Resumo: O artigo analisa a participação dos indígenas nas atividades de coleta das drogas do sertão, durante a vigência do Diretório dos Índios. Ele sugere uma explicação para os casos de participação voluntária naquelas expedições: nelas os indígenas encontravam espaço para ação independente, fomentavam a expansão de redes sociais e configuravam perspectivas econômicas.
Palavras chave: Drogas do sertãoDrogas do sertão,protagonismo indígenaprotagonismo indígena,Amazônia colonialAmazônia colonial.
Abstract: This paper is about the indigenous participation in the collection activities of the hinterland drugs, during the term of the Diretório dos Índios. It suggests an explanation for cases of voluntary participation in those activities: in them indigenous found space for independent action, they fostered the expansion of social networks and they configured new economic outlook.
Key words: Hinterland drugs, indigenous protagonism, Amazonian colonial history.
Artigos
Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades no sertão amazônico, c. 1750-1800
Colonial collecting expeditions and the pursuit of opportunities in the Amazonian hinterland, c. 1750-1800
Recepção: 26 Novembro 2012
Aprovação: 23 Abril 2013
Anualmente, durante a segunda metade do século XVIII, conforme os níveis do rio baixavam, uma média de 1.500 tripulantes indígenas partia de cerca de cinquenta aldeias para as florestas remotas do sertão amazônico.2 Pelos próximos seis a oito meses, conforme procuravam por cacau, salsaparrilha, castanhas ou ovos de tartaruga, eles podiam passar por todo tipo de dificuldade - epidemias, ataques de povos indígenas, fome, motins ou a perda da canoa da aldeia e sua carga, para indicar apenas algumas.
Ao retornarem, podiam encontrar suas famílias reduzidas à profunda pobreza ou doença, suas esposas tomadas por outros homens ou suas plantações abandonadas e devoradas por pestes. Contudo, apesar do caráter excruciante das expedições de coleta patrocinadas pelo Estado e das adversidades impostas àqueles deixados para trás, as viagens ofereciam oportunidades que outros tipos de trabalhos compulsórios não proporcionavam. Alguns dos que não eram obrigados a participar, tais como os oficiais nativos, faziam-no voluntariamente.3
A legislação do Diretório dos Índios (1757-1798) buscava regulamentar a distribuição de mão-de-obra nativa de tal modo que todos os homens capazes, exceção feita à elite indígena, fossem empregados nos serviços reais, nas roças do comum, no serviço para particulares ou nas viagens anuais de coleta.4 Listas de pessoas engajadas em cada tarefa e a contabilidade de sua produtividade preenchem vários volumes no Arquivo Público do Pará, representando quatro décadas de manutenção de arquivos por diretores de aldeias nas capitanias do Pará e do Rio Negro.5 Apesar de toda essa documentação, sabemos muito pouco sobre as experiências de trabalho e as preferências de indígenas coloniais. O caso dos tripulantes das expedições coloniais de coleta é uma exceção que, mesmo assim, tem sido quase que inteiramente negligenciado pelos historiadores.6 Além dos manifestos de carga, listas de tripulação e contabilidade de gastos das viagens, os diretores também deveriam registrar depoimentos dos tripulantes sobre o comportamento do cabo, principal da canoa e líder da expedição, durante a viagem. Embora a maior parte das devassas constitua apenas a satisfação de um procedimento burocrático, algumas delas forneceram descrições sem paralelo dos eventos que aconteceram no sertão e retrataram, frequentemente de forma dramática, os limites do controle colonial naquela esfera. E, contrariamente a quase todas as demais fontes coloniais, as devassas citavam ou parafraseavam os próprios índios - ou, pelo menos, elas pretendiam fazê-lo. Quando lidas junto a outros registros dos diretores, as devassas servem como uma janela de observação sobre como as expedições de coleta funcionavam na prática e como elas eram experimentadas por seus participantes nativos em diferentes lugares e tempos. Elas adicionam outra dimensão à historiografia recente acerca dos esforços dos índios para exercerem escolhas e construírem espaços de autonomia dentro dos limites do sistema colonial português.7
Este ensaio utiliza os depoimentos dos tripulantes para situar a ampla questão de quais oportunidades eles encontravam em suas incursões anuais para o interior. Mais especificamente, ele pretende fornecer uma explicação para os casos de participação aparentemente voluntária nas expedições - casos que minam o ponto de vista convencional de que apenas medidas coercitivas induziam os índios a participar. O ensaio primeiramente situa o comércio do sertão dentro de um contexto de esforços da Coroa no sentido de orientar as competências dos nativos nas coletas e conhecimento do interior para o desenvolvimento econômico regional. Posteriormente, explora as formas em que as expedições encontravam espaço para ação independente, fomentavam a expansão de redes sociais e configuravam as perspectivas econômicas dos nativos da Amazônia.
"Há tantos manatins e tartarugas, que se alguém empilhasse apenas aqueles que foram pegos e comidos até agora, eles fariam montanhas maiores do que as de Potosí". Neste comentário hiperbólico, um missionário jesuíta comparou a generosidade da natureza amazônica às famosas reservas minerais do vice-reino do Peru.8 Todos com algum interesse na economia da Amazônia, do colono mais humilde ao Conselho Ultramarino em Lisboa, queriam acreditar na possibilidade de um grande boom nas exportações de produtos como o cacau, a salsaparrilha, o cravo amazônico, as castanhas, as resinas e os óleos das árvores, as banhas de tartaruga e manatim e uma grande variedade de especiarias nativas.9 O consenso oficial em meados do século XVIII era que o principal obstáculo para tal boom era a crônica falta de força de trabalho na região: os índios com seu conhecimento do sertão e seus tesouros ainda não tinham sido efetivamente mobilizados para a causa e, então, fortunas como aquelas dos barões da prata de Potosí permaneciam fora do alcance.
Canoas de coleta, patrocinadas por missionários ou por particulares, operaram extensiva porém esporadicamente na Amazônia portuguesa desde pelo menos meados do século XVII, recrutando tripulantes daqueles mesmos povoados que se tornariam posteriormente aldeias de Diretório. Exportações de produtos da floresta (as drogas do sertão) flutuaram durante esse período anterior como resposta à falta de mão-de-obra, interrupções no envio transatlântico, sobre-exploração de áreas de coleta e instabilidade dos preços. A década imediatamente anterior à implantação do Diretório foi uma das mais desencorajadoras para o comércio de exportação da Amazônia: a quantidade de produtos como o cacau ou salsaparrilha aumentou e caiu vertiginosamente de ano para ano e nenhuma frota real sequer atracou na capital Belém em 1746, 1748, 1752 ou 1754.10 Durante os anos 1740 e o início da década de 1750, as epidemias se espalharam, de modo que patrocinadores de canoas não podiam mais alistar números adequados de tripulantes para suas expedições.11
Um objetivo do pacote de reformas direcionadas à Amazônia após 1750 (normalmente chamadas de reformas pombalinas, devido ao poderoso primeiro-ministro de Portugal, o marquês de Pombal) era remediar esses obstáculos à prosperidade econômica.12 Com sua criação em 1757, após a transferência de autoridade temporal sobre os índios dos missionários para oficiais civis, a legislação do Diretório tentou institucionalizar o comércio do sertão: padronizar os procedimentos de envio das canoas de coleta em todas as povoações indígenas; regularizar a participação nas expedições e a compensação daqueles envolvidos; reduzir o contrabando e as práticas de trabalho ilegais (as quais proliferaram durante a era missionária).13
Por volta da mesma época (1755), a Coroa estabeleceu uma companhia de comércio de monopólio real, a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico na região através do envio transatlântico regular e o fornecimento de escravos africanos para as empresas coloniais. De fato, o envio tornou-se mais frequente e pequenos grupos de escravos chegaram para trabalhar nas propriedades de açúcar e fazendas de gado ao redor de Belém, mas a economia continuava a girar em torno da mão-de-obra indígena e das atividades de extração até pelo menos o final da década de 1780 ou começo dos anos 1790.14
As expedições de coleta ocupavam a maior parte da mão-de-obra dos aldeamentos e representaram uma contribuição significativa para o total de exportações da América portuguesa, especialmente o cacau. Cerca de um terço dos homens das aldeias participava nas expedições, ao contrário de aproximadamente um quinto no serviço real, um sexto no setor privado, e o resto em diversas atividades que incluíam pescar para os oficiais do Diretório e remar nas canoas mercantis que atuavam na rota entre o Pará e o Mato Grosso.15 Relatórios da Fazenda mostram que, entre 1772 e 1788, as expedições dos aldeamentos do Pará empregavam uma média de 37 tripulantes, enquanto aquelas de localidades menores da capitania do Rio Negro empregavam uma média de trinta.16 Sua produtividade no sertão justificava o que era, naquela época, um grande dispêndio de recursos humanos. O cacau era a exportação economicamente mais importante da Amazônia durante o século XVIII e aldeias do Diretório enviavam uma média anual de quase 8.000 arrobas17NT das amêndoas de cacau para Lisboa. Isso compreendia cerca de vinte por cento do total de cacau exportado da Amazônia; o resto era fornecido por particulares que reuniam frutos selvagens ou, por volta de 1780, que os cultivavam em plantações ao longo do "corredor de cacau" entre Santarém e Óbidos.18 Durante o final do século XVIII, o Brasil classificava-se em segundo lugar entre os exportadores de cacau do Novo Mundo, quase todo ele derivado da Amazônia.19
