Homens: Parte do Problema ou da Solução? Behaviorismo, Política e Masculinidades

Men: Part of the Problem or Part of the Solution? Behaviorism, Politics and Masculinities

Isabelle Elisandra Kuch
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Alexandre Dittrich
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Homens: Parte do Problema ou da Solução? Behaviorismo, Política e Masculinidades

Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, vol. 32, núm. 2, pp. 289-308, 2024

Universidad de Guadalajara

Recepción: 20 Abril 2023

Aprobación: 23 Febrero 2024

Resumo: A expansão de movimentos sociais voltados a questões de gênero impulsionou indagações concernentes à suposta naturalidade de comportamentos culturalmente atribuídos a homens e mulheres. Corroborando estes movimentos, estudos sobre masculinidades têm buscado elaborar explicações sobre a diversidade inerente à categoria “homem”. As diversas possibilidades de ser homem conferem pluralidade às masculinidades, entendidas como configurações de práticas que estabelecem entre si relações hierárquicas. Nesta hierarquia, a masculinidade hegemônica é dominante, representando o tipo de masculinidade socialmente mais admirado, sobretudo pelos homens, o qual, atualmente, contempla comportamentos rígidos e potencialmente danosos para homens e mulheres – porém sempre passíveis de transformação. Para que sejam efetivas, estas transformações demandam a elaboração de políticas de masculinidades comprometidas com a justiça social. Assim, objetivou-se discutir possíveis caminhos para a elaboração e fortalecimento de políticas de masculinidades direcionadas à justiça social em termos analítico- comportamentais, considerando que a Análise do Comportamento tem se mostrado cada vez mais alinhada com estudos socialmente relevantes. Por meio dos conceitos de planejamento cultural, autocontrole, controle ético, contracontrole e controle face a face, concluiu-se que os homens, ao exercerem papel significativo na produção e perpetuação de práticas de masculinidades nocivas, devem ser tratados não apenas como parte do problema, mas, sobretudo, como parte da solução.

Palavras-chave: masculinidades, Análise do Comportamento, Behaviorismo Radical, Política, estudos de gênero, feminismo.

Abstract: The expansion of social movements focused on gender issues has raised questions concerning the supposed naturalness and universality of behaviors culturally attributed to men and women. Corroborating these movements, studies on masculinities are aimed to elaborate historically and socially situated explanations about the inherent diversity of the category “men”. Thus, the different possibilities of being a man confer a plurality to masculinities, which is manifested through various configurations of practices that establish relationships of domination, subordination, complicity and marginalization among themselves, resulting in a hierarchy of masculinity practices. In this hierarchy, practices of hegemonic masculinity are those that occupy a dominant position, representing the type of masculinity most admired and honored mostly by men in a given place and historical period. Hegemonic masculinity, in its current form, has misogyny and homophobia as its pillars, contemplating a series of rigid and potentially harmful behaviors not only for men, but also for women. However, the practices that characterize it are always provisional, that is, subject to transformation. The modification of masculinity practices requires the elaboration of masculinity politics through which groups of individuals organize themselves toward a common objective. Considering the harmful effects caused by current practices of hegemonic masculinity, politics that aim its transformation must be committed to the promotion and strengthening of social justice. Whereas the development of new studies on masculinities demands an expansion of dialogue with other scientific fields, Behavior Analysis is a science potentially capable of contributing to the description and proposal of solutions to behavioral problems in this regard, since it has been increasingly aligned with the study of socially relevant topics. That said, this article aimed to discuss the possible paths for the elaboration and strengthening of masculinity politics congruent with social justice in behavior-analytic terms. Based on the works of R. Connell and B. F. Skinner, we discuss the production and strengthening of masculinity politics congruent with social justice with the help of the concepts of cultural design, self- control, ethical control, countercontrol and face-to-face control. Behavior Analysis has shown a strong potential to contribute productively to political discussions within the scope of men and masculinity studies. We conclude that consistent individual changes in the life of men must be supported by changes in their broader social and cultural contexts. Men must necessarily be integrated into this transformative process, since they play a significant role not only in the production, but in the continuity of masculinity practices that generate harmful consequences for women and men themselves. That is, men must be treated not only as part of the problem, but above all as part of the solution.

Keywords: masculinities, Behavior Analysis, Radical Behaviorism, Politics, gender studies, feminism.

O movimento feminista, em sua história secular de existência, produziu uma série de transformações na conduta de mulheres em relação às práticas de gênero dominantes, promovendo debates profícuos acerca da construção social das feminilidades e da pluralidade inerente à categoria “mulher”, o que, inevitavelmente, reverberou na ação política de diversos grupos sociais. Os homens, por exemplo, constituíram-se como parte dos grupos favorecidos por estas discussões. Inspirados pelo movimento feminista, círculos de homens passaram a se reunir e questionar as tentativas de essencializar e universalizar também a categoria “homem”, dando origem a um novo campo de estudos e investigações: os estudos sobre homens e masculinidades, cujo principal foco era, naquele momento, evidenciar os atravessamentos históricos e culturais que definiam características e comportamentos tidos como masculinos (Connell, 2005).

Connell (1995) indica que as práticas de masculinidades são diversas e plurais, portanto, devemos recusar concepções que buscam definir estes fenômenos como fixos ou imutáveis. A autora define as masculinidades como conjuntos de práticas generificadas, ou seja, ações socialmente construídas e historicamente situadas com base nas expectativas constituídas por grupos específicos a respeito do “ser homem”, que devem ser analisadas em sua multiplicidade e, também, em seu caráter relacional. Segundo a autora, diferentes conjuntos de práticas de masculinidades estabelecem entre si relações de exclusão, inclusão, intimidação, exploração e assim por diante, produzindo hierarquias. Nesta rede de relações hierárquicas, a masculinidade hegemônica é aquela que se sobressai, sendo o conjunto de práticas mais apreciado e valorizado – sobretudo pelos homens – em determinada cultura e período histórico. Por assumir uma posição privilegiada em relação a outras configurações de masculinidades (e.g., masculinidades subordinada, cúmplice e marginalizada, também descritas por Connell, 20051), as práticas de masculinidade hegemônica fazem com que todos os homens se posicionem em relação a elas, assumindo uma posição dominante diante das demais configurações de masculinidades. Cabe mencionar que, atualmente, apenas uma minoria de homens adota integralmente os padrões de comportamento típicos da masculinidade hegemônica, dada sua rigidez (Connell & Messerschmidt, 2013). Neste sentido,

