LAS IDEAS. SU POLÍTICA Y SU HISTORIA
Reflexões acerca da “herança” axiológica dos direitos humanos: o debate entre Jellinek e Boutmy
Reflections on the Axiological “Inheritance” of Human Rights: the Debate between Jellinek and Boutmy
Reflexões acerca da “herança” axiológica dos direitos humanos: o debate entre Jellinek e Boutmy
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, vol. 21, núm. 42, pp. 65-83, 2019
Universidad de Sevilla
Recepção: 06 Setembro 2018
Aprovação: 09 Abril 2019
Resumo: Buscar os fundamentos de qualquer norma significa, em outras palavras, buscar explicar sua obrigatoriedade. O tema, por si, já se revela complexo porque parece deixar à mercê de cada intérprete a escolha dos alicerces que justificarão o dever de cumprir conteúdos tão caros ao convívio social. Justificar o reconhecimento dos direitos humanos por meio de uma linha de argumentação histórica foi o caminho escolhido por autores importantes, a exemplo de Norberto Bobbio. O amplo alcance de trabalhos construídos sobre as bases de fundamentos históricos colocou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como fonte certa da Declaração Universal de Direitos Humanos. A fim de analisar o peso da influência da Declaração Francesa sobre a Declaração adotada pelas Nações Unidas verificou-se o debate entre Jellinek e Boutmy acerca dos fundamentos da Declaração Francesa. É comum aceitar que a origem das instituições está ligada direta ou indiretamente ao pensamento europeu. No caso da Declaração Universal de Direitos Humanos, viu-se que é coerente discordar da ideia de fundamentação necessária entre a Declaração Francesa e a referida resolução das Nações Unidas. Trata-se de artigo que traz breve revisão de literatura acerca dos fundamentos dos direitos humanos e pesquisa com metodologia qualitativa, método histórico de procedimento.
Palavras-chave: Fundamentos do direito, Direitos humanos, Fatos culturais, Axiologia.
Abstract: Searching for the fundamentals of any standard means, in other words, seeking to explain its obligation. The theme, in itself, is already complex because it seems to leave to the mercy of each interpreter the choice of the foundations that will justify the duty to fulfill contents so dear to the social life. To justify the recognition of human rights through a line of historical argumentation was the path chosen by important authors, like Norberto Bobbio. The broad scope of work built on the foundations of historical foundations has placed the Declaration of the Rights of Man and the Citizen as the right source of the Universal Declaration of Human Rights. In order to analyze the influence of the French Declaration on the Declaration adopted by the United Nations, there was the debate between Jellinek and Boutmy on the foundations of the French Declaration. It is common to accept that the origin of institutions is directly or indirectly linked to European thought. In the case of the Universal Declaration of Human Rights, it has been found that it is inconsistent to disagree with the idea of necessary grounding between the French Declaration and the aforementioned United Nations resolution. This article presents a brief review of the literature on the fundamentals of human rights and research with qualitative methodology, historical method of procedure.
Keywords: Law foundations, Human rights, Cultural facts, Axiology.
Considerações iniciais
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é frequentemente apontada como o documento que mais influenciou a criação da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. As ideias humanistas, a estrutura do texto e o conteúdo messiânico são algumas das características apontadas como elos entre os documentos. Embora se saiba das principais críticas acerca da chamada “natureza ocidental” dos direitos trazidos na Declaração Universal de 1948, pouco se sabe acerca do debate entre Jellinek e Boutmy em torno dos fundamentos da Declaração Francesa de 1789. Ora, trata-se de silogismo simples: se a Declaração Francesa de 1789 influenciou a Declaração Universal de 1948, se os fundamentos da Declaração Universal de 1948 são temas caros a concepção dos direitos humanos, logo os fundamentos da Declaração Francesa de 1789 também seriam elementos importantes à análise crítica dos direitos humanos.
Cabe salientar que as reflexões apresentadas a seguir não estão alheias à visão mais crítica do direito internacional e, consequentemente, dos direitos humanos. Os trabalhos desenvolvidos sob a égide da Third World Perspective, em especial os textos organizados por José-Manuel Barreto, servem de ponto de partida para a análise dessa “herança” axiológica dos direitos humanos. Conforme os autores desta escola, o futuro exige que os direitos humanos sejam pensados para além dos gregos e dos europeus. Somente assim os direitos humanos poderiam servir aos seus propósitos universalizáveis. Deste modo, o principal objetivo deste artigo é demonstrar a fragilidade da afirmação de origem dos direitos humanos na Declaração Francesa por meio de uma análise do debate entre Jellinek e Boutmy acerca dos fundamentos do documento francês.
Gregorio Peces-Barba (1981, p. 169-253) aponta La Declaración de los Derechos del Hombre e del Ciudadano de Jellinek, incluída a resposta a Émile Boutmy, como texto que contribui para a análise histórica da origem dos direitos humanos com profundidade acerca do nível de formação dos seus valores e princípios éticos. É sem dúvida, uma fonte importante para possivelmente redefinir a ideia de herança axiológica da Declaração Universal de Direitos Humanos. Antes, vale pontuar as principais linhas de fundamentação dos direitos humanos construída pelos teóricos ao longo do século XX e XXI.
