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As teorias queer e crip no rompimento das epistemologias hegemônicas da Psicologia
Queer and crip theories in the rupture of hegemonic epistemologies on Psychology
As teorias queer e crip no rompimento das epistemologias hegemônicas da Psicologia
Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology, vol. 56, núm. 3, pp. 1-20, 2022
Sociedad Interamericana de Psicología

Recepción: 20/09/2021
Aprobación: 02/11/2022
Resumo: Este artigo objetiva estabelecer relações entre a psicologia, como campo de produção de saberes e práticas, e questões centrais suscitadas pelas chamadas teorias transviadas (queer) e aleijadas (crip). Essas teorias surgem como contraponto às epistemologias que concebem os sujeitos de forma universalizante e normalizadora, e levam em conta como enquadramentos tais como os de gênero, sexualidade, raça e deficiência se inscrevem nos corpos e produzem subjetividades localizadas social, histórica e politicamente. Entendemos que suas contribuições se dão no sentido de trazer à tona os mecanismos de classificação, hierarquização e exclusão produzidos e perpetuados pelos ideais da corponormatividade e da cisheteronorma, que conferem inteligibilidade a determinados corpos, enquanto relegam outros à abjeção. Por fim, pontuamos a necessidade de a psicologia, ao ser interpelada por esses saberes contra-hegemônicos, haver-se com a própria implicação no processo de adequação e normalização dos modos de existência dissidentes, bem como nas relações de poder que sustenta por meio de seus discursos e práticas.
Palavras-chave: queer, crip, psychology, bodynormativity, abject.
Abstract: This article aims to establish a relationship between psychology, as a field of production of knowledge and practices, and issues raised by the so-called queer (transviadas) and crip (aleijadas) theories. These theories emerge as a counterpoint to epistemologies that conceive subjects in a universalizing and normalizing way, and take into account how frameworks such as gender, sexuality, race and disability are inscribed in bodies and produce socially, historically and politically situated subjectivities. We understand that their contributions are in the sense of bringing to light the mechanisms of classification, hierarchization and exclusion perpetuated by the ideals of bodynormativity and cisheteronormativity, which confer intelligibility to certain bodies, while relegating abjection to others. Finally, we point out the need for psychology, when challenged by this counter-hegemonic knowledge, to deal with its own implication in the process of adjustment and normalization of dissident modes of existence, as well as in the power relations it maintains through its discourses and practices.
Keywords: queer, crip, psicologia, corponormatividade, abjeto.
Corpos abjetos-monstruosos: quem conta como humano?
Iniciamos esse artigo com a indagação deixada por Spinoza (2009) sobre o que pode um corpo, tendo em vista que os corpos não se restringem ao campo da biologia e das leis, nem são estáticos e imutáveis, mas atravessados por discursividades históricas, são efeitos de poder. Não nos interessa o que pode qualquer corpo, muito menos o corpo do ideal normativo, mas o que pode o corpo dissidente desse ideal, o corpo situado historicamente como inumanamente impensável, como vida considerada não vivível, não passível de luto (Butler, 2015, 2019). Nos interessa o que podem os corpos que rompem com os enquadramentos, seja do sistema sexo-gênero, da corponormatividade, da raça, e que não só sofrem as consequências dessa infração a partir da habitação de uma zona fronteiriça do humano e das violências inerentes a esse processo, como resistem, buscando criar/alargar espaços de inteligibilidade.
No documentário Examined Life (Taylor, 2008), é retratado o diálogo entre a filósofa Judith Butler e a artista/escritora/ativista dos direitos das pessoas com deficiência, Sunaura Taylor. Caminhando pelas ruas de São Francisco - EUA, elas dialogam sobre aspectos e vivências acerca de como a diferença é encarada na sociedade e transformada em opressão contra determinados corpos. Butler relata a história de um menino que foi assassinado por ter um andar ‘afeminado’, enquanto Sunaura relata que, quando criança, muitas pessoas comparavam seu modo de andar ao de um macaco. Dessa conversa, Sunaura elabora as seguintes interrogações: “onde nossas fronteiras nos posicionam como humanos e o que se torna não humano? [...] quando você ainda conta como um humano?”.
Tomando como pontos de partida - ou de chegada - essas elaborações sobre o corpo, é possível refletir sobre a inteligibilidade dos corpos e sua diferenciação entre a produção e materialização dos que são considerados humanos, daqueles considerados abjetos - inumanamente impensáveis, ou que não contam como humanos. Para Butler (Prins & Meijer, 2002), a matéria dos corpos está associada às normas regulatórias que atribuem sua legibilidade, produzindo e materializando historicamente aqueles corpos que importam. Ou seja, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos e movimentos, será material desde que a materialidade seja considerada como o efeito do poder (Butler, 2019). Nesse sentido, o corpo abjeto pode ser entendido como aquele cuja vida não é considerada vida, não se restringindo ao que desvia do sistema sexo-gênero, mas diz de todo tipo de corpos cujas materialidades são compreendidas como não importantes.