A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico … mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens. (Connell & Messerschmidt, 2013, p. 245)

Atualmente, as práticas que caracterizam a masculinidade hegemônica são aquelas que fortalecem e perpetuam o sistema patriarcal, endossando, sobretudo, a subordinação feminina (Connell & Messerschmidt, 2013). Conforme salienta hooks (1984/2019), os homens enquanto grupo são os principais responsáveis pela manutenção do patriarcado – isto é, são parte substancial dos problemas decorrentes deste sistema de opressão e exploração. Não obstante, de acordo com Lerner (1986/2019), as mulheres também podem compor parte do problema, uma vez que o patriarcado também se sustenta por meio da cooperação destas:

Assegura-se essa cooperação por diversos meios: doutrinação de gênero, carência educacional, negação às mulheres do conhecimento da própria história, divisão de mulheres pela definição de “respeitabilidade” e “desvio” de acordo com suas atividades sexuais; por restrições e coerção total; por meio de discriminação no acesso a recursos econômicos e poder político e pela concessão de privilégios de classe a mulheres que obedecem. Por quase quatro mil anos, as mulheres moldaram sua vida e agiram sob o “guarda-chuva” do patriarcado. … Há milênios, as mulheres participam do processo da própria subordinação por serem psicologicamente moldadas de modo a internalizar a ideia da própria inferioridade. (pp. 267–268)

Connell e Messerschmidt (2013) também destacam a complacência feminina como parte do problema no que toca às atuais práticas de masculinidade hegemônica e sua relação direta com o patriarcado – ainda que, conforme explicitado, a cooperação de mulheres com a própria subordinação seja mais uma das estratégias empregadas pelo grupo dominante para a manutenção do status quo. Isto é, embora o grupo oprimido possa assumir uma relação de cumplicidade com o grupo opressor, não podemos deixar de ressaltar que são os homens os que sustentam e são beneficiados pelo dividendo patriarcal de forma majoritária. Logo, excluí-los de ações potencialmente transformadoras a respeito das disparidades de gênero pode ser contraproducente para os próprios objetivos do movimento feminista (hooks, 1984/2019).

Ademais, é preciso, também, considerar certas prerrogativas de classe e raça para uma análise mais refinada do problema apresentado. Os homens que atualmente representam a masculinidade hegemônica são aqueles beneficiados pela intersecção de diversos marcadores sociais de privilégios, ou seja, são homens brancos, cis, heterossexuais, ricos e que possuem representatividade institucional, e dificilmente ocupariam uma posição de autoridade sem essas prerrogativas interseccionais. Contudo, não é possível analisar esses marcadores de forma isolada. Devemos, antes, considerar que esses homens não renunciam, necessariamente, aos privilégios oriundos do patriarcado em nenhum grau (Connell, 2005). Isto é, é possível que homens que são atravessados por estes mesmos marcadores sociais de privilégio se comportem de forma compatível com masculinidades menos opressivas, uma vez que haja a recusa explícita e consistente das prerrogativas da masculinidade hegemônica.

Por contemplar práticas que vêm sendo perpetuadas há muitas gerações, a atual configuração de masculinidade hegemônica é congruente com os aspectos que caracterizam a denominada masculinidade tradicional – conceito também amplamente utilizado na literatura da área.Aconcepção de masculinidade tradicional abrange padrões que estão fortemente arraigados na sociedade e que refletem regras rígidas, sexistas e antiquadas de como os homens devem se comportar, sugerindo que os homens devem ser “dominantes, heterossexuais, afastados da feminilidade [avoidant-of-femininity], autossuficientes, emocionalmente restritos, fisicamente fortes e sexualmente disponíveis” (Borgogna & McDermott, 2022, p. 347). Desempenhar este tipo de masculinidade resulta em um status social de prestígio e honra, o qual “deve ser conquistado e constantemente defendido, pois pode ser perdido ou apartado” (Vandello et al., 2023, p. 2). Isto ajuda a explicar, por exemplo, o repúdio ao movimento feminista e aos homens que o apoiam, pois estes são frequentemente acusados de tentar “feminilizar” os homens e aniquilar uma suposta masculinidade “verdadeira” (Connell, 2005). Não obstante, apesar da masculinidade hegemônica atualmente ser congruente com as definições de masculinidade tradicional, os conceitos não são, necessariamente, sinônimos. Isso porque as práticas de masculinidade hegemônica não são fixas, mas sim provisórias e passíveis de modificação. Ou seja, apesar dos comportamentos anteriormente mencionados como partes da denominada masculinidade tradicional definirem as atuais práticas de masculinidade hegemônica, tais práticas podem ser transformadas e novos comportamentos têm potencial para caracterizar uma nova hegemonia. Ao modificarmos as práticas que compõem a hegemonia, consequentemente modificamos as demais categorias de práticas de masculinidades, pois o modelo hegemônico regula as práticas das demais configurações de masculinidades. Deste modo, justifica-se o relevo que lhe é dado neste artigo.

Em termos analítico-comportamentais, é possível compreender as práticas de masculinidade hegemônica como aquelas que são classificadas eticamente pelo grupo dominante como “boas”, “desejáveis”, “corretas”, e, portanto, amplamente reforçadas nas relações sociais. Por ocupar um lugar privilegiado na hierarquia de gênero, a masculinidade hegemônica compõe o modelo prioritário de aprendizagem para jovens meninos desde tenra idade. Ou seja, ela é transmitida transgeracionalmente aos meninos por homens mais velhos (i.e., pais, avôs, tios, irmãos etc.) mediante regras, modelação e modelagem2.