1. Entre fundamentos e críticas
Acerca da busca pelos alicerces dos direitos humanos capazes de justificá-los racionalmente, cabe destacar três linhas gerais (Fernández, 1981, p. 77-112): a) jusnaturalista (direitos naturais); b) historicista (direitos históricos) e c) ético (diretos morais). Na justificação jusnaturalista o Direito natural nasce da natureza humana e compõe o ordenamento universal, portanto, este direito sempre estará acima do Direito positivado (Fernández, 1981, p. 80). Morange (1982, p. 45) reconhece o (1) direito natural objetivo, desenvolvido por Aristóteles, considerado efeito da Natureza revelador de um Deus criador e obediente à ordem racional das coisas e o (2) direito natural subjetivo que em Platão decorre da Natureza do ser humano, pois cada ser possuiria algo de divino em si.
Acerca de todas as teorias dos direitos naturais recaem as seguintes críticas: a) os direitos humanos não podem ser superiores e anteriores ao direito positivo por não terem sido positivados em nenhuma ordem; b) a ideia de natureza humana ainda seria profundamente ambígua; c) a noção de direitos naturais imutáveis choca-se com a experiência histórica (Fernández, 1981, p. 88). O utilitarismo de Bentham, que dominou o pensamento social inglês durante grande parte do séc. XIX, reforçou a ideia de contradição na existência de direitos anteriores ao direito positivo (Hart, 1981, p. 149-168).
Mesmo com críticas veementes, as reflexões sobre o direito natural não desapareceram no séc. XIX. Leo Strauss, por exemplo, retoma o debate e defende que a decadência da filosofia política está ligada ao rompimento com a ideia de direitos naturais. Para ele, o ser humano moderno não se preocupa mais em distinguir o certo e o errado, o justo e o injusto. Esta incapacidade decorreria da ruptura com a filosofia clássica (pré-moderna) e do abandono dos direitos naturais. Em Droit Naturel et Histoire (1986, p. 99), o autor diferencia legalidade de legitimidade. De acordo com Leo Strauss, ninguém pode garantir que a lei seja justa, pois ela pode (sem grandes barreiras) representar abertura para os desonestos. O bem comum, que não é convencional, guiará as decisões e as legitimará, por isso, a legalidade somente será legítima se estiver a seu serviço. A lei deve ser interpretação do que for justo em cada caso, comparando- se ao papel do médico que prescreve em cada caso o que for bom para a saúde do corpo humano[2]. A obra de Leo Strauss lança novo fôlego às razões naturais dos direitos humanos.
Na razão historicista, os direitos humanos seriam históricos, variáveis e relativos. Eles seriam direitos de origem social. A principal crítica ao historicismo é a percepção de que alguns direitos não seriam tão varáveis assim. Se por um lado seria possível defender a existência relativa ao momento histórico de certos direitos cívico-políticos, econômico-sociais e culturais. Por outro lado, como sustentar o mesmo dos direitos pessoais, do direito à vida e à integridade física e moral? Ademais, esse alicerce historicista impede qualquer construção de direitos fundamentais. Diante da crítica, Eusebio Fernández ressalta a necessidade de distinguir a visão histórica dos direitos humanos da sua fundamentação historicista (1981, p. 94).
De acordo com Strauss (1986), a historicidade de Rousseau, radicalizada por Nietzsche, e o foco no “sentido histórico” – idealizado Hegel – gerou o terceiro elemento de crise na filosofia política. O sentido historicista, por ser graduado, formaria várias etapas de racionalidade até alcançar a racionalidade absoluta e o grau de desenvolvimento em cada estágio criaria verdades relativas.
Já a fundamentação ética traz os direitos humanos como direitos morais. Aqui os direitos humanos assumem duas vertentes indissociáveis: ética e jurídica. Os direitos humanos seriam morais porque estariam estritamente ligados à ideia de dignidade humana. Eles apareceriam como exigências éticas e direitos que os seres humanos possuem pelo fato de serem seres humanos. Além disso, nesta linha de fundamentação, os direitos humanos imporiam ao Poder Político e ao Direito (sentido objetivo) reconhecimento, proteção e garantia. A dignidade humana funciona como critério de verificação dos sistemas éticos que devem colocar em primeiro plano a satisfação das necessidades humanas, o desenvolvimento das capacidades pessoais, a eliminação dos sofrimentos e a concretização dos desejos.
A fundamentação dos direitos humanos na concepção marxista (materialista) aponta-os como uma conquista histórica da burguesia. Apesar de não haver uma teoria jurídica, quando Marx teoriza a extinção do Estado, encontra-se implícito nos seus escritos a teorização da extinção da forma jurídica. É este aspecto que torna possível a análise, ao menos indiretamente, dos direitos humanos na teoria marxista. Manuel Atienza Rodríguez encontra certa ambiguidade em Marx com relação à ideia dos direitos humanos. Ele diz que mesmo sendo crítico aos direitos subjetivos, Marx percebeu que a grande contradição existente entre eles e o sistema capitalista poderia ser a causa da ruína deste sistema. Assim, os direitos humanos jamais seriam fins em si mesmos, mas instrumentos políticos (2008, p. 226).
De modo geral, é possível observar que todos os caminhos de fundamentação dos direitos humanos são legítimos e, ao mesmo tempo, passíveis de crítica. Diante de tantos esforços para encontrar o porquê da obrigatoriedade dos direitos humanos, há um ponto que frequentemente se apresenta como lugar- comum – o de que a Declaração Universal de Direitos Humanos é influenciada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Sob os paradigmas da Third World Perspective of International Law, a Declaração Francesa será examina a partir dos argumentos suscitados por Jellinek e Boutmy.
