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Subjetividade e Diferença Sexual: Análises do Falogocentrismo na Psicanálise e no Feminismo Pós-estruturalista

Subjectivity and Sexual Difference: Analyzes of Phallogocentrism in Psychoanalysis and Poststructuralist Feminism

Laura Christofoletti da Silva Gabriel
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Mériti de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Gustavo Angeli b.
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Subjetividade e Diferença Sexual: Análises do Falogocentrismo na Psicanálise e no Feminismo Pós-estruturalista

Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology, vol. 56, núm. 1, e1728, 2022

Sociedad Interamericana de Psicología

Recepción: 02 Noviembre 2021

Aprobación: 04 Abril 2022

Resumo: A leitura sobre a diferença sexual ocupa lugar central nas teorias sobre a constituição subjetiva e na construção do falogocentrismo. Nosso objetivo neste artigo é problematizar a leitura sobre a diferença sexual questionando o pressuposto falogocentrico como referência à elaboração da subjetividade, bem como, o binarismo e a hierarquia que ancoram o par masculino e feminino. Realizamos uma pesquisa qualitativa teórica na qual selecionamos obras de autores referenciados na psicanálise e analisamos as relações entre a diferença sexual e o sujeito, bem como, selecionamos obras de autores contemporâneos referenciados na psicanálise contemporânea e nos estudos feministas pós-estruturalistas considerando suas críticas ao falogocentrismo. Concluímos pela necessidade de questionar a separação entre natureza e cultura, corpo e simbólico, sexo e gênero, para colocar em bases críticas a leitura e o trabalho sobre a diferença sexual.

Palavras-chave: Falogocentrismo, Subjetividade, Feminismo, Binarismo.

Abstract: Reading about the sexual difference occupies a central place in theories about the subjective constitution and phallogocentrism construction. The article problematizes the reading of sexual differences. It questions the phallogocentric assumption regarding the elaboration of subjectivity, binarism, and hierarchy that anchors the male and female pair. It was possible to perform the qualitative-theoretical research by selecting works of authors referenced in psychoanalysis to analyze the relationship between sexual difference and the subject. Also, it was possible to select works by contemporary authors regarding contemporary psychoanalysis and poststructuralist feminist studies by considering their phallogocentrism criticisms. It is possible to conclude by the need to question the separation between nature and culture, body and symbolic, sex and genderto critically base the reading and work on sexual difference.

Keywords: Phallogocentrism, Subjectivity, Feminism, Binarism.

Introdução

“Faz-de-conta”, dizem as crianças em meio a uma brincadeira. Com um pedaço de tecido fazem uma cabana ou um castelo, um galho é transformado numa espada, um par de tênis se transforma num travessão para gols e água com areia pode ser uma comida deliciosa, tudo pelo faz-de-conta. Mesmo no momento atual, com a pandemia da doença Covid-19, é possível ver crianças brincando em diversos lugares. Ao conversar com elas, as meninas costumam dizer que “não podem” brincar de tudo que gostariam, como futebol, handbol e basquete, por que são brincadeiras de meninos, mas que elas não se importam, brincam mesmo assim. Os meninos geralmente dizem que não podem brincar de boneca, casinha ou panelinhas porque as pessoas dão risadas. A partir dessas cenas e da escuta dessas falas, percebemos que poderia haver algo a ser explorado sobre a diferença sexual.

Desde a descoberta da gravidez, na cultura ocidental, vemos que a descoberta do sexo do(a) bebê ainda no útero é tema em enigma, gera expectativa e festividade temática, “chá revelação” como denomina-se no Brasil. Na infância, é comum que mães, pais, amigos ou parentes, ofereçam brinquedos às crianças, geralmente esses brinquedos são seleccionados e categorizados com critérios desde a cor até a destinação específica para os meninos ou para as meninas. Ou seja, os destinados às meninas em geral são bonecas, panelinhas, e outros objetos domésticos em miniatura. Os destinados aos meninos são armas, animaizinhos como bois e vacas, carros, tratores e caminhões. A depender da situação temos brinquedos em comum, peças de montagem e encaixe, instrumentos musicais e papéis para desenhar e pintar. Conforme vamos crescendo, vamos percebendo, com ainda maior nitidez, que existem diferenças sexuais que nos marcam ao longo da vida, na escolha profissional, vemos que existem profissões predominantemente masculinas e outras predominantemente femininas, nas organizações empresariais geralmente os cargos de chefia e liderança são ocupados por homens e a diferençasalarial também é queixa das mulheres que recebem salários inferiores mesmo quando ocupam o mesmo cargo.

Assim, no decorrer dessas experiências que vivenciamos ao longo da vida e que fazem parte no nosso desenvolvimento, podemos perceber que as diferenças sexuais e suas reverberações na constituição subjetiva marcam os sujeitos de tal maneira nos laços sociais que nos movem a pensar no tema de investigação posto neste artigo.

Consideramos que a relação com brincadeiras e diferença sexual, não configuram uma experiência única, porém dizem respeito à maioria das famílias, configurando o modo de funcionamento falogocentrado que opera até os dias atuais nas sociedades e nas configurações subjetivas. O falogocentrismo diz respeito à relação de poder que produz a idealização do falo e do logos como referências últimas aos modos de entender a subjetividade e o conhecimento moderno (Derrida, 2001; 2004). Ou seja, a maioria das teorias sobre os modos de conhecer e de subjetivar presentes no mundo moderno atribuem ao falo e ao logos a origem e o sentido os quais carregam valores e sobrepõem, em termos valorativos, o masculino em relação ao feminino. (Peters, 2000; Chauí, 1996; Derrida, 1992, 2004; Derrida & Roudinesco, 2004; Butler, 2019).