Tomando a perspectiva do modelo de seleções pelas consequências (Skinner, 1981), é possível identificar que as práticas de masculinidade hegemônica e, por conseguinte, os comportamentos que as compõem são mantidos por consequências emdiferentesníveisdeseleçãoquesesobrepõem. Nonívelfilogenético, seleciona-se, dentre outros aspectos, a suscetibilidade dos organismos a determinados reforçadores, o que permite a ação do segundo e terceiro níveis. No nível ontogenético, os homens que praticam essa masculinidade podem acessar reforçadores sociais (e.g., aprovação dos seus pares) e reforçadores individuais (e.g., esquiva de sentimentos desagradáveis). No nível cultural, tais homens mantêm e transmitem entre gerações o chamado dividendo patriarcal, termo cunhado por Connell (2005) para se referir aos privilégios oriundos do patriarcado, que colocam os homens, como grupo, em posições sociais de autoridade e dominação em relação às mulheres e a outros homens que ocupam posições inferiores nas hierarquias de gênero. Não obstante, consoante às discussões interseccionais anteriormente delineadas, os homens não acessam de forma igualitária o dividendo patriarcal: divisões de classe, privilégios de raça, diferenças entre contextos rurais e urbanos, dentre outras, são fatores que não devem passar despercebidos nas análises (Connell, 2014).

Apesar das consequências positivas imediatas, a longo prazo estas práticas acarretam consequências nocivas não apenas para os homens, individual e coletivamente, mas também para as mulheres. Homens que se comportam de forma compatível com a atual configuração de masculinidade hegemônica tendem a assumir condutas de risco com maior frequência (e.g., beber e dirigir, abusar de substâncias ilícitas, dirigir perigosamente etc.), relutam em buscar ajuda para problemas de saúde física e psicológica, possuem hobbies mais arriscados (e.g., caça e esportes radicais perigosos), são a maioria entre grupos extremistas (e.g., grupos terroristas), bem como são mais propensos a cometer agressões contra parceiras íntimas e outros homens (Borgogna & McDermott, 2022; Dier & Baldwin, 2022; Krivoshchekov et al., 2023; Vandello et al., 2023). Como efeito, homens são os que mais se ferem e morrem por acidentes e overdose, são a maioria da população carcerária, são os principais alvos da violência militar e de crimes violentos, apresentam maiores níveis de estresse e dependência química etc. (Connell, 2005). Ademais, os homens são também os principais perpetradores da violência de gênero; em 2021, por exemplo, estima-se que cerca de 81.100 mulheres e meninas foram mortas no mundo todo, sendo que 81% destes assassinatos foram cometidos por homens, geralmente parceiros íntimos ou membros da família (Organização das Nações Unidas, 2022). De forma ainda mais abrangente, as consequências da masculinidade hegemônica também operam em nível institucional, podendo ser observadas, por exemplo, no aumento da disseminação de armas nucleares e da destrutividade da tecnologia militar, na ampliação em larga escala da degradação do meio ambiente, e no crescimento da desigualdade econômica a nível global (Connell, 2005).

Nota-se, portanto, que é urgente promover práticas de masculinidades menos opressivas, tendo em vista as potenciais vantagens que podem ser vislumbradas nos níveis individual e coletivo. Para que mudanças efetivas sejam impulsionadas, Connell (2005) indica a necessidade de se produzir políticas de masculinidades compatíveis com a justiça social, o que demanda ações de coalizão e sobreposição de interesses entre diferentes grupos. Sobre o conceito de justiça social, a autora destaca que “ʻjustica’ é, em primeira instância, uma reivindicação de reparação. A justiça social é uma reivindicação de reparação da desigualdade” (Connell, 2014, p. 14). Desigualdade esta que se manifesta nos âmbitos materiais, institucionais, de acesso a direitos básicos e universais e, inclusive, no reconhecimento e legitimação da existência do outro como ser humano. A justiça social, portanto, deve contribuir para a reparação de tais disparidades, fomentando a igualdade em diferentes espaços e a democratização do atendimento às necessidades individuais e coletivas diversas (Connell, 2014). Segundo a autora, para que isso seja possível, é necessário promover uma reconstrução cultural. Tendo em vista o tema central deste artigo, promover a justiça social no âmbito das masculinidades demanda o enfraquecimento de práticas que perpetuam o dividendo patriarcal, uma vez que este contribui com a sustentação de uma ordem de gênero desigual. Um caminho possível faz referência às políticas de masculinidades, conforme será abordado neste artigo. A ciência analítico-comportamental, por sua vez, parece ter potencial para contribuir com o planejamento e execução de tais políticas, dado que seus princípios vêm se mostrando úteis para discussões transdisciplinares e propostas de solução às problemáticas sociais (Fernandes, 2021). Discussões e propostas sobre ética e política, por exemplo, foram levadas a cabo pelo próprio fundador do Behaviorismo Radical em diversas obras (e.g., Skinner, 1953/2014, 1971/1973, 1977/1978), e se fazem presentes na Análise do Comportamento para além da obra skinneriana (e.g., Abib, 2007; Holland, 1974, 1978; Lopes et al. 2018; Ruiz & Roche, 2007).

Isto posto, este artigo objetiva discutir os possíveis caminhos para a elaboração e fortalecimento de políticas de masculinidades direcionadas à justiça social em termos analítico-comportamentais. Ao final do texto, com base nas discussões precedentes, pretende-se avaliar se tratar os homens apenascomo parte dos problemas concernentes ao patriarcado e suas decorrências, e não como parte da solução, é o caminho mais promissor para estudos de gênero. Trata-se de um ensaio teórico, que tomará como base, majoritariamente, as obras de B. F. Skinner que abordam temas sociais e culturais, e de R. Connell, considerada uma das pioneiras e principais referências no campo dos estudos sobre masculinidades (Carvalho, 2015). Connell foi responsável, por exemplo, por cunhar conceitos importantes na área, como o de masculinidade hegemônica, que se mostrou de fundamental relevância para as investigações dos comportamentos masculinos em contextos diversos – escolar, laboral, familiar, dentre outros. Não obstante, a literatura secundária referente aos temas centrais deste estudo também será explorada quando pertinente.

A construção do texto abordará, em um primeiro momento, a definição de políticas de masculinidades com base na obra de R. Connell e, sob controle deste conceito, recursos teóricos e práticos da Análise do Comportamento serão explorados a fim de contribuir para a expansão dos debates a respeito da produção de práticas de masculinidades menos opressivas.