O artigo 46 do Diretório estabelecia que "entre todos os ramos de negócio de que se constitui o comércio deste Estado, nenhum é mais importante, ou mais útil, que o do Sertão"; e isso colocava a responsabilidade do sucesso das expedições sobre os ombros dos diretores de aldeias.20 Os artigos subsequentes estipulavam quantos deveriam participar nas expedições e como seriam repartidos os lucros. Os oficiais indígenas nas aldeias podiam enviar de dois a seis índios cada (dependendo do nível da patente do oficial) para trabalhar para eles no sertão, contanto que pagassem seus salários; e os oficiais também podiam acompanhar as expedições se eles assim desejassem.21 Um adicional de dez a doze índios deveria trabalhar por conta própria para serem pagos por um percentual dos lucros na conclusão da viagem.22 Embora as mulheres indígenas devessem ficar nas aldeias para trabalhar na agricultura ou em indústrias locais, as listas de tripulação eventualmente revelam-nas participando em expedições exclusivas.23 Cada expedição também tinha de ser acompanhada por um cabo - uma pessoa de "conhecida fidelidade, integridade, honestidade e verdade" - que supervisionaria os tripulantes e coordenaria toda a empresa. Embora não estivesse estipulado no texto legal, os cabos poderiam ser brancos ou, muito mais raramente, mamelucos.24
Silencioso acerca da real conduta dos tripulantes e de seus comandantes no sertão, o Diretório simplesmente prescrevia uma supervisão cuidadosa nos portos das localidades no retorno das canoas (isto é, os diretores tinham de realizar um exame da carga e solicitar depoimentos de cada um dos tripulantes sobre o comportamento do cabo) e também no porto em Belém, onde os produtos eram finalmente depositados na Fazenda Real. As instruções finais para as expedições diziam respeito a lucros e pagamentos: o Estado seria ressarcido pelos suprimentos fornecidos, dízimos arrecadados e, finalmente, os lucros repartidos entre o cabo (vinte por cento), o diretor (cerca de dezesseis por cento), os oficiais nativos que haviam enviado índios às suas expensas e os tripulantes que haviam trabalhado por conta própria.25 Embora não estivessem especificadas na legislação do Diretório, deduções adicionais aparentemente tornaram-se comuns: uma parte para o tesoureiro, caridade para a Igreja e uma contribuição para os serviços públicos em Belém. O governador que supervisionou a abolição do Diretório calculou que, após as deduções serem feitas, apenas trinta por cento dos lucros sobravam para serem divididos entre os tripulantes do Pará e talvez apenas quinze por cento para aqueles da capitania do Rio Negro.26 Além disso, tripulantes sempre deveriam ser pagos em bens da Fazenda Real e não em espécie, devido a sua "rusticidade e ignorância" para gerir recursos financeiros.27
Diversos despachos subsequentes de oficiais em Belém normatizavam determinadas operações relacionadas à coleta no sertão que o Diretório ignorara. Em 1783, por exemplo, um documento produzido pelo intendente geral do Comércio delineou procedimentos explícitos para a coleta de cada produto. Pelo menos um exemplo merece ser citado em sua totalidade, pelo que revela sobre o entendimento oficial do que aconteceu (ou talvez mais precisamente, do que deveria acontecer) no sertão:
Quando em busca por cacau, a canoa deve deixar a aldeia até o dia 15 de dezembro; subindo o Rio Amazonas, vai para os rios Madeira, Peru ou Solimões. Como é costumeiro, [a tripulação] encontra um local numa margem de rio, onde faz uma feitoria, construindo uma oca de palha com uma estrutura ampla como sua base, em que se seca o cacau. Tendo chego nesse destino, o que deveria acontecer por volta de 20 de janeiro, preparam-se as esteiras (tupes), que imitam os tapetes tecidos nos Algarves, em que se seca o cacau e também se coloca dentro quando chove. [a tripulação] também fazem canoas pequenas o suficiente para que se dividam [em equipes diferentes] na busca pelo cacau, e deixando o cabo para trás na feitoria com dois índios, sobe-se o rio. Coleta-se o fruto do cacau ao longo das margens dos rios, e às vezes se vai meia légua28NT floresta adentro, pegando os frutos lá (...) por um período de seis, oito ou mais dias. Retornando à feitoria, entrega-se o cacau ao cabo; os índios que não foram a primeira vez agora se unem aos outros e retornam para coletar os frutos, até que tenham agrupado um montante suficiente e não possam encontrar mais nenhum. Seca-se bem o cacau, de tal forma que quando é espremido nas mãos, a pele [da vagem] deveria abrir partindo-se, indicando que está perfeito; então se carrega a canoa da aldeia em um compartimento protegido (...). Quando a colheita do cacau terminar, o que é normalmente em março, a canoa deveria ir à procura de outro produto, como o cravo amazônico, que é coletado da seguinte maneira (...).
Cada produto tinha suas diretrizes de coleta, mas elas não representavam de fato uma inovação nas práticas coloniais amazônicas. A descrição do jesuíta João Daniel de uma expedição típica de cacau durante a era missionária é notoriamente similar.30 O intendente estava muito provavelmente resumindo procedimentos que há muito se tornaram costumeiros e seu propósito foi, provavelmente, educar um governador recém-chegado sobre as atividades de extração da colônia, ao invés de regular ou reformar algo propriamente dito. As diretrizes, contudo, não deixavam espaço para surpresas; elas colocavam o que sempre havia sido uma operação autônoma e, portanto, irregular, em um molde padrão. Conforme este ensaio mostrará, as expedições de coleta raramente se adequaram às diretrizes, pois elas sempre haviam proporcionado um leque de oportunidades para atividades não supervisionadas e relacionadas a interesses discrepantes.
Enquanto alguns altos oficiais na colônia se aproveitavam dessa situação para ganho pessoal, outros repreenderam seus abusos. Isso produziu um longo rastro de papeis de denúncias e contra denúncias de pessoas que tinham interesses na economia de coleta. "Eu achava", um juiz da alta corte escreveu em 1761,
que quase todos os cabos aspirassem seu próprio negócio [no sertão], em detrimento aos índios miseráveis (...). Aos artigos 41, 42, 53 e 54 do Diretório eles não prestam nenhuma observância; e quando, na partida desses mesmos cabos para o sertão, eu disse a eles como deveriam se conduzir, eles ficaram tão desgostosos que queriam argumentar comigo.
Não é de se surpreender que os artigos citados fossem aqueles que continham proibições ao tráfico de aguardente nos aldeamentos (nos 41 e 42) e que esboçavam expectativas básicas de honestidade e justiça dos cabos (nos 53 e 54). Outro despacho do juiz determinou as contravenções específicas que ele investigara, numerando nove casos ao todo e deixando a impressão de uma rede ampla de trocas ilegais entre oficiais do Diretório no Pará. Seis cabos e três diretores de aldeia foram acusados de vender os produtos da expedição para seu próprio lucro, roubar dos fornecedores coletivos e desviar a mão-de-obra de tripulantes indígenas, para indicar apenas algumas de suas transgressões.32
Vinte anos depois, o comércio do sertão ainda era um emaranhado de atividades não regulamentadas. Um ex-governador descreveu, como o juiz antes dele, o "conluio" entre diretores, cabos e vários oficiais da Fazenda que perpetraram "mil truques e extorsões contra a credulidade simples de índios desgraçados". José de Nápoles Telo e Menezes ficou particularmente enfurecido pelas práticas do tesoureiro dos Índios que ofereceu, em troca pelas preciosas drogas do sertão, "bens de nenhuma validade ou utilidade, [vendendo-os aos tripulantes] a preços arbitrários e exorbitantes".33 Em outras instâncias, aos índios aparentemente nada era dado por seu trabalho, como o que aconteceu com os tripulantes do aldeamento de Azevedo.34 Embora o ex-governador culpasse o tesoureiro por tais abusos, ele estendeu suas críticas aos diretores e cabos e, acerca destes, não mediu as palavras:
Esses homens astutos, que são ao mesmo tempo os mais preguiçosos e negligentes, comumente não fornecem nenhum serviço exceto conduzir a canoa da aldeia até a localidade da feitoria no sertão; onde, ao recuar para uma oca que é construída para sua acomodação e dos suprimentos, nada os preocupa; [eles continuam] comendo e bebendo abundantemente, às custas dos desgraçados [os índios]; enquanto isso, estes abrem caminho através das florestas trazendo de volta os produtos da colheita até que o clima ou [os níveis] de água precisassem de seu retorno.