O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘não-vivíveis’ e ‘inabitáveis’ da vida social que, não obstante, são densamente povoadas por aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito, mas cujo viver sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para circunscrever o domínio do sujeito. Essa zona de inabitabilidade vai constituir o limite que circunscreve o domínio do sujeito; ela constituirá esse lugar de pavorosa identificação contra a qual - e em virtude da qual - o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação por autonomia e vida (Butler, 2019, p. 22).
Ainda segundo Butler (2019), existe uma diferenciação entre o reconhecimento e afetação a depender de quais corpos são pautados. No caso de corpos abjetos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade se manifesta em diversas esferas políticas, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia. Isto é, a distribuição de efeitos ontológicos é um instrumento de poder, com fins hierárquicos de subordinação, funcionando em prol da produção de domínios do inimaginável. Assim, quais corpos historicamente são ininteligíveis, situados na zona da abjeção? Corpos abjetos que ousaram desafiar as normas? Corpos que, em prol do reforço e legitimação de normativas como as explicitadas no início do texto, são considerados menos humanos? Quais os destinos históricos para os corpos considerados menos humanos? E, para além do ‘destino’, o que podem esses corpos no que se refere à resistência à compulsoriedade da norma? Aqui, podemos refletir de forma breve sobre a história de determinados corpos considerados abjetos no Brasil, como é o caso das pessoas com deficiência e LGBTI+.
Desde o período da colonização, há uma atribuição a corpos de pessoas com deficiência e LGBTI+. Esses são considerados desviantes dos ideais normativos - o Outro - como monstruosos, corpos que habitam/borram as fronteiras entre o humano e o inumano. Segundo José Gil (2000), a figura do monstro vai permitir a existência do humano, mas também simboliza um perigo para todas as regras e normativas sociais que se impõem como naturais e moralmente corretas. Isto é, ao mesmo tempo que a monstrificação das figuras do Outro institui o ideal humano - o normal, o inteligível -, põe em cheque o que é ‘natural’ (Gil, 2000) e coloca em perigo/descortina a norma como uma grande ficção.
Nesse sentido, Méndez e Villena (2012) afirmam que a monstruosidade evidencia o que a ordem social adverte acerca do perigo intrínseco que existe na ordem da diferença. O monstro vai ser definido a partir da noção de outro, do diferente, aberrante, anómalo, feio e caótico, entendendo que sua existência é necessária para que os corpos normais se definam como tal e para a construção de esquemas de controle eficientes no exercício de uniformizar e sancionar o diferente (Méndez & Villena, 2012). A noção de monstro se articula àqueles que violam as leis sociais e da natureza, combinando o impossível com o proibido e, nesse direcionamento, a infração representada pelo monstro é levada a seu ponto máximo, a forma natural da contranatureza, o princípio de inteligibilidade de todas as formas da anomalia (Foucault, 2010). Logo, podemos notar a existência de “paralelos monstruosos” (Méndez & Villena, 2012, p. 134), ou seja, a articulação sobre como se tem conceituado e discriminado aqueles que excedem as normas sexuais e de gênero e as normas capacitistas. Tais paralelos são frequentemente estabelecidos pela conexão entre as normas sociais prevalentes, como a heterossexualidade compulsória e o capacitismo, que fazem certas expressões do corpo e de desejo parecerem ‘naturais’ ou ‘normais’. A história da opressão da sexualidade e a história da regulação dos corpos e capacidades ‘normais’ fazem perceber o corpo como espaço onde se inscrevem regimes de verdade. Assim, o desvio no que se refere à sexualidade, raça, deficiência, sexo e gênero, bem como os padrões impostos às mulheres, estão no centro das concepções do que vem a ser monstruoso, já que o cânone normalizador do que é inteligível como referencial de humano tem sido o homem branco, heterossexual, ocidental, sem deficiência e colonizador (Méndez & Villena, 2012).
É importante pontuar que a concepção de monstruosidade e as formas de controle e violação desses corpos-abjetos-monstros vão se transformando ao longo dos séculos, de acordo com as necessidades para assegurar a ordem social e cultural vigente em cada período histórico (Méndez & Villena, 2012). Segundo Gil (2000), essa transformação diz da própria mudança em torno da concepção do corpo/humano e da sua representação, bem como do seu modo de vivenciar o espaço e o tempo.3 A partir do século 16, os monstros passaram a ser atrelados à glória ou à ira de Deus, configurando-se como sinais divinos. Segundo Lobo (2015), nessa época, o monstro se distinguia entre espécies monstruosas e monstros individuais; os primeiros, considerados criaturas divinas intermediárias com função de garantir a harmonia entre os elementos da natureza e da beleza; já os segundos, considerados resultantes da ira divina, significando desordem e depravação, transgressão humana dos preceitos impostos. Assim, há um misto de atribuições associadas a essas figuras, ora glorificadas e admiradas, ora detestadas, causadoras de horror e indesejadas (Méndez & Villena, 2012).