Políticas de Masculinidades

O projeto teórico de Connell (2005) fundamenta-se na noção de que as relações de gênero – incluindo-se, aqui, as masculinidades – são formadas e transformadas no decorrer do tempo e de acordo com as características de cada cultura. Ou seja, são sempre transeuntes e modificáveis. Neste processo transformativo, os indivíduos não são meros espectadores: eles participam ativamente e, através de suas ações, criam e recriam as possibilidades de exercer práticas generificadas. Em termos behavioristas radicais, podemos afirmar que sujeitos não apenas têm seus repertórios comportamentais de gênero moldados pela cultura, mas também ajudam a mantê-la (Skinner, 1971/1973). Isto é, “o homem [sic] é em grande parte responsável pelo ambiente em que vive” (Skinner, 1969/2013, p. 59), que, por sua vez, influencia seu próprio comportamento.

Para que estes processos transformativos sejam efetivos, é preciso atuar não apenas em relação a aspectos da vida individual de cada homem, mas fomentar ações coletivas. Ou seja, é necessário engendrar políticas que operem em um nível mais amplo. Para Connell (2005), o termo “política” alude às diferentes formas pelas quais os sujeitos se organizam com vistas a objetivos comuns. Uma vez que as práticas de masculinidades podem ser consideradas práticas culturais – definidas como “padrões comportamentais de indivíduos ou de pessoas se comportando em grupo, modelados e mantidos pelas contingências sociais definidoras de uma dada cultura” (Fernandes et al., 2017, p. 277) – e, por conseguinte, são mantidas por consequências reforçadoras e culturais, a própria ação política neste âmbito objetivará uma transformação mais ampla, de caráter social e cultural, não se limitando apenas à vida individual de cada homem. Considerando os dados apresentados na seção introdutória deste artigo, constata-se que fomentar políticas que busquem transformar o modelo hegemônico de masculinidade é não só desejável, como urgente.

De forma específica, Connell (2005) conceitua as políticas de masculinidades como “mobilizações e lutas onde o significado do gênero masculino está em jogo e, com ele, a posição dos homens nas relações de gênero. Em tais políticas, a masculinidade torna-se um tema principal, não sendo dada como pano de fundo” (p. 205). As políticas de masculinidades nem sempre são transformativas, ao contrário, muitas buscam a conservação do patriarcado e dos benefícios que este sistema provê aos homens. Não obstante, para que mudanças efetivas sejam conquistadas no que toca à construção de sociedades mais igualitárias, é necessário discriminar quais políticas estão comprometidas com o fortalecimento da justiça social e promovê-las.

As políticas de masculinidade alinhadas com a justiça social devem focar, segundo Connell (2005), em um processo de desgenerificação (degendering) e regenerificação (regendering), ou seja, em processos que oportunizem o desmantelamento das práticas de gênero que estão atualmente vigentes e promovam a reforma e transformação destas, abrindo espaço para a construção e consolidação de práticas menos opressivas. Observa-se, portanto, que a proposta da autora não é a de abolir o gênero, mas de reconstruí-lo. Tais transformações das práticas generificadas, mesmo que graduais, já vêm sendo promovidas – por exemplo, por movimentos sociais, em particular aqueles orientados às questões de gênero. Este processo, por sua vez, deve, necessariamente, incluir os próprios homens, pois são eles mesmos os principais responsáveis pela produção e manutenção das práticas de masculinidades, sobretudo aquelas que viabilizam a sustentação do sistema patriarcal. Conforme destaca hooks (1984/2019):

Uma vez que os homens são os principais responsáveis pela preservação do sexismo e da opressão sexista, sua erradicação só será possível se os homens assumirem a tarefa de transformar a consciência masculina e a consciência da sociedade como um todo. (p. 130)

Para a Análise do Comportamento, as masculinidades podem ser analisadas, principalmente, pelas óticas2 (1) ontogenética, na qual as masculinidades são compostas por conjuntos de contingências sociais que condicionamocomportamento de homens e meninos por meio do reforçamento diferencial, aprendizagem por observação de modelos e regras; e (2) cultural, na qual as masculinidades são compostas por práticas mantidas por consequências culturais e que ultrapassam a temporalidade de vida dos indivíduos. Ambas mantêm uma estreita relação, caracterizada pela interdependência entre os diferentes níveis de seleção (Skinner, 1981).

Desta forma, para examinar os possíveis caminhos para a elaboração e fortalecimento de políticas de masculinidades direcionadas à justiça social em termos analítico-comportamentais, precisamos considerar a intersecção entre níveis ontogenéticos e culturais, promovendo transformações significativas em ambos. Sob controle do objetivo principal deste artigo, alguns elementos da filosofia behaviorista radical podem se mostrar úteis para colaborar com a discussão almejada, os quais serão abordados nas seções subsequentes.

Planejamento Cultural e Políticas de Masculinidades

Considerando as masculinidades como práticas culturais, temos que os pressupostos sobre planejamento cultural se mostram relevantes para a proposição de políticas de masculinidades transformativas em nível coletivo. Planejadores culturais dispostos a promover tais mudanças, devem, necessariamente, analisar o ambiente social e descrever as características da cultura que (re)produz diferentes práticas de masculinidades (Skinner, 1953/2014). De acordo com Skinner (1968/1999), ao identificarmos em uma dada cultura elementos aversivos e potencialmente destrutivos que ameaçam a sobrevivência dos grupos, podemos promover transformações mais adequadas. Isto deve ser feito porque a cultura que sobrevive e transmite suas práticas entre gerações não necessariamente é a melhor para a humanidade (Skinner, 1953/2014). As práticas de masculinidade hegemônica, por exemplo, são mantidas e transmitidas mesmo acarretando consequências nocivas para grande parcela da sociedade. Sobre esse assunto, Skinner (1971/1973) ressalta:

Ninguém conhece a melhor (grifos do autor) maneira de criar filhos, pagar trabalhadores, manter a lei e a ordem, ensinar ou tornar as pessoas criativas, mas é possível propor maneiras melhores do que as que temos agora e apoiá-las prevendo e, eventualmente, demonstrando resultados mais reforçadores. Isso foi feito no passado com a ajuda da experiência pessoal e da sabedoria popular, mas uma análise científica do comportamento humano é obviamente relevante. Ajuda de duas maneiras: define o que deve ser feito e sugere maneiras de fazê- lo. (p. 143)