Nesse enfoque singular do cabo como uma figura abusiva e exploradora, essa descrição e outras como ela contam apenas uma parte da história.36 Embora indique que o comércio do sertão estava muito aquém do proposto pelo Diretório, ela transmite muito pouco sobre o papel desempenhado pelos próprios índios. Será que os tripulantes, como os cabos delinquentes e diretores mencionados acima, participaram de rede subterrânea de trocas que ajudava a compensar os pagamentos insuficientes que recebiam da Fazenda? Será que eles tiravam proveito de sua autonomia nas atividades de extração para trabalhar, como alegou um diretor, "à sua discrição, e quando quer que eles assim o quisessem"?37
Muitos historiadores assumiram que se alguém pudesse evitar as expedições de coleta ordenadas pelo Estado, de fato as evitava.38 Há, contudo, ampla evidência que sugere que alguns homens participavam voluntariamente. Como Barbara Sommer já apontou, alguns eram oficiais nativos que não eram obrigados a ir para o sertão, como o sargento Theodósio Ferreira, sobrinho do principal de Souzel, recém-nomeado para o posto de alferes (porta-bandeira ou segundo-tenente). Quando notificado da nomeação, disse ao diretor "que ele não queria ser um Alferes, um posto que seu tio havia buscado para ele; ele queria continuar um sargento e queria ir na canoa de coleta para o sertão este ano para trabalhar por conta própria, [ao invés de] ser sentado em frente de todos com seu pai de pé" (em outras palavras, ele não queria ser promovido acima do posto de seu pai). Aqui estava uma situação em que alguém preferia continuar no que era indubitavelmente uma expedição árdua do que ser promovido a um posto mais elevado da burocracia colonial e ser obrigado a servir na localidade.39
Outros exemplos de voluntários incluem o principal que se ofereceu para servir de piloto para a expedição de sua aldeia, supostamente porque ele queria visitar e comercializar com uma nação indígena independente; o irmão de um piloto de expedição que entrou na canoa como um passageiro, esperando esquivar-se de um compromisso com o serviço real; o índio de Veiros que, de volta do serviço real, parou para visitar parentes em Porto de Moz e acabou acompanhando a expedição daquela vila; ou o índio de Monte Alegre, possivelmente um fugitivo, que se uniu à expedição de Portel.40 Não há certeza, é claro, do voluntarismo desses homens. No entanto, caso tenha havido coação, é de notar que ela não se voltava para inserção desses homens nas políticas oficiais de distribuição de mão-de-obra.
Também vale a pena destacar que não há registros de participação aparentemente voluntária em quaisquer outros tipos de trabalho patrocinado pelo Estado. Embora difícil de quantificar, os relatórios dos diretores apontam, de fato, para taxas mais elevadas de absenteísmo em outros tipos de trabalho compulsório.41 Embora houvesse alguns casos nos quais pessoas fugissem na noite da partida da canoa de coleta, era comum, ou talvez mais comum, os tripulantes completarem a expedição para o sertão, mas depois tornarem-se escassos no retorno à aldeia, a fim de evitar a longa e arriscada viagem para Belém para entregar os produtos.42 É também significativo que o tamanho das tripulações permaneceu razoavelmente constante entre 1772 e 1788.43 Dada a habilidade limitada do Estado e seus representantes locais em recrutar índios para outros tipos de trabalho, o seu sucesso em preencher os lugares nas canoas de coleta deve ter dependido de algo mais além do que a força.
Nessa linha, alguns pesquisadores reconheceram que índios coloniais defrontavam-se com um leque mais complexo de opções no que diz respeito ao sistema de trabalho do Diretório do que simplesmente uma escolha entre concordância submissa ou fuga. Sommer sugere que os índios possam ter encarado as expedições ao sertão como uma trégua nas obrigações mais árduas nos aldeamentos e Mauro Cezar Coelho menciona que os tripulantes tinham usufruído de acesso a atividades comerciais não supervisionadas no sertão.44 As devassas e as fontes complementares examinadas abaixo confirmam essas impressões e fornecem mais evidências das oportunidades apresentadas por uma viagem ao sertão.
Nosso conhecimento sobre as explorações das expedições de coleta no sertão depende fortemente das devassas nas quais os tripulantes depunham acerca do comportamento de seus cabos. As perguntas usadas para obter esses depoimentos revelam as preocupações coloniais/burocráticas prevalecentes então: contrabando, uso ineficiente da força de trabalho, contatos não sancionados com grupos nativos independentes e práticas de trabalho abusivas. Por exemplo, em um inquérito típico da década de 1770 perguntou-se aos tripulantes:
Se haviam apanhado mais produtos do que aqueles que entregaram; Se, por um erro do cabo, falharam em apanhar mais produtos; Se coletaram produtos em alguma terra onde pudessem ter encontrado índios Mawé; Se o cabo os tratara com caridade.
Os depoimentos dos tripulantes sobre cada um desses pontos (ou uma resposta mais genérica) seriam então devidamente registrados pelo escrivão da aldeia ou pelo próprio diretor, especificando nome, idade, estado civil e aldeia de origem de cada um. De modo usual, os pilotos da expedição (jacumaúbas) forneciam os primeiros depoimentos, seguidos pelos arqueiros (proeiros), em razão de seu status mais elevado entre os tripulantes.46 Geralmente, os depoimentos dos pilotos eram os mais detalhados enquanto os dos demais eram mais sucintos, normalmente corroborando o do piloto. Entretanto, às vezes, havia discrepâncias sobre o que aconteceu na expedição. O número de tripulantes disponível para depor variava entre todos os que haviam participado da expedição e cerca de meia dúzia que podiam ser arrolados após a maioria ter partido para suas propriedades. Tipicamente, tripulações de expedição tinham uma ou duas semanas de descanso nas localidades, frequentemente programadas para coincidir com as festas de são João em junho, antes que alguns tripulantes seguissem para Belém para entregar os produtos.47
Uma busca detalhada pelos relatórios dos diretores rendeu 185 devassas, representando 44 diferentes aldeias do Diretório no Pará e Rio Negro e abrangendo os anos 1762-1795. A maioria traz respostas padronizadas, com os depoentes manifestando-se favoráveis à conduta de seus principais e alegando desconhecer qualquer comportamento anormal. Mas trinta e seis delas são distintas por registrarem críticas sobre o cabo e/ou fornecerem o que parecem ser depoimentos de primeira-mão da expedição.48 Elas revelam como as expedições eram vividas pelos próprios tripulantes e o que eles concebiam como transgressões de seus direitos ou como negligência da parte do cabo. Uma devassa altamente incriminadora sempre causava um rebuliço no pequeno mundo dos aldeamentos, quer resultasse na prisão do cabo ou sua transferência para outra região ou não e, como tal, constituiu uma estratégia para apresentar queixas, defendendo as ações de quem quer que fosse ao sertão e interferindo nas possibilidades de participação de outros nas expedições.49
Tais devassas variaram tanto acerca do conteúdo que seria impossível escolher uma como representativa. O excerto seguinte fornece, contudo, uma ideia de como os depoimentos dos tripulantes estavam estruturados. Registrado por um escrivão na residência do diretor de Oeiras, em 1772, o primeiro depoimento, dado pelo índio mais velho na tripulação e, provavelmente, um dos pilotos da expedição, diz o seguinte:
Dionísio Régis, um índio viúvo, por volta de 50 anos de idade, mais ou menos, colocou sua mão direita sobre as Escrituras Sagradas e jurou dizer a verdade sobre o que lhe fosse perguntado. Questionado acerca dos procedimentos da devassa, a testemunha disse: que tendo ido para coletar no Rio Solimões, onde havia cacau e onde a testemunha sabia que eles conseguiriam uma boa coleta, por culpa do cabo eles voltaram rio abaixo, deixando para trás o que poderia ter sido uma boa coleta. O cabo disse que não lhe importava se a canoa pegasse produtos ou não, e vendo que ele era um homem que não admitia razão, eles não disseram nada (...). Além disso, dado que eles estavam pacificamente estabelecendo uma feitoria, o cabo ordenou ao índio Feliciano ir cortar madeira para a feitoria, ao que o índio respondeu que não havia machetes, dado que todas elas estavam sendo usadas presentemente na floresta (...). Passado um espaço curto de tempo, o cabo pegou um pedaço bem grosso de madeira e traiçoeiramente bateu com ele no referido índio, fazendo com que caísse ao chão, e depois pegou uma faca e o esfaqueou na bochecha e depois novamente na mão direita. E quando os parentes do índio viram que aquele cabo estava prestes a matá-lo, eles prenderam [o cabo] para tomar a faca para que nada mais acontecesse. E isso é tudo [que a testemunha] disse, tendo sido questionada e ouvida pelo Diretor (...). Ele assinou [o depoimento] com uma cruz, dado que ele não lê nem escreve.