Judith Butler (2019), em Problemas de Gênero, questiona a gramática substantiva do gênero e aponta que os atributos de masculinidade e de feminilidade configuram exemplos do sistema binário que mascara o discurso hegemônico do masculino. Uma questão trazida por Butler é pensar até que ponto a relação binária não está fadada a reproduzir-se interminavelmente, e a autora também questiona quais seriam as possibilidades de ruptura do próprio binarismo ancorado em oposições. “O deslocamento estratégico dessa relação binária e da metafísica da substância em que ela se baseia pressupõe que a produção das categorias de feminino e masculino, mulher e homem, ocorra igualmente no interior da estrutura binária” (Butler, 2019, p.53).

De forma específica, diversos(as) autores(as) apontam que o binarismo e a hierarquia atravessam os modos de conhecer e de subjetivar predominantes na rede social ocidental moderna, bem como, realizam a crítica a essas modalidades de conhecimento e de subjetivação (Derrida, 2004; Foucault, 1984; 1985; 1988; 1996). O binarismo e a hierarquia são modos de funcionar que operam a partir de pares de oposição - natureza e cultura; corpo e mente; masculino e feminino; sujeito e objeto, dentre outros - sendo que um dos membros desse par ocupa o lugar de poder sobre o outro. Esse modo de funcionar é muito presente e atravessa os modelos de conhecimento e de subjetivação hegemônicos, construindo de forma específica o que denominamos de masculino e de feminino considerando o parâmetro da diferença sexual apoiado no falogocentrismo, no binarismo e na hierarquia dos corpos.

Em outras palavras, a leitura de que a diferença sexual se ancora na diferença biológica entre homem e mulher atravessa a maioria das teorias sobre a constituição subjetiva. Porém, teorias como a psicanálise, trazem problematizações a essa concepção, sendo que na obra de autores como Sigmund Freud e Jacques Lacan localizamos questões importantes que questionam a organização subjetiva a partir das referências do corpo e do inconsciente. Ou seja, na psicanálise, autores como os citados acima problematizam a leitura da diferença sexual consoante a críticas às concepções hegemônicas de conhecimento e de subjetividade modernas que organizam o mundo ocidental. Entretanto, é necessário reconhecer que, na extensa obra que produziram, eles mantêm leituras complexas sobre a diferença sexual e, em alguns momentos, utilizam-se de referências binárias e falologocentradas e, em outros, fazem críticas a essas referências. Ainda, localizamos autores e autoras contemporâneos como a feminista e filósofa pós-estruturalista Judith Butler (2019) e a psicanalista contemporânea Márcia Arán (2009), que problematizam as leituras da psicanálise que remetem a subjetividade como atravessada pela diferença sexual e pelo falogocentrismo que configuram o masculino e o feminino.

No presente artigo o objetivo é problematizar a leitura sobre a diferença sexual e questionar o pressuposto falogocêntrico como referência à elaboração da subjetividade, bem como, o binarismo e a hierarquia que ancoram o par masculino e feminino. Perguntamos sobre a recorrência ao falogocentrismo como matriz universal utilizada para a elaboração de teorias sobre a subjetividade que sustentam o binarismo e a hierarquia postos, de forma específica, no par masculino e feminino. Entendemos que a manutenção da referência falogocentrada se associa a manutenção de específicas concepções sobre o sujeito que ancoram relações de poder e o status quo na sociedade contemporânea. Também entendemos que recorrer a leituras que possam criticar essas concepções e suas teorias correlatas podem contribuir para com a modificação dessas relações de poder ampliando as leituras sobre a subjetividade e a diferença sexual.

Para lidar com a proposta posta acima, o presente estudo configura uma pesquisa qualitativa e descritiva do tipo análise documental. Selecionamos obras e autores(as) que analisam a constituição subjetiva considerando a questão da diferença sexual, de forma específica, analisamos autores(as) que trabalham com a referência psicanalítica e a referência feminista pós-estruturalista. As obras selecionadas foram lidas e organizadas em referências temáticas sobre a diferença sexual, a hierarquia e o binarismo vinculados às construções do masculino e do feminino, ocorrendo as comparações entre esses temas e a constituição subjetiva. O campo de análise do material se reporta à psicanálise, filosofia pós-estruturalista, história, pois recorremos a teorias e conceitos psicanalíticos e pós-estruturalistas. Em outras palavras, neste artigo, construído por meio de referências metodológicas qualitativas e teóricas, selecionamos e analisamos obras de Freud e de Lacan a partir do viés da diferença sexual, bem como, selecionamos e analisamos obras da filósofa pós-estruturalista Judith Butler e da psicanalista contemporânea Márcia Arán, considerando as problematizações direcionadas aos primeiros autores.

Subjetividade, Falogocentrismo: Algumas Leituras Freudianas

O surgimento da psicanálise se dá no seio da Modernidade, momento em que o discurso da ciência substitui o discurso teológico, e a subjetividade passa a ser entendida como constituída exclusivamente pela razão ede forma plena pela consciência, como apresenta Chauí (1996). É a partir desses pressupostos que a psicanálise se propõe a falar do subjetivo por meio do inconsciente, considerando o singular e o universal, articulando com temas tocantes ao social. O modelo clássico de ciência, que é o modelo hegemônico nas diversas áreas do conhecimento, apresenta uma concepção de sujeito e realidade calcados no binarismo cartesiano e apoiado na lógica formal e causal (Peters, 2000). Em contrapartida a esse modelo que ganhou hegemonia, outras estratégias de produção de conhecimento surgem numa tentativa de romper, ou a menos mostrar, um novo modelo onde a concepção de subjetividade também diz respeito ao sujeito marcado pelo inconsciente e a concepção de realidade também reconhece a singularidade e importância da realidade psíquica (Chauí, 1996).

