidade descrita no livro de 1948 era ostensivamente organizada pelo controle face a face e, por isso, era anarquista (Skinner 1983/1984).
Assim, a ausência da expressão ‘face a face. no livro de 1948 não parece uma mera omissão de palavras que não altera o compromisso com a tese política do controle face a face. Diferente disso, a expressão está ausente simplesmente porque Walden Two não era uma comunidade organizada primordialmente pelo controle face a face, mas por uma classe de planejadores destacada dos demais membros.
Psicoterapia e controle face a face
Como apresentado alhures, um dos poucos contextos “reais” que Skinner menciona como exemplo de controle face a face efetivo é a psicoterapia. Isso culmina em outros problemas. Em primeiro lugar, o alcance da psicoterapia para uma mudança social parece ser bastante limitado (Skinner, 1988a). Em outras palavras, caberia perguntar se pela psicoterapia, e apenas com ela, seria possível construir um mundo melhor? O próprio Skinner (1953/2014) não parece muito otimista, na medida em que reconhece, que, em princípio, o poder de controle de um(a) terapeuta é bastante limitado quando comparado ao governo e, até mesmo, à religião: “Ela [a psicoterapia] não é uma agência organizada, como um governo ou religião” (p. 367).
Mas, à medida que o processo psicoterápico avança de modo bem-sucedido, o poder do terapeuta sobre o cliente aumenta, o que pode levar, por sua vez, a outro problema: “em certos estágios na psicoterapia, o terapeuta pode ganhar um grau de controle que é mais poderoso do que o de muitos agentes religiosos ou governamentais. Sempre há a possibilidade, como em qualquer agência controladora, de que o controle seja mal usado” (p. 383). Skinner indica que os padrões éticos da profissão poderiam ser formas de contracontrole para evitar esse abuso de poder. Ao invés de resolver o problema, isso apenas o desloca, pois para que os padres éticos sejam seguidos, as associações profissionais precisariam ter poder suficiente, e se esse for o caso, elas também poderiam usá-lo de modo duvidoso. Além disso, cabe indagar se os valores que pautam decisões e padrões éticos da profissão são muito diferentes daqueles que vigem na sociedade em geral. Em outras palavras, quais as chances da psicoterapia opor-se deliberadamente aos valores dominantes? Novamente, Skinner (1953/2014) não parece otimista a esse respeito:
Embora exista uma oposição fundamental nos processos comportamentais empregados, não existe necessariamente nenhuma diferença no comportamento que essas três agências [psicoterapia, religião e governo] pretendem estabelecer. O psicoterapeuta está interessado em corrigir certos subprodutos do controle. Ainda que discuta a eficácia de certas técnicas, provavelmente não questionará a necessidade do comportamento que as práticas religiosas e governamentais foram designadas a estabelecer. (p. 372)
Se a função da psicoterapia é corrigir subprodutos do controle social, e se ao fazer isso o(a) terapeuta não questiona as práticas religiosas e governamentais, ele(a) está trabalhando simplesmente para a manutenção do status quo, ou seja, para adaptar ou ajustar o indivíduo aos valores e práticas vigentes. Esse argumento foi reiterado por Terry et al. (2010), quando criticaram a psicoterapia tradicional, justamente, porque ela encoraja o ajustamento do indivíduo ao invés de ajudá-lo a enfrentar estruturas opressoras, contribuindo, assim, com a iniquidade e injustiça social. Em que sentido, então, o controle face a face na psicoterapia seria realmente uma alternativa ao controle social institucional? A tentativa de operar com formas de controle face a face em uma sociedade hierarquizada e, principalmente, dominada por instituições, parece ter como resultado mais provável a cooptação dessa forma de controle social. Isso quer dizer que, nesse contexto, o controle face a face pode ser apenas mais uma forma de engrandecimento de agências controladoras e não um caminho para construir um governo do povo pelo povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O material analisado neste trabalho mostra que a noção de controle face a face, como tese política, aparece pela primeira vez nos textos de Skinner na década de 1970 (Skinner, 1976/2005b), e mantém-se, sem rupturas ou mudanças substanciais, até o final da obra do autor. A principal discussão que compõe essa tese é que o controle face a face seria uma alternativa aos problemas decorrentes do controle exercido por agências governamentais (Skinner, 1976/2005b, 1977/1978a, 1978b, 1980,1982, 1983/1984, 1988b). De acordo com Skinner (1977/1978a, 1978b), por meio do controle face a face seria possível estabelecer uma forma de governo que, diferente da democracia representativa, poderia ser considerada um governo do povo, pelo povo, e para o povo.
Além disso, o comportamento governado por regras aparece como antagônico ao controle face a face, na medida em que o controle por regras seria uma das principais formas de controle empregadas por governos. A principal crítica é que as regras podem tornar o indivíduo insensível às variações em contextos sociais (Skinner, 1976/2005b,1977/1978a, 1980, 1982, 1983/1984, 1988b). Já o controle face a face seria mais imediato, efetivo e consistente com as contingências em vigor (Skinner, 1987). No controle face a face uma pessoa ficaria mais sensível aos efeitos de seu comportamento no outro, o que promoveria relações sociais menos aversivas e com maior respeito interpessoal (1976/2005b, 1977/1978a, 1982, 1986, 1987).