2. Jellinek x Boutmy: a discordância remanescente
Os direitos humanos já foram apontados como resultado da evolução inafastável e puramente racional da humanidade (Morange, 1982, p. 27). De acordo com Jellinek, o nascimento da filosofia dos direitos humanos deu-se com as Declarações de Direitos (2000). O texto que suscitou o debate com Boutmy, La Declaración de los Derechos del Hombre e del Ciudadano, analisa o documento mais importante da Revolução Francesa, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 26 de agosto de 1789.
A Declaração Francesa de 1789, segundo Jellinek, revela aspectos políticos e históricos, bem como aspectos jurídicos. Para ele, antes da Declaração Francesa, a literatura jurídico-política somente conhecia direitos dos Chefes de Estado, privilégios de classe, de particulares ou corporações. A Declaração teria influenciado as Constituições Francesas de 3 de setembro de 1791 e 4 de novembro de 1848 a inserirem direitos reconhecidos às pessoas (antes somente conhecidos pelo Direito Natural). Até 1848, a maior parte das constituições alemãs falava em direitos dos súditos. Após essa data, a Assembleia germânica começou a legislar o que o autor chama de direitos fundamentais do povo alemão (Jellinek, 2000, p. 42).
Jellinek critica a abordagem superficial das pesquisas sobre a origem da Declaração Francesa de 1789. Para ele, as obras de Direito Político somente listaram os precedentes da Declaração (desde a Carta Magna até a Declaração de Independência americana) sem investigar com mais profundidade as fontes que inspiraram os franceses. A teoria do contrato social (como fundamento da Declaração francesa) e a Declaração de Independência dos 13 Estados Unidos da América do Norte (como modelo da Declaração francesa) estavam no centro das reflexões de Jellinek acerca das fontes da Declaração (Jellinek, 2000, p. 41-44).
Jellinek critica a ideia de influência do contrato social sobre a Revolução Francesa porque, para ele, Rousseau apenas apresentou um princípio no contrato social - a transferência de todos os direitos do indivíduo à sociedade. Todo o direito decorreria da vontade geral. Diante disso não haveria conservação de nenhum direito individual ao entrar no Estado. Perder-se-ia toda a liberdade civil corresponde aos direitos cívicos. Não haveria a ideia de direito originário transferido à sociedade para limitar juridicamente o soberano. Existiriam, inclusive, liberdades contrárias ao Estado (liberdade de religião; direito de associação). O contrato social não nasceria de direitos individuais e sim da onipresença da vontade geral, logo, nada seria mais contrária à Declaração que a base do contrato social de Rousseau (Jellinek, 2000, p. 45-47).
Já para tratar da influência do contrato social sobre a Declaração Francesa – geralmente aponta nos arts. 4º, 6º e 13 – o autor examina os Bills of rights dos Estados Particulares da União Norte-Americana. Para Jellinek, nos arquivos parlamentares franceses já havia um capítulo que tratava da necessidade de estabelecer direitos ao povo e foi o Marquês de Lafayette que apresentou essa proposta à Assembleia Nacional em 2 de julho de 1789. Apesar de Lafayette, aristocrata francês, ter participado da Guerra da Independência dos Estados Unidos da América e do início da Revolução Francesa, Jellinek afasta a afirmação de que o Marquês havia sido influenciado pela Declaração de Independência dos Estados Unidos. De acordo com as memórias do Marquês citadas por Jellinek, a Declaração de Independência unicamente formulou princípios de soberania nacional e direitos para mudança da forma de governo (Jellinek, 2000, p. 49-53).
A respeito dos movimentos constitucionais anteriores à Revolução Francesa, Jellinek aponta que as Constituições dos Estados Particulares da União eram precedidas por Declarações de Direitos. A primeira foi a Declaração da Virgínia (Jellinek, 2000, p. 51). Em 15 de maio de 1776, o Congresso da Filadélfia representava as colônias que queriam a separação da Coroa Inglesa. Das treze colônias, onze haviam aderido à ruptura, enquanto duas transformaram as cartas coloniais outorgadas em Constituições (Carta de Connecticut de 1662 e Rhode Island de 1663). O Estado da Virgínia foi o primeiro a adotar uma constituição com um Bill of rights entre 6 e 29 de junho de 1776 na Convenção de Williamsburg. Ela influenciou as demais Constituições e o Congresso dos Estados Unidos. Jellinek lembra que Jefferson, cidadão da Virgínia, foi seu redator. Com isso, o autor admite a influência da Declaração da Virgínia no modelo adotado pela Declaração Francesa de 1789.
Já as Declarações inglesas não tiveram tanto impacto sobre o modelo adotado pelos revolucionários franceses. Para Jellinek, tanto a Declaração francesa, como as americanas enunciaram com a mesma paixão princípios abstratos. Todavia, a Declaração francesa, ao adotar o modelo americano, teria ficado “aquém” dele. Ela somente o superaria em conteúdo quando, brevemente, tratou no art. 10 das manifestações de opiniões em matéria religiosa. E ainda assim, só proclamou a tolerância e não a liberdade religiosa. Conforme o autor, os princípios abstratos enunciamos criaram comunidades organizadas nos Estados Unidos, enquanto na França, geraram perturbação social (Jellinek, 2000, p. 67-70).