No período da colonização brasileira, os indígenas, negros escravizados e pessoas com deficiência eram populações consideradas monstruosas, como é retratado no livro “Os infames da história” pela historiadora Lilia Lobo (2015). Quando os europeus chegam ao Brasil, todo o ideário acerca dos monstros criados entre os anos 1500 e 1600 é atribuído aos indígenas, caracterizados, a partir dos diversos registros de bordo dos colonizadores, como selvagens, monstros individuais, frutos da depravação e da desordem (Lobo, 2015). A autora ainda afirma que os traços monstruosos impostos a essa população foram se expandindo nos séculos seguintes, abarcando as populações negras escravizadas, corpos que não chegavam a ser considerados humanos, e também as pessoas com deficiência, situadas como aberrações, sinônimos de feiura e inutilidade (Lobo, 2015, 2011). Junta-se a essas populações monstruosas, um conjunto de corpos com padrões de gênero e sexualidade entendidos como desviantes, pecaminosos, antinaturais ou fora da natureza, a exemplo das pessoas intersexo, sodomitas, onanistas e mulheres que não performavam o padrão de comportamento imposto como adequado (Méndez & Villena, 2012). Afinal, é por meio do processo de colonização que há a imposição de um sistema sexo-gênero-desejo colonial (Lugones, 2014), pautado em binarismos como macho-fêmea, homem-mulher e em uma lógica assentada na heteronormatividade e monogamia, em que todos aqueles que desviassem desse regime poderiam ser considerados monstruosos, passíveis de punição e morte.
De acordo com Araújo (2009), a homossexualidade era condenada com muita severidade pela igreja e na legislação civil. Quem cometesse o pecado da sodomia deveria ser queimado feito fogo em pó, para que não deixasse rastro ou memória, além de ter todos os seus bens confiscados para a coroa (Araújo, 2009). No caso dos corpos das mulheres, havia uma concepção de que a ‘natureza’ feminina, ordenada pela genitália, transformava a mulher em monstro ou em uma eterna enferma, vítima da melancolia, tendo seu corpo mais propenso para males maiores, como a histeria e a ninfomania (Priore, 2009). Contudo, é no século 19 que a monstruosidade é capturada pela medicina e transforma-se em degeneração, passando a ter um caráter não só físico, mas moral e transmitido pela via hereditária. É nesse momento histórico que emerge a teratologia, entendida como uma explicação científica para os monstros, um novo campo de saber que situava os monstros como exemplos de seres inadaptados ou degenerados da espécie:
A degeneração moral inscrevia-se no corpo pelas doenças que provocava (como sífilis, alcoolismo e tuberculose) e fixava-se na hereditariedade. Não representava uma regressão à animalidade, mas um desvio de progressão natural, que poderia produzir uma raça decadente e, então, uma doença a requerer tratamento e principalmente prevenção para não se tornar uma epidemia. O que poderia provocá-la, além dos descuidos morais? A consaguinidade e a miscigenação. E os produtos privilegiados desses dois tipos condenáveis de mistura de sangue foram, além dos loucos e dos epiléticos, os surdos-mudos, os idiotas e os deformados, todos portadores em algum lugar do corpo de um estigma de degenerescência (Lobo, 2015, p. 47).
Desse modo, os médicos higienistas e mais tarde as ciências psis, em específico a psiquiatria, colocaram-se como especialistas da teratologia social, havendo um alargamento das populações monstruosas, agora consideradas monstros morais, anormais, perigosos, devendo ser controlados, adestrados e prevenidos. Segundo Foucault (2010), são postos os questionamentos acerca de toda monstruosidade que há em cada pequena anomalia ou pequenos desvios e irregularidades; assim, o monstro cotidiano, banalizado junto a figuras do incorrigível e do masturbador, torna-se o anormal. De acordo com Silveira (2018), a monstruosidade associada à deficiência, ao se tornar domínio da medicina, passa a ser compreendida como uma problemática localizada nos corpos individuais, oriunda de alguma patologia, manifesta na perda ou deformidade de certa estrutura corporal ou desempenho cognitivo. É essa perda ou deformidade que, segundo a concepção biomédica, irá provocar desvantagens sociais, necessitando de tratamento, correção ou cura, utilizando-se dos padrões corporais como medidores de funcionalidade e da categorização da deficiência com intuito de compor os manuais médicos (Silveira, 2018). Da mesma forma como ocorreu a patologização dos corpos com deficiência, aconteceu um processo similar acerca daqueles que não performavam os padrões de gênero e sexualidade. De acordo com Trevisan (2018), no Brasil, desde o século 19, a sexualidade é empurrada para o território da psiquiatria, compreendendo e categorizando as práticas sexuais que atentam contra a natureza, ou seja, dissidentes do sistema sexo-gênero entendidas como perversões sexuais. No caso das mulheres lésbicas, por exemplo, eram classificadas como loucas, congênitas ou viciadas que deveriam ser tratadas, vigiadas, controladas (Trevisan, 2018).