Recordamos as/os leitoras(es) que a teoria freudiana tem seu pilar estruturante na sexualidade e no inconsciente, tema que não fica fora do mundo das crianças. Freud é disruptivo à medida que afirma que já nascemos seres de sexualidade e que as crianças se interessam demasiadamente por esse tema. Portanto, ao pensar na constituição subjetiva em Freud é também importante apresentar as pesquisas e teorias sexuais das crianças. Aqui apresentaremos recortes de textos freudianos que consideramos fundamentais para pensar a constituição subjetiva a partir das diferenças sexuais, são eles: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Organização genital infantil (1923), A dissolução do Complexo de Édipo (1924) e Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925). Esses textos foram escolhidos por acreditarmos que, dentro a extensa obra freudiana, eles ajudam a pensar a questão da constituição psíquica a partir da diferença sexual, colaborando na busca e tentativa de trabalhar o objetivo posto neste trabalho. A(o) leitora(or) perceberá que os textos foram organizados em ordem cronológica, isso justifica-se devido à própria construção teórica freudiana que atualiza suas ideias ao longo dos anos. O texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é considerado por muitos críticos freudianos um texto célebre e polêmico. Célebre por toda a novidade e densidade teórica do escrito e polêmico porque em sua época na qual a moral religiosa imperava, falar da sexualidade humana (especialmente das crianças), era/é um grande tabu. Neste artigo, recorremos ao segundo ensaio A sexualidade infantil, em que Freud (1905/1989h) observa que a vida sexual das crianças se manifesta a partir dos três ou quatro anos e que elas despertam para essa questão de forma espontânea, por causas internas.

Freud (1905/1989h) explora a questão da meta sexual na pulsão infantil que, segundo ele, é direcionada no sentido de produzir satisfação da zona erógena e considera assim a busca de objetos sexuais, que denominou de pulsões parciais. Assim, numa tentativa de demonstrar um retrato da vida sexual infantil, o autor aponta a necessidade de pensar que já na infância há uma escolha de objeto, escolha essa que será característica do desenvolvimento da puberdade, momento em que, na tentativa de atingir as metas da pulsão sexual, os empenhos se dirigem a uma só pessoa, assim, essa é a maior aproximação da forma definitiva da vida sexual que surge logo na infância.

No texto Organização genital infantil, já não se dá satisfeito com a afirmação de que o primado dos genitais não se realiza, ou o faz muito imperfeitamente, no período da primeira infância. A aproximação da vida sexual infantil àquela dos adultos vai muito adiante, e não se limita ao surgimento da escolha de objeto. Freud (1923/1989b) destaca que a principal característica dessa organização genital infantil constitui, ao mesmo tempo, o que a diferencia da definitiva organização genital dos adultos, consiste no fato de que para ambos os sexos, apenas um genital, o masculino, entra em consideração. Não há, portanto, segundo o autor, uma primazia genital, mas uma primazia do falo, para ele, a ausência de pênis é vista como resultado de uma castração, e o menino se acha ante a tarefa de lidar com a castração em relação a ele próprio.

Freud (1923/1989b) considera importante perceber as mudanças que a criança experimenta ao longo do desenvolvimento sexual, em que a polaridade sexual nos é familiar. Ele aponta que a primeira oposição é introduzida com a escolha do objeto, que naturalmente pressupõe sujeito e objeto, mas no estágio da organização pré-genital sádico-anal, não se pode ainda falar de masculino e feminino, pois prevalece a oposição entre ativo e passivo. No estágio da organização genital infantil seguinte, há masculino, mas não feminino; nesse momento, o autor aponta a existência de uma oposição binária: genital masculino ou castrado, já que somente ao se completar o desenvolvimento, na época da puberdade, a polaridade sexual coincide com masculino e feminino. Freud (1923/1989b) descreve muito bem o que compreende como o par binário e oposicional da diferença sexual, explicando que “[...] o masculino reúne o sujeito, a atividade e a posse do pênis, o feminino assume o objeto e a passividade” (p. 155).

No texto A dissolução do Complexo de Édipo, Freud (1924/1989a) ressalta a importância do complexo de Édipo como fenômeno central do período sexual da infância. O autor acrescenta, em 1924, que a organização genital fálica da criança sucumbe devido a essa ameaça de castração, pois o menino não acredita nessa ameaça a princípio, mas ao se deparar com o genital feminino tem de admitir que há falta do pênis, assim, ele explica que ao admitir a possibilidade de castração e perceber que a mulher é castrada, o menino põe fim a possibilidade de obter satisfação do complexo de Édipo. Ele finaliza o texto explicando que a menina aceita a castração como fato consumado, e o complexo de Édipo vai sendo abandonado porque o desejo não se realiza.

O texto Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, tem como proposta fazer marcações em relação à diferença sexual numa tentativa de reeditar o Édipo, ou preencher lacunas no que concerne ao Édipo na menina que, até então, Freud não havia elaborado. Ele já começa esse texto explicando que era de maior interesse examinar as configurações psíquicas da vida sexual na criança, “normalmente do sexo masculino” e que possivelmente na garota as coisas deveriam se passar de modo semelhante, mas com algumas diferenças. A seguir apresentaremos essas diferenças.

A indagação freudiana sobre como a menina abandona o primeiro objeto (a mãe) e toma então o pai como objeto, faz-lhe pensar que o complexo de Édipo da menina traz em si problemas a mais que no garoto, já que inicialmente a mãe é tomada como objeto para ambos, menina e menino (e para este se mantém no complexo edipiano). Freud (1925/1989c) aponta que há um contraste no comportamento de meninas e meninos sobre a primeira vez que se vê a região genital do sexo oposto. Com o menino, ele se mostra indeciso, desinteressado e numa postura de recusa, mas quando aparece a ameaça da castração, então, isso toma outra proporção. Já com a menina, num primeiro instante ela faz sua observação e toma sua decisão: “ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo” (p. 281).