O trecho supracitado pode ser adaptado com o intuito de abordar o tema central deste artigo, de tal forma que temos que “ninguém conhece a melhor forma de agir como um homem, ensinar ou tornar meninos ‘masculinos’, mas é possível propor maneiras melhores do que as que temos agora e apoiá-las prevendo e, eventualmente, demonstrando resultados mais reforçadores”. Isso é possível porque a atual configuração de masculinidade hegemônica pode ser modificada a fim de contemplar práticas menos deletérias, que possam gerar resultados positivamente reforçadores para grupos diversos – não apenas os dominantes –, bem como possam produzir consequências culturais mais vantajosas (e.g., engendrar e fortalecer a justiça social, ao invés do dividendo patriarcal). Tais mudanças podem ser vislumbradas mediante a manipulação de algumas variáveis, tarefa que é bastante complexa, uma vez que precisamos considerar a estrutura hierárquica e estratificada das práticas generificadas. Isto significa que aqueles que desempenham ou se beneficiam das práticas de masculinidade hegemônica, além de acessarem reforçadores poderosos, também controlam o acesso a reforçadores de grupos inferiores na hierarquia de gênero. Renunciar a tais reforçadores e a tal controle equivale a perder o acesso a privilégios que lhes são assegurados pelo sistema de gênero vigente. Contudo, existem recursos teórico-práticos na Análise do Comportamento que podem ser úteis para o planejamento cultural no que toca à elaboração de estratégias de enfraquecimento de práticas de masculinidades prejudiciais, conforme será demonstrado nos tópicos subsequentes

Elucidação das Consequências a Longo Prazo e Autocontrole

Tendo em vista as consequências nocivas que as práticas de masculinidade hegemônica em seus moldes atuais acarretam, sobretudo a longo prazo, faz-se necessário um planejamento cultural que contemple a explicitação de tais efeitos postergados, colocando aqueles que as praticam sob controle destes. Segundo Skinner (1969/2013), “recompensas imediatas são muitas vezes compensadas por punições adiadas, e … punições muitas vezes precisam ser aceitas por causa de recompensas adiadas” (p. 54). Assim, práticas de masculinidades que se opõem ao modelo dominante e contemplam comportamentos menos danosos para os homens e para as mulheres – denominadas atualmente de masculinidade subordinada –, apesar de gerarem consequências aversivas imediatas (e.g., desaprovação do grupo dominante, violência, patologização), também acarretam efeitos vantajosos no futuro (e.g., a nível individual, estes homens podem, por exemplo, construir relações interpessoais mais positivas, à medida que, a nível cultural, podem promover e fortalecer a justiça social).

Não obstante, o contrário acontece com a masculinidade hegemônica: ela traz benefícios a curto prazo, porém os efeitos diferidos são potencialmente mais danosos. Por exemplo, a curto prazo os homens acessam os privilégios associados à detenção do controle das instituições coercitivas, como o exército e a polícia; entretanto, a longo prazo, são também os homens que acabam sendo os mais expostos a mortes violentas (Connell, 2005) – e ainda que recortes interseccionais sejam de suma importância para o detalhamento desses dados, a variável de gênero também adquire relevo nas estatísticas. Assim, por meio da análise e elucidação destas consequências deletérias a longo prazo, planejadores culturais podem atuar na proposição e viabilização do desenvolvimento de práticas de masculinidades congruentes com a justiça social. Isto é, práticas que resultem em consequências mais vantajosas para a sobrevivência da maior parte dos grupos de uma sociedade devem prevalecer, ainda que este processo de equidade possa gerar a curto prazo efeitos aversivos para os grupos privilegiados – que, via de regra, são numericamente minorias. O processo de identificação e exposição dos efeitos colaterais de práticas culturais danosas, segundo Skinner (1961/1999), amplia as possibilidades de proposição e adoção de modificações nas práticas que devem sobreviver em dada cultura, o que exige um olhar atento do(a) planejador(a) cultural, uma vez que as consequências a longo prazo podem escapar a análises superficiais.

Ainda que a história filogenética dos organismos tenha contribuído para que as consequências imediatas adquirissem maior valor de sobrevivência para as espécies, o que acarretou uma menor sensibilidade às consequências postergadas, é possível – e desejável – que planejadores culturais contribuam para que esses sujeitos lidem com estes fatos de forma mais eficaz (Skinner, 1969/2013). Dentre as possibilidades de execução deste objetivo, o mesmo autor recomenda que “reforçadores condicionados podem ser usados para preencher o intervalo entre o comportamento e suas consequências mais remotas, e reforçadores suplementares podem ser arranjados para servir até que reforçadores remotos possam ser acionados” (p. 54).

Na perspectiva das políticas de masculinidades orientadas para a justiça social, planejadores culturais podem treinar agentes sociais (e.g., psicoterapeutas, professores, cuidadores, planejadores de políticas públicas) a, nas palavras de Skinner, “preencher o intervalo” entre os comportamentos masculinos menos opressivos e as consequências remotas destes, antecipando o acesso a alguns reforçadores (e.g., validação, acolhimento), o que possivelmente agilizará a adoção destas novas práticas. Ou seja, fornecer reforçadores positivos imediatos para comportamentos que são incompatíveis com práticas nocivas de masculinidades é uma alternativa importante a ser considerada nestes projetos políticos.

Ademais, também pode ser efetivo colocar meninos e homens em contato com os reforçadores naturais oriundos de comportamentos masculinos incompatíveis com aqueles que caracterizam a masculinidade hegemônica vigente (e.g., fortalecimento de laços parentais, relações conjugais mais harmoniosas, experimentar novas formas de sentir prazer sexual etc.), pois “o comportamento é mais rapidamente moldado e mantido por suas consequências naturais” (Skinner, 1977/1978, p. 11).

Outro tópico relevante e alinhado com a temática discutida nesta seção refere-se ao arranjo de contingências que promovam comportamentos de autocontrole, conceito este compreendido como a possibilidade de o indivíduo controlar suas próprias ações (Skinner, 1953/2014). O autocontrole pode auxiliar na correção das suscetibilidades inatas a reforços imediatos que podem levar a consequências aversivas postergadas (Skinner, 1971/1973). O autor supracitado indica que comportamentos de autocontrole, ao moderar os efeitos reforçadores mais imediatos e colocar os sujeitos sob controle dos efeitos postergados de suas ações, viabilizam o engajamento em práticas mais favoráveis para a sobrevivência de uma determinada cultura. Em síntese, políticas de masculinidade orientadas à justiça social, ao promoverem autocontrole, promovem também um estilo de vida que será apreciado não necessariamente pelos homens como são agora, “mas um modo de vida que será apreciado por aqueles que vivam de acordo com ele” (Skinner, 1969/2013, p. 56).