Influenciada por teorias provenientes de países localizados geopoliticamente no norte global (Estados Unidos e Europa), a psicologia brasileira, enquanto ciência e profissão, será em grande parte atravessada pela lógica de adaptação às normas e pela aplicação de procedimentos técnicos cuja função principal é o ajustamento dos sujeitos às normas sociais universalizantes. Essas perspectivas importadas contribuíram para que a psicologia reproduzisse práticas pautadas em processos de avaliação com base em padrões de patologização e medicalização dos corpos e mentes que são dissonantes da lógica hegemônica, baseando-se em uma concepção naturalizada do humano, como se esse fosse constituído de forma dissociada das relações sociais e históricas.
Antes mesmo de sua regulamentação como profissão no Brasil, a psicologia já se fazia presente no contexto do país como uma ferramenta fundamental para as organizações e ligas eugênicas e de higiene mental (Figueira & Boarini, 2013). Nesses espaços eram propagadas as necessidades de esterilização das populações consideradas degeneradas, políticas de embranquecimento, controle dos casamentos - principalmente a tutela em relação aos corpos das mulheres e sobre a reprodução - e expansão das instituições totais de controle, como é o caso dos hospitais psiquiátricos (Couto, 1994; Engel, 2009; Lobo, 2015; Maciel, 1999; Stepan, 2004). De acordo com Figueira & Boarini (2013), a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), criada no início do século 20, é um exemplo de como os saberes psicológicos foram considerados essenciais para a difusão desses ideais pautados na prevenção da degeneração da raça e na busca por um progresso alicerçado em um projeto civilizatório colonial. Desse modo, nas palavras de Bicalho et al. (2009):
A psicologia, hegemonicamente, tem se constituído como ferramenta de adequação e ajustamento intimizado, universal, natural e a-histórico; não se colocando, assim, a questão que se refere a práticas datadas historicamente, instituindo modelos de ser e de estar no mundo segundo padrões de normalidade produzidos como únicos e verdadeiros, inferiorizando e desqualificando os lugares ocupados pelos chamados diferentes, anormais, perigosos, desvinculando-os dos seus contextos sócio-histórico-político-sociais, tornando-os não-humanos. A estes seriam endereçados um constante monitoramento, vigilância e tutela. (p. 21)
O que versa a história da psicologia é sua utilização como dispositivo de controle, auxiliar em uma prática que encarcera esses corpos classificados como anormais-monstros-abjetos, como as pessoas com deficiência e LGBTI+, por meios de técnicas de patologização, aprisionamento em instituições manicomiais e outras violações. Todavia, esses corpos não encaram somente a miséria das violências sofridas e a vulnerabilidade a que estão suscetíveis até os dias de hoje, uma vez que, o simples fato de existirem já tensiona e fissura o discurso da norma universal. A possibilidade de uma existência anormal-monstra-abjeta está em reivindicar a dissidência como lugar de luta política, como lugar de produção de modos de existir, de tantos outros mundos e formas de se relacionar, de coalizões políticas, éticas e afetivas. Portanto, esse artigo se pauta justamente no que podem esses corpos abjetos quando insurgem, quando não exigem inclusão na normativa que violenta, mas almejam, lutam e criam outros mundos, outras formas de existências e de corporalidades. E, principalmente o que tais corpos trazem de tensionamento e contribuições para a existência de outros tipos de saberes e práticas no campo psi, não aliadas às estruturas de opressão.
Transviada e aleijada
Na década de 1990, Teresa De Lauretis (1991) passou a incorporar, nos estudos acadêmicos, o termo queer, como forma de estabelecer essa subversão etimológica da palavra (antes usada como termo pejorativo), e o que dela surgiu enquanto movimento de unificação para reivindicação de políticas públicas de saúde, durante a epidemia de HIV/AIDS, nos EUA. Incorporando as contribuições de lésbicas negras e chicanas como Audre Lorde e Glória Anzaldúa na elaboração discursiva, de produção de subjetividades e resistência à homogeneização cultural, as estratégias de sobrevivência e práticas micropolíticas observadas nesses rearranjos sociais - facilitadas pelo círculo de relações queer - passaram a ser academicamente entendidas como teoria queer. Uma forma absolutamente revolucionária de organização social e articulação política, que centra a dissidência na produção de saberes e cria uma nova perspectiva teórica.
Essa nova sorte de concepções de humanidade nasce do ativismo e vai extrapolar os limites da corponormatividade. A teoria queer, que no Brasil vai ser traduzida como teoria transviada (Bento, 2017), ultrapassa as práxis epistemológicas naturalizantes e biologicistas para construir na dissidência novas formas autorizadas a existir. Sem perder de vista que toda produção de conhecimento é prática política de poder que concede ou impede esses ou aqueles corpos de produzirem enunciados (Foucault, 2014), a teoria queer abre campo para a construção de saberes localizados nas figuras consideradas abjetas, monstras, indizíveis e impensáveis, as eternas estrangeiras do campo social inteligível.