As cinco testemunhas restantes da devassa, todos homens casados com idades entre 30 e 40 anos, contaram essencialmente a mesma história. Todas as testemunhas enfatizaram a culpa do cabo pela coleta insuficiente do cacau, seu comportamento irracional no sertão e seu ataque cruel a um dos membros da tripulação (que, curiosamente, não testemunharam).50
As devassas apresentam ao historiador dificuldades de interpretação por diversas razões. A primeira tem a ver com a cobertura irregular. Embora a maioria das vilas e aldeamentos do Pará e Rio Negro fosse representada ao longo do tempo, muitos diretores não enviavam devassas ao governador, como indicam as admoestações constantes que recebiam. Isso abre a possibilidade da omissão ser proposital para proteger um cabo delinquente, o que, afinal, pode sugerir que as devassas enviadas eram tendenciosas.51
O segundo problema é o fato de que os depoimentos dos tripulantes eram registrados por uma terceira pessoa que podia (ou não) ter interesse no negócio, e o diretor, independentemente se servia como escrivão, possivelmente desempenhava um papel mediador no inquérito também. Interessado precisamente nesses aspectos, Coelho utilizou uma gama menor dessas fontes - um total de dez, quase todas devassas típicas - para examinar as relações de reciprocidade entre cabos e diretores. Ele destacou que, normalmente, um oficial validava o comportamento do outro: o diretor se certificaria de que a devassa fosse positiva e o cabo enviaria uma declaração breve, ou certidão, atestando que o diretor cumpriu com as obrigações de seu posto.52 Dada a probabilidade de diretores e cabos serem ligados por parentesco ou status social, as declarações favoráveis dadas a um e outro poderiam ser de pouca utilidade às autoridades mais elevadas.53 Entretanto, existem alguns casos em que os depoimentos da devassa eram desfavoráveis aos cabos mas, ainda assim, o diretor os defendeu em carta anexada. Isso sugere que depoimentos incriminadores possam ter sido coletados mesmo quando o diretor e o cabo estavam solidários um ao outro.54 Ao menos em duas devassas os depoimentos eram muito críticos ao cabo, mas, assim mesmo, ele assinou a declaração favorável ao diretor.55
O terceiro problema refere-se ao que se perdeu na tradução. É muito provável que a maioria dos tripulantes não falasse português, mas se comunicasse na língua geral, a língua-franca que predominou nas comunidades amazônicas coloniais por todo o século XVIII. Nos aldeamentos com grande número de índios recentemente estabelecidos, como na capitania do Rio Negro, nem a língua portuguesa nem a língua geral teriam sido faladas amplamente, e teria sido mais difícil encontrar tradutores para línguas indígenas específicas. Índios estabelecidos recentemente não deveriam servir nas canoas de coleta até que tivessem passado dois anos morando no estabelecimento colonial, mas não há evidências de que essa regra tenha sido cumprida e parece razoável concluir que eles testemunhavam como tripulantes. Surpreendentemente, muitas listas de tripulantes de canoas das aldeias do Rio Negro registram índios com nomes não cristãos - indicando que haviam chegado tão recentemente que ainda não tinham sido batizados - embora estes nunca estivessem entre as testemunhas das devassas.56 Podemos apenas presumir que as devassas fossem registradas sem o auxílio de tradutor e que os depoimentos escritos fossem apenas versões aproximadas do que era dito, se não fossem completamente fabricados.
Finalmente, mesmo se o escrivão ou o diretor compreendesse e registrasse o depoimento, os tripulantes indígenas poderiam, de modo proposital, ter dado explicações distorcidas. Das 36 devassas atípicas, 21 seguiram-se logo após uma expedição sem sucesso (isto é, quando a canoa ou os produtos foram perdidos ou comprometidos de alguma forma). Destas, um pouco mais da metade apresentaram depoimentos que culpavam o cabo pelo fracasso (11 de 21 devassas).57 Dada sua própria responsabilidade para com o sucesso da expedição, o diretor encontrava-se em dificuldades de encontrar alguém para culpar e, então, os tripulantes teriam sido espertos para desviar toda a culpa de si para o cabo, quer fosse realmente o caso ou não. Ou eles podem ter sido pressionados ou ameaçados pelo cabo para encobrirem quaisquer contratempos ou atividades anormais que tivessem ocorrido durante a expedição, como no caso dos índios de Borba, cujo cabo os instruiu para não contarem ao diretor sobre os bens que ele havia vendido ilegalmente em outra localidade. Os tripulantes acabaram revelando a ação e, por isso, sabemos sobre o subterfúgio.58 Isso também pode ajudar a explicar as sete devassas em que os depoimentos culpavam fatores externos - falta de mantimentos, enchentes ou escassez do produto a ser coletado - para o resultado desapontador da expedição. Houve também dois inquéritos em que tripulantes culparam outro membro da tripulação; e um em que a tripulação não pôde concordar quanto às razões para o fracasso da expedição.
Certamente, houve muitas outras em que tripulantes e cabo estavam solidários, ou, pelo menos, protegiam práticas e arranjos que eram mutuamente benéficos. Como aponta a pesquisa de Coelho sobre relações de reciprocidade nos estabelecimentos coloniais, uma devassa típica, positiva - ou a ausência completa de uma - pode, na realidade, indicar que mais, e não menos, havia sido feito para minar os padrões estabelecidos pelo Diretório.59 No retorno de uma expedição a Serzedelo, nenhuma devassa foi realizada. De acordo com o diretor, isso aconteceu porque:
todos [os tripulantes] que estão seguindo para a Cidade [para entregarem os produtos coletados] são tão conspiradores com seu cabo e tão próximos a ele que nenhum sequer quis depor (...). Apenas com punição severa eles virão confessar a verdade, dado que o cabo os permite ficar com todo o cravo que puderem encontrar para suas putações [provavelmente potabas, isto é, porções bônus frequentemente comercializadas ilegalmente] e lhes deu muito aguardente, que é tudo que os índios querem.
A esmagadora proporção de devassas nas quais os depoimentos aprovavam o comportamento do cabo (149 de 185) deveria ser compreendida nesse contexto. Seus depoimentos típicos poderiam indicar um acerto entre cabo e tripulação - fosse baseado nas obrigações do Diretório ou, mais provavelmente, na proteção de interesses comuns - ou podem mascarar antagonismos reais entre os dois. Sem fontes corroborantes, é impossível dizer.
Considerando a natureza problemática das devassas, elas devem ser lidas, de modo crítico e em conjunto com os outros documentos que, de modo usual, as acompanhavam: as cartas dos diretores, de modo particular, mas também as listas de tripulação e carga, a contabilidade dos gastos e as certidões dos vários oficiais das vilas e localidades. Essa documentação complementar pode esclarecer detalhes referentes às devassas ou mesmo mudar seu significado completamente.