Tais considerações vão ao encontro do que Abib (2007) denomina como educação para a sensibilidade. A proposta do autor é fomentar uma educação que busque controlar o imediatismo da sensibilidade dos organismos às consequências reforçadoras e naturais mais imediatas por meio de um projeto que harmonize sobrevivência e prazer. O foco está em colocar os prazeres mais imediatos a serviço da sobrevivência do grupo, isto é, da cultura.

Contudo, é comum encontrarmos obstáculos: “uma sensibilidade imediata, antiga e hedonista, uma sensibilidade que busca o prazer, mesmo sob o custo da aniquilação e da morte, se constitui, talvez, no principal obstáculo para o desenvolvimento de práticas culturais com valor de sobrevivência” (Abib, 2007, p. 54). Neste sentido, faz-se necessário criar condições para a produção e fortalecimento de práticas culturais que transformem ou substituam aquelas práticas que ameaçam a sobrevivência das culturas.

Uma vez que o comportamento individual é resultado de contingências sobrepostas (i.e., naturais, reforçadoras e culturais), o processo de planejamento cultural de novas práticas de masculinidades que podem substituir aquelas que hoje caracterizam o atual modelo hegemônico, conforme vem sendo sugerido neste artigo, depende da modificação de contingências em diferentes níveis de seleção. Segundo Abib (2007), apesar das consequências culturais não serem reforços, não devemos desconsiderar a importância dos reforçadores para a produção de consequências culturais mais vantajosas – ainda que se trate de dois níveis seletivos distintos. Criar condições positivamente reforçadoras para comportamentos masculinos menos opressivos constitui-se como parte fundamental da construção de práticas culturais que viabilizem a sobrevivência de grupos diversos a longo prazo, em uma temporalidade que ultrapassa a vida dos indivíduos.

Modificações no controle ético exercido pelos grupos

A elaboração de políticas de masculinidades que fortaleçam a justiça social também deve considerar o controle ético exercido pelos grupos. Skinner (1953/2014) indica que este é o principal procedimento de controle do comportamento dos indivíduos, noqualosmembrosdedeterminadosgruposclassificamcomportamentos como “bons”, “adequados”, “corretos” etc. quando estes são por eles aceitáveis, ao passo que aqueles que destoam desta aceitabilidade são classificados como “ruins”, “inadequados”, “incorretos” etc. Com base nesta classificação, os membros do grupo passam a consequenciar os comportamentos de outrem – e as próprias respostas verbais classificatórias se consolidam como reforçadores condicionados. Como efeito, classificações éticas dos comportamentos têm como função a supressão ou fortalecimento de comportamentos (Skinner, 1977/1978). Por exemplo, um homem que emite um comportamento inaceitável pelo grupo dominante pode ser eticamente classificado como “afeminado”, e, para escapar desta estimulação aversiva, ele pode emitir comportamentos compatíveis com aqueles aceitos pelo grupo – ou seja, conformar-se às normas da masculinidade hegemônica. Este mesmo sujeito pode ser punido e censurado de diversas outras maneiras.

Conforme anteriormente assinalado, os comportamentos que atualmente compõem a masculinidade hegemônica são classificados eticamente pelos grupos dominantes de maneira positiva (e.g., são considerados comportamentos de “homens de verdade”). Os sujeitos que criam e perpetuam tais classificações são, majoritariamente, os próprios homens, isto é, são os homens que qualificam e legitimam eticamente os comportamentos tidos como masculinos, consequenciando-os de acordo com estes padrões. Entretanto, Skinner (1953/2014) enfatiza que classificações éticas desatualizadas podem continuar vigentes, mesmo quando os comportamentos eticamente classificados como “bons” ou “ruins” não geram mais reforços ou estimulação aversiva para os membros do grupo. Para ilustrar este fato, temos que, na Grécia Antiga, os combates eram, por diversos motivos, eventos extremamente significativos para a sociedade, logo, práticas de masculinidades que espelhavam coragem irrestrita e força física eram amplamente valorizadas – os espartanos, por exemplo, eram treinados para a guerra desde muito cedo, ainda na infância (Sartre, 2018). Nota-se que, naquele momento, tais condutas masculinas foram, em alguma medida, úteis para a sobrevivência dos grupos. Todavia, muitas características de uma masculinidade combativa ainda são estimadas por muitos homens (i.e., classificadas eticamente como “boas” e afins), mesmo que atualmente acarretem prejuízos individuais e, sobretudo, coletivos.

Isto posto, verifica-se que, para que a transformação nas práticas de masculinidade hegemônica seja mais eficiente, um novo projeto ético deve ser elaborado nas sociedades ocidentais, o que demanda, impreterivelmente, mudanças nos parâmetros éticos atualmente dominantes exercidos por homens pertencentes a grupos privilegiados e por agências de controle coniventes com as premissas do patriarcado. Tais mudanças exigem que classificações éticas desatualizadas, sobretudo as que acarretam efeitos aversivos para grupos sociais diversos, deem lugar a um controle ético mais atualizado e mais sensível às diversidades existentes numa mesma categoria de gênero – neste caso, entre os homens.

Os homens que se comportam de forma incompatível com as preconizações centrais e bastante rígidas da masculinidade hegemônica são numerosos, dado que, de acordo com Connell e Messerschmidt (2013), apenas uma minoria (numérica) consegue desempenhar suficientemente os padrões hegemônicos. Verifica-se que os consideráveis agrupamentos de homens que destoam da hegemonia, uma vez que se unam em defesa de objetivos comuns, possivelmente serão capazes de gerar mudanças no que toca às classificações éticas dos comportamentos masculinos. Isso já se mostrou possível, por exemplo, com o Movimento de Liberação dos Homens e com a expansão dos grupos de conscientização masculina que se desenvolveram nas décadas de 1970 e 1980 (Connell, 2005). No cenário atual, as características do atual modelo de masculinidade hegemônica vêm sendo contestadas e debatidas nos ambientes acadêmicos (e.g., a Associação Americana de Psicologia possui uma divisão denominada Society for the Psychological Study of Men and Masculinities, que se dedica exclusivamente aos estudos sobre os homens e as masculinidades) e em espaços não formais de aprendizagem (e.g., a justiça restaurativa brasileira tem buscado desenvolver e implementar programas de recuperação de homens agressores, nos quais debate-se assuntos concernentes às masculinidades e seus possíveis efeitos aversivos, [Ministério Público do Paraná, 2020]3).