Na construção de uma proposta que tem como objetivo descentrar das regras normativas e dos marcadores sociais que produzem invisibilidade e opressões, a teoria queer se amplia para alianças estratégicas entre movimentos que, igualmente, se propõem a contestar regimes normalizantes, denunciar práticas de enclausuramento de corpos - quando da retirada de direitos que garantem mobilidade, acesso social e autogestão - e mirar na compreensão de que identitarismos produzem subordinação social. Ainda aquelas identidades constituídas na dissidência devem ter em mente que esse processo constitui uma ficção política (Oliveira et al., 2014) e uma construção social, e que mesmo assim não deixa de perpassar a construção dos sujeitos, sabendo que, exatamente pelo processo da máxima capitalista, essas identidades (sejam quais forem) serão cooptadas pelo mercado, ao mesmo tempo que abandonadas pelo Estado. Hija de Perra (2014) alerta para o sistema econômico que acelera a corrida para localizar um sujeito queer e pseudo democratizar como identidade, na estratégia de abafar as reivindicações e normatizar um life style4 - bem estilo mindset5 da inovação -, tudo bem gringo e neoliberal.
Portanto, a teoria queer que se apresenta na América Latina, nos anos 2000, importada dos EUA, chega carregada de colonialismo. Se no norte global o impacto da teoria reverberou rapidamente nos meios acadêmicos, aqui, a nomenclatura não provocou as mesmas tensões, sendo tratada apenas como mais um termo ‘americanizado’. A necessidade de manter o termo na língua original, por si só já denota que, se traduzido, perderia a força necessária para ser incorporado e discutido nos espaços acadêmicos que disputam o campo do saber (Perra, 2014).
Embora jamais tenhamos sido iguais, nem nas diferenças ou lutas, processos de reconhecimento, violências, abandono estatal, políticas públicas, formação societária, moeda, moda ou cultura, a teoria queer que foi trabalhada nos anos seguintes permitiu, pela amplitude da discussão, dizer mais sobre nós - latinas e sudacas - do que quando chegou. É pertinente ressaltar que, uma vez que o sexo é inscrição na sociedade, no Brasil das décadas de 1970 e 1980, vivíamos sob uma ditadura militar e nem os partidos progressistas consideravam a pauta dos direitos sexuais como algo a ser validado em discussões políticas (Perra, 2014). Enquanto nos Estados Unidos, a revolta de Stonewall (série de manifestações em 1969) se iniciou por conta de uma festa LGBTI+ que havia sido proibida de acontecer por uma intervenção policial, em um bar de New York, aqui no Brasil vivíamos os primeiros anos de chumbo do golpe militar de 1964, pouco mais de 80 anos depois da tardia abolição da escravidão. Portanto, absolutamente sem espaço para que corpos, vivências e populações dissidentes reivindicassem qualquer tipo de direitos, uma vez que a população em geral já não gozava mais de liberdades privadas, públicas e políticas.
Sendo assim, a teoria queer, que no Brasil chega com estranheza, vai caminhar ao lado dos estudos decoloniais nas intersecções entre gênero, sexualidade, raça, classe social e diversidade funcional, com objetivo de reverter a lógica de subjugação dos sujeitos incorporados nas divisas das políticas de verdades (Butler, 2004), já que caracteriza-se como potência de desestabilização normativa, crítica disruptiva e nada tem a ver com movimentos identitários, tampouco com uma espécie de guarda-chuva que abrigue toda e qualquer identidade, mas com a potência de questionar como a política da diferença é sustentada ou abafada.
Preciado (2011), debruçado na genealogia foucaultiana, passa a considerar sexo e gênero como tecnologias, uma vez que é impossível separar o corpo das forças sociais de construção da diferença. Assim, a biopolítica de Foucault torna-se sexopolítica, e Preciado (2011) vai defender que:
A sexopolítica não é apenas um lugar de poder, mas sobretudo o espaço de uma criação onde se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais...As minorias sexuais se convertem em multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão se torna queer. (p. 14)
Quando dispositivos de poder, regime de enunciados, prescrições médicas e práticas, a priori, idealizam as formas normativas de expressões de si, a produção e o controle da própria vida - a biopolítica foucaultiana - tornam-se indissociáveis das tecnologias de poder sustentadas pela noção de corponormatividade, que perpassam sexo, gênero, raça e funcionalidade. Se o corpo é um campo de intervenção, o corpo do sujeito abjeto é ferramenta de resistência ao ato de ‘tornar-se’ normal, na possibilidade mesma de produzir outras subjetividades, desterritorializadas daquelas fixadas pelo modelo econômico. E vai ser exatamente pela noção de que a prática de poder atravessa o corpo, que uma outra teoria, a teoria crip, vai se lançar, na tentativa de construir uma epistemologia de produção de saberes localizados a partir das experiências de pessoas com deficiência.