Como já mencionado anteriormente, não é novidade verificar a teoria freudiana como apresentando aspectos binários, hierárquicos e falogocentrados, o que fica evidente ao percebermos os escritos nos textos citados acima. Em sua explicação sobre a diferença sexual durante a organização genital, nota-se que essa organização é desde sempre binária: ausência ou presença de falo, posição passiva e ativa, masculino e feminino. Com essa análise, o objetivo não é atribuir um “erro” ou um descrédito à teoria freudiana, cabe lembrar que esses textos, mesmo que sejam considerados à frente do tempo em que foram escritos, ainda carregam muitos valores morais desse tempo. Freud faz um exercício de descrever como os papéis sociais daquele tempo eram extremamente marcados e que, culturalmente já havia uma valorização do masculino sobre o feminino. O que chama a atenção na análise dos textos acima, é que o autor aponta como a diferença sexual é importante no desenvolvimento subjetivo, como essa diferença é binária e hierárquica e como, desde muito cedo, sujeitos são inseridos nessa lógica.

Entretanto, cabe destacar que os últimos textos freudianos apresentam alterações que nos possibilitam aberturas e críticas em torno da anatomia como destino à constituição e aos caminhos da sexualidade. “Aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia” (Freud, 1933/1989e, p.115). A masculinidade e a feminilidade são construções ao longo do desenvolvimento da sexualidade. Freud solicita a seus ouvintes “[...] familiarizarem-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas” (p. 115).

Freud, ao questionar a naturalização do sexo, gênero, masculino, feminino, ativo, passivo, desconstrói cristalizações em relação aos conceitos da feminilidade e masculinidade. Dessa forma, possibilita uma revisão de sua obra e a descoberta de novos e outros caminhos para se pensar a sexualidade.O autor não desconsiderou a necessidade de realizar uma releitura da feminilidade e masculinidade, porém, oscila em seus manuscritos ao sustentar que a teoria psicanalítica não é capaz de responder todos os questionamentos em torno da sexualidade feminina, não apresentando conceitos e hipóteses precisas sobre a constituição e o desenvolvimento da sexualidade e, ao mesmo tempo, propõe aberturas e diálogos sobre a temática.

Subjetividade, Falogocentrismo: Algumas Leituras Lacanianas

Jacques Lacan (1901-1981), médico e influente psicanalista francês nos ajuda a pensar sobre a questão da constituição subjetiva e a diferença sexual. Problematizaremos as concepções lacanianas que, ao tratarem da diferença sexual, insistem na lógica binária e falogocentrada.

Em Valor de significação do falo, Lacan (1957/1985) começa o texto fazendo uma articulação entre desejo, demanda, gozo e significante. Partindo da leitura freudiana, afirma que o desejo não é um efeito colateral, mas sim que está localizado numa relação com a cadeia significante, que se instaura e se propõe inicialmente na evolução do sujeito humano como demanda. Essa demanda está sempre ligada ao outro, pois é o significante da criança desejada que constitui o sujeito em seu ser, é aí que se constitui o ideal do eu, que marca todo o desenvolvimento psicológico de um sujeito. Ou seja, de acordo com a orientação lacaniana, é somente a partir do desejo do Outro que podemos falar em sujeito.

Sobre a função constitutiva do desejo, é importante atentar para o fato de que aquilo que se estrutura do sujeito passa sempre pela intermediação do mecanismo que faz com que seu desejo já seja, como tal, moldado pelas condições da demanda. Lacan (1957/1985) sugere, então, que o que vai sendo inscrito, conforme a história do sujeito, em sua estrutura, são as peripécias da constituição desse desejo, na medida em que ele está submetido à lei do desejo do Outro. Nessa articulação, poderíamos pensar não só na questão da constituição subjetiva atrelada ao Outro, mas em tudo o que esse Outro deseja para uma criança, desde sua orientação sexual (direcionada para a heteronorma), seu comportamento, suas escolhas e o seu brincar. Aliás, o objeto-brinquedo já vem com uma demanda (do Outro) intrínseca.

No Seminário 5, o falo também é lido a partir de uma função constitutiva, visto que é na dialética da introdução do sujeito em sua existência pura e em sua posição sexual que podemos deduzir o estabelecimento do falo como o significante fundamental, pelo qual o desejo do sujeito tem que se fazer reconhecer como tal, quer se trate do homem, quer se trate da mulher (Lacan, 1957-1958/1985). Aqui é importante nos atentarmos para o fato de que sustentamos que a teoria psicanalítica é falogocentrada justamente por estabelecer o falo como estruturante da constituição subjetiva, que também é binária, já que Lacan estabelece ‘homem’ e ‘mulher’ como as saídas possíveis ao desejo do sujeito.

De acordo com Lacan (1957-1958/1985), o desejo, seja ele qual for, tem no sujeito essa referência fálica. É o desejo do sujeito, mas na medida em que o próprio sujeito recebeu sua significação, ele tem que extrair seu poder de sujeito de um signo, e esse signo ele só obtém ao se mutilar de alguma coisa, por cuja falta tudo o mais será valorizado. Daí vem à máxima lacaniana: “O falo intervém como significante” (p. 290), e, mais adiante, percebemos que, na condição de significante, é sempre significante do desejo do Outro.

Mais uma vez, mesmo tendo elaborado sua teoria anos após Freud e numa sociedade que possuía um pouco mais de abertura para discutir questões sobre a diferença sexual e de gênero, ainda assim Lacan insiste na lógica falogocentrada, a constituição subjetiva a partir da ausência ou presença do falo (mesmo que o autor diga que o falo é significante, não é bem isso que se evidencia nos textos abaixo).

Fica claro, quando se observa as crianças, que elas exigem tudo (exigência impossível de satisfazer, logo, ao dar de cara com o impossível, vão entrando numa posição que Lacan denomina como mais ‘normatizadora’). É nessa dialética de entrada no sistema significante que Lacan aponta que não há nenhum outro desejo que a criança dependa mais do que o desejo da mulher, na medida em que ele é significado exatamente por aquilo que lhe falta.