Ir ao sertão por seis a oito meses era sempre árduo, muitas vezes ameaçador à vida e eventualmente fatal, mas não era uma experiência de exílio. A bacia amazônica evoca imagens de um território infinito, esparsamente povoado - como se, nas palavras do naturalista renomado Alexandre Rodrigues Ferreira, "todas as pessoas nele pudessem ser ligadas à família de Noé, no meio do mundo pós-dilúvio".61 A impressão da baixa densidade populacional é precisa desde que estejamos nos referindo à era pós-contato.62
Mas como Daniel Usner destacou para o baixo vale do Mississipi durante o século XVIII, a imagem padrão da vastidão territorial e ocupação esparsa "não apenas exagera a infinitude de vida no vale", mas nos leva a ignorar conexões intra-regionais importantes. Como suas contrapartes na economia de fronteira da Louisiana, as populações da Amazônia colonial falavam a língua geral, trocavam produtos locais por aguardente, miscigenavam-se e construíam relações de crédito que as uniam em uma rede intercultural que, embora não fosse igualitária, era caracterizada por relações sociais fluidas.63 Brooke Larson identificou processo similar na Cochabamba do período colonial tardio, onde populações nativas e mestiças desenvolveram um "mundo híbrido interior" baseado em festas religiosas populares, feiras, tavernas, locais de peregrinação, e instituições coloniais como conselhos municipais. No caso amazônico, esses "locais dispersos de microcoletividades", como Larson as chama, eram mais frequentemente localizados em hidrovias navegáveis, o que assegurava que diversos grupos de pessoas estariam continuamente de passagem.64 Desde muito cedo, entre 1686 e 1720, existiam proibições reais a soldados, mamelucos, negros e homens do mar entrarem no sertão para fins de coleta.65 Autoridades consideraram que essa mistura de pessoas era incontrolavelmente perigosa, mas, como Hal Langfur argumentou acerca das chamadas "terras proibidas" do leste de Minas Gerais, o sertão não poderia ser cercado por decreto e as tentativas de fazê-lo tornaram-no ainda mais atrativo.66
As canoas de coleta demoravam-se em diversos portos conforme seguiam sertão adentro e, de novo, nas descidas rio abaixo, uma prática que estrategistas coloniais buscaram restringir devido às oportunidades que ofereciam ao comércio de contrabando, "conduta indisciplinada", e que ainda atrasava o progresso da expedição. Um diretor repercutia ordens recentes quando escreveu: "Sua Alteza não permite a ninguém ir na canoa de coleta exceto os índios necessários (...) e eu avisei ao cabo que depois de partir dessa aldeia para ir para a Cidade [de Belém], ele não devia permitir que nada fosse retirado da canoa nem aceitar pacotes de ninguém em lugares em que [a canoa] parasse".67 Entretanto, conforme as páginas anteriores deveriam ter deixado claro, os esforços para limitar a autonomia dos tripulantes eram tão eficazes quanto os próprios cabos que podiam ser tão ávidos quanto os índios (ou mais ávidos) para passarem alguns dias comendo, bebendo e fazendo trocas nas vilas e lugares, nas fortalezas, nos pesqueiros ou nas aldeias nativas mais próximas.
Em muitos casos, os tripulantes escolhiam para onde iam, o que coletavam e quanto tempo levavam. Mesmo antes que as expedições partissem, a decisão sobre onde ir coletar e qual produto ir buscar usualmente cabia aos oficiais nativos, pilotos ou tripulantes como um grupo, já que se acreditava que tinham maior conhecimento de tais assuntos.68 Na rota, os tripulantes podiam ser deixados com seus próprios instrumentos; devassas numerosas e cartas de diretores implicavam os cabos por "abandonar" a tripulação. Ao invés de acompanhar os índios em suas rodadas de coleta ou de ficar na feitoria para supervisionar o processamento dos produtos, muitos cabos partiam em busca de companhia feminina ou oportunidades de comércio em aldeias ou propriedades próximas. Outros simplesmente retornavam cedo para o estabelecimento e esperavam o retorno das equipes de coleta.69 Referindo-se à devassa recente que havia conduzido, o diretor de Alenquer relatou que "os índios não disseram nada sobre o cabo, e nem podiam, porque embora tivessem partido da aldeia com eles, ele não os acompanhou enquanto coletavam salsaparrilha".70 Esse cabo havia despachado cada um dos dois pilotos em canoas separadas de onze índios cada, e as equipes partiram para coletar em rios diferentes, enquanto o cabo e diversos outros tripulantes foram para um pesqueiro não muito longe da aldeia. Cada uma das duas equipes de coleta retornou separadamente, semanas após o cabo ter voltado a Alenquer, e o diretor não estava satisfeito com a aparência dos tripulantes quando eles finalmente desembarcaram:
Retornando da coleta, eles venderam muita salsaparrilha ao longo do caminho de volta para a aldeia, e era óbvio que o haviam feito porque ambas as equipes de expedição (bandeiras), que o cabo despachara no Rio Solimões, retornaram para essa aldeia completamente bêbados, não apenas os pilotos como também os remadores. Tudo isso [foi] causado pelo cabo fracassar em acompanhá-los, como é sua obrigação.
Assumindo que essa fosse uma descrição fiel, o diretor pode ter sido correto em sua conclusão de que as equipes de coleta tiraram proveito de sua autonomia para comercializar os produtos ao longo do caminho de volta, recebendo aguardente em troca de salsaparrilha. Outra possibilidade é que eles tivessem aproveitado para visitar e beber com amigos e familiares dos altos rios, ou tivessem ido a uma festa de aldeia que, normalmente, tinha generosas quantidades de bebida.72
Talvez mais comuns que expedições não supervisionadas eram situações nas quais os tripulantes seguiam a iniciativa de seus cabos de parar para comercializar e confraternizar-se em lugares no meio da rota. É impossível saber, pelas devassas, até que ponto os tripulantes eram cúmplices dessas paradas porque, de maneira sagaz, utilizavam seus depoimentos para se apresentar como participantes involuntários ou testemunhas desaprovadoras dos excessos do cabo. De modo não surpreendente, tais depoimentos ocorriam mais frequentemente em expedições sem sucesso quando a culpa tinha de ser atribuída a alguém.
Cúmplices ou não, é evidente que, de maneira regular, os tripulantes entravam em contato com uma ampla gama de pessoas durante as expedições. A devassa de 1774 do cabo de Silves, na capitania do Rio Negro, é representativa do número de inquéritos incriminadores que decorreram de uma expedição fracassada. De acordo com o depoimento de um dos tripulantes, o cabo parou "em todos os aldeamentos, causando perturbações, convidando amigos e mulheres para usar delas, dando bebidas para uns e outros, levando garrafas de aguardente da canoa para seus convidados e, cheio de [álcool], causando brigas e desordens".73 Os outros tripulantes deram relatos similares de festanças com bebidas e comportamento turbulento em vários lugares, incluindo Santarém, Porto de Moz e Taguapuru. A carta do diretor fornece munição adicional contra o cabo: solicitado para explicar a quantidade escassa de produtos que havia trazido - e tendo utilizado quase toda a farinha de mandioca fornecida para a expedição - o cabo ameaçou o diretor com uma faca e depois fugiu.74
Outros cabos enviaram tripulantes em missões para lugares afastados ou os desviavam para realizar outros trabalhos ao longo do caminho. O cabo de Portel, Bernardo Ferreira Brazão, enviou dois tripulantes para limpar um lote de terra e construir uma casa para uma mulher em Silves; também enviou três índios em uma das "canoas do rei" até a longínqua Borba, no rio Madeira, para ir buscar uma canoa que ele comprara de um colono lá. Quando o diretor perguntou aos tripulantes se todos os produtos que eles coletaram chegaram com o resto da carga na aldeia, um tripulante respondeu que ele não sabia da carga porque ele sempre estivera fora em missões.75 O mau uso da mão-de-obra dos tripulantes pelo cabo pode ser interpretado de duas maneiras: ou como uma exploração ou como um acerto mutuamente benéfico. Embora eles não pudessem dizê-lo ao diretor, sair em uma viagem independente a Borba podia ter seus atrativos para os tripulantes. Afinal, tratava-se de uma viagem em direção às áreas mais famosas para pesca de tartarugas da região e a própria aldeia era bastante visitada por comerciantes da rota para a capitania do Mato Grosso.
Embora os principais caminhos fluviais oferecessem a maioria das oportunidades para participar em redes sociais, as expedições também encontravam companhia nas florestas do interior: intencionalmente ou não, era comum o encontro com grupos nativos independentes, geralmente referidos como gentios nas fontes.76 Autoridades coloniais encorajavam esses encontros até o ponto em que serviam de meio para persuadir o gentio a estabelecer-se nas vilas e lugares. Outros propósitos eram geralmente considerados suspeitos, como indicado pelas perguntas feitas aos tripulantes nas devassas, isto é, se o cabo havia comercializado armas ou pólvora com quaisquer nações indígenas.77 Também nestes casos, tal como nos relatos de paradas ao longo da viagem para comercializar e socializar, os tripulantes eram relutantes em mostrar cumplicidade com quaisquer encontros dúbios com tais grupos nativos e, de modo particular, se eles fossem considerados hostis à ação colonial. Conforme mencionado anteriormente, todo o comércio com os índios Mawé havia sido proibido desde 1769, "porque a experiência demonstrou", escreveu o então governador,
que esses pobres homens resistiram às propostas que nós fazíamos para que deixassem seus modos pagãos, devido à introdução de ferramentas e outros produtos fornecidos pelas pessoas que iam comercializar com eles. É necessário reduzi-los à necessidade, de tal forma que terminem reassentando quando vierem a precisar [dessas ferramentas], vendo-se privados da assistência que até agora lhes foi descortesmente prestada.
Além dos Mawés, entre outras nações suspeitas durante a segunda metade do século XVIII estavam os Mura, Mundurucu e Juruna porque eram grupos de grande mobilidade e que também costumavam realizar suas próprias expedições de coleta (especialmente de tartarugas que depositavam seus ovos ao longo das praias dos rios Amazonas, Madeira e Solimões) e, por isso, frequentemente cruzavam caminho com as canoas de coleta das vilas e lugares.