Com base nos pressupostos da teoria queer, a teoria crip busca compreender "como corpos e deficiências têm sido concebidos e materializados em múltiplas localizações culturais, e como eles podem ser entendidos e imaginados como formas de resistência à homogeneização cultural" (McRuer, 2006, p. 3, tradução nossa). McRuer (2006), baseado em Carrie Sandahl, destaca que em decorrência de o termo crip ser derivado de cripple, que, em inglês significa aleijado, inicialmente esse era restrito às pessoas com deficiência física. Todavia, hoje ele foi expandido abrangendo também pessoas com deficiências sensoriais e intelectuais, podendo ser utilizado ainda como um posicionamento político por pessoas sem deficiência, uma vez que tem um caráter de fluidez, o que possibilita a ruptura com o binarismo capacidade/deficiência, situando-o como cultural e politicamente produzido para hierarquização de identidades dissidentes. Rosemarie Garland-Thomson (2005) destaca a contribuição dos trabalhos feministas nos estudos da deficiência em cinco pontos:
Primeiro, entendem a deficiência como um sistema de exclusões que estigmatiza as diferenças humanas. Em segundo lugar, revelam as comunidades e as identidades que os corpos que consideramos deficientes têm produzido. Em terceiro lugar, mostram atitudes e práticas discriminatórias dirigidas a esses corpos. Em quarto lugar, expõem a deficiência como uma categoria social de análise. Em quinto lugar, enquadram a deficiência como um efeito das relações de poder. (pp. 1557-1558)
Quando postas em discussão, as teorias queer e crip dialogam no mesmo sentido do que defendeu Débora Diniz (2003), quando deslocam do corpo as barreiras que esses sujeitos experienciam na sociedade. Para o modelo social da deficência, haverá uma distinção entre a experiência da deficiência e a lesão, assim como os estudos feministas vão problematizar a linearidade entre sexo e gênero. Em ambas as perspectivas, deficiência e gênero vão deixar de ser consideradas imperativas para as considerações sobre barreiras sociais, e, para tanto, a organização das sociedades capitalistas é que passam a figurar como deficientes, genderificadas, corponormativas, cisheterocentradas e racializadas, aí sim, proporcionando experiências limitantes, opressivas e violentas para mulheres lésbicas, transexuais, deficientes, periféricas, gordas e/ou negras.
Butler (2019) e Kafer (2013), sem nunca desconsiderar as relações de poder que atravessam de formas diferentes cada indivíduo, vão problematizar a materialidade fixa e a naturalidade dos corpos, uma vez que “a relação política está entre o ambiente e o padrão excludente” (Amato et al., 2021, p. 115), quando da impossibilidade de correção cisheteronormativa, sem deficiência e branca. Essa impossibilidade de correção provoca dois deslocamentos: 1) exclusão social, invisibilização e apagamento e 2) violência social, estatal e morte (aqui incluímos, também, o suicídio). A exclusão social pode variar desde a falta de mobilidade geográfica, insegurança física, desemprego, até institucionalizações compulsórias; a invisibilização, decorrência da exclusão social, vai gerar desamparo estatal, falta de políticas públicas de assistência, desinformação, infantilização e/ou demonização, de modo que a violência aparece como o último ato de correção possível. Impedir um corpo dissidente de continuar existindo, colaborar para a manutenção de ambientes inóspitos ou tirar literalmente a vida desse corpo, é a reparação final da sociedade capitalista. Se não é possível corrigir a lesão, nem o gênero, nem a sexualidade, nem a cor, a forma ou o tamanho, a solução é que aquele corpo deixe de existir.
Nesse processo de deixar morrer ou de dificultar e, inclusive, negar o acesso de corpos dissidentes às práticas de equidade social - tanto nas esferas públicas quanto privadas -, o desamparo do Estado e a violência praticada pelos sujeitos que incorporam práticas de vigilância policial somam-se às possíveis mortes autoinfligidas. Peres, Soares e Dias (2018) já levantaram a questão do suicídio ser considerado lesbocídio quando defendem a tipificação do assassinato de mulheres lésbicas, considerando que as estruturas sociais e estatais fronteiriças, em muitos casos, não deixam outra alternativa. Ampliando o conceito, podemos incluir os suicídios cometidos por pessoas com deficiência na mesma vertente de compreensão.
A necropolítica, os processos de eugenia e genocídio consistem em uma forma de poder público e social que setoriza corpos e vivências em categorias passíveis de viver ou destinadas à morte. Essa distribuição, arbitrária e desigual, é praticada pelo Estado como forma de impor um modelo fixo e universalizante de existências úteis ao capitalismo (Mbembe, 2018). O modelo médico da deficiência, por exemplo, foi utilizado para instrumento de segregação, tendo como objetivo conferir inteligibilidade por meio de uma concepção de corponormatividade. O corpo classificado como inapto para produzir nos moldes do capitalismo, era prescrito como incapaz e, automaticamente, colocado à margem da sociedade. As teorias queer e crip não só propõem a absoluta ruptura desse sistema - para assegurar os direitos sociais e políticos de pessoas consideradas dissidentes - como aposta na construção de uma vertente epistemológica na qual estejam incluídas reivindicações e construção linhas de fuga do modelo cisheteronormativo, branco e sem deficiência. E, como abordagem principal para autogestão, a luta precisa ser anticapacitista, antilgbtifóbica e antirracista (Gesser et al., 2020; Lopes et al., 2020).