É ao ser objeto exclusivo do desejo da mãe que se instaura uma barreira à satisfação do desejo da criança. Na constituição subjetiva, essa relação sempre retorna, seja como redução, seja como identificação dessa tríade. Assim, Lacan (1957-1958/1985) nos aponta que é à medida que a criança não renuncia a seu objeto que seu desejo não consegue se satisfazer. O desejo só consegue satisfação sob a condição de fazer uma renúncia parcial (tem de se tornar demanda), ou seja, desejo significado, e significado pela existência e pela intervenção do significante, ou seja, em parte, desejo alienado.

Lacan (1957-1958/1985) ensina que o caráter problemático deste significante particular, o falo, é que é apenas por intermédio de uma certa posição, assumida em relação ao falo (na mulher, como carente dele; e no homem, como ameaçado), que se realiza, necessariamente, aquilo que se apresenta como devendo ser o desfecho mais feliz. Aqui, ao falar sobre constituição subjetiva, percebemos o quanto Lacan valoriza o falo como estruturante e como responsabiliza o Outro por desejar pela criança (que ainda não é capaz de fazer isso por si só), e aí constatamos, mais uma vez, uma questão binária e hierárquica, que diz respeito ao falo “mulher carente, homem ameaçado” – a ideia da inveja do falo perdura de Freud a Lacan.

No texto De um e outro sexos, Lacan (1972/1999, p. 13) disserta sobre a diferença sexual, enfatizando a piori que “[...] a pequena diferença já é destacada desde muito cedo como órgão”. Para ele, essa diferença é inata e natural, pois “[...] os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos. Bem cedo, mais cedo do que se espera, esses indivíduos se distinguem, isso é certo” (p. 15). Dessa forma, Lacan reforça a ideia freudiana de que “anatomia é destino” e pontua que serão exatamente assim mais tarde: “homem” e “mulher”. Nesse mesmo texto, no entanto, o autor aponta que o que faz a diferença é o órgão, explicando que a diferença passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, e que, logo, o órgão também é um significante. O desenvolvimento dessa ideia é um tanto complexo e confuso; parece, por vezes, não haver consistência teórica por parte do autor, pois há momentos em que ele reforça que a diferença importa, que ela é percebida através de um órgão, mas um órgão é apenas um significante. Ao fim do texto, Lacan (1972/1999) aponta que não importa chamar de ‘x’ ou ‘y’, ‘homem’ ou ‘mulher’, mas sim como nos distinguimos um do outro. Ou seja, ele coloca em evidência a diferença, como algo a ser marcado e distinguido.

No seminário O homem e a mulher, apresentado no livro 18, Lacan (1971/2009) dá continuidade à questão da diferença sexual e descreve a identidade de gênero a partir da perspectiva “parecer homem e parecer mulher”. Ele inicia apontando que não é preciso esperar pela fase fálica para diferenciar uma menina de um menino, pois, desde muito antes, já não são iguais. Lacan continua seu seminário explicando que, para o menino, trata-se de, na fase adulta, parecer homem, e que é sobre isso que podemos interrogar o comportamento infantil: a criança orientando-se para esse “parecer-homem”. O autor explica que “[...] a identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres para o menino, e existem homens para a menina” (p. 33).

A partir da leitura desses textos, percebemos que Lacan trabalha com a diferença sexual a partir de referências binárias e falogocentradas, bem como explica a constituição subjetiva por meio de um desejo do Outro. Lacan tem evidentemente como referência sexual a mulher e o homem, e nada mais para além dessas possibilidades; a sua referência de constituição subjetiva é, portanto, calcada na heteronorma. De fato, hegemonicamente é, dessa forma, que vemos na sociedade moderna ocidental, parece haver na estrutura social apenas duas formas de existência: homem ou mulher, e isso fica bem marcado desde a tenra idade, desde a descoberta do sexo de um bebê. Porém, perguntamo-nos se Freud e Lacan não deixaram escapar dois pontos importantes: a) universalização e singularização e a b) subversão. Explicamo-nos: universalização e singularização porque, em várias passagens dos textos, parece existir um aspecto universalizante na explicação da constituição subjetiva; em alguns momentos, parece difícil pensar na singularização, no ‘um a um’, que é tão caro à psicanálise contemporânea. Já em outras passagens, parece de fato não haver possibilidade para pensar gênero, sexualidade e desejo para além da matriz heterossexual. E sobre um aspecto subversivo, que também é tão importante para o pensamento psicanalítico, em nossa leitura e análise desses textos, achamos difícil de encontrá-la. Lacan, que desenvolveu seu pensamento numa sociedade intelectual francesa que já vinha há algum tempo debatendo e pensando questões feministas, de gênero e sexualidade, não utiliza conceitos psicanalíticos favoráveis a essa discussão para estar à frente de seu tempo, por outro lado, um caráter conservador sobre a diferença sexual aparece com maior intensidade.

Ao longo da leitura desses textos, deparamo-nos com contradições, ambiguidades e algumas questões paradoxais. As noções binárias (‘falo versus não falo’) e hierárquicas (entre quem tem e quem não tem o falo) estão presentes em todos os textos selecionados, de forma que podemos concluir que a psicanálise (freudiana e lacaniana) teorizou sobre o comportamento hegemônico ocidental, tendo inúmeras possibilidades para articular de outro modo que não por meio dessa rede, mas, por razões impossíveis de se apreender, não o fizeram.

Entendemos que atualmente existem psicanalistas e teóricas feministas pós-estruturalistas que produzem críticas à matriz psicanalítica freudiana e lacaniana acerca da diferença sexual e da constituição subjetiva. Pensamos em psicanalistas contemporâneos como Márcia Arán e Joel Birman e na filósofa pós-estruturalista Judith Butler. Realizamos a seguir uma articulação sobre esses temas, a potencialidade e possibilidade do repensar a diferença sexual como ato disruptivo e como possível deslocamento para pensar a constituição subjetiva na atualidade.