Alguns eram encontros violentos que os tripulantes teriam sem dúvida preferido evitar porque esses ataques resultavam em ferimentos e mortes.79 Suas atitudes em relação a encontros não violentos com grupos nativos independentes são difíceis de encontrar nas fontes. Das quatro devassas que descreviam tais encontros, dois grupos de depoimentos culparam o gentio pelo fracasso da expedição; um conjunto responsabilizou o cabo; e o outro, o piloto da expedição que era também o principal da aldeia.80 Nos depoimentos que culpavam os membros da expedição, os tripulantes destacaram seu medo dos gentios e seu desejo de não ter relação alguma com eles. Uma testemunha descreveu o contato ilícito do cabo de Silves com os Mawés assim:
Ele descansou em sua aldeia [e não fez] nenhum esforço para coletar nada, [seu objetivo] sendo apenas comercializar com o gentio da floresta, a quem ele distribuiu um rolo de pano e quase todo o equipamento que foi levado para armar a canoa. E é por isso que a expedição fracassou, porque ele foi contra a opinião do piloto e o resto dos índios receosos, dizendo a eles que o governador (Senhor General) lhe dissera que poderia coletar onde quer que desejasse.
Medo e aversão são também temas dominantes nos depoimentos acerca de uma expedição controversa específica de Pinhel. Desta vez, os tripulantes denunciaram as atividades de seu principal, Sebastião Pinto, que se juntou à tripulação voluntariamente como piloto e conduziu a expedição para territórios indígenas apesar das objeções da tripulação e do cabo (este se recusou a ir, mas a tripulação aparentemente não teve opção). De acordo com um dos tripulantes, o principal Pinto lhes disse, ao chegarem, "Eu trouxe todos vocês aqui a fim de me livrar da canoa e para que o gentio os mate" (ou, como foi citado em outro depoimento, "Eu não me importo com a coleta; eu só quero me livrar da canoa e que o gentio os mate"). O tripulante alegou não saber quais negócios Pinto tinha na aldeia do gentio, "porque [nós] receosamente não nos aproximamos das casas onde o principal estava".82 Outro tripulante acrescentou que eles apenas foram para territórios dos gentios porque recearam retaliação do principal e de seu cunhado que também participou na expedição. Se acreditarmos em outras cartas do diretor, Pinto usou a expedição para solidificar mais uma aliança que estava construindo há algum tempo com diversas nações indígenas, com o objetivo final de coordenar um ataque nos estabelecimentos coloniais ao longo do rio Tapajós.83 Dada a seriedade da conspiração alegada, não é surpreendente que os tripulantes quisessem ser descritos como receosos, participantes involuntários na visita ao gentio.
Evidências de outras fontes, menos polarizadas, sugerem que medo e aversão não eram respostas-padrão de índios coloniais quando encontravam grupos nativos independentes. Várias cartas de diretores reportam contatos positivos das expedições com o gentio e enfatizam o papel ativo dos tripulantes em mediar tais contatos. Durante a expedição de Monte Alegre em 1788, por exemplo, o tripulante Valentim Antônio teve a oportunidade de falar com os índios Mawé, sua própria nação de origem, e "eles lhe indicaram [seu] grande desejo de deixarem para trás seu paganismo e irem para essa aldeia, e de fato ele trouxe consigo algumas pessoas do referido povo, que estão [morando] aqui contentemente".84 Documentos como esse refletem o período em que foram escritos. Encontros informais com os Mawés tinham sido proibidos em outro momento e, no geral, era necessária permissão oficial do governador antes de entrar em negociações de estabelecimento de grupos indígenas. Em 1790, todavia, as autoridades suspeitavam menos de contatos não supervisionados ou espontâneos com grupos nativos independentes e reconheciam que o comércio informal era uma técnica tradicionalmente honrada para convencê-los a aceitar as práticas de aldeamento. "Todos os pilotos me disseram que comercializar com o gentio era necessário", um diretor escreveu em 1792, "pois serve como [um meio de] persuasão (prática)" - isto é, reassentar ou manter relações amigáveis com índios coloniais e colonos. Ele prosseguiu perguntando se esse tipo de troca comercial podia ser oficialmente sancionada pela Fazenda através da provisão de itens extra de comércio.85 O comércio informal foi, de fato, promovido entre núcleos coloniais ou expedições e os Mura - uma das tribos da colônia tradicionalmente mais hostis - porque havia se mostrado como um método eficiente de trazê-los à esfera colonial.86
Ao longo do tempo, conforme os produtos silvestres tornaram-se mais difíceis de encontrar no sertão, o comércio entre canoas de coleta e grupos nativos independentes também passou a ser visto como um meio necessário para se ter acesso a territórios mais distantes e impenetráveis.87 O governador Francisco de Souza Coutinho oficialmente sancionou o comércio e outras formas de comunicação entre expedições de coleta e grupos nativos independentes em 1790, mas diretores individuais já relatavam tais contatos por algum tempo e sem nenhum sentimento de estar cometendo algum tipo de delito.88 "Eles procuravam produtos no centro dos territórios dos gentios, e o cabo se encontrou em evidente perigo", um diretor relatou em 1775, então "a fim de salvar suas vidas bem como fazer o gentio lhes mostrar o melhor lugar para coletar e ajudá-los [na coleta], ele distribuiu-lhes todos os suprimentos [da expedição] (...) com a aprovação do piloto e do resto dos tripulantes".89 Da mesma maneira, o cabo Bernardo Fernandes Brazão enviou uma mensagem para o diretor do aldeamento enquanto a expedição ainda estava na floresta, relatando que uma nação indígena solicitou pagamento para coletar salsaparrilha de suas terras, e que ele já havia dado a eles tudo que tinha; os tripulantes também "entregaram suas próprias (das suas mãos) ferramentas adicionais, de tal modo que retiram as raízes da salsaparrilha com suas próprias unhas; e eu fui despojado de tudo, até mesmo meus sapatos; [o gentio] levou minhas meias e tudo o mais".90 Ele então solicitou mais suprimentos acreditando que o gentio, se corretamente pago, seria capaz de coletar uma boa carga de salsaparrilha e produzir grandes quantidades de farinha de mandioca, conforme indicado por seus números - mais de 1.500 pessoas no total. Ele ainda foi cuidadoso ao especificar que não havia ido ao "rio dos Mawés", já que isso continuava a ser uma preocupação oficial no final da década de 1770, mas estava confiante de que estava fazendo a coisa certa dando os suprimentos da canoa a essa nação não identificada.91
Uma última categoria de pessoas encontradas pelos tripulantes no sertão não deveria estar lá; trata-se dos escravos negros fugitivos e os índios que haviam fugido de seus aldeamentos. À luz da longa história de contatos amigáveis entre comunidades fugitivas e índios coloniais, esses encontros podem ter sido bem-vindos por ambas as partes.92 Ao mesmo tempo, eles forneciam aos tripulantes uma chance de demonstrarem sua lealdade ao governo e, talvez, conseguirem uma recompensa por seus serviços, se pudessem trazer com sucesso os fugitivos de volta às aldeias (no caso de índios ausentes) ou para seus proprietários (no caso de escravos). Quando os membros da expedição de Portel conseguiram convencer um grupo de 35 índios ausentes a acompanharem a tripulação de volta para a aldeia, eles receberam um raro elogio do diretor que escreveu ao governador sobre o "zelo, trabalho difícil e cuidado" com que os tripulantes cumpriram essa missão espontânea.93 Elogio similar poderiam ter recebido os tripulantes de Serzedelo por capturarem quatro escravos fugitivos, não tivessem eles escapado na primeira oportunidade.94 Em tais situações, um grupo tinha uma razão legítima para estar no sertão enquanto o outro estava lá clandestinamente, e não é inconcebível que tripulações de coleta tenham usado sua legitimidade como forma de conseguir favores; por exemplo, podem ter solicitado ajuda na coleta em troca de não dizer ao diretor o paradeiro dos fugitivos. Mas, se de fato havia tais arranjos, eles nunca chegaram à documentação.
Um tema comum atravessa os exemplos destes encontros: a oportunidade de fazer contatos bem longe de suas aldeias quer os tripulantes indígenas os buscassem ou não. Tais contatos não eram completamente isentos de limitações impostas pelo sistema de trabalho colonial - já que um cabo frequentemente aguardava para relatar sobre o comportamento dos tripulantes e vice-versa - mas a própria natureza das expedições de coleta assegurava amplo espaço para ação individual. Como intendentes gerais e outros oficiais reconheceram, a coleta de produtos da floresta era feita de forma mais eficaz quando os índios se dividiam em equipes menores, mais autônomas; quando aos pilotos era dada liberdade para dirigir tais equipes conforme julgassem correto; quando o cabo aguardava a chegada dos produtos e coordenava seu processamento; quando a expedição saía da rota conhecida para coletar em áreas inexploradas; e quando a tripulação tinha a opção de parar em localidades para reabastecer-se de suprimentos.