Jellinek sustenta que tampouco restariam aos textos ingleses (Bill of Right de 1689, Habeas Corpus de 1679, Petiton of Rights de 1627 e a Magna Charta Libertatum de 1215) a formação dos alicerces dos Bills of rights americanos. Além do lapso temporal, Jellinek aponta (com base em Baneroft - historiador da Revolução Americana - e sir Edward Coke - jurisconsulto inglês) que a leis ingleses eram puramente históricas, pontuais e não tinham qualquer intenção em reconhecer direitos gerais “do homem”. Os Bills of rights americanos determinavam a linha de separação entre os indivíduos e o Estado, enquanto as leis inglesas tratavam de deveres do Estado (Jellinek, 2000, p. 71). Somente dois (de treze) pontos referiam-se aos direitos dos súditos. Os direitos do povo resumiam-se à ideia de restrições impostas à Coroa (concepção medieval – séc. V e XV – visível no Estado germânico em que o povo e o príncipe, por serem opostos e independentes, necessitariam estabelecer relação contratual). As leis inglesas somente falavam dos antigos direitos e liberdades.
As Declarações americanas reconhecem um rol bem maior de direitos inatos e inalienáveis a todos desde o nascimento. Já que o modelo adotado pelas Declarações americanas não viria das leis inglesas, Jellinek volta- se às concepções de direito natural da época. Antes, ressalva que as antigas concepções de direito natural não haviam sido desenvolvidas para serem confrontadas com o direito positivado (ex.: Ulpiano visualizava a igualdade dos homens pelo direito natural e aceitava a escravidão como instituto do direito civil, bem como Locke na Constituição da Carolina do Norte) (Jellinek, 2000, p. 77-79).
A origem de direitos universais “do homem” estaria na liberdade religiosa das colônias anglo-americanas, especialmente no Congregacionismo de Roberto Brown – final do séc. XVI na Inglaterra – origem da forma primitiva de Independentismo. Trata-se da ideia de separação entre a Igreja e o Estado, bem como da autonomia para cada comunidade. O marco, na Inglaterra, do desenvolvimento desse pensamento foi a submissão do agreement of the people ao Conselho geral do exército de Cromwell em 28 de outubro de 1647. O agreement, transformado em projeto e apresentado ao Parlamento inglês, continha a proposta de limitar o Parlamento e deixar as questões religiosas a cargo da consciência individual.
Esses “pactos de estabelecimento” foram realizados pelos padres peregrinos congregacionistas na fundação das colônias inglesas no novo mundo que criaram contratos em conformidade com seus princípios eclesiásticos e políticos. Os pactos reconheciam e garantiam a liberdade religiosa. Eles foram celebrados tanto em Salem, fundada por puritanos em 1629, Massachussets, como em Providence, fundada em 1636 por Roger Williams, com base no ideal de que “a consciência do homem pertence a ele mesmo, não ao Estado”. De um modo ou de outro os pactos regulamentavam somente assuntos civis, daí teria surgido “naturalmente” a forma de democracia direta (Jellinek, 2000, p. 79).
A liberdade religiosa absoluta buscada por Roger Williams somente foi reconhecida oficialmente por meio do Código de Rhode Island (1647) e pela Carta (1663) que Carlos II outorgou às colônias de Rhode Island e Plantações de Providence. A Europa só viveria algo assim com as Máximas de Frederico da Prússia em 1740. O princípio da liberdade religiosa teria alcançado na América uma consagração jurídico-constitucional. O direito à liberdade de consciência proclamava o nascimento de um “direito do homem”. Jellinek observa que a ideia de positivar tais direitos não foi política, foi, todavia, religiosa. Segundo o autor, é na verdade Roger Williams, e não Lafayette, o primeiro apóstolo dos “direitos do homem” (Jellinek, 2000, p. 80).
A força dos acontecimentos históricos ajudou a dar ênfase às teorias do direito natural. Jellinek critica a abstração desses direitos e aponta para a exigência de uma lista de direitos fundamentais reconhecidos expressamente pelo Estado. Com o desenvolvimento econômico das colônias, surgiram mais medidas na tentativa de restringi-las, mesmo diante do reconhecimento dos americanos como cidadãos ingleses. Neste momento, já existia a ideia de liberdade de consciência, bem como o reconhecimento de que as pessoas conservam em sociedade seus direitos - direitos reconhecidos pelo Estado e contra o Estado (Jellinek, 2000, p. 80-86).
As tentativas de limitar as colônias impulsionaram o movimento de declaração desses direitos. Essas declarações reconheciam direitos de liberdade pessoal, propriedade, consciência, direitos de liberdades individuais (imprensa, reunião, estabelecimento), reconheceram também direitos de petição, proteção legal, procedimento judicial aplicável e garantias política, em geral, direitos públicos dos indivíduos. Os textos previam ainda o princípio da separação dos poderes e da responsabilidade dos funcionários públicos, temporalidade da ocupação dos cargos e limites ao exercício. A soberania é do povo e a constituição deve ser formulada por todos. Jellinek aponta para as contradições na utilização dos termos man . freeman, no lugar do termo citizen(2000, p. 87-89). Os termos originais davam margem à mencionada negativa da humanidade de alguns grupos humanos (pela raça, pelo gênero etc.).