Psicanálise e feminismo pós-estruturalista: para além do falogocentrismo

A humanidade sempre contou com a diferença no entendimento do que significa “ser homem” e “ser mulher”, por exemplo, quando se vivia em comunidades/tribos, os homens por se sentirem mais fortes e viris direcionavam sua responsabilidade para a caça, as mulheres consideradas mais frágeis tinham a tarefa de cuidar do plantio e das crianças. Nos séculos seguintes, não houve muitas mudanças significativas, a dicotomia entre público e privado permaneceu reinando. Homens usufruíam da vida pública com os direitos ao trabalho, estudo, voto, sendo os provedores do lar, já às mulheres lhes restava a vida privada, o cuidado com o lar, a educação dos filhos, o bem-estar e a submissão ao marido, consistindo assim no que denominamos família patriarcal. Ser homem era o modelo ideal de corpo e funções sociais, era considerado um ser superior, o que fosse diferente do sexo masculino, era inferior, “um defeito da sociedade”, por assim dizer.

Uma das autoras, referência nacional que trabalha acerca do tema da subjetividade e diferença sexual é Márcia Arán, que em seus textos problematiza esses temas na teoria psicanalítica, especialmente lacaniana, e para tal, recorre a autores como Butler e Foucault. Em suma, a autora propõe considerar a historicidade da diferença dos sexos e, admitir que há um conflito entre os sexos e também novas possibilidades. A concepção de subjetivação apresentada por Arán (2003, p. 407) é que essa é uma “forma de singularização no universo da alteridade, universo de valores compartilhados que se constitui pela práxis da experiência cotidiana, pela forma de ser com o outro”, assim percebemos que esse conceito impacta para a construção de uma concepção de sujeito da autora, tal como um fio condutor, exprime também como ela pensa uma organização social que, segundo ela, é construída a partir de oposições binárias e hierárquicas.

Essa modalidade de organização social, segundo Arán e Peixoto Júnior (2007), pressupõe uma naturalização de sistemas normativos que exclui possibilidades subjetivas, já que essa normatividade opera de forma imanente às práticas históricas e sociais, produzindo efeitos no campo subjetivo. Ela concorda com Butler (2019) ao reforçar que as regras que governam a identidade inteligível são parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Arán (2003) resgata Héritier (1997) para pensar o sistema binário e hierárquico na diferença sexual, Héritier considera que a própria estrutura do pensamento é construída a partir de um sistema hierárquico de categorias binárias, esses dualismos estão impregnados tanto no sistema de pensamento como nas organizações sociais.

Arán (2009) considera que a questão da sexualidade e da diferença sexual é a que mais sofreu modificações ao longo da obra e teoria freudiana. Ela pontua que, desde Freud, a teoria psicanalítica oscila entre descrever a sexualidade feminina (dialética: ter ou não-ter o pênis-falo), de forma que a mulher só pode ser pensada como um sujeito marcado pela inferioridade, e ainda, a suposição de que a mulher não existe.

Segundo Arán e Peixoto Júnior (2007), repensar o sexual na psicanálise é uma tarefa teórica da maior importância, é uma necessidade ética e política, pois, embora a sexualidade esteja relacionada ao conceito de inconsciente e pulsão, essa precisa ser uma formulação histórica e contigente, ou seja, para considerar a atualidade da psicanálise, os autores colocam que é preciso levar em conta as mudanças ocorridas no território da sexualidade nos últimos anos (ex: escolarização das mulheres, mulher no mercado de trabalho, etc.), uma vez que todos esses fenômenos provocaram deslocamentos importantes nas referências simbólicas da sociedade moderna, “deslocamento das fronteiras entre homem (público) e mulher (privado), configurando um novo território para pensar a diferença sexual” (Arán, 2009, p.655).

Arán e Peixoto Júnior (2007) pontuam que a teoria psicanalítica, principalmente a lacaniana, é centrada na primazia do simbólico, do Édipo e da castração e que, com isso, o entendimento do processo de subjetivação tem se restringido a dicotomias opositivas binárias que, segundo eles, são “fundadas no poder coercitivo dos referentes com sua pretensão de universalidade” (Arán & Peixoto Júnior, 2007, p.131).

Arán (2009) demarca bem que a teoria psicanalítica reproduz o modelo binário da diferença sexual construído nos séculos XVIII e XIX. Essas críticas levantadas por ela são muito consistentes, pois além de evidenciar furos na teoria psicanalítica, permite pensar a possibilidade de um arranjo histórico e contingente, que provocaria um deslocamento da concepção normativa da dualidade “mulher (natureza)/ homem (cultura)” (p.658).

Arán (2009), demonstra que a concepção de universal está atrelada ao falo, na teoria psicanalítica, a dissimetria entre os sexos é evidenciada no fato de que o lado feminino é o “não-todo”, sustentado pelo pressuposto de que “a mulher não existe”, a autora demarca que essa concepção está também atrelada ao modo masculino de ver as coisas, “pois se trata, antes de tudo, de proporcionar ao sujeito do inconsciente, descrito como sendo necessariamente masculino, um acesso ao gozo” (p.661).

Lacan utiliza os significantes ‘homem’ e ‘mulher’ em seus seminários, Arán (2009) problematiza essa construção lacaniana das fórmulas da sexuação, já que vários psicanalistas argumentam que masculino e feminino não correspondem necessariamente ao que se define homem ou mulher, dessa forma, a teoria lacaniana sustenta que qualquer sujeito de linguagem pode se inscrever de um ou de outro lado da fórmula da sexuação, mas a autora intervém questionando: “por que cabe às mulheres o lugar do “não-todo”, já que apenas se trata de um affaire lógico?” (p.661).