Sumariamente, as iniciativas nas quais homens se unem coletivamente para discutir e rever comportamentos masculinos potencialmente prejudiciais têm contribuído com a mudança das classificações éticas emitidas acerca do que determinados membros de uma cultura validam como comportamentos masculinos e com o abandono de classificações éticas desatualizadas sobre as masculinidades. Isso pode colaborar, ainda que paulatinamente, para a transformação das práticas de masculinidade hegemônica, uma vez que haveria o incentivo para que novas classificações (mais flexíveis) fossem adotadas. Em outras palavras, busca-se construir e expandir repertórios verbais e não verbais a respeito dos comportamentos que caracterizam um sujeito como masculino, ampliando as possibilidades de que, mesmo aqueles indivíduos que emitem comportamentos incompatíveis com as práticas de masculinidade hegemônica vigentes sejam verbalmente considerados “homens de verdade” e validados. Este processo também pode contar com o apoio de mulheres – considerando que estas, frequentemente, também endossam as atuais práticas de masculinidade hegemônica, deliberadamente ou não (Connell, 2005).

Contracontrole

O contracontrole caracteriza-se como outro recurso teórico-prático importante fornecido pela Análise do Comportamento que pode ser útil para o delineamento de políticas de masculinidades comprometidas com a justiça social. Comportamentos de contracontrole têm como função enfraquecer o domínio dos controladores, à medida que fortalecem os controlados por meio de condutas de oposição. De acordo com Skinner (1974/1976), o contracontrole se concretiza com base em duas principais estratégias: fuga e/ou ataque ao controlador. Deste modo, empenhar-se em situações desta natureza pode ter como efeito a modificação de contingências nas quais os sujeitos têm seus comportamentos controlados de forma aversiva. Os efeitos do contracontrole são potencializados quando este é exercido de forma coletiva. Por exemplo, movimentos sociais diversos que buscam questionar as relações de gênero vigentes (e.g., movimento feminista, LGBTQIA+, de conscientização masculina) têm, por meio de comportamentos coletivos de contracontrole, exercido influência significativa nas estruturas de gênero, contestando seu caráter notadamente normativo e prescritivo. Assim, homens podem se organizar e praticar com ainda mais afinco o contracontrole, de modo a desafiar os padrões de masculinidade hegemônica atuais por meio de ações de resistência.

Em suma, mediante o contracontrole coletivo, diferentes grupos de homens podem atuar de forma a alterar as contingências controladoras vigentes que não são compatíveis com a justiça social. Segundo Holland (1978), comportamentos de contracontrole podem, inclusive, possibilitar que os indivíduos acessem reforçadores de maior intensidade comparativamente aos reforçadores oriundos da mera obediência às contingências socialmente programadas por grupos dominantes. Para que isso seja possível, analistas do comportamento podem evidenciar as técnicas de controle que atualmente são empregadas, sobretudo de forma sutil, na manutenção das práticas de masculinidade hegemônica deletérias. A avaliação e exposição do controle exercido mediante reforçamento positivo também deve ser alvo de análise e elucidação, pois frequentemente passa despercebido e pode ser naturalizado nas relações sociais, exercendo também a função de enfraquecer um contracontrole efetivo (Skinner, 1974/1976). Além disso, o contracontrole também pode ser útil na diversificação do controle operado em determinados contextos, na medida em aumenta a probabilidade de que grupos socialmente subordinados se insiram em ambientes institucionais antes dominados por grupos privilegiados, o que ajuda a tornar as agências de controle mais representativas e, consequentemente, pode ser útil para a transformação nas classificações éticas vigentes, conforme anteriormente discutido.

Controle Face a Face

O último recurso analítico-comportamental a ser abordado neste artigo e que demonstra utilidade para a elaboração de políticas de masculinidades conforme até aqui discutidas refere-se ao conceito de controle face a face. O controle face a face diz respeito aos eventos nos quais as pessoas controlam o comportamento umas das outras diretamente, sem delegar este controle às agências e/ou grupos específicos, o que pode contribuir eventualmente para o equilíbrio social por meio da diversificação do controle (Skinner, 1977/1978). Ou seja, de acordo com o autor, o emprego do controle face a face tem potencial para contribuir para a instauração de sociedades menos desiguais. Tal controle pode minimizar o alcance de instituições centralizadas e de grupos socialmente privilegiados que podem fazer uso de seu poder de controle para proveito próprio. Exemplificando de forma mais tangível, este tipo de controle vem sendo empregado, por exemplo:

Por professores que encontram melhores maneiras de trabalhar com os alunos em sala de aula e que usam materiais instrucionais que permitem que os alunos progridam o mais rápido possível e com um mínimo de pressão aversiva, por atendentes em hospitais e lares para psicóticos e deficientes intelectuais que providenciam condições perante as quais aqueles sob seus cuidados levam vidas mais interessantes e dignas, por psicoterapeutas em consultas face a face com aqueles que precisam de ajuda, por pais que descobrem como tornar a família uma instituição mais calorosa e prestativa, por empregadores que projetam sistemas de incentivos sob os quais os funcionários não só funcionam bem, mas gostam do que fazem, e por indivíduos que descobrem como administrar suas próprias vidas de forma eficaz quando estão face a face consigo mesmos. (p. 10)