Enquanto os americanos proclamavam o que já possuíam, os franceses declaravam o que desejavam construir, esta seria a maior diferença entre as declarações. Então, por que a doutrina dos direitos originários do homem alcançou grande importância? Jellinek apontou para a forte oposição às monarquias com tendências absolutistas. Para ele, a doutrina de Locke somente exerceu maior influência depois da Revolução Francesa, com as transformações que ela provocou. O Direito Romano não logrou penetrar na Inglaterra. Contudo, a Reforma e a atuação da Igreja provocaram reflexões no sentido da limitação do Estado (Jellinek, 2000, p. 96).
A resposta de Émile Boutmy à tese sustentada por Jellinek, acerca de contradição entre as Declarações de direito e aos princípios do Contrato social, parece sustentável (Boutmy, 1907, p. 122). Ele defende que a filosofia de Rousseau e as máximas do Contrato social poderiam ter influenciado parte dos artigos da Declaração Francesa de 1789. Segundo Boutmy, a Declaração não é em nada contraditória com princípios do Contrato social. O Contrato social representaria convenção entre duas personagens, uma abstrata (a totalidade de indivíduos) e a outra concreta (a unanimidade de indivíduos considerados isoladamente). As consequências do Contrato seriam a constituição de um corpo político, composto pelo Estado (ou soberano) e pelos cidadãos (ou sujeitos), e o estabelecimento da relação entre os membros desse corpo político. O elo entre eles (Estado e cidadãos) consistiria na alienação completa do indivíduo, sua personalidade e seus bens para o Estado e em seguida na reconstrução do indivíduo pelo Estado, com a garantia de tudo o que fosse necessário para assegurar a cada um o igual gozo dos direitos. É por isso que o cidadão seria mais livre antes do Contrato que depois (1907, p. 124-125).
Assim como a Declaração, de acordo com Boutmy, a essência do Contrato seria a igualdade de direitos a todos os cidadãos, o fundamento da lei na necessidade de manutenção da isonomia entre eles e a inafastável generalidade da lei. Isso afastaria qualquer ideia de contradição entre as Declarações de direito, especialmente a Declaração Francesa de 1789, e aos princípios do Contrato social e a filosofia de Rousseau (1907, p. 125).
A busca pela origem da Declaração Francesa de 1789 é ao mesmo tempo alicerce para visão histórica dos direitos humanos? A Declaração Francesa de 1789 não deve ser reduzida à mera cópia das Declarações americanas e isso é contemporizado por Jellinek ao responder as críticas de Boutmy. Um exemplo disso é o fato de que a Constituição Francesa de 1789 e a Americana de 1776 são completamente distintas. Além disso, a Declaração de 1789 foi a primeira a estender os direitos reconhecidos a todos os seres humanos, diferentemente das Declarações americanas que protegiam somente seus cidadãos.
A leitura mais atenta da Declaração Francesa de 1789 permite observar que foi feita uma opção de fundamentação dos direitos. Quando a Declaração Francesa se refere a direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem (les droits naturels, inaliénables et sacrés de l’Homme) no seu preâmbulo e quando retoma a referência aos direitos naturais nos artigos 2º e 4º[3], ela opta por uma fundamentação jusnaturalista dos direitos. Outro ponto importante de mencionar é a afirmação de que os direitos foram declarados na “presença e sob os auspícios do Ser Supremo“. Ao fazer esta escolha, a Declaração Francesa se afasta do caráter abstrato do universalismo que, muitas vezes, é atribuído a ela.
A leitura comparativa entre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não permite afirmar que há uma herança axiológica imediata. No máximo, é possível afirmar que o texto francês é um documento precedente, assim como tantos outros (a exemplo do cilindro de Ciro, da Magna Carta do Reio João Sem Terra etc.). É preciso lembrar que a Declaração Universal de Direitos Humanos foi criada pela Resolução (n. 217 A III) aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e como tal, constrói uma ética internacional que deve ser seguida por todos os seus Estados-membros. De fato, não há precedentes de documento declaratório de direitos com tamanha pretensão e extensão. Vale pontuar a criação da Declaração Americana de Direitos e Deveres Humanos alguns meses antes da Declaração das Nações Unidas, mas cuja extensão está englobada nesta última. A Declaração de 1948 das Nações Unidas é apresentada como o documento que traz a primeira afirmação mundial da dignidade e da igualdade inerentes a todos os seres humanos.
A criação da DUDH foi objeto da primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1946. O Comitê de redação da Declaração era formado por um grupo de trabalho composto por René Cassin (França), Peng-Chun Chang (China), Charles Malik (Líbano), John Humphrey (Canadá) e Eleanor Roosevelt (EUA). O grupo de trabalho foi presidido pela ex-primeira dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt e a primeira versão e o texto final da Declaração foram escritos pelo francês René Cassin.
Segundo os arquivos das Nações Unidas, o Sr. Peng-Chun Chang foi capaz de influenciar os demais delegados a remover todas as alusões à natureza e a Deus da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O diplomata explicou o conceito chinês de direitos humanos aos outros delegados e “resolveu de forma criativa muitos impasses no processo de negociação, empregando aspectos da doutrina confucionista para alcançar compromissos entre facções ideológicas conflitantes” (United Nations, 2019). A maior preocupação do Sr. Chang era de fato uma linguagem universal na Declaração. Ele introduziu o conceito de consciência como uma constante humana universal e defendeu que até os ateus deveriam se sentir representados na DUDH.