Diante disso, podemos perceber que a construção de Arán (2009) até aqui critica um modelo tradicional, historicamente construído nos séculos XVIII e XIX que, segundo ela, é um modelo da hierarquia entre masculino e feminino e o da exclusão da homossexualidade. Ela problematiza como a teoria psicanalítica mantém uma lógica falogocentrada reproduzindo o modelo binário e hierárquico da diferença sexual, que caracteriza uma matriz binária compulsória marcada pelas oposições feminino/masculino, sexo/gênero, natureza/cultura, heterossexualidade/homossexualidade. A autora também aponta para a necessidade da teoria psicanalítica pensar como cada sujeito vive a diferença para além das definições da heteronormatividade, bem como a necessidade da psicanálise estabelecer uma relação produtiva com as novas formas de construção de gêneros na cultura contemporânea, o que não é tarefa fácil para a psicanálise, que precisará sucumbir à lei simbólica (Arán, 2009).

Freud inscreveu sua obra no campo do paradigma moderno, trabalhando com leituras diferenciadas no decorrer do seu percurso profissional. Inicialmente, o autor adotou a referência falogocentrada e mesmo a referência que dissocia sexo e gênero no campo do material biológico e do simbólico. Porém, no final da sua obra, ele enuncia e apresenta o discurso sobre a feminilidade e se desloca para o campo da subjetividade apontando uma origem comum à constituição do que se denomina masculino e feminino. Assim, em dado momento, o autor incide suas análises na condição do masoquismo presente na mulher e o associa à maternidade, bem como, às condições sociais e econômicas da época (Freud, 1908/1989f). Logo, a saída perante a diferença sexual para as mulheres incidiria sobre a melancolia ou sobre a histeria, sendo que esse discurso se altera quando o autor faz a famosa pergunta sobre o que quer uma mulher? Nesse momento, o autor abandona a referência exclusiva restrita ao falogocentrismo que apontava a sexualidade feminina como associada ao falo, tendo a mulher que encontrar seu caminho abandonando o falo ou procurando substituí-lo pela maternidade (Freud, 1925/1989c).

Entretanto, a partir da obra Análise com fim e análise sem fim, Freud (1937/1989d) reverte sua teoria e passa a considerar a feminilidade como o ponto de partida para a elaboração psíquica tanto do masculino quanto do feminino. Conforme essa nova teoria, a feminilidade entendida como terreno da angústia e mesmo do horror seria o solo por meio do qual cada pessoa teria que se haver para elaborar seu psiquismo a partir da lógica do falo. Porém, podemos entender que apesar dessa mudança, ainda permanece em cena a lógica do binarismo, ainda que sem a primazia do fálico como fundante e da diferença sexual apoiada exclusivamente no corpo masculino.

Supomos que com as novas condições da mulher, forjadas pelo movimento feminista desde os anos 60 e 70 – em que as mulheres saíram definitivamente do espartilho da maternidade e buscaram novas formas sociais de ser além da restrita condição materna –, o segundo discurso freudiano sobre a feminilidade é mais adequado aos novos ares do tempo. Podemos dizer ainda que o discurso freudiano, na sua segunda versão teórica sobre a relação entre os gêneros, foi um prenúncio do esgotamento ético, político e teórico do paradigma moderno, assim como uma formulação incisiva em direção de outra leitura pós-moderna sobre a relação entre os gêneros. Enfim, essa reviravolta teórica apenas se deu quando Freud foi tomado inteiramente pela perplexidade diante da formulação: o que querem as mulheres, afinal das contas?

Judith Butler (2019) pode trazer contribuições ao entendimento do binarismo, hierarquia e noção de gênero. Ela parte da descrição freudiana de identificação e identidade sexual para interrogar o que ela chama de matriz heterossexual que está na base da nossa cultura ocidental. Em Problemas de Gênero, a autora busca desconstruir categorias identificatórias como gênero, sexualidade, corpo, desejo, heterossexual, homossexual, neste modelo epistêmico hegemônico de inteligibilidade de gênero. Para Butler, apesar das imposições e das normas binárias que dissociam corpos e desejos em pares opostos para as pessoas, elas são constituídas de várias maneiras além das matrizes do heterossexual e homossexual, do masculino e do feminino. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo.

Segundo Butler (2019), a matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir”, isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que a prática do desejo não decorrem nem do “sexo” nem do “gênero” (p. 44). Afinada a alguns pressupostos do pós-estruturalismo, Butler (2019) apresenta e dialoga, em sua obra, com Michel Foucault que afirma que a gramática substantiva do sexo impõe uma relação binária artificial entre os sexos, bem como uma coerência interna artificial em cada termo desse sistema binário. “A regulação binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica” (Butler, 2019, p.47).

Consideramos importante apresentar a crítica de Butler (2019) à noção de metafísica da substância que acompanha a tradição filosófica ocidental, segundo a qual cada indivíduo apresenta uma essência de “ser”, assim, afirmações como “ser mulher” ou “ser homem”, são vistas como problemáticas para Butler, pois essas afirmações tendem a subordinar a noção de gênero àquela de identidade, e a levar à conclusão de que uma pessoa é um gênero ou o é em virtude do seu sexo, de seu sentimento psíquico do eu, e do desejo sexual.

Butler (2019) também fala da heterossexualidade compulsória ou heterossexualidade institucional que, segundo ela, “exige e produz a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional” (p.52). Entendemos que, a crítica da autora à hegemonia da heterossexualidade, ou à nossa inteligibilidade binária de gênero, sustenta o que seria a principal ideia de “Problemas de Gênero”: a performatividade. Para ela, o “gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da metafísica da substância, isto é, constituinte da identidade que supostamente é”, bem como, “não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero, essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (p. 56).

Butler (2019), apoiada no filósofo pós-estruturalista Jacques Derrida (1992; 2001), encontra suporte no conceito de falogocentrismo para entender as experiências dos sujeitos. Conforme vimos no início deste artigo, com a referência ao falogocentrismo, Derrida procura enfatizar e problematizar a predominância de uma determinada maneira de organização do conhecimento e da rede social que gira em torno do falo e do logos.