No que toca às práticas de masculinidades, temos que homens comprometidos com a justiça social podem controlar o comportamento de seus pares de forma mais direta, bem como podem arranjar condições reforçadoras para que outros homens que almejam objetivos similares tenham seus comportamentos fortalecidos, minimizando a exclusão e inferiorização que frequentemente é direcionada àqueles que fogem às normas e possibilitando a criação de novos modelos e regras mais flexíveis a respeito do “ser homem”. Assim, o controle face a face pode ser uma alternativa adequada ao controle estratificado e hierarquizado que atualmente opera nas sociedades. Considerando que, atualmente, diversas agências de controle e grupos socialmente dominantes desempenham um papel expressivo na conservação do dividendo patriarcal, perpetuando, especialmente, as práticas de masculinidade hegemônica vigentes, é fundamental que políticas de masculinidade congruentes com a justiça social invistam no desenvolvimento de estratégias de controle alternativas àquelas vigentes. De acordo com Lopes et al. (2018), este é um dos objetivos políticos de maior relevância para a Análise do Comportamento, pois, segundo os autores, as sociedades só se aproximarão efetivamente da democracia quando as próprias instituições forem democráticas. Deste modo, recuperar o controle delegado às instituições e abandonar figuras de autoridade em favor de um controle exercido pelos próprios membros da sociedade pode favorecer práticas mais igualitárias. Transpondo estas reflexões para o tema central do artigo, temos que, atualmente, as instituições funcionam em prol, dentre outras coisas, da manutenção do patriarcado – por exemplo, os homens parecem ser os principais representantes e beneficiários das agências de controle. Ou seja, parece contraditório almejar que estas tornem as sociedades mais democráticas. Ao invés de gerar adaptações nas formas de controle vigentes, o controle face a face busca transformá-las, explorando o potencial micropolítico das relações entre os sujeitos (Lopes et al. 2018). Sobre este tópico, os autores advertem que “defender a possibilidade de o controle social ser também micropolítico, e não apenas institucional, não significa que as relações micropolíticas sejam necessariamente justas” (p. 141). É necessário, portanto, direcionar discussões de caráter ético também às relações face a face.

Apesar de Skinner (1977/1978) recomendar que o controle face a face envolva o uso moderado de medidas aversivas, é preciso reconhecer que algum grau de aversividade será inescapável – e até mesmo necessário – neste processo de tornar hegemônicas as práticas de masculinidades menos opressivas. O simples movimento de contestação e confronto de comportamentos masculinos tradicionais será, por si só, aversivo para o grupo dominante, uma vez que ameaça a perpetuação dos privilégios que estes homens obtêm com tais práticas. Deste modo, faz-se necessária a previsão, prevenção e contenção dos possíveis efeitos colaterais que o uso do controle aversivo pode acarretar nestas circunstâncias, tais como o contra- ataque, o aumento na frequência de comportamentos agressivos, dentre outros (Skinner, 1977/1978).

Considerações Finais

Este artigo teve como objetivo discutir os possíveis caminhos para a elaboração e fortalecimento de políticas de masculinidades direcionadas à justiça social em termos analítico-comportamentais. Para tal, por meio de um estudo de caráter teórico, examinou-se quais recursos teóricos e práticos a Análise do Comportamento poderia oferecer para contribuir com os debates sobre esta temática. Conceitos como planejamento cultural, autocontrole, controle ético, contracontrole e controle face a face foram explorados a fim de traçar possíveis caminhos para a transformação de práticas de masculinidades potencialmente danosas.

Os recursos explorados podem colaborar para o desmantelamento e a transformação de práticas generificadas. Isto é, a Análise do Comportamento pode apoiar a aceleração de modificações nos processos de desgenerificação (degendering) e regenerificação (regendering) descritos por Connell (2005). Tal proposta pode gerar desconfiança em relação à sua exequibilidade, dado que uma ruptura significativa na estrutura de gênero vigente pode parecer distante. Contudo, conforme salienta Connell (2005), é ainda mais difícil contemplar justamente um futuro no qual estas mudanças não ocorram, uma vez que, especialmente nas últimas décadas, modificações significativas – ainda que insuficientes – têm sido logradas no âmbito das relações de gênero.

Com base nas reflexões delineadas neste artigo, nota-se que modificações individuais consistentes na vida dos homens apenas ocorrerão caso sejam apoiadas por mudanças nos seus contextos sociais e culturais. Portanto, por meio de um arranjo de contingências sociais e culturais mais favoráveis ao surgimento e manutenção de práticas de masculinidades menos opressivas, analistas do comportamento podem apoiar o processo transformativo da atual configuração de masculinidade hegemônica. Por se tratar de uma discussão ainda incipiente no âmbito da análise do comportamento, projetos empíricos – ou mesmo teóricos – mais diretivos acerca de particularidades concernentes ao tema das masculinidades (e.g., estudos e/ou intervenções direcionados a especificidades regionais, de orientações sexuais, etnias, classes comportamentais etc.) podem ser formulados com base nas reflexões iniciais abordadas neste artigo.

Conforme sugerimos ao longo desse estudo, os homens, uma vez que exercem um papel significativo não só na produção, mas na continuidade de práticas de masculinidades que geram consequências prejudiciais às mulheres e aos próprios homens, devem ser necessariamente integrados neste movimento político. Isto é, tratá-los apenas como parte do problema, e não da solução, pode limitar os resultados almejados no que toca à produção e fortalecimento da justiça social.

Cabe enfatizar que a proposta aqui fomentada não objetiva a aniquilação da masculinidade e abolição do gênero, mas sua desnaturalização, bem como o rearranjo das práticas de masculinidades que têm acarretado efeitos prejudiciais a diferentes grupos sociais. Em suma, fomentar e colocar em prática políticas congruentes com a justiça social são ações desejáveis a todos os gêneros. Todavia, considerando o papel fundamental dos homens na manutenção e validação de práticas de masculinidades diversas, é imprescindível incluí-los ativamente no processo de modificação das práticas generificadas – e analistas do comportamento podem auxiliar neste processo. Em outras palavras, os homens, ao passo que se constituem como parte primordial dos problemas concernentes à criação e perpetuação de práticas de masculinidade nocivas, devem, também, se consolidar como parte da solução.

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Notas

2 Ainda que apenas uma minoria numérica de homens adote integralmente as práticas de masculinidade hegemônica devido à sua rigidez, conforme apontamos anteriormente, essas práticas ainda são privilegiadas na transmissão geracional, pois homens podem assumir um compromisso com a hegemonia e conservar suas práticas por meio das masculinidades cúmplice e marginalizada.
3 No âmbito da justiça restaurativa, o trabalho de Vaccari (2017) demonstra relevo para a comunidade de analistas do comportamento. A autora propõe um exame analítico-comportamental acerca das consequências individuais e culturais decorrentes da utilização da justiça restaurativa, contribuindo com a inserção da Análise do Comportamento no contexto das políticas públicas voltadas a este tipo de resolução de conflitos.
1 Para uma descrição analítico-comportamental mais detalhada das masculinidades hegemônica, subordinada, cúmplice e marginalizada, ver Kuch (2023).
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