A primeira reunião da Comissão, em 1947, foi relatada nas memórias de Eleanor Roosevelt:
O Sr. Chang era um pluralista que apoiava com grande charme que não existe um único tipo de realidade suprema. A Declaração, segundo ele, não deve refletir apenas as ideias ocidentais, e o Sr. Humphrey deve adotar uma abordagem eclética. Sua observação, embora dirigida ao Sr. Humprhey, foi, de fato, dirigida ao Sr. Malik, que logo respondeu e explicou a filosofia de Tomás de Aquino. O Sr. Humphrey empenhou entusiasticamente no debate e lembro que, em um momento, o Sr. Chang sugeriu que a Secretaria pudesse passar alguns meses estudando os aspectos fundamentais do confucionismo (Nations Unies, 2017) [4].
Uma outra nuance desta mesma questão está no debate sobre a natureza ocidental dos direitos humanos. Este ponto já mereceu momento próprio de aprofundamento pela autora[5].
Diante do exposto, não há argumentos inafastáveis que confirmem a herança axiológica exclusiva da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão na Declaração Universal de 1948. O debate entre Boutmy e Jellinek evidenciam características da Declaração Francesa que não são observadas na Declaração de 1948, portanto, ela é de fato singular nos seus moldes. Ademais, a redação da DUDH alcança a abstração da universalidade, em especial, devido às intervenções da delegação chinesa no texto. Enquanto a Declaração Francesa faz explícita opção por considerar os direitos declarados como direitos naturais, afastando-se desse ideal universalista que define a DUDH. Esta análise nos coloca uma questão importante, ainda que a DUDH não tenha optado por uma linha de fundamentação, a fim de garantir sua adesão universal, estamos fadados a sempre buscar na teoria fundamentadora para os direitos humanos ali declarado? O filósofo argentino, Eduardo Rabossi, propõe outra perspectiva. Trata-se da teoria naturalizada dos direitos humanos.
3. Teoria dos direitos humanos naturalizada
Os estudos acerca dos direitos humanos tratam desde as suas características até a própria questão da existência desses direitos. Uma das possíveis formas de pesquisar a negativa dos direitos humanos é quando os estudos estão relacionados aos regimes totalitários. A partir do séc. XX a filosofia dos direitos humanos passou a ser objeto de críticas radicais. A rejeição sistemática dos fundamentos dos direitos humanos reforçou os discursos de superioridade, a exemplo dos regimes: fascista (superioridade absoluta do Estado), nazista (superioridade da raça) e stalinista (superioridade ideológica de certa classe). O marxismo soviético na prática ainda se baseava no poder autoritário, apoiado em uma nova camada, em nova classe.
A criação de uma nova classe dominante é apresentada por Claude Lefort (Élements d’une critique de la burocratie), bem como por autores como Milovan Djilas (A nova classe dirigente) e Marc Paillet (Marx contre Marx, La société technobureaucratique) etc. Quanto ao poder autoritário, ele estabeleceu uma ditadura sobre o partido e sobre o Estado. No lugar de desaparecer, o Estado persistiu em todos os seus aspectos (justiça, polícia, defesa nacional, gestão da economia etc.), apoiando-se em três pilares: no aparelho do partido (Stalin como secretário-geral); na enorme burocracia do Estado (dirigismo e centralização econômica) e na polícia (que pré-fabrica numerosos processos políticos e executa os expurgos) (Schwartzenberg, 1979, p. 91). De modo geral, o totalitarismo cria, na expressão de Hannah Arendt, o homme sans âme[6]. O regime desconstrói a personalidade do ser humano e o lança a uma personalidade jurídica vazia e manipulada de acordo com o tipo de superioridade instaurada.
Segundo Costas Douzinas (2009), há muitos paradoxos nos direitos humanos, pois se estes direitos triunfaram a partir do final do comunismo, o que dizer às pessoas que ainda padecem? Para Douzinas os direitos humanos são uma ideologia que pretende despolitizar a política para manter o sistema. Por isso, o desafio atual dos direitos humanos é voltar à missão original de proteção da dignidade e igualdade.
A questão da existência dos direitos humanos pode referir-se à justificação moral. Os direitos humanos existiriam quando houvesse reconhecimento social e promulgação legal, esta seria uma forma de existência. Outra forma para que os direitos humanos existam seria a necessidade de razões morais que justifiquem ou fundamentem os requisitos morais constitutivos da natureza desses direitos, ainda que a existência dos direitos humanos independa do êxito dessa justificação filosófica. O fracasso na tentativa de descoberta das razões de existência dos direitos humanos significaria simplesmente que ainda há algo a descobrir (Rabossi, 1990, p. 167).
Obrad Savić apresenta o artigo de Eduardo Rabossi – Human Rights Naturalized e ratifica o argumento do autor de que os filósofos devem pensar a cultura dos direitos humanos como algo novo e criado pelo mundo pós- Holocausto (pós-crimes em massa). Para Rabossi, filósofos como Alan Gewirth estariam equivocados ao argumentar que os direitos humanos não poderiam depender de fatos históricos. A mudança do mundo, bem como o fenômeno dos direitos humanos transformaram os esforços voltados à fundamentação dos direitos humanos em algo “fora de moda” e irrelevante (Savić, 2013, p. 69).