Conforme se procurou demonstrar até aqui, é impossível estabelecer a cumplicidade dos tripulantes nas ações atribuídas a seus cabos, ou determinar até que ponto atividades ilícitas ocorreram nas 149 expedições que resultaram em devassas positivas. O que realmente sabemos é que os índios coloniais percebiam uma gama mais ampla de opções dentro do sistema de trabalho do Diretório do que os historiadores tipicamente têm feito. Como o sargento Theodósio Ferreira que rejeitou sua promoção de posto para poder ir ao sertão, havia aqueles que preferiam a imprevisibilidade de uma expedição de coleta às atividades mais rotineiras da vida das vilas e lugares.
Ignorando a característica autônoma das expedições de coleta, os historiadores também perderam as implicações maiores disso para compreender a participação nativa em atividades orientadas para o mercado. Robin Anderson afirma, por exemplo, que "os índios não tinham nenhuma decisão sobre o que deveriam coletar, posto que todas essas escolhas fossem feitas em níveis mais elevados. Esperava-se deles apenas que produzissem conforme mandados por seus diretores" e que "aqui [lá] não há nenhuma evidência que sugira que os índios do Diretório tivessem qualquer concepção do potencial comercial ou dos lucros dos bens que produziam".95 Da mesma forma, em um artigo criterioso sobre os efeitos das políticas do Diretório na capitania do Rio Negro, Maria Regina Celestino de Almeida afirma que "todas as tentativas para suscitar o interesse dos índios na produção de excedentes foram frustradas".96 Com algumas exceções, a impressão recorrente da historiografia é que os nativos da Amazônia não apenas resistiram ao envolvimento no comércio do sertão sempre que possível, mas que as expedições de coleta operavam apenas mediante o comando de cabos coercivos e pelos interesses econômicos de não índios.97 Não é minha intenção minimizar o papel da coerção no recrutamento de tripulantes, a conduta na expedição ou os procedimentos de pagamento, mas, sim, destacar que muitos tripulantes indígenas eram capazes de usar as expedições de coleta para seu próprio proveito material. Uma pesquisa mais detalhada da documentação produzida localmente sobre as expedições revela um número significativo de exemplos nos quais os tripulantes defendiam seus interesses econômicos, solicitavam incentivos para trabalhar nas canoas de coleta e indicavam suas preferências para coletar nas condições que considerassem mais vantajosas. Num sentido mais amplo, portanto, populações da Amazônia colonial defendiam certo grau de autonomia comercial dentro do sistema existente de coleta patrocinada pelo Estado, quer individual ou em grupos.98
Em um caso conhecido, os tripulantes das vilas de Alenquer e Faro pediram para enviar seus produtos - cerca de 24 arrobas (aproximadamente 2.368 libras) de salsaparrilha e 90 canadas (cerca de 63 galões) de óleo de copaíba - direto para Lisboa nos navios da Companhia Geral de Comércio. Eles propuseram fazer isso "a seu próprio custo e risco", com a razão de que "esses produtos têm uma estimativa mais alta na cidade de Lisboa do que nesta [Belém], onde a mesma Companhia paga um preço bastante inferior àquele alcançado [além-mar]". Não é de se surpreender que os administradores da Companhia fossem contrários à ideia de permitir aos índios tratarem diretamente com compradores em Lisboa.99 Embora essa pudesse muito bem ter sido a única petição deste gênero, seu significado não deve ser ignorado. O comportamento dos tripulantes enquadra-se no tipo de mercado seletivo identificado por Steve Stern entre os montanheses andinos que, "voluntariamente 'engajaram' certos setores do mercado e oportunidades a fim de aliviar ou evitar outras opressões relativas ao mercado e a fim de resistir a uma rendição mais abjeta às forças do mercado e às demandas em termos que lhes escapassem ao controle".100 Os índios dessas duas localidades amazônicas - ambas localizadas bem longe da capital rio acima - estavam bem cientes do valor monetário do que coletavam e haviam tentado minimizar as discrepâncias de quem lucrava através deles sob o sistema comandado pelo Estado.101
Pagamentos e outros incentivos materiais, em muitos casos, motivaram a participação nativa nas expedições. Amiúde, diretores referiram esforços para incentivar a produção através do pagamento dos salários, a remessa de pagamentos em bens mais desejáveis e o fornecimento de outros tipos de bônus materiais. Se esses incentivos não fossem previstos, expedições de coleta podiam não sair para o sertão. Diversos diretores relataram que era difícil convencer os índios a participar de expedições sem terem recebido pagamentos satisfatórios no passado; os homens apenas concordariam em ir após terem a garantia de que a compensação adequada seria fornecida.102 Por exemplo, mais de vinte pessoas ausentaram-se de Serzedelo para evitar servir nas canoas de coleta e aqueles que ficaram ofereceram ao diretor três razões para o desaparecimento daqueles:
Primeiro, porque o cabo os tratou mal [durante as expedições anteriores] e não os pagou pelos serviços [extra] que concluíram na Cidade; segundo, porque seu pagamento pelos bens coletados foi feito na Casa do Erário em bens que eles não queriam, pois já os haviam [recebido] em anos anteriores; (...) e em terceiro lugar, devido à demora em lhes pagar, pois uma vez que retornassem aqui [na aldeia], já era hora de voltar a coletar, e não havia tempo para plantar em seus domicílios para a subsistência de suas famílias.
Índios descontentes podiam até incitar um motim no sertão. Um deles teria perguntado a seus companheiros de canoa: "Por que vocês devem se exaurir coletando quando na Cidade de Belém eles não os pagam bem[?]"; enquanto um outro supostamente tentou persuadir seus companheiros de que "eles não deveriam se cansar com trabalho, tendo sido ludibriados por alguns trapos do Tesouro".104 A desilusão entre os tripulantes foi um problema desde o início do Diretório. Nos idos de 1759, um governador notou as suspeitas dos índios de que os produtos por eles coletados beneficiavam apenas ao rei e que eles foram enganosamente levados a trabalhar por salários ou bens que não advinham do Tesouro; notou, ainda, a convicção dos tripulantes de que recebiam melhor remuneração quando os missionários patrocinavam as expedições.105
Os cabos desempenhavam um papel importante ao fornecer incentivos, alguns dos quais foram dados "por debaixo dos panos", a fim de compensar os pagamentos insuficientes do Tesouro. Os tripulantes passaram a esperar e mesmo a exigir essas iniciativas. Aparentemente, isso ocorreu porque, de acordo com um intendente, as quarenta e uma expedições de coleta do Pará e do Rio Negro consumiram 2.400 canadas (cerca de 1.674 galões) de aguardente por ano (uma média de cerca de 41 galões por expedição). Conforme explicou, "[o]s índios que vão para o sertão estão tão acostumados ao uso desta bebida que, quando está em falta, eles tomam a postura rebelde de se recusarem a trabalhar ou coletar qualquer coisa a mais". O fornecimento de aguardente terminou durante a expedição de 1761 ao lugar de Poiares, no rio Negro, e os tripulantes disseram ao seu cabo "que comprasse um pouco imediatamente, ou eles não continuariam trabalhando"; o cabo não teve escolha e acabou comprando uma frasqueira (recipiente que contém por volta de 10,5 galões ou 37,8 litros) de aguardente de um colono em troca de três arrobas (43,54 quilos) de cacau. Este era um preço exorbitante para se pagar por menos de uma dúzia de galões de cachaça produzida domesticamente, mas parece que a situação assim exigia. Conforme o autor apontou, até mesmo a legislação do Diretório sancionou a distribuição de aguardente aos tripulantes - o que implicava em reconhecê-lo como um mal necessário - enquanto proibia seu comércio nas aldeias indígenas.106 Na ausência de moedas, a cachaça era "o dinheiro do sertão".107
Outro incentivo habitual era o da potaba, um termo de etimologia tupi que significa "presente" ou "porção".108 Um diretor relatou que cada índio mantinha pelo menos meia arroba e até uma arroba inteira de salsaparrilha ou cravo (16 - 32 libras, ou 7,4 - 14,8 quilos) de sua própria colheita, "as quais eles normalmente chamam de potabas", e "esta quantidade entre um alto número de índios totaliza um grande número de arrobas (...) sem que seja possível saber onde vai parar". A implicação, é claro, é de que essas porções eram comercializadas ilegalmente para "espoliar" a expedição, embora o diretor admitisse sua própria ignorância em relação ao que os índios faziam com elas.109 Há alguma evidência de que as potabas serviam como um meio de trocas ilegais entre o cabo e a tripulação, uma prática que podia estar enraizada nas tradições nativas de presentear reciprocamente.110 As autoridades muito provavelmente não descobririam tais trocas a não ser que a relação entre o cabo e os tripulantes se rompesse devido a alegações de abuso, como foi o caso da expedição de Pombal em 1773. Na devassa subsequente, diversos tripulantes testemunharam que o cabo lhes dera pentes feitos de casco de tartaruga para serem pagos em produtos coletados ao fim da expedição. Conflitos surgiram quando os índios não puderam tirar proveito do acordo. Um tripulante disse que concordou em pagar sessenta canudos (pacotes) de cravo pelos pentes, mas conseguiu reunir apenas quarenta, o que quase levou a uma confrontação violenta entre eles. O diretor concluiu a devassa declarando que
Eu não perguntei mais nada porque aqueles que deveriam ter testemunhado não vieram para este inquérito, apesar de terem sido chamados diversas vezes; poderia ser por medo do cabo, já que ele não sai de sua casa, mesmo para se barbear ou se lavar, sem uma espada [catana] em suas mãos.