A deficiência está na sociedade que cria barreiras e dificulta o amplo acesso exatamente para classificar e qualificar certos corpos em inteligíveis e ininteligíveis, categorizando assim os indivíduos entre capazes e incapazes, celebrados e descartáveis, na mesma sequência bimodal que pode ser percebida quando dicotomizados corpo/alma, preto/branco, homem/mulher, normal/anormal, reproduzível/estéril e etc, criando um ambiente discursivo que fomenta práticas excludentes e, por fim, violentas. Não à toa, quando Foucault propõe o método arqueogenealógico, que inclui fundamentalmente o domínio dos códigos discursivos, a proposta é suspeitar, suspender, para reformular e refazer o discurso e os regimes de verdade hegemônicos (Foucault, 2012). O queer vai, inclusive, refundar a linguagem como forma de inscrever outras subjetividades na língua.
A teoria crip vem sendo timidamente incorporada nas ciências sociais e humanas e sendo traduzida no Brasil por teóricos como Anahi Guedes de Mello (2019) e Marco Gavério (2015) como teoria aleijada. Mello (2019, p. 133) propõe a necessidade de a teoria crip aleijar o queer e destaca que "provocar um aleijamento no queer tem o sentido de descolonizar, mutilar, deformar ou contundir o pensamento queer, provocando-lhe fissuras". Neste texto, em consonância com o pensamento da autora e do objetivo deste artigo, propomos também aleijar e transviar a psicologia, de modo que essa possa romper com o discurso biomédico que tanto tem contribuído para a patologização, medicalização e, em contextos como a Alemanha nazista, para a eliminação de corpos e mentes que não performam os ideiais normativos.
Somos constituídas por linhas de estratificação, mas também por linhas de fuga, o que implica a possibilidade de conceber um modo inteiramente afirmativo de existir, que não negocia com a falta no desejo, ao qual nada falta. Portanto, já que estamos sempre questionando o quanto as práticas clínicas psis (psiquiatria, psicologia e psicanálise) investiram no fortalecimento da capacidade corporal, da responsabilidade moral e da competência racional de um sujeito que é reincorporado aos quadros sociais - tendo suas multiplicidades capturadas nesse processo -, quais proposições são possíveis para fortalecer a psicologia de modo que esta seja utilizada como máquina de produção de desejo? E se o futuro não for mais tentar minimizar as diferenças entre nós, mas soltar as monstras e deixar que o pesadelo deles de serem devorados se torne realidade?
Por uma psicologia de práticas e epistemologias contra-hegemônicas
É bem verdade que já passou da hora de fazermos certos questionamentos, tais como: que tipo de conhecimento é valorizado nos espaços acadêmicos? Para qual propósito serve a manutenção de teorias e conceitos que não contemplam todos os modos de viver, e mais, que excluem certas vivências, certos corpos, certos modos de ser? Por fim, é imprescindível levarmos em conta que uma revisão de currículo se faz indispensável para almejarmos uma formação que dê base crítica e política para as futuras profissionais, clínicas ou acadêmicas, atuarem partindo da premissa transdisciplinar. Quando apontamos a necessidade de uma revisão curricular, estamos falando da graduação em primeira instância. É contraproducente que discussões como gênero, sexualidade, raça e estudos da deficiência, que defendemos ser os marcadores sociais basilares que perpetuam as estruturas de opressão, sejam oferecidas como matérias optativas ou eletivas ou, mais problemático ainda, que só sejam oferecidas nas grades da pós-graduação.
A premissa transdisciplinar deve ser trabalhada nos espaços de formação como perspectiva metodológica, partindo do pressuposto que é dialogar com outros campos do saber. Se a clínica transdisciplinar almeja ampliar essa vizinhança para construir estratégias clínicas em diálogo com a arte, a filosofia, a ecosofia e etc, para efeito de proporcionar outros agenciamentos que produzam vida (Deleuze, 2008; Spinoza, 2009), no entendimento do que é uma formação acadêmica ampla e inclusiva, a lógica deveria ser a mesma. A formação dos saberes já prioriza técnicas e teorias, mas deve ser ampliada para processos éticos, estéticos, afetivos, econômicos, políticos e sociais. Portanto, pensar um espaço de formação transdisciplinar é pensar em um espaço de intervenção, no qual a história das coisas não sejam as coisas em si, mas o conhecimento como possibilidade de desestabilização de tudo que é posto como cânone. A transdisciplinaridade concebida em campo aberto vai se opor a um conjunto de saberes que se impõem como universais e vai permitir, nesse processo de construção, afetar docentes e discentes, enquanto prevê a construção de pontes baseadas na produção da diferença, de modo não estático. Dessa maneira, apostamos nas contribuições do diálogo entre a psicologia e as teorias queer e crip para transviar e aleijar as epistemologias e práticas psicológicas de modo a permitir o acolhimento de corporalidades múltiplas. A possibilidade de produzir fissuras e romper com perspectivas essencializantes - situando a compreensão das vidas como relacionais e pensadas a partir de um enfoque antiessencialista (Magnabosco & Souza, 2019) -, potencializa novos modos de se relacionar com a diferença baseados no fomento de práticas que acolham, valorizem e celebrem as multiplicidades.