No entanto, o exemplo mais recorrente de sociedade que adotaria essa “forma de governo” é Walden Two. Isso traz duas questões. Em primeiro lugar, da forma como foi descrita no livro de 1948, a comunidade Walden Two tem compromissos políticos que parecem afastar-se da proposta de controle face a face, como o monopólio da tomada de decisão por parte de planejadores e a proibição explícita da participação popular nesse processo (Lopes, 2020). Assim, quando, posteriormente, Skinner (1983/1984, 1988a, 1989) defende que Walden Two era exclusivamente ordenado pelo controle face a face (e que, por isso, tratava-se de uma comunidade anárquica), ele estaria rompendo com o modelo tecnocrático apresentado em 1948, embora não admita, em momento algum, essa ruptura.
Em segundo lugar, o fato de Walden Two ser uma comunidade fictícia, coloca em dúvida a viabilidade da tese do controle face a face. Inicialmente, Skinner responde a esse questionamento sugerindo que o problema está no tamanho das cidades contemporâneas: “Cidades precisam de forças policiais somente porque são grandes, porque [nesse caso] o controle face a face de comportamentos pessoais decentes é impossível” (Skinner, 1985, p. 11). A resposta, no entanto, apenas adia o problema, pois conduz à conclusão de que somente a redução do tamanho das cidades tornaria o projeto político viável, o que é reconhecido pelo próprio Skinner (1982): “Infelizmente, não é fácil ver como o mundo como um todo possa dispensar dos governos e sistemas econômicos dessa maneira” (pp. 5-6). Diante disso, Skinner sugere que o controle face a face ainda seria viável na atuação de analistas do comportamento, principalmente na psicoterapia. No entanto, isso parece conflitar com a tese de que o controle face a face evita os problemas do controle social institucional, na medida em que a psicoterapia é uma agência controladora (Skinner, 1953/2014).
Diante dessas questões, a tese do controle face a face como proposta política não pode ser defendida ingenuamente. Como indicaram Lopes, Laurenti e Abib (2018), o controle social por meio das relações face a face não implica em relações necessariamente justas, pois elas podem “reproduzir a opressão e a exploração da macropolítica, que favorece os controladores em detrimento dos controlados” (p. 141). O caso da psicoterapia é emblemático, pois sem romper com os valores da sociedade em geral, o controle face a face empregado nesse contexto pode servir apenas para a manutenção de um sistema social injusto e opressivo, permeado por racismo, sexismo e homofobia (ver Terry et al., 2010).
Isso não conduz à conclusão de que a tese do controle face a face deva ser abandonada, mas enfatiza a necessidade de sempre contextualizá-la em uma análise “concreta” da sociedade, considerando as relações de poder em níveis micro e macropolítico (Lopes, Laurenti & Abib, 2018). Em outras palavras, a tese do controle face a face precisa ser constantemente problematizada no que diz respeito ao seu escopo e efetividade nos diferentes contextos de atuação de analistas do comportamento. Em que medida isso está sendo feito por trabalhos que empregam o conceito de controle face a face? Esses trabalhos ainda se mantêm fieis à proposta skinneriana ou têm algum acréscimo à discussão do conceito? Essas são questões que poderiam ser investigadas mais concretamente por pesquisa futuras.
REFERÊNCIAS
Abib, J. A. D. (2001). Teoria moral de Skinner e desenvolvimento humano. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(1), 107-117. https://doi.org/10.1590/ S0102-79722001000100009
Andery, M. A., Micheletto, N., & Sério, T. M. (2004). Publicações de B. F. Skinner: De 1930 a 2004. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 6(1), 93-134.
Bobbio, N. (1995). Política. In. N. Bobbio, N. Matteucci, & G. Pasquino (Orgs.), Dicionário de política (2 volumes, pp. 954-962). (C. C. Varrialle, G. Lo Mônaco, J. Ferreira, L. G. P. Cacais, Trads.). Editora UnB. (Obra original publicada em 1983)
Carrara, K. (2016). Ecos da “revolução de Holland” na contemporaneidade: Práticas culturais, ética e compromisso social. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 18(esp.), 84-94. http://doi.org/10.31505/rbtcc. v18i0.847
Chance, P. (2007). The ultimate challenge: Prove B. F. Skinner wrong. The Behavior Analyst, 30(2), 153 – 160. http://doi.org/10.1007/bf03392152
Corrêa, F. (2015). Bandeira negra: Rediscutindo o anarquismo. Curitiba: Prismas. Dittrich, A. (2004). Behaviorismo radical, ética e política: Aspectos teóricos do compromisso social. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos,
Dittrich, A. (2004). Behaviorismo radical, ética e política: Aspectos teóricos do compromisso social. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
Epstein, R. (1980). Introduction. In B. F. Skinner (Org.), Notebooks. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
Fisichella, D. (1995). Tecnocracia. In. N. Bobbio, N. Matteucci, & G. Pasquino (Orgs.), Dicionário de política (2 volumes, pp. 1233-1237). (C. C. Varrialle, G. Lo Mônaco, J. Ferreira, L. G. P. Cacais, Trads.). Editora UnB. (Obra original publicada em 1983)
Hamilton, L. F. T. (2012). Os usos do termo “liberdade” no anarquismo de Bakunin e no behaviorismo radical de Skinner. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.