Rabossi investiga os argumentos acerca da necessidade de fundamentação, suporte ou justificação racional dos direitos humanos (1990, p. 159-160). Os fundamentalistas, como denomina, sustentam que: a fundamentação moral dos direitos humanos pressupõe uma contribuição filosófica importante para a existência da teoria dos direitos humanos; os direitos humanos são tipos de direitos morais; os direitos humanos são formados a partir de um princípio moral ou de um conjunto deles. Rabossi observa que as fundamentações não se adéquam aos fatos e não são suficientemente persuasivas.
Os direitos humanos seriam “fatos do mundo”. Ao constatar as violações a direitos humanos pode-se ficar triste, rechaçá-las, dar-se opiniões a respeito etc. Além disso, reconhece-se a existência de grupos e movimentos defensores dos direitos humanos e diante disso é possível criticá-los, unir-se a eles etc. Valora-se os comportamentos utilizando os direitos humanos como estandartes. Estes são exemplos que, segundo Rabossi, fazem dos direitos humanos fatos do mundo. Eles formam nossa visão de mundo, pois guiam o modo de valorar aspectos importantes da vida (pessoais, sociais e políticos). Para o autor argentino “[…] existe una floreciente cultura de derechos humanos en el mundo. Formamos parte de ella. Nos encontramos inmersos en ella” (1990, p. 159). A criação das Nações Unidas (1945) foi o principal marco do fenômeno dos direitos humanos, afinal ela surgiu com o propósito de criar uma comunidade planetária.
A Organização das Nações Unidas regulamenta as relações amistosas entre as Nações baseada na igualdade e na autodeterminação dos povos, bem como toma medidas para reforçar a paz. Além de declarar princípios, a Carta da ONU cria órgãos (Assembleia Geral, Secretaria Geral, Conselho de Segurança etc.) com atribuições próprias. A preocupação da Carta com os direitos humanos decorre do compromisso que os Estados-membros assumem de cooperar com a ONU. A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) iniciou o complexo processo de codificação dos direitos humanos. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos são os instrumentos legais básicos desse processo. O reconhecimento legal dos direitos humanos não deve ser considerado como mera listagem de direitos, pois também cria entes, órgãos, comissões, grupos, agências, comitês etc. dotados de atribuições e jurisdição. Há estruturas similares no âmbito regional (União Europeia – UE, Organização dos Estados Americanos - OEA, União Africana - UA).
A fim de desenhar o fenômeno dos direitos humanos, Rabossi divide os eixos em “sincrônicos” e “diacrônicos”. Os primeiros são: a) o sistema normativo positivo (tipos de normas, tipos de direitos); b) o sistema institucional positivo (agências e cortes); c) o sistema informal; d) as forças ideológicas e políticas operativas dentro do sistema e sobre o sistema; e) o sistema universal diante dos sistemas regionais; f) a funcionalidade de todo o sistema; g) os problemas legais e conceituais que afetam o sistema normativo (lagunas, incoerências, «modificações» conceituais). Nos elementos diacrônicos estão: a) a evolução dos direitos recém-positivados (a partir de 1945); b) a aparição e possíveis soluções de certos problemas mundiais vexatórios (descolonização, discriminação, apartheid,autodeterminação, desastres ecológicos, educação, fome etc.); c) a possível evolução de todo o sistema dos anos futuros; d) as perspectivas de uma comunidade mundial pacífica (1990, p. 163).
Diante de tudo, qual é a transcendência do fenômeno dos direitos humanos?
Desde un punto de vista legal: — la promulgación legal de los derechos humanos: su positivización; — el reconocimiento legal (positivo) de las personas individuales (y ciertos grupos) como sujetos propios de la ley internacional; — el establecimiento de un sistema de inspección sobre los Estados (con respecto a las violaciones de los derechos humanos); — la creación de agencias internacionales con jurisdicción propia; — la existencia de sanciones (denuncia pública, bloqueo económico, «presión» política, etc.); — el funcionamiento de una confederación mundial; — la creación de un sistema normativo positivo con diversos niveles de generalización.
Desde un punto de vista político: — la modificación sustancial de la idea tradicional de la soberanía de Estado como ilimitada y libre de cualquier control externo; — un avance progresivo hacia la construcción real de una comunidad mundial; — un avance gradual hacia un control internacional de las relaciones internacionales (políticas y económicas); — la «difusión» de la idea de «vivir en una comunidad mundial».
Desde un punto de vista teórico: — el reconocimiento consensuado de una serie de fines y valores universales; — la afirmación, a través de una promulgación legal, de esa serie de valores y fines; — la «confluencia» de tendencias opuestas de una tradición humanística común. (1990, p. 164-165).
O reconhecimento legal é condição necessária, mas não suficiente, para o desfrute pleno dos direitos. Mesmo assim, atualmente não é preciso recorrer a argumentos morais como as únicas razões para denunciar a ilegitimidade de alguma legislação e de decisões do Estado. A abertura para discussões acerca dos melhores métodos de organizar as sociedades políticas e civis é sinal essencial da promulgação legal dos direitos humanos. A questão da necessidade de fundamentalização dos direitos humanos é tese sem interesse ao fenômeno dos direitos humanos. Segundo Rabossi, é possível que os fundamentalistas estejam avançando em um fato do mundo superado. Esta postura abre espaço para outro campo da perspicácia filosófica: a) o desenho de um marco operativo conceitual com a finalidade de descrever e valorar o fenômeno dos direitos humanos; b) a ajuda para esclarecer o conteúdo dos termos-chave, as dificuldades normativas e os problemas de criação; c) a elaboração da importância filosófica do “ponto de vista teórico” etc.