Ao problematizar o cenário de produção do conhecimento na psicologia brasileira, Antunes (2012) destaca que este não é linear e estático, e que abrange diferentes concepções de mundo e de humano. É bem verdade que existem perspectivas na psicologia que se dedicam a desconstruir a produção de conhecimentos discriminatórios e excludentes, com destaque para as autoras e autores do campo da psicologia social crítica e da psicologia política, que apresentam um compromisso ético com a desnaturalização e despatologização da diferença. Todavia, pouco tem-se debruçado a incorporar a deficiência como uma categoria de análise da psicologia (Gesser et. al, 2012) e o capacitismo como um processo discriminatório que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade, corroborando para que pessoas com deficiência sejam concebidas de modo generalizado como incapazes de produzir, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e serem desejadas (Mello, 2016). Ademais, o contexto religioso, hegemônico nos processos de subjetivação dos sujeitos, associado ao sistema econômico de hiper-(re)produção, escarificou os corpos cishetero dissidentes, oportunizando que, ainda hoje, existam debates dentro da categoria sobre possíveis tratamentos de reversão e correção de gênero e sexualidades. Exemplos disso são os movimentos pela ‘cura gay’, impulsionados no Brasil por psicólogas autodenominadas cristãs como Rozangela Justino e Marisa Lobo, que defendem publicamente práticas desse campo no tratamento da homossexualidade, sob pretexto dos princípios das liberdades individuais, religiosas e de exercício da profissão (Macedo & Sivori, 2018).
Defendemos a necessidade de politizar a deficiência e a dissidência sexual por meio de uma revisão radical dos parâmetros que sustentam o padrão de normalidade que, baseados no modelo médico, visam corrigir, normalizar e eliminar o que é considerado anormal e desviante. Acreditamos que a produção de rupturas na psicologia como ciência e profissão - e não a negociação por meio de disputa de narrativas debruçadas em DSM, CID, moralismos cristãos e políticos -, é que podem desestruturar enquadramentos capacitistas, lgbtfóbicos, racistas e de outros grupos historicamente marginalizados. Portanto, é preciso rever, reorientar e reestruturar a orientação ética da prática psicológica e não deixar de considerar que um posicionamento defensivo - como os tantos que encontramos na comunidade - é quase inevitavelmente conservador. E tal qual Paul Preciado, também nos dirigimos à comunidade psi como o macaco Pedro Vermelho (Kafka, 1994, p. 57-67) se dirigiu à Academia de cientistas - como corpos marcados pelos saberes médico, jurídico e social - para denunciar que os discursos “giram em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é - pelo menos até o momento - o sujeito da enunciação central no discurso das instituições” (Preciado, 2019, p. 12), o homem branco, heterossexual, religioso, monogâmico, sem deficiência e ocidental.
A partir do pensamento de Butler (2015), argumentamos que essa ruptura pode contribuir para que corporalidades múltiplas sejam não somente reconhecidas nos seus modos de existir, mas que se interrompa o ciclo de produção de precarização de certas humanidades. Porque, enquanto existirem ‘certas humanidades’, haverá inumanizações e vulnerabilizações sendo produzidas pelo contexto social, econômico, racial, sexual, de classe e gênero. Apontamos como desafio à psicologia o fomento de processos de coalizão de corpos dissidentes contra políticas neoliberais que, marcadas pela austeridade fiscal e pela política da aparência, criam hierarquias que encarceram umas existências e privilegiam outras. Deve-se pautar também a reestruturação ética, política e social das instituições em suas bases de referências, com relação ao conhecimento a ser transmitido, constituindo parte da responsabilidade social dessas instituições, garantir a qualidade profissional posta no mercado, para que esses profissionais não reproduzam a violência hetero-patriarcal-colonial e que reconheçam como político todo corpo humano.
Para isso, é fundamental e urgente que seja feito um mea-culpa por meio do pressuposto histórico de que “a psicologia não é uma crítica dessa epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos enormes da violência indescritível desse regime” (Preciado, 2019, p. 12). Indiscutível é a força política dos corpos dissidentes nas ruas, escolas, universidades e em quaisquer espaços da vida cotidiana. E para não caducar, a psicologia terá de escolher onde vai se situar na história: na construção coletiva de novas epistemologias ou na reprodução violenta de um sistema que falha pela própria essência autodestrutiva?
Conflicts of Interest:
The authors declare that the research was conducted in the absence of any commercial or financial relationships that could be construed as a potential conflict of interest.
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Notas
Notas de autor
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