Holland, J. G. (1975). Behavior modification for prisioners, patients, and other people as prescription for the planned society. Mexican Journal Analysis of Behavior, 1(1), 81-95.
Laurenti, C., & Lopes, C. E. (2016). Metodologia da pesquisa conceitual em psicologia. In C. Laurenti, C. E. Lopes, & S. F. Araújo (Orgs.), Pesquisa teórica em psicologia: Aspectos filosóficos e metodológicos (pp. 41-69). São Paulo: Hogrefe.
Lopes, C. E. (2020). Could Walden two be an anarchist society? Behavior and Social Issues, 29(1), 195-217. http://doi.org/10.1007/s42822-020-00036-w
Lopes, C. E., Laurenti, C. & Abib, J. A. D. (2018). Política sem instituições. In: E. Lopes, C. Laurenti, & J. A. D. Abib. Conversas pragmatistas sobre comportamentalismo radical (2 ed. rev. amp. pp. 117-142). Curitiba: CRV.
Lowery, C. T., Mattaini, M. A. (1999). The Science of Sharing Power: Native American Thought and Behavior Analysis. Behavior and Social Issues, 9, 3-23. http://doi.org/10.5210/bsi.v9i1.139
Rocha, C. A. A. (2017). Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. Temas em Psicologia, 25(3), 913-926. http://doi. org/10.9788/TP2017.3-02Pt
Rutherford, A. (2003). B. F. Skinner’s technology of behavior in American life: From consumer culture to counterculture. Journal of History of the Behavioral Sciences, 39(1), 1-23. http://doi.org/10:1002/jhbs.10090
Schumacher, E. F. (1975). Small is beautiful: Economics as if people mattered. New York: Harper & Row. (Obra original publicada em 1973)
Skinner, B. F. (1978a). Human behavior and democracy. In B. F. Skinner (Org.), Reflections on behaviorism and society (pp. 3-15). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Obra original publicada em 1977)
Skinner, B. F. (1978b). Preface. In B. F. Skinner (Org.), Reflections on behaviorism and society (pp. ix-xii). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
Skinner, B. F. (1980). Notebooks. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
Skinner, B. F. (1982). Contrived reinforcement. The Behavior Analyst, 5(1), 3-8. http://doi.org/10.1007/bf03393135
Skinner, B. F. (1984). A matter of consequences. New York: New York University Press. (Obra original publicada em 1983)
Skinner, B. F. (1985). News from nowhere, 1984. The Behavior Analyst, 8(1), 5-14. http://doi.org/10.1007/bf03391908
Skinner, B. F. (1986). What is wrong with daily life in the Western world? American Psychologist, 41(5), 568-574. http://doi.org/10.1037/0003-066X.41.5.568
Skinner, B. F. (1987). Why we are not acting to save the world. In B. F. Skinner (Org.), Upon further reflection (pp. 1-14). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
Skinner, B. F. (1988a). The operant side of behavior therapy. Journal of Behavior Therapy and Experimental Psychiatry, 19(3), 171-179. http://doi. org/10.1016/0005-7916(88)90038-9
Skinner, B. F. (1988b). War, peace, and behavior analysis: Some comments. Behavior Analysis and Social Action, 6(2), 57-58. http://doi.org/10.1007/ BF03449131
Skinner, B. F. (1989). A new preface to Beyond freedom and dignity. In B. F. Skinner (Org.), Recent issues in the analysis of behavior (pp. 113-123). Columbus: Merril Publishing Company.
Skinner, B. F. (1990). The non-punitive society. Japanese Journal of Behavior Analysis, 5(2), 87-106. http://doi.org/10.24456/jjba.5.2_87
Skinner, B. F. (2005a). Walden two. Indiana: Hackett. (Obra original publicada em 1948)
Skinner, B. F. (2005b). Walden two revisited. In B. F. Skinner, Walden two. Indiana: Hackett. (Obra original publicada em 1976)
Skinner, B. F. (2014). Science and human behavior. Massachusetts: The B. F. Skinner Foundation. (Obra original publicada em 1953)
Terry, C., Bolling, M. Y., Ruiz, M. R., Brown, K. (2010). FAP and Feminist Therapies: Confronting Power and Privilege in Therapy. In J. W. Kanter, M. Tsai, R. Kohlenberg (Eds). The Practice of Functional Analytic Psychotherapy (pp. 97-122). Springer, New York, NY. http://doi.org/10.1007/978-1-4419-5830-3_7
Versoza-Carvalhal, C. S. (2021). Diálogos entre a teoria dos direitos fundamentais e a análise do comportamento na elaboração de políticas públicas. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista, Bauru.
Notas