Podemos assumir que, na vasta maioria dos casos, o sistema da potaba beneficiou ambas as partes e, portanto, nunca entrou na documentação como uma forma de denúncia.
De acordo com os depoimentos das devassas, os índios sentiam-se realmente indignados quando os frutos de seu trabalho se perdiam. Os tripulantes da canoa de Almeirim testemunharam que seu cabo estava com pressa para sair do sertão e então aplicou calor demais ao torrar a salsaparrilha, fazendo com que queimasse, arruinando três semanas de trabalho. Como resultado, vários tripulantes abandonaram a expedição em repúdio ao "ver seu trabalho perdido" e outro chegou a ameaçar de morte o cabo. Em sua carta, o diretor concluiu que os índios não precisavam de um cabo para ter sucesso no comércio do sertão. Esta é uma afirmação um tanto surpreendente para um diretor fazer, à luz das ações rebeldes dos tripulantes; ela sugere que ele acreditou que suas ações haviam decorrido de uma angústia genuína pela negligência do cabo.112 E ele não foi o único diretor a dar aos índios o benefício da dúvida no que diz respeito a suas alegações sobre perdas econômicas ou reveses nas expedições.113
Se algumas autoridades acreditavam que índios coloniais tinham seus próprios interesses econômicos em jogo, pelo menos um contemporâneo proeminente tinha um ponto de vista oposto. O naturalista e viajante do final do século XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira, relatou que os índios "até mesmo praticavam a malícia" de queimar as partes da planta salsaparrilha que normalmente lhe permitiria reproduzir-se após suas valiosas raízes serem colhidas, "porque eles esperavam que a salsaparrilha se extinguisse de uma vez por todas, para ver se isso também extinguiria a perseguição que sofriam [como resultado de] sua preguiça e seu amor pela indolência".114 Embora a correspondência de âmbito regional descrevesse suspensão dos trabalhos e outros atos de protesto nas expedições, nunca encontrei exemplos como esse de tripulantes deliberadamente destruírem produtos ou sabotarem a expedição sem uma justificativa. É claro, nós esperamos que os depoimentos dos próprios índios nas devassas deixem de lado detalhes tão incriminadores, mas não os encontramos nem nas cartas dos diretores. Estas últimas fontes realmente retratam os índios de forma negativa, mas sem fornecer evidência do tipo de comportamento alegado por Ferreira. Se os tripulantes se envolviam em comportamentos rebeldes ou recalcitrantes no sertão, eram aparentemente relacionados a uma queixa específica ou ao que eles concebiam como transgressões dos seus direitos. Essas transgressões incluíam a negligência do cabo com os suprimentos da canoa ou produtos coletados, como no exemplo da expedição de Almeirim; aplicação de punição sem causa justa; e mesquinharia com suprimentos coletivos como aguardente, facas e anzóis.115
Os tripulantes também se opunham quando os cabos desrespeitavam suas preferências de coleta. Dois anos antes do incidente da salsaparrilha queimada e sob um cabo anterior, os tripulantes de Almeirim, amargamente, narraram como dezessete dos seus foram enviados para coletar salsaparrilha, apesar dos protestos de que o cacau era extremamente abundante naquele exato momento do ano (abril) e que eles não queriam perder essa colheita. Contudo, conforme o piloto colocou, "por causa de seu mau humor e o pouco crédito que dava aos índios", o cabo ignorou suas preferências e mandou o grupo à própria sorte por um mês inteiro - e apenas com uma parca provisão de farinha de mandioca. O cacau era um dos produtos prediletos dos índios para coletar, e não apenas por razões econômicas; ele crescia às margens de lagos e rios ricos de recursos e era ele próprio um lanche saboroso para se comer ao longo do caminho ou para fermentar para beber. Em contrapartida, a salsaparrilha era apenas encontrada nas florestas do interior, longe de água potável e de suprimentos alimentícios, a planta era coberta de espinhos e desenterrá-la era uma tarefa dolorosa.116 Em outro inquérito, os tripulantes de Serzedelo e Piriá declararam que seu cabo os chamara cedo demais da coleta do cravo, apesar de sua preferência de ficar e coletar até que a provisão de farinha de mandioca tivesse sido usada.117 Como as outras devassas que denunciavam os cabos, esses exemplos provavelmente representam as exceções e não a regra; sob circunstâncias normais, os cabos provavelmente levavam em consideração as preferências dos índios.
Não há dúvidas de que a maioria dos cabos exercia um grande poder e influência sobre os tripulantes e no curso das expedições. Ao mesmo tempo, os índios podiam recorrer ao seu conhecimento como navegadores e coletores para proteger seus interesses e perseguir suas próprias pautas sociais e comerciais. Tanto os cabos como os diretores estavam bem cientes do fato de que ninguém conhecia o sertão melhor do que um piloto de expedição ou tripulante experiente; isso pode ser o motivo pelo qual homens de sessenta e até setenta anos de idade às vezes apareciam nas listas de tripulação.118 O conhecimento nativo naqueles domínios forçava os cabos a dependerem dos índios em uma proporção não vivenciada por administradores de outros empreendimentos coloniais que requeriam mão-de-obra indígena (por exemplo, projetos de construção) e qualquer esforço para manter controle absoluto sobre as expedições geralmente era contraproducente. Relatando a deserção de toda a sua tripulação durante a rota, um cabo explicou, talvez com certa ironia, que o piloto "passara a viagem inteira me perguntando onde nós estávamos indo, e como eu lhe disse apenas que iríamos onde quer que eu ordenasse, ele persuadiu o resto a se unir a ele [em fugir]".119 Da mesma maneira, diretores faziam concessões aos tripulantes porque também dependiam deles para sua parte nos lucros. Como o diretor de Serzedelo concluiu de maneira pragmática: "seria prejudicial para a expedição se eles fossem contra a sua vontade".120
Em muitos casos, a participação nas expedições de coleta era, provavelmente, um meio de evitar tipos mais onerosos de serviço ou de resistir às demandas coloniais e de os índios engajarem-se em seus próprios termos. Tal padrão de participação foi, conforme Steve Stern sugere para populações andinas que voluntariamente participavam nos mercados coloniais, um esforço para potencializar suas possibilidades diante das pressões que o mundo colonial lhes impunha.121 Esse é o motivo pelo qual as devassas dos cabos, formatadas como inquéritos formais, são fontes tão ricas para nossa compreensão da complexidade com a qual os índios respondiam às pressões da vida colonial. As devassas revelam que os índios poderiam influenciar os termos de sua participação na economia extrativista como uma alternativa a resistir ao envolvimento nas expedições como um todo. À exceção daqueles casos em que terceiros adulteravam os depoimentos, os tripulantes podiam usá-los para que o cabo fosse repreendido ou demitido de seu posto, para protestar publicamente pelo que consideravam transgressões de seus direitos como tripulantes, ou para justificar suas ações no sertão para o diretor e para oficiais mais elevados em Belém.
A participação no comércio do sertão patrocinado pelo Estado foi apenas uma de muitas estratégias que os nativos da Amazônia desenvolveram para cumprir com suas obrigações para com o Estado colonial, enquanto perseguiam suas agendas sociais e recursos materiais que, de outra forma, permaneceriam inacessíveis.122 A participação nas coletas de expedição de fato envolvia riscos físicos e separações duradouras de suas famílias e comunidades, mas, para muitos tripulantes, as viagens ofereciam uma gama de oportunidades que incluíam comercializar com colonos ou grupos nativos independentes, visitar parentes em outros lugares, deslocar-se autonomamente e acumular ganhos. Além disso, as experiências dos tripulantes fora de suas aldeias os conectavam a uma variedade de pessoas, lugares e modos de vida, tanto dentro quanto fora das áreas de efetivo controle colonial. Tais experiências modelaram suas prioridades e interesses de tal modo que estrategistas coloniais não poderiam ter previsto quando eles ordenaram sua participação no comércio do sertão.
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