Derrida (2004) entende que o binarismo acompanha a rede de poder que predomina nas sociedades ocidentais e reforça essa rede através da linguagem que atribui específicos sentidos e valores às pessoas e aos objetos que compõem a realidade. Para o autor, quando são elaborados os pares de opostos e é atribuído um específico sentido a eles e, ainda, quando se divulga a ideia de que esse sentido é verdadeiro, é possível encontrar operando um trabalho de hierarquia e de poder. Como exemplo, o conceito de masculino estabelece o feminino como seu oposto e, ainda, o masculino é vinculado ao racional, ao completo, à cultura, e o feminino ao afeto, ao incompleto, à natureza. Reiterando o que escrevemos no início deste artigo, o movimento que predomina na sociedade ocidental recebe a denominação de falogocentrismo, pressupondo o falo e a razão como o ponto de referência a partir do qual ocorreria toda modalidade de subjetivação e a produção do masculino e do feminino. “Os binarismos configuram referências que operam como disjunção, ou seja, como dissociação, e implicam em lugares, pares de oposições ocupados em relações hierárquicas e de podero” (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 55).

Para Derrida (2004), o pensamento metafísico tradicional, por ele chamado de logocêntrico, jamais se desvinculou de uma abordagem que identifica pares de oposições – razão e sensação, espírito e matéria, identidade e diferença, lógica e retórica, masculino e feminino, etc., mas, sobretudo, fala e escrita –, estabelecendo a primazia dos primeiros sobre os segundos termos da oposição. A hierarquização das relações opositivas nos remete a uma categoria fundamental, a presença, a partir da qual podemos explicar a realidade em geral.

Portanto, consideramos fundamental questionar como o falogocentrismo adentra as teorias da diferença sexual. Para isso, foi necessário resgatar autoras(es) que trabalham com a questão da constituição subjetiva e com a questão das diferenças sexuais. Também salientamos que entendemos as teorias sobre a diferença sexual articuladas histórica e culturalmente, no sentido de que essas teorias se associam a questões sobre o subjetivar e o conhecer hegemônicas na rede social moderna. Porém, a organização subjetiva não se encontra totalmente capturada pelas condições sociais, econômicas e culturais, hegemônicas, já que elas vão além dos pressupostos do conhecer como o sujeito da razão e da cognoscência, além da lógica formal e do cálculo matemático. Assim, a diferença sexual vai além dos pressupostos vinculados ao binarismo, a hierarquia e ao essencialismo remetidos ao corpo biológico. A constituição subjetiva envolve o inesperado, o acaso, o disruptivo, o descontínuo, pois não se consegue calcular o efeito, o resultado de uma subjetividade. Em outras palavras, entendemos que a subjetividade tem essa potência para subverter, ela tanto é sujeitada às normas, quanto escapa às normas, não seguindo exclusivamente a lógica formal, linear e temporal (Foucault, 1984; 1985; 1988; 1996).

Algumas análises finais

É importante considerar que, desde Freud, a teoria psicanalítica passou por transformações. Acompanhar o movimento da história da psicanálise pode permitir aberturas de diálogos e releituras capazes de desconstruir uma lógica de manutenção do falogocentrismo.

Se acima apontamos as dificuldades psicanalíticas acerca de algumas questões com o falogocentrismo, hoje podemos presenciar uma psicanálise que se organiza com mais sentido teórico, para estar à altura de seu tempo. No cenário contemporâneo, inúmeros psicanalistas dedicam-se a trabalhar com a questão da diferença sexual em psicanálise, dentre os quais localizamos Mrech (2019), que defende a necessidade de cuidados ao pensarmos na psicanálise na atualidade, oferecendo uma atualização do pensamento psicanalítico.

Para a autora, a psicanálise revelou que a diferença sexual não é uma diferença meramente anatômica; com Freud, ela aponta que a diferenciação sexual não decorre apenas de conteúdos sociais e individuais, mas também de um longo processo de elaboração. Não obstante, é inegável que em alguns aspectos as teorias sobre a constituição psíquica, tanto em Freud, quanto em Lacan, acompanham referências falogocentradas e heteronormativas, referências binárias e hierárquicas, que acompanham as questões da diferença sexual. No geral, os profissionais da psicanálise contemporâneos tendem a criticar esses aspectos falogocentrados presentes nas matrizes da psicanálise, e estão atentos as leituras feministas pós-estruturalistas que criticam os discursos e práticas presentes na rede social ocidental que adotam de forma hegemônica esses pressupostos normativos.

A partir de uma releitura da teoria psicanalítica freudiana e lacaniana, apostamos em uma sexualidade entendida no plural, nas singularidades e no caso a caso, assim como na aproximação com outros e novos saberes que problematizem as leituras sobre a diferença sexual. Apesar das resistências, encontramos psicanalistas envolvidos no debate e na desconstrução da naturalização do gênero e da sexualidade. As questões da constituição da sexualidade implicam a psicanálise na problematização de discussões trazidas pelas leituras feministas e na pluralidade da sexualidade. Dessa forma, o “faz-de-conta” de uma brincadeira de criança relembra a diversidade de caminhos e de possibilidades da nossa constituição e da nossa sexualidade, bem como, aponta à importância de desfazer a cristalização teórica falogocentrada que ainda resiste em alguns setores da teoria psicanalítica. Assim, a importância de oferecer escuta às leituras feministas e às leituras de psicanalistas contemporâneos que podem contribuir com a compreensão sobre a subjetividade e a diferença considerando a plasticidade e diversidade das suas expressões.

Referências

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Notas de autor

a. Correspondence about this article should be addressed to Gustavo Angeli: gustavooangeli@gmail.com

Declaración de intereses

b. Conflicts of Interest: The authors declare that the research was conducted in the absence of any commercial or financial relationships that could be construed as a potential conflict of interest.
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