Os debates a respeito dos métodos políticos conflituosos no momento de organizar as sociedades e sobre a distribuição das liberdades e dos bens são importantes dentro do fenômeno dos direitos humanos. Fenômeno ideologicamente constituído. Veja-se que a criação dos direitos humanos a partir da DUDH insere propostas muito mais complexas sobre a condição humana que as declarações unilaterais que a precederam.
Considerações finais
Os direitos humanos constituem um campo de predominância nas práticas da sociedade internacional, dos Estados e das comunidades. A necessidade recorrente de sempre justificar a origem das questões que envolvem direitos humanos no pensamento europeu, afasta a análise mais crítica. A mudança do ponto de partida se impõe.
Outro ponto está no rompimento da necessidade inafastável de fundamentação filosófica dos direitos humanos. Tradicionalmente, a filosofia dos direitos humanos os fundamenta sobre as bases jusnaturalista (direitos naturais), historicista (direitos históricos) e/ou ética (diretos morais). Além das críticas já conhecidas a cada uma destas fundamentações, há autores – a exemplo do argentino Eduardo Rabossi – que apresentam os direitos humanos como fatos do mundo.
A tese desafia os filósofos (e demais estudiosos dos direitos humanos) a pensar a cultura dos direitos humanos como algo criado pelo mundo pós- Holocausto (pós-crimes em massa), cujas violações somente reforçariam a existência. A valoração de comportamentos, a criação de estruturas, programas, políticas públicas, fazem dos direitos humanos fatos do mundo. A criação das Nações Unidas (1945) marca o fenômeno dos direitos humanos, por isso, não há como apontar com argumentos sólidos que eles derivam da Declaração Francesa de 1789. O reconhecimento legal é necessário, porém insuficiente para o desfrute pleno dos direitos. Mesmo assim, o fracasso das fundamentações não consegue afastá-los como fatos do mundo.
A Declaração Francesa de 1789, influenciada pelo contratualismo de Rousseau, não deve ser reduzida à mera cópia das Declarações americanas. Do mesmo modo, a DUDH não deve ser reduzida à cópia da Declaração Francesa.
O questionamento sobre os direitos humanos e suas características é essencialmente conflito de ideologias. A teorização sobre a questão da ideologia é diversa. O primeiro aspecto apresenta-se nos significados fraco e forte de ideologia. No primeiro a ideologia aparece como fonte das ideias, local onde são designados os sistemas de crenças políticas e valores. O segundo significado (forte) corresponde às contribuições da crítica marxista de distorção do conhecimento. Todavia, é possível visualizar diferenças internas da ideologia – ideologias historicamente orgânicas e ideologias arbitrárias. As ideologias arbitrárias precisam ser desqualificadas pela análise crítica, enquanto a ideologias historicamente orgânicas constroem os campos dos avanços científicos, onde as representações da realidade são validades (ao menos, provisoriamente).
O sentido negativo de ideologia, baseado na divisão do trabalho, deve ser superado. Embora as ideologias dominantes nem sempre sejam reflexo da realidade social, reduzi-las ao sinônimo de “falsa consciência” separa a crítica da ideologia da busca por autonomia. Em outras palavras, condena-se à impotência e entrega-se o poder da ideologia a outro grupo social.
A abstração dos direitos humanos, em especial a característica universal, não deve paralisar-se na noção pejorativa de ideologia. É imprescindível contrastar esses conteúdos com as práticas sociais e impulsionar o processo crítico das ideias. A respeito da universalidade, por exemplo, pode-se partir da útil distinção ente universalidade nos direitos humanos e como universalidade dos direitos humanos. Sendo a universalidade inerente aos direitos humanos, resta centrar os esforços na tarefa de identificar as ideologias arbitrárias, negadoras da humanidade e repensar o significado da extensão do acolhimento destes direitos nas ordens jurídicas, sempre em cotejo com as práticas sociais.
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Notas
Também é autora de O princípio da prevalência dos direitos humanos. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2016, v.1. p. 276; “The pan-american contribution to the internactional regulation of citizenship” In: Le concept de citoyenneté en droit international/The Concept of citizenship in international law.1 ed.The Hague/Haia: Academia de Direito Internacional da Haia, 2018, v.1, p. 397-422; “Entre l’universalité des droits humains et le discours relativiste : Probleme apparemment insurmontable”. Revista Jurídica da Presidência. v.18, p.509 - 530, 2016.
Autor notes
Também é autora de O princípio da prevalência dos direitos humanos. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2016, v.1. p. 276; “The pan-american contribution to the internactional regulation of citizenship” In: Le concept de citoyenneté en droit international/The Concept of citizenship in international law.1 ed.The Hague/Haia: Academia de Direito Internacional da Haia, 2018, v.1, p. 397-422; “Entre l’universalité des droits humains et le discours relativiste : Probleme apparemment insurmontable”. Revista Jurídica da Presidência. v.18, p.509 - 530